CAPÍTULO 1
EU PRONUNCIO O NOME

As áreas de combate da República Federal de Giad estavam situadas no noroeste do continente. Durante os dias sombrios do inverno, essas regiões não escapavam do domínio tirânico da Legion. No entanto, o solo congelado sob o manto de neve era tão duro quanto metal, tornando as quatro linhas de frente do norte relativamente preferíveis. Em contrapartida, as frentes sul e oeste eram brutais.

A neve que caía durante a noite derretia com a luz do sol e o calor atmosférico. A água resultante infiltrava-se no solo, transformando toda a área em um atoleiro. Não era uma camada de lama espessa o suficiente para impedir os Löwe e os Dinosauria, mas atrasava os obuseiros rebocados e os caminhões de suprimentos, além de atrapalhar a movimentação da infantaria blindada. Qualquer trincheira que cavassem ficava cheia, no fundo, de água gelada e lamacenta, drenando o calor corporal, a resistência e a moral dos soldados.

E isso era ainda pior para os pobres soldados da infantaria, que precisavam suportar o frio, expostos em seus uniformes pretos de combate e capas de camuflagem para neve.

O exército de aço marchava pelas trincheiras. O último soldado que havia ficado para lutar conseguiu, de alguma forma, rastejar para fora de sua posição, apenas para tropeçar em suas pernas congeladas e entorpecidas e cair. Antes que pudesse pedir ajuda, a perna semelhante a uma estaca de um Löwe o esmagou. Suas metralhadoras giratórias rugiram, disparando rajadas contra os soldados em fuga. Um momento depois, projéteis explosivos de 155 mm choveram, detonando acima das trincheiras suprimidas e lançando uma chuva de fragmentos sobre as máquinas assassinas. Este foi o último suporte de artilharia solicitado pelos soldados que acabaram de morrer.

— Agora! Avancem! Recuperem isso!

Barragens como essa eram disparadas em diversos pontos das trincheiras, posicionadas para atingir a Legion avançando de três direções diferentes. A infantaria saía correndo das trincheiras circundantes, chutando a neve enquanto corriam, mergulhando em trincheiras vazias sob a cobertura de fogo de seus aliados. Eles disparavam contra a Legion que sobrevivia ao bombardeio, mirando a curta distância com seus rifles ou utilizando os poucos canhões antitanque de 88 mm que possuíam. As trincheiras para as quais escorregavam estavam cobertas tanto por neve derretida quanto pelo sangue e restos mortais de seus companheiros.

As trincheiras exclusivas da Federação, que eram dobradas perpendicularmente para suavizar as ondas de choque, e as barreiras antitanque de aço e concreto estavam desgastadas e desmoronando após dias de combate incessante. A unidade blindada aliada havia sido recuada para a retaguarda, relegada à defesa móvel, e não estava lá para ajudá-los.

— Não há Vánagandrs para nos apoiar, e as unidades de artilharia estão ocupadas dando suporte para todos. Então somos os únicos que podem proteger este lugar!

O hábito de fumar havia se consolidado para ela desde a segunda ofensiva em grande escala. Um sopro de fumaça violeta escapou de seus lábios, dissipando-se no ar frio pontilhado de neve. A filha do comandante de artilharia, com seus longos cabelos negros e óculos de armação escura, contemplava o campo de batalha coberto por neve e lama.

As unidades de artilharia travavam suas batalhas a partir de uma distância segura, disparando munições de alto poder destrutivo a dezenas de quilômetros das linhas de frente. Não era tão caótico quanto as trincheiras posicionadas diretamente diante do inimigo, mas enquanto os combates prosseguiam, os pedidos de suporte de artilharia nunca cessavam.

Nos raros momentos de pausa entre uma batalha e outra, seus subordinados aproveitavam para fazer sua única refeição decente do dia: rações de combate compostas por um pacote de carne e biscoitos que podiam mergulhar e despedaçar no molho. Enquanto isso, ela buscava conforto em um cigarro e uma dose de cafeína de um substituto de café.

— Parece que as coisas estão agitadas do seu lado, garota da artilharia.

Ela olhou por cima do ombro, encontrando um jovem familiar — o comandante da divisão blindada. A divisão blindada também era chamada para interceptar o inimigo onde as trincheiras da infantaria estavam sendo rompidas, deixando pouco tempo para descanso. Contudo, aparentemente, eles haviam encontrado um momento para reabastecer e fazer manutenção. As armas blindadas, extremamente pesadas, desgastavam seus motores, exigindo manutenção constante proporcional ao tempo de operação.

Ele tinha um cigarro entre os dentes e um oficial não comissionado aproximou-se para acendê-lo. Seu casaco de tanque estava desbotado pelo uso excessivo, e o cansaço era evidente em seu rosto coberto de fuligem. Atrás dele, sua montaria mecânica de oito patas estava coberta de lama até a barriga.

— Digo o mesmo, garoto dos blindados. Parece que a ofensiva das sucatas não vai diminuir tão cedo.

— Infelizmente. Essa vai durar um bom tempo.

Ele forçou um sorriso, o cigarro preso na boca e os olhos apagados. A longa batalha o estava exaurindo, e não havia sinal de um fim próximo ou de uma virada a favor deles. Ele sabia que não conseguiria continuar se não forçasse, pelo menos, uma aparência de otimismo.

— Não estou contando, é só uma impressão minha, mas… tenho a sensação de que os números da Legion só aumentaram desde que essa ofensiva começou.

A filha do comandante de artilharia franziu o cenho.

— Acho que a Legion que antes era os Eighty-Six terminou o massacre na República.

— E mudaram seus métodos, além disso. Não estão mais apenas jogando números grandes contra nós para pressionar a frente. Estão observando como reagimos e atraindo as unidades menos organizadas, enviando a força principal para romper ali. Já dominaram setores com muitos reservistas várias vezes assim.

Para compensar as enormes baixas sofridas na primeira ofensiva em grande escala, o exército da Federação teve que recorrer aos reservistas e reduzir o tempo de treinamento. Soldados com educação e preparo insuficientes também eram menos disciplinados e organizados. Não podiam ser comparados aos veteranos que sobreviveram à última década da Guerra da Legion.

Esses novos soldados cometiam erros pequenos, mas significativos, e se desestabilizavam facilmente — talvez por inexperiência ou simplesmente por azar. Eles desmoronavam em situações em que os soldados experientes conseguiam resistir.

Shin respirou fundo, ajustando-se na cadeira enquanto olhava para Vika e Raiden ao seu lado. A sala de reuniões improvisada estava fria, mas não o suficiente para distraí-lo do plano que precisavam finalizar.

— Então vocês já estavam com tudo encaminhado antes do bombardeio por satélite interromper a operação — comentou Vika, um leve tom de aprovação em sua voz.

— Sim. Já tínhamos decidido o nome da operação, quais unidades participariam e a data, tudo antes da segunda ofensiva em grande escala — confirmou Shin, direto como sempre.

— Mas agora que a situação mudou, precisamos reexaminar as informações e reformular as unidades que irão participar.

Raiden cruzou os braços, a expressão fechada. Ele não parecia exatamente convencido.

— Reformular? Isso significa tirar alguns de nós do plano inicial? — perguntou Raiden, encarando Shin como se tentasse antecipar sua resposta.

Shin balançou a cabeça levemente.

— Não é bem isso. Precisamos ajustar os recursos e redistribuir as forças para lidar com a mudança de cenário. Não se trata de remover ninguém, mas sim de garantir que todos estejam no lugar certo.

Vika, sentado casualmente, tamborilava os dedos na mesa enquanto observava os dois.

— Ajustes ou não, as perdas recentes colocaram uma pressão considerável na capacidade operacional. Qualquer erro aqui pode significar não só o fracasso da operação, mas também mais perdas humanas.

O peso de suas palavras pairou no ar, mas Shin manteve a expressão inalterada. Ele sabia que Vika estava certo, mas também sabia que hesitar naquele momento não era uma opção.

— Por isso precisamos garantir que cada unidade saiba exatamente o que fazer. Esta não será uma operação simples, e qualquer desvio será desastroso.

Raiden soltou um suspiro pesado, mas parecia aceitar o raciocínio.

— Tudo bem. Só espero que essa reformulação seja suficiente para dar conta da situação. Não temos margem para errar dessa vez.

Shin olhou para os dois, sua determinação firme.

— Não vamos errar. Temos um plano, e vamos executar isso da melhor forma possível.

Eles sabiam que a estrada pela frente seria difícil, mas naquela pequena sala fria, a decisão deles era clara. Não havia espaço para falhas — apenas para avanço.

Operação Overlord.

Seu objetivo era tomar uma posição de comando da Legion e usar o sangue azul de Frederica, como imperatriz, para configurar os direitos de comando sobre a Legion. Como as máquinas assassinas ainda obedeciam à vontade moribunda do Império, ela poderia ordená-las a desligar ou autodestruir-se. Era uma grande operação que visava acabar instantaneamente e de forma decisiva com a Guerra da Legion. E, com a segunda ofensiva em larga escala cercando toda a humanidade e encurralando-a, era a última chance de virar o jogo no último instante.

— As unidades livres que esperávamos incluir na operação acabaram sendo implantadas em diferentes frentes para compensar as baixas, e não podem ser deslocadas… O problema é que não temos muito tempo para nos preparar.

Antes da reunião, Shin verificou o progresso com Joschka, que lhe contou que as divisões de elite sob o comando dos grandes nobres, mantidas fora de combate até então como reservas, estavam sendo enviadas para a batalha. Além disso, os nobres estavam considerando recrutar mais soldados para compensar o número insuficiente de tropas.

O grupo de ataque para a Operação Overlord precisava ser organizado. Assim, uma vez que Lena retornasse, ele queria que Frederica contasse a verdade a ela e a Grethe. Como comandante da brigada e comandante tática, Grethe e Lena precisariam de tempo para considerar a operação. Além disso, ter que esconder a verdade sobre a possibilidade de que a guerra poderia acabar em breve pesava sobre ele. Poder confiar em Vika sobre a operação lhe trazia um leve sentimento de culpa, no entanto.

Shin tinha a impressão de que Lena poderia acabar ficando estranhamente ciumenta se ele não contasse logo a ela.

Com essa preocupação — que era ao mesmo tempo estranha e insignificante no grande esquema da Operação Overlord — cruzando sua mente, Shin olhou para um mapa da frente ocidental exibido em uma tela holográfica. Raiden arqueou uma sobrancelha, aparentemente percebendo no que ele estava pensando, e Shin decidiu que iria chutá-lo mais tarde.

— Recentemente, várias forças da Legion de tamanho equivalente a um corpo de exército apareceram na frente ocidental. Essas forças não são do mesmo tamanho das que exterminaram a República… Se eu tivesse que adivinhar, um país sobrevivente ao oeste ou ao sul deve ter caído.

Deveria ser algum país do sul ou extremo oeste — com os quais eles não conseguiram estabelecer comunicação — ou talvez algum país do leste, extremo leste ou sudoeste.

Vika zombou.

— Novas unidades também apareceram nas frentes oriental e ocidental do Reino Unido. A da frente oriental provavelmente é a que destruiu os Países da Frota, mas não sabemos de onde veio a da frente ocidental. Sua suposição de que algum país deve ter caído provavelmente está correta.

— Mesmo um país grande como o Reino Unido e um montanhoso como a Aliança estão sendo pressionados. Faz sentido que países menores acabem sucumbindo… A Federação também não vai durar muito mais.

Mesmo apenas mantendo suas posições, o número de mortes aumentava, enquanto os números do inimigo só cresciam. Mesmo com refugiados entrando para o grupo de recrutamento, eles estavam começando a chegar ao limite do número de recrutas e reservistas disponíveis. A Federação realmente não duraria muito.

Eventualmente, acabariam em uma situação semelhante à de quando Vika usou todas as suas unidades Alkonost restantes para retomar a Cidadela de Revich. Nesse momento, as únicas opções eram apostar em uma solução decisiva, mesmo que imprudente, ou esperar até que o inimigo os esmagasse completamente.

— Sim… Então precisamos escolher o mínimo de forças necessárias e confirmar as informações que temos. Depois disso, agiremos.

Essa era a primeira vez que ela tinha a responsabilidade de explicar algo assim.

— Isso é sobre nossos planos para o momento. O Esquadrâo de Ataque  não participará de operações em nenhuma das frentes.

Reunidos na sala de briefing do QG estavam os capitães da 1ª Divisão Blindada — como Michihi e Rito — e seus tenentes, além de Shiden, que era a capitã da unidade defensiva do QG. E, diante deles, conduzindo a apresentação, estava Kurena, que parecia bastante animada. Claude e Tohru também estavam lá para fornecer informações adicionais, substituindo Anju, que estava ausente.

— Então permaneceremos em treinamento até sermos informados sobre nossa próxima operação… Não podemos todos tirar folga ao mesmo tempo, mas entre os treinamentos, faremos rodízios para descansar.

— Oooh.

— Sim, faz sentido.

— Além disso, engenheiros das forças da frente ocidental virão para estabelecer uma nova posição de reserva na faixa da Floresta Zasifanoksa próxima à base. Não ajudaremos na construção, mas podemos nos manter atualizados sobre sua estrutura.

Mitsuda, comandante do 5º Batalhão, levantou a cabeça.

— Posição de reserva? Achei que o exército da frente ocidental estivesse espalhado ao longo da posição de reserva na linha Saentis-Historics. Eles estão criando uma posição de reserva para a posição de reserva?

— A linha Saentis-Historics se tornou a nova linha principal após o trabalho de reforço ser concluído. Eles não querem recuar mais do que isso, mas precisam estabelecer uma posição para onde possam se retirar, caso seja necessário.

— …Ah. Se recuarem mais, alcançarão os campos e fábricas.

Todas as frentes da Federação, incluindo a ocidental, foram forçadas a recuar até o limite das zonas de combate. Embora a Federação tivesse o maior território do continente, ainda havia terras para onde poderiam recuar, considerando a extensão territorial. No entanto, da próxima vez que fossem obrigados a fazê-lo, estariam nas zonas de produção, onde ficavam as terras agrícolas e fábricas que sustentavam a vasta população da Federação.

Um exército de frente incluía dezenas de milhares de tropas. Distribuídas por uma área de terra, essas forças ocupariam cerca de cem quilômetros, incluindo as linhas traseiras. Eventualmente, ocupariam todo o perímetro externo das zonas de produção.

— Então precisam estar preparados para tudo, — disse Michihi, olhando para o teto.
De fato, resolutos em defender sua pátria, eles precisavam estar prontos para o pior.

Locan, comandante do 7º Batalhão, ergueu a mão.

— Eu entendo o treinamento para a operação, Kurena, mas e os suprimentos?

— Quanto às peças dos Reginleifs, receberemos o mínimo necessário no próximo envio.

O Esquadrâo de Ataque  operava em rodízio, com uma das quatro divisões blindadas de licença. Durante esse período, os Reginleifs dessa divisão eram enviados de volta para a fábrica para inspeção e manutenção. Mas agora, todas as quatro divisões seriam mobilizadas juntas para a operação, com todas as unidades disponíveis e aquelas programadas para inspeção sendo enviadas. Esse plano foi desenvolvido para resolver a questão.

Os capitães reagiram negativamente à expressão “mínimo necessário”, então Claude acrescentou:

— Eles não têm o suficiente para nos entregar a quantidade que precisamos, mas o Departamento de Suprimentos e o Arsenal estão completamente sobrecarregados agora. A coronel Grethe precisou fazer um grande esforço para garantir esse envio para nós, então sem reclamações. E, por favor, tentem não destruir suas unidades.

Os capitães assentiram com sorrisos forçados, mas Shiden comentou:

— Entendido, eu acho, mas se você vai pedir pra alguém não destruir sua unidade, talvez devesse começar falando com seu capitão, Claude.

— Verdade. Vou avisá-lo, — respondeu Claude com indiferença.

Mas isso não era brincadeira; ela realmente precisaria alertá-lo para não fazer nada imprudente com sua unidade dali em diante. Com esse pensamento, Kurena retomou o briefing.

Shin parecia ser frio e calculista, mas, na verdade, era bastante propenso a deixar o sangue subir à cabeça… Algo que Kurena só percebeu recentemente.

— Ah, sobre a chegada de novas tropas. Os civis de Vargus estão finalizando o treinamento na cidade de Fortrapide e vão se juntar a nós, principalmente como infantaria de apoio. Outras unidades não estão mais em posição de nos ceder infantaria.

— …Principalmente como infantaria?

Kunoe, o capitão do 6º Batalhão, suspirou. Era quase como se as novas tropas fossem destinadas a substituir os Processadores que poderiam morrer nas batalhas que viriam.

— Eu odeio isso… Achei que já estivesse acostumado, mas ver nossos amigos morrerem ainda dói.

Pelo menos até a Operação Overlord começar, pensou Kurena.

Os detalhes ainda não estavam decididos, então eles não podiam contar aos outros ainda. Mas, eventualmente, precisariam informar todos os capitães e Lena, que não estava presente. Também precisariam avisar Grethe. Apesar de ser coronel e não uma nobre, ela não sabia da verdadeira identidade de Frederica. Como comandante da brigada, ela precisava estar ciente da operação.

Shin e os outros conversaram com Frederica e decidiram esperar para ver como Ernst e os outros altos escalões do exército reagiriam. Mas, antes disso, Kurena precisaria pedir a Bernholdt para organizar uma reunião com os novos recrutas de Vargus e, também, verificar a formação defensiva…

Ufa…

Ser comandante realmente significava estar muito ocupada, pelo visto. Kurena franziu a testa, tentando disfarçar sua expressão.

— …Como você disse, se conseguirmos identificar o satélite de comunicações, poderemos confirmar se a base… se as informações da Zelene são verdadeiras ou não.

A Operação Overlord dependia da autenticidade da base, tornando isso a peça mais crucial para aumentar as chances de sucesso da operação. Shin mencionou o satélite de comunicações citado por Zelene como uma possível pista, e Vika assentiu.

— Se o Rabe se mover para operar no lugar caso ele seja perdido, isso implicaria que o satélite está em comunicação programada com a base, mesmo que via retransmissão. Nesse caso, localizar o satélite não deve ser tão difícil. Afinal, quando o bombardeio via satélite aconteceu, a Federação conseguiu notar a mudança no número de satélites que estavam lá em cima.

Satélites artificiais permanecem em órbita e flutuam a uma altitude elevada, escondidos acima do horizonte. Isso os torna difíceis de detectar, mas dependendo da potência de um radar, ele poderia localizá-los a uma grande distância, e em certas condições, até mesmo ser vistos a olho nu. Se os satélites que permaneceram em órbita após a segunda ofensiva em grande escala constarem nos registros desde o início da Guerra da Legion, era provável que o satélite que buscavam estivesse entre eles.

— Se conseguirmos identificar tanto a base quanto o satélite, poderemos registrar quanto tempo suas transmissões levam. De fato, se identificarmos uma transmissão, poderemos confirmar que é entre a base e o satélite… e, se tivermos sorte, talvez possamos transmitir diretamente uma ordem de desligamento ao satélite de fora, sem tomar a base.

Se o satélite fosse captado pelo radar, significava que estava dentro do alcance para que transmissões o alcançassem. Contudo…

— Isso é impossível, não é? — Shin cortou imediatamente.

— Provavelmente. — Vika assentiu, indiferente.

Se fosse possível transmitir ao satélite e atualizar a propriedade de comando sobre a Legion de qualquer lugar, Zelene não teria mencionado a base como a chave para desligar a Legion. Além disso, dado que não haviam decifrado a criptografia das comunicações que a Legion usava, falsificar uma transmissão seria difícil. E, claro, a segurança de um satélite militar não seria fácil de invadir.

Raiden, no entanto, interrompeu a conversa.

— Você não seria capaz disso? Invadir e falsificar.

— Não vou dizer que não sou capaz, mas… Pensando bem, Milizé me perguntou algo parecido recentemente. Se eu tivesse passado os anos em que trabalhei como comandante no front melhorando os Sirins, desenvolvendo sua inteligência artificial, talvez pudesse ter feito isso. Mas, se tivesse focado nisso, o Reino Unido não teria sobrevivido. Então, disse a ela que não tinha intenção ou tempo para isso.

Era possível do ponto de vista tecnológico, mas ele não tinha os recursos para realizar tal tarefa. Sendo assim, ele poderia fazer, mas não faria.

— Pare de dizer coisas complicadas…

— Invadir o satélite de comunicações provavelmente levaria todo esse tempo. Quer que eu me afaste do campo de batalha para fazer isso?

Seu país natal não conseguiria sobreviver por anos, então claramente não podiam esperar por isso. Mesmo sabendo disso, Sua Alteza fez aquela pergunta. Raiden deu de ombros.

— Não, precisamos de você aqui. Temos Lena e o Major Zashya para atuarem como comandantes na sua ausência, mas eles não podem consertar os Sirins.

— Falando demais, não é? — Mesmo dizendo isso, Vika exibiu um sorriso divertido.

Pensando nisso, Shin percebeu que havia parado de ouvir as pessoas chamarem Vika pelo apelido “Sua Alteza”. Refletindo sobre isso, ele trouxe a conversa de volta ao ponto principal.

— Primeiro, precisamos confirmar se o satélite está realmente funcionando… Isso não será suficiente para confirmar a base também?

— Será melhor do que nada, e esse é o trabalho do Departamento de Inteligência de qualquer forma… A propósito, você já ouviu como o Departamento de Inteligência fez a Rainha Impiedosa, que se recusava a responder qualquer coisa confidencial, finalmente falar?

— Hmm? Não.

— Tortura não funciona na Legion, certo? Devem tê-la forçado de alguma outra forma.

Vika tinha uma expressão de quem acabara de ouvir uma piada realmente engraçada.

— Eles usaram coerção… Leram os nomes de figuras importantes que morreram ou desapareceram durante a última resistência da facção Imperial, um por um, e depois fizeram Zelene repetir os nomes para identificar quem era um Shepherd e quem não era.

— …

Pronunciar os nomes que os Shepherds tinham em vida era uma violação de informações protegidas. Assim, se ela conseguia repetir um nome, ele não pertencia a um Shepherd, e se a proteção a impedia de fazê-lo, identificava aquele nome como um Shepherd. No entanto…

— …Não é só um monte de trabalho braçal?

Shin não fazia ideia de quantas pessoas estavam listadas, mas os nomes das figuras importantes provavelmente levariam muito tempo para serem lidos. Imaginar isso pintava uma imagem um tanto cômica.

— Os interrogadores se revezaram ao longo de vários dias, e isso fez Zelene superaquecer, causando problemas para ela algumas vezes. Tudo o que estavam fazendo era testar formas de questioná-la, então dá para sentir um pouco de pena dela quando o interrogatório real começar. Formular as perguntas certas também levaria um tempo considerável.

— Deve ser difícil pra eles… tanto para a Zelene quanto para as pessoas que a questionam.

Shin teve que concordar. Mas, além disso, ele teve uma realização.

— …Eles poderiam usar esse método para fazer com que ela revelasse o nome da unidade comandante dessa base. Se houver uma gravação da voz deles em algum lugar, algum velho registro de transmissão ou algo assim, poderei dizer se eles realmente estão na base…

Raiden e até mesmo Vika pareceram constrangidos por algum motivo.

— Não podemos ter certeza de que a unidade comandante dessa base é necessariamente da facção Imperial, mas sim, isso poderia funcionar.

— Então eles vão continuar lendo os nomes dos soldados Imperiais que já confirmaram serem Shepherds e perguntar se eles são os comandantes da base. Isso é um trabalho estúpido e repetitivo.

Isso significava que Zelene seria forçada a repetir essa tarefa estúpida inúmeras vezes. Shin pensou que queria vê-la ao menos uma vez antes da operação. Mas agora… sentia que precisava ouvir suas reclamações pessoalmente.

— Mas, Shin, você estaria bem com isso? Chegar perto das linhas de frente e daquela base causa um grande desgaste em você.

A distância entre as zonas de combate ativas e a base ainda era grande em relação ao Setor Eighty-Six. E com os Sheepdogs ativos, o que não era um problema na época, os lamentos da Legion estavam muito mais fortes agora. De fato, desde que a segunda ofensiva em larga escala começou, havia mais momentos em que o peso se tornava quase insuportável.

Mas Shin respondeu considerando isso. Sim, era mais difícil para ele, e ele apreciava a preocupação, mas… Bem, se ele insistisse em cavar sua própria cova.

— Sim. Então, cuide da minha papelada por um tempo, Vice-Capitão Shuga.

— O quê?! Mas você…!

— …Se isso é tudo que precisa para aliviar sua carga, ótimo, mas não podemos nos dar ao luxo de deixá-lo desabar antes da operação. Zelene confia em você, então seria ideal que você a questionasse. Além disso, afastá-lo do combate por um tempo é eficiente, pois também lhe dará tempo para descansar.

Ignorando as reclamações de Raiden, Vika deu seu conselho de forma casual, ao que Shin deu de ombros. O Esquadrâo de Ataque  certamente participaria da Operação Overlord. Shin não tinha a menor intenção de ficar fora dessa operação, e duvidava que qualquer um de seus companheiros desejasse isso.

Afinal, eles eram os Eighty-Six. Confiavam apenas em sua própria força e na de seus companheiros, e estavam resolvidos a lutar até o fim. O significado de sua batalha havia mudado para cada um deles desde que deixaram o 86º Setor, mas a vontade de lutar permanecia a mesma para todos.

E, como comandante, abandonar a unidade, mesmo que por pouco tempo, era uma decisão que Shin não podia tomar, tanto para acompanhar os treinos quanto para manter o moral da unidade.

— Não posso fazer isso.

Ao avistar Anju voltando do campo de manobras anexo à base ao lado de Dustin, que vestia sua jaqueta de tanque pela primeira vez em um bom tempo, Frederica correu para confirmar seu retorno ao serviço. Ele estava isento de operações e treinamentos no momento devido à Força Expedicionária de Alívio da República de San Magnolia.

— Ah, Dustin. Você já está bem o suficiente para andar por aí?

Mas, assim que fez a pergunta, Frederica percebeu o que havia acontecido e abriu um sorriso maroto. Não precisava ouvir uma resposta para ver que ele estava suficientemente bem.

— …Ora, ora.

Ele já parecia visivelmente exausto. Estava tão cansado que não conseguia nem levantar a cabeça, enquanto Anju, que contrastava com ele por não aparentar nenhum desgaste, deu um sorriso forçado.

— Ele está bem enferrujado. Está motivado, mas o corpo não está acompanhando a mente.

— Para minha vergonha…

— Eu já te disse, você pode voltar a ficar em forma e trabalhar seus reflexos, mas isso leva tempo para se acostumar… O que devemos fazer, então? Acho que não consigo treinar com você toda vez, do jeito que as coisas estão agora…

Ela estava livre naquele momento porque Kurena, Claude e Tohru haviam assumido o briefing, mas, com os preparativos para a Operação Overlord somados às suas responsabilidades como capitã de pelotão, ela estava bastante ocupada. É claro que ela estava pronta e disposta a ajudar Dustin a recuperar sua forma, mas não poderia fazer isso às custas de suas obrigações.

— Não se preocupe comigo, Anju, — disse Dustin, a cabeça ainda pendendo de exaustão. “Eu sei o quão ocupada você está agora. Vou pedir ajuda ao Yuuto ou… ao Ichihi — quem estiver disponível —, então eu vou me virar.

Ele mencionou os nomes de seus colegas do 6º Pelotão, mas estava tão cansado que não conseguiu pronunciar o segundo nome corretamente. E, com seu estado mental debilitado, acabou dizendo o que lhe veio à mente sem filtro.

— Quer dizer, idealmente, eu adoraria que você me ajudasse a treinar… mas nós já jantamos juntos todos os dias, e passamos um tempo juntos quando estamos livres. E colocamos aquelas flores secas juntos, e fazer buquês juntos foi divertido, então, honestamente, eu já estou satisfeito. Não posso tomar mais do seu tempo.

— D-Dustin?!

Anju olhou nervosa entre Frederica e Dustin, e, ao ouvir o tom de pânico dela, Dustin finalmente ergueu a cabeça e se lembrou de que Frederica estava presente. Frederica, por sua vez, parecia um pouco sem saber como responder a essa avalanche de declarações, e acabou decidindo sorrir com toda a bondade de uma Santa.

— Parece que vocês dois estão felizes juntos todos os dias.

— Ah, meu Deus…! — Anju saiu correndo, com o rosto vermelho como um tomate.

Dustin, ficando para trás e com o rosto tão vermelho quanto o dela, permaneceu parado enquanto Frederica o encarava.

— …Estar feliz juntos todos os dias é muito bonito e tal, mas saiba que Anju é como uma irmã mais velha para mim. Se a fizer chorar, independentemente do que o Shinei possa fazer, eu pessoalmente jogarei você para os Legion.

— Você soube disso…?! — Dustin olhou para Frederica, horrorizado.

— Claro que soube. Fui informada de cada pequeno detalhe, biquínis inclusos.

Dustin desabou no chão em desespero.

— De qualquer forma, isso é tudo o que sabemos por enquanto.

— Vou verificar o status de progresso da operação com Joschka mais tarde, e reportarei o que sabemos, além de dar nossos conselhos. Se os grandes nobres ainda estiverem reclamando sobre quais forças escolher, farei com que Ernst os coloque em seus devidos lugares.

— Fiel às suas palavras, você se tornou forte. Usando sua linhagem e apoio dessa forma.

— …Isso só acontece porque não temos tempo ou luxo para sermos seletivos com nossos métodos, —respondeu Shin com um olhar severo, mas que não era dirigido a Vika.

Seu pai adotivo era Ernst, o presidente da Federação. Conhecendo-o, ele resistiria à ideia de uma nova conscrição, o que era aceitável, mas seu trabalho não era apenas rejeitar ideias o tempo todo. Assim, em vez de conscrição, ele obrigaria os nobres a cederem suas tropas.

Se ele queria pregar seus ideais de não sacrificar crianças, de não sacrificar pessoas, de arriscar sua vida para defender o que vale a pena proteger, estava na hora de fazer um esforço para salvar pessoas sem ter que sofrer perdas.

Mas esse pensamento fez Shin estremecer. Havia outra razão para Ernst não aprovar a Operação Overlord.

— Há também… Frederica.

Com o tempo acabando e não havendo soldados suficientes, o alto comando militar poderia tomar medidas para conter a nova facção Imperial, que representava uma ameaça à segurança de Frederica. Durante a operação em si, o Esquadrâo de Ataque  estaria sempre por perto para protegê-la—usando suas conquistas até então e a importância de Shin como unidade de reconhecimento—mas desta vez, os nobres das casas Onyx e Pyrope enviariam seus subordinados. Isso significava que as unidades Pyrope também estariam na operação.

Muito provavelmente, isso incluía as unidades da nova facção Imperial—unidades leais à Arquiduquesa Brantolote, que buscava substituir a antiga linhagem Imperial. É claro que a Federação não sairia por aí expondo abertamente a sobrevivência da imperatriz para a nova facção Imperial, mas qualquer coisa poderia acontecer no campo de batalha. Eles teriam que assumir que as coisas não sairiam como planejado, e havia uma chance de que eles descobrissem.

— Não podemos dizer que ela morreu em batalha?

— Poderíamos, supondo que isso funcionasse…

Eles poderiam lidar com as críticas de levar uma jovem garota Mascote para o campo de batalha e fazê-la morrer, mas não podiam ter certeza de que isso realmente afastaria qualquer questionamento que surgisse.

— …Vika, no pior dos casos, ela poderia buscar refúgio no Reino Unido?

— Você está me perguntando isso sabendo que é uma proposta volátil. Não seja irracional.

Ele não poderia concordar com isso, afinal. Sua Alteza resmungou com uma expressão azeda e, com essa mesma expressão, acrescentou:

— Para começar, não deveríamos estar tendo essa discussão sem que ela esteja presente. Ela aceitou as coisas à sua maneira, e não devemos ignorar sua determinação. Assim como vocês…

Vocês, os Eighty-Six , não gostariam que outros menosprezassem seu orgulho.

Shin ficou em silêncio por um momento. Parecia que havia muito tempo desde então, mas fazia apenas um ano que eles haviam sido acolhidos pela Federação, e Ernst, Grethe e o povo da Federação feriram seu orgulho em atos que acreditavam ser de bondade. E ele estava fazendo a mesma coisa sem nem perceber.

— …Você está certo.

— Eu participarei na consideração de contramedidas, no entanto… Mas, sim, se os grandes nobres acabarem trazendo suas unidades mais fortes, podemos esperar a infame Divisão Crazy Bones do clã Nouzen. Como eles gostam de ser chamativos e de disputar glória, provavelmente podemos jogar todos os problemas complicados para eles depois.

O fato de ele ter sugerido isso de imediato mostrava que Sua Alteza estava sendo relativamente magnânimo desta vez. Enquanto Raiden e Shin o encaravam, Vika deu de ombros graciosamente, como se dissesse que era exatamente o que eles mereciam. Não Shin e Raiden, mas sim a infame e chamativa Divisão Crazy Bones.

— Tudo o que estou dizendo é que vocês não buscam glória, então podem muito bem deixar que eles recebam todo o crédito, para o bem ou para o mal. Eles podem não querer isso, mas, no final, colhem o que plantam.

Certamente, o Marquês Nouzen e a Marquesa Maika não eram tão velhos e senis a ponto de permitir que os heróicos Eighty-Six  roubassem toda a glória de sua família, dadas as circunstâncias.

Pelo menos, foi o que um certo jovem Nouzen disse com um rosto corajoso e um toque de arrogância.

Joschka deu de ombros de maneira amigável, um sorriso que ele não conseguiu conter surgindo em seus lábios. Eles estavam discutindo o desfecho das forças que participariam da Operação Overlord.

— Não é só o Shin; toda a família Nouzen vai se apresentar na linha de frente. Não é mesmo, Comandante de Divisão Yatrai Nouzen, da renomada e elitista Divisão Ossos Loucos da família Nouzen?

— Acho que é um uso melhor para essa unidade de elite do que deixá-la se desgastar lutando na lama — resmungou Yatrai, acenando com a mão, visivelmente irritado.

— E será uma operação conjunta com os Pyropes, então não estaremos sozinhos. É por isso que a Casa Maika, que se declara neutra, decidiu enviar sua Divisão Strix também.

Mas isso não era uma grande resposta para Joschka, que replicou com um sorriso. Eles tinham idades próximas e ambos eram oficiais militares, o que fazia com que conversassem ocasionalmente. Contudo, no fim das contas, Yatrai era um Onyx e, além disso, um Nouzen. Ele não suportava Joschka.

— Parabéns pra você. Apesar de já ser próximo do atual chefe da família, o filho mais novo de um ramo secundário se tornar o sucessor é algo que vai fazer maravilhas pela sua reputação.

— Nãããão! — Yatrai levou as mãos à cabeça e gritou.

Saboreando o chá elegantemente, com uma expressão tranquila ao lado de Yatrai, estava sua noiva, filha de um importante ramo da família Nouzen e vice-comandante da Divisão Ossos Loucos. Ela ergueu a cabeça, chamou os controles da tela holográfica que transmitia notícias ao fundo e aumentou o volume, encerrando a discussão entre Joschka e Yatrai.

— Perdão, Princesa. Fomos barulhentos?

— Não, Sir Joschka — respondeu ela, com os olhos fixos na tela.

Seus cabelos negros e volumosos estavam presos, com ondas que destacavam sua beleza. Seus longos cílios pretos cobriam olhos tão escuros quanto a noite.

— É só que… o conteúdo dessa notícia é um pouco perturbador, em relação à ordem pública na frente civil.

Falando em reforços, Rito se lembrou de algo.

— O Yuuto já não deveria ter voltado? Acho que fraturas demoram bastante para sarar…

Saki, que substituía Yuuto como comandante do 4º Batalhão durante sua ausência, resmungou como um gato:

— Mas os ferimentos dele já estão quase todos curados.

Saki tinha longas franjas negras que escondiam seus olhos dourados, com aparência felina. Seu físico ágil e esguio deixava evidente a origem de seu Nome Pessoal: Grimalkin.

— Mas, aparentemente, ainda não podem enviá-lo para o campo de batalha logo após sua alta do hospital. Ele deve ir para casa descansar e se recuperar.

Normalmente, um paciente permaneceria sob os cuidados de médicos e enfermeiros enquanto estivesse em estado grave e, assim que superasse essa fase, seria enviado para se curar em casa. Pelo menos, essa era a situação normal.

— Mas somos os Eighty-Six; nossa casa é esta base. Quando ele me ligou da última vez, disse que não o deixaram voltar porque sabiam que ele faria algo imprudente durante o período de recuperação. Isso aconteceu porque ele ignorou as enfermeiras quando elas o repreenderam por se mover demais.

— …É, acho que ele mereceu essa falta de confiança — comentou Tohru.

— Sinceramente, eu realmente preciso que ele volte logo — disse Saki, caindo no chão de mau humor.

— Ser comandante substituta não combina comigo… Você não sabe quando ele deve voltar, Kurena?

Kurena assentiu, percebendo o olhar de Saki. É claro que ela não sabia, mas Shin ou Grethe provavelmente saberiam, já que eram ambos oficiais comandantes.

— Eu vou perguntar.

Eu preciso evitar lugares cheios de gente.

E, apesar de chegar a essa conclusão, quando sua consciência clareou um pouco, ela conseguiu ouvir o som de inúmeras pessoas falando. Olhou ao redor, ainda com a mente confusa.

Estavam em um canto de uma praça no início do dia. A luz do sol brilhava no ar frio e claro de uma manhã de inverno, com inúmeras pessoas se movendo sob aquela escassa iluminação. Adultos vestindo casacos e capas quentes, crianças pequenas correndo com seus cachecóis esvoaçando atrás delas.

Havia barracas montadas, vendendo enfeites metálicos e de vidro para o Santo Aniversário, que se aproximava no fim do mês, além de blocos de manteiga dourada e grandes bolos cobertos de açúcar que pareciam neve em pó.

Não dá. Precisamos sair daqui.

Ela não conseguia se encontrar com os outros e também não tinha tempo suficiente para ficar com eles. E, ao menos, não queria envolver pessoas inocentes naquilo.

Mas, apesar de suas intenções, ela não conseguia mais se levantar. Incapaz de reunir forças para se esgueirar para fora do fluxo de civis, ela afundou de forma trêmula na antiga estrada de pedras.

Sentia-se mal. Sua visão estava turva, um suor frio escorria por sua pele e sua consciência começava a desvanecer novamente.

Os objetos estranhos escondidos dentro de seu corpo estavam amadurecendo rapidamente, ameaçando devorá-la de dentro para fora, mesmo naquele instante.

Não havia mais tempo. No sentido mais literal das palavras, nem mesmo um único segundo.

Mas ela não tinha forças para se levantar ou sequer rastejar, e seu corpo desmoronando não conseguia mais emitir som algum. Até mesmo o senso de dever que a fazia querer, ao menos, se mover para um lugar com menos pessoas, junto ao medo de seu destino iminente, havia se dissolvido no lento e turvo fluxo de seus pensamentos.

Uma sombra mais escura caiu sobre seu campo de visão nebuloso e apagado. Ela conseguiu levantar o olhar e viu uma figura ajoelhada à sua frente. Era uma mulher alguns anos mais velha, inclinada em preocupação após notar que ela estava caída no chão.

— O que aconteceu? Você está anêmica? Devo levá-la para algum lugar onde possa se deitar? Talvez eu consiga algo quente para você beber?

Sua voz soava genuinamente preocupada. De repente, todos os transeuntes pareceram olhar para ela. Ninguém expressou irritação. Um dono de barraca se aproximou para ajudar, e uma senhora levantou-se de um banco para oferecer um lugar onde ela pudesse se deitar.

Ahhh. Eu não quero envolvê-los. Eles são pessoas boas; não deveriam ser apanhados nisso.

Com todas as suas forças, ela obrigou sua garganta a se mover, pronunciando uma única palavra:

— Corram…

Essa foi a última palavra que ela pronunciou em sua vida.

O cão negro parecia ter intuído que o período de recuperação de Lena estava prestes a acabar. Ele rondava mais possessivamente do que nunca, como se dissesse: Você já vai embora? Fique mais um pouco!

Lena relutava em deixá-lo — e estava um pouco, não, extremamente inclinada a levá-lo com ela, mas sabia que não podia, porque Shin ficaria com ciúmes.

Enquanto o cachorro brincava ao seu redor, ela ergueu o olhar para uma transmissão de notícias sobre a frente oeste.

Como o sanatório não queria sobrecarregar a mente de seus pacientes, programas de notícias — especialmente os relacionados à guerra — não eram exibidos em locais de acesso público, como o refeitório. Mas, ao mesmo tempo, as pessoas ficavam ansiosas quando eram completamente isoladas das notícias, então apenas uma das salas de estar permitia essas transmissões.

Como estava prestes a voltar ao serviço, Lena decidiu ir até a sala para assistir à TV, mas, infelizmente, o cão negro que a seguiu correu na sua frente e bloqueou a tela com seu corpo grande.

— …Uma explosão?

— Na cidade de Garenike… uma cidade ao sul da antiga fronteira imperial — acrescentou um sargento sentado nas proximidades. — Houve uma explosão no mercado matinal.

O cão, que bloqueava seu campo de visão, finalmente se afastou, abanando o rabo alegremente, permitindo que Lena visse a tela parcialmente. O apresentador continuava falando, com as palavras sendo exibidas como legendas na parte inferior da tela.

A causa da explosão era desconhecida, mas uma investigação estava em andamento, considerando a possibilidade de ser um acidente.

Yuuto trouxe de volta todos os tipos de mantimentos, além de um rádio recarregável que havia adquirido com antecedência. Ele o comprou para se manter atualizado sobre o estado da guerra, mas, graças a isso, todos podiam ouvir programas musicais e leituras de dramas durante os intervalos da longa caminhada a pé.

Ouvir o rádio enquanto Yuuto saía pela manhã para buscar comida em cidades próximas era um pequeno e simples prazer para Citri. Na noite anterior, eles dormiram em um túnel antigo e desativado. Por estar fora da estrada, ninguém passaria por ali nem mesmo durante o dia, e, por isso, eles puderam permanecer no local mesmo após o amanhecer.

Imeno, que era rechonchudo e sempre fazia Citri se lembrar de um bolo chiffon, inclinou-se e perguntou algo a Ran, que era mais sério e se dedicava à responsabilidade de cuidar do rádio pela manhã.

— Ei, Ran, não podemos mudar para a leitura de drama como sempre?

Ran concordou e estendeu a mão para mudar a estação. Nesse instante, a transmissão de notícias que estava sendo reproduzida passou para o próximo tópico.

E, ao ouvir as palavras do apresentador, Ran, Imeno e Citri ficaram paralisados.

Porque o que acabaram de ouvir era a notícia que mais temiam.

— Uma explosão… um incidente…

— …Na cidade de Garenike.

— Não é… perto da casa que acolheu a Saya…?

Saya, uma de suas amigas do laboratório — uma das Actaeon. A última a quem haviam chamado para se juntar a eles nessa jornada, mas que no fim não veio.

Citri cobriu o rosto, tomada pela tristeza. Ela a havia chamado exatamente para evitar que isso acontecesse. Sabia que, de todas as pessoas, Saya era a que menos queria que isso acontecesse.

— Não conseguimos chegar a tempo…!

— Você é novo por aqui, garoto. Deve ser um dos evacuados dos territórios, não? Comprou bastante coisa.

— É, minhas irmãs mais novas estão cansadas e com frio, mas continuam ficando com fome, então eu tenho que fazer as compras.

— Ah-ha-ha, deve ser difícil ser o irmão mais velho da família. Mas tem que cuidar bem das suas irmãs, hein?

A senhora que cuidava da barraca de pão frito não duvidou da história inventada de Yuuto, e ele colocou alguns dos pães recém-assados dela em sua mochila. Alguns tinham truta marinha e cogumelos ao creme, enquanto outros eram recheados com frutas açucaradas. Sentindo o calor através da mochila, ele seguiu seu caminho de volta ao túnel nos arredores da cidade, onde Citri e os outros o aguardavam.

Embora seus passos fossem rápidos, ele não andava tão depressa a ponto de levantar suspeitas. O túnel abandonado ficava longe o suficiente para que as pessoas normalmente não se aproximassem. Mas ele queria entregar os pães ainda quentes, tanto porque não queria desperdiçar a boa vontade da vendedora quanto porque manter o vigor de todos no clima frio era o curso natural a se seguir.

Além disso, por mais que fosse um gesto comum durante o inverno, Citri e as outras garotas ficavam especialmente agradecidas quando ele trazia comida quente, o que o deixava com um humor muito… estranho. Comida simples e quente de uma barraca e refeições enlatadas aquecidas as deixavam incrivelmente gratas — de alguma forma, apesar de estarem dormindo ao ar livre há tanto tempo, ninguém no grupo de Citri sabia como acender uma fogueira.

…Eram diferentes. As crianças de escuta eram todas diferentes de Yuuto e dos outros Eighty-Six, que haviam sido forjados no campo de batalha. Diferente deles, que sobreviveram passando por cima dos corpos de seus companheiros, suas mãos estavam livres de sangue e morte.

— …Mm.

Ele parou onde estava, ouvindo a transmissão de notícias em um rádio na rua. Uma explosão em uma cidade na região da capital. O que o fez franzir a testa não foi o incidente em si. Citri já havia contado que existiam mais Actaeon além dos sete que embarcaram nessa jornada. E, entre os muitos Actaeon, nem todos necessariamente encontraram seus fins em segredo — como Totori, que havia escapado em segredo no outro dia.

Era possível que um deles acabasse morrendo na frente de outras pessoas — e, no pior cenário, essas pessoas poderiam ser envolvidas em seu destino. Isso era algo que Citri e as outras meninas nunca disseram em voz alta, mas Yuuto suspeitava. Era por isso que ele havia confiado a Amari a tarefa de reportar a situação ao exército da Federação.

O que despertou sua desconfiança foram as palavras do repórter: explosão inexplicada. Ele havia instruído Amari a relatar os Actaeon ao exército, então isso não deveria ser “inexplicado”, como se ninguém soubesse nada sobre os Actaeon.

— Será que eles não receberam o relatório? Será que algo aconteceu com Amari…?

Não.

— Eles estão duvidando das minhas palavras.

Ele pode não ter fugido das linhas de frente, mas desaparecer sem aprovação seria considerado deserção. E eles não levariam a sério o testemunho de um soldado desertor.

…Tudo foi em vão.

Balançando a cabeça uma vez, Yuuto seguiu seu caminho.

— Um dos países do leste deve ter caído, então.

Além das conclusões e conselhos sobre a base de comando, Shin informou Joschka sobre o aumento no número de Legion na frente ocidental. Joschka resmungou através da Ressonância.

— A pressão na frente ocidental, assim como nas frentes adjacentes, quarta sul e quarta norte, aumentou. O mesmo vale para as frentes próximas, primeira norte e primeira sul. Os ataques dos Legion às frentes segunda e terceira norte e sul também estão ficando mais frequentes. Provavelmente podemos assumir que eles enviaram quaisquer forças restantes para reforço nessas áreas.

Shin estreitou os olhos. As coisas estavam piores do que ele esperava. Na República, sua habilidade se estendia até os antigos territórios imperiais, mas não era vasta o suficiente para cobrir toda a superfície do maior país do continente. Ele esperava que os números do inimigo crescessem em uma ou duas frentes adicionais, mas não em tantas.

Joschka resmungou de maneira preocupada:

— Realmente temos que antecipar a operação, por mais difícil que isso seja. No ritmo em que os Legion estão avançando, não teremos quatro meses de folga.

Se alguma das nações humanas sobreviventes caísse, as forças Legion que lutavam contra aquela nação se juntariam à luta em outras frentes. E se aquele país já estivesse no limite, os reforços acabariam por derrubá-lo de vez, destruindo-o e liberando as forças Legion remanescentes para outro campo de batalha. Se esse ciclo se repetisse vezes suficientes, as frentes da Federação desmoronariam. E mesmo que isso não acontecesse, eles não teriam forças disponíveis para enviar à Operação Overlord, resultando em sua derrota.

— Teremos que recorrer ao recrutamento obrigatório, afinal.

— Talvez, como uma medida desesperada. Não queremos acabar raspando o fundo do barril, mas pelo menos teremos números para compensar as unidades blindadas que não temos durante a operação.

“Raspar o fundo do barril” — em outras palavras, soldados sem resistência ou talento, que não eram considerados capazes de completar nenhuma operação. Eram tropas descartáveis, das quais só se esperava que ficassem de pé, andassem e, talvez, apertassem o gatilho algumas vezes.

Ainda assim, com números suficientes, formariam uma força de combate. A eficácia de uma bala não era influenciada por moral ou habilidade, e um número grande de pessoas atirando poderia até compensar a baixa precisão. Soldados descartáveis também não exigiam processos de seleção, e um número elevado significava que não haveria necessidade de gastar tempo treinando-os. Mas, é claro, qualquer pessoa enviada ao campo de batalha era vista como alguém que não voltaria viva.

Isso significava que, mesmo que a Federação implementasse um alistamento obrigatório apenas para a duração da Operação Overlord, eles teriam que esperar por baixas massivas.

— Então, suas informações adicionais sobre a base são bem-vindas. Ah, e pergunte ao príncipe se ele pode nos fornecer algumas Sirins. Gostaríamos de enviá-las para missões de reconhecimento ao redor da base.

— Eu o avisarei.

— …Entre isso e rastrear os movimentos inimigos, sinto muito por te pedir tantas tarefas.

Shin fez menção de responder, mas foi brevemente distraído por uma memória. Quem tomaria as decisões finais sobre a Operação Overlord não era Joschka, mas alguém muito mais acima na hierarquia, e ainda assim…

— Por mim, tudo bem, desde que possamos mantê-la sob custódia durante a operação.

Ele sentiu o sorriso sugestivo por trás da resposta de Joschka.

— Pessoalmente, não me importo, mas… ela não deve desaparecer misteriosamente quando tudo isso acabar. O campo de batalha é um lugar caótico, então, se ela acabar sumindo, não podemos sair procurando por ela.

Shin captou de imediato a insinuação. Se ela desaparecesse durante o combate, não seria mais procurada… Não. Eles não permitiriam que fosse procurada. Afinal, o único valor que Joschka — ou melhor, a casa do Marquês Maika — via em Frederica era como uma ferramenta para pôr fim à guerra contra os Legion. Eles não tinham nenhum interesse em conceder mais autoridade ao arquiducado de Brantolote.

— Com certeza. E se ela morrer em batalha, isso causaria um dano irreversível.

— Isso seria o pior. Eu conheço uma tia chata e barulhenta que choraria sem parar se isso acontecesse. Então, é melhor ter cuidado, irmãozão.

Tenha muito cuidado e se prepare bem, para que a arquiduquesa Brantolote não perceba o seu plano — você precisa forjar uma morte clara e indiscutível para ela. Mesmo queimando a unidade dela, ainda sobraria um corpo, então é melhor que uma granada de tanque o exploda em pedaços.

Shin pensou nas muitas mortes terríveis que havia presenciado no Setor Eighty-Six enquanto Joschka levantava outra questão.

— Ah, e já que estamos falando de tarefas, tenho mais uma coisa para perguntar. Não houve nenhum Legion que tenha se infiltrado nos arredores de Sankt Jeder, seja minas autopropulsadas ou algo maior, certo?

Essa era uma pergunta estranha, ponderou Shin. A posição da capital era cercada por territórios de produção, com territórios de combate formando a circunferência externa desse círculo. Em outras palavras, a capital de Sankt Jeder era tão afastada do campo de batalha quanto possível. Mas ele verificou, como lhe foi pedido, e confirmou que não havia Legion ali.

Para ser exato, ele detectou alguns, mas estavam incrivelmente longe e difíceis de ouvir, com vozes já fracas para começar. Além disso, estavam no céu. Provavelmente eram Eintagsfliege sendo carregados pelo vento ou algo do tipo.

Como os Eintagsfliege eram leves e o bater de suas asas era fraco, não era incomum que isso acontecesse.

Enquanto tirava o RAID Device, se perguntando por que Joschka perguntaria algo assim, Shin passou pelo lounge e ouviu a voz de Guren.

— …Caramba, de novo.

— É assustador, não é? Isso está acontecendo repetidamente, mas ninguém declara quem fez isso ou por quê.

Tendo sintonizado nas notícias por coincidência, Guren e Touka conversavam sobre o que viam. Ao ouvir um trecho da transmissão, Shin chegou a uma conclusão.

— …Então era disso que ele estava falando.

Joschka havia perguntado sobre isso. Explosões haviam ocorrido na área da capital e em um território central adjacente. Até aquele momento, elas estavam sendo consideradas como ataques terroristas; já eram dez incidentes desde a primeira explosão em Garenike City, mas o responsável por eles ainda não havia sido descoberto.

A preocupação de Joschka, de que uma mina autopropulsada tivesse se infiltrado sob a camuflagem óptica dos Eintagsfliege e chegado até a capital, fazia sentido. Não era algo totalmente impossível, mas enquanto Shin estivesse na frente ocidental, ele certamente teria sentido isso, então não podia ser o caso. Além disso, mesmo alguém que nunca tivesse visto uma mina autopropulsada seria capaz de perceber que não era um ser humano. E se fosse uma mina autopropulsada, o incidente não teria sido reportado como um ataque terrorista — teria sido relatado como um ataque dos constructos.

Mas esse pensamento fez Shin franzir o cenho. Não era uma mina autopropulsada, mas exatamente por isso…

— …Imagino que as pessoas ao redor da capital devam estar ansiosas.

Em comparação com um ataque terrorista, houve poucas vítimas. Mas isso só queria dizer que algumas pessoas ainda morreram, e o pensamento de que você ou sua família poderiam ser atingidos tornava aquele fato pouco tranquilizador. Como os ataques eram esporádicos em termos de tempo e lugar, era impossível saber o que os bombardeiros queriam, e, portanto, impossível evitá-los.

Espero que descubram o que está acontecendo logo, Shin pensou enquanto se afastava.

Os ataques terroristas em série também eram uma questão desagradável para aqueles que os investigavam. Eram completamente inconsistentes em termos de tempo, local e o número de pessoas presentes — como uma série de explosões sem qualquer lógica ou padrão. Esses eram bombardeios aparentemente aleatórios, sem nenhuma reivindicação feita ou sequer uma única palavra anunciada. Nenhum movimento antigovernamental reconhecido ou outra organização havia assumido a responsabilidade. Não havia como adivinhar quais eram os motivos ou objetivos dos bombardeiros.

A única coisa que os incidentes tinham em comum era que os testemunhos de testemunhas oculares e as filmagens de câmeras de segurança ao longo da estrada revelaram que os culpados desses bombardeios eram todas meninas na faixa dos dezesseis a dezenove anos. E—

— De novo, há evidências de uma reação explosiva, mas nada mais.

Nada de corda ou pavio que seria anexado a uma bomba, nenhum receptor de rádio ou dispositivo temporizador. Nenhuma esferas ou pregos normalmente incluídos em uma bomba antipessoal. Nada disso foi descoberto em nenhum dos locais.

Por causa disso, havia muito poucos vítimas diretas desses incidentes em comparação com um bombardeio. Apenas aqueles diretamente adjacentes à detonação se viram envolvidos na explosão, e as pessoas que tentaram correr e acabaram pisoteadas eram em maior número. Em alguns casos, a única que morreu foi a própria bombardeira. Elas deviam ter explosivos presos em seus corpos, porque explodiram como se estivessem explodindo de dentro para fora.

E quando mais filmagens de segurança precisas e testemunhos oculares chegaram, os investigadores ficaram ainda mais confusos.

— …A bombardeira disse: “Corre”?

A bombardeira então explodiu imediatamente após, mas um comerciante próximo disse que definitivamente ouviu isso dela. A filmagem de uma outra bombardeira mostrou claramente ela evitando locais povoados e indo para um beco, onde então explodiu. A garota estava muito instável sobre seus pés, e assim que ela virou a esquina, seus pés pararam perto de um gato vagabundo, e ela explodiu.

Esta foi, de fato, a parte mais inexplicável de tudo. Eles foram tão longe a ponto de detonar explosivos no meio de uma cidade, apenas para procurar evitar vítimas, com um número surpreendentemente baixo de mortes que só poderia ser explicado por tentarem minimizar o número de feridos. Uma garota explodiu enquanto estava escondida em uma casa abandonada, e uma delas chegou ao ponto de explodir no meio de um campo com ninguém por perto.

Mas então um investigador olhou para o rosto da garota em um vídeo congelado.

— Essa garota… Eu já a vi em algum lugar antes.

Seus colegas imediatamente levantaram o olhar, curiosos, enquanto ele fitava pensativo as imagens. Com as sobrancelhas franzidas, tentava puxar pela memória. Não conseguia identificar exatamente, então não era alguém que ele conhecia pessoalmente, mas…

— Foi recente… Certo, foi uma ordem de pessoa procurada. Sim, uma que o exército compartilhou com a gente…

E, ao se lembrar disso, ele assentiu. Mesmo naquela ocasião, já tinha achado algo estranho sobre as garotas.

— Ela era uma das Eighty-Six que fugiram quando estavam recolhendo os grampos.

Amari imediatamente entregou o relatório, como Yuuto havia pedido, mas o desagradável PM ignorou e descartou suas súplicas, preferindo focar na “deserção” de Yuuto. Continuou questionando-a sobre para onde ele tinha ido e com que propósito, mas, se ela dissesse que ele estava “voltando para casa”, para a República, ele não acreditaria. E, se não ia acreditar em nada do que ela dissesse, ela preferia não dizer nada.

Isso aparentemente a marcou como cúmplice, e ela foi proibida de sair do centro de recuperação. Isso atrasou seu retorno a Rüstkammer, deixando-a sem opção a não ser passar o tempo no lounge, com energia de sobra e nada para fazer.

Notou uma sombra entrando pela porta do lounge. Levantando os olhos enquanto descansava a cabeça sobre a mesa, avistou o mesmo PM desagradável. Ele olhou ao redor e, ao encontrá-la, caminhou até ela com passos firmes.

— …O quê? Já te contei tudo — disse Amari, com uma expressão amarga.

O PM respondeu com uma expressão rígida. Ao lado dele, estava um soldado mais velho e desconhecido, que, pelo distintivo de patente, era seu superior.

— É verdade. Eu não te ouvi. Disse que passaria seu relatório adiante, e não passei. Me desculpe… Por favor, nos conte tudo mais uma vez. Tudo que sabe, tudo que ouviu.

— Então… Acho que a Federação não é tão homogênea assim.

Enquanto assistiam às notícias sobre os atentados, que haviam se tornado constantes na TV, Annette disse isso para Theo enquanto tomavam chá juntos, algo que haviam começado a fazer com mais frequência. Theo voltou seus olhos jadeados para ela. Seus colegas os observavam com frieza, mas o relacionamento entre eles não era nada digno de nota.

Annette ergueu uma sobrancelha fina e olhou para a grande TV da praça de alimentação.

— Eles realmente mencionam muitos grupos suspeitos diferentes. “A frente de libertação nobre” para cá, “a igreja da purificação” para lá… E sim, a frente de libertação faz sentido; é um grupo que pede a independência dos territórios ocupados pelo Império, mas…

— Pois é… — Theo já tinha ouvido coisas assim sobre a Federação, ou melhor, sobre o Império. — Eles já tinham problemas entre si quando o Império existia.

As rivalidades na Federação se tornavam mais evidentes quando alguém ingressava no exército. Havia preconceitos entre os ex-nobres e os civis, entre os Ônix e os Piropos, e também contra os Vargas, como Bernholdt já lhe contara.

E no Reino Unido, havia a divisão entre os vassalos e os servos, e, dentro dos próprios vassalos, havia a rivalidade entre os Iola e os Taaffe. Mesmo entre os Eighty-Six, existia preconceito contra aqueles com sangue de Alba ou de nobres imperiais. As coisas provavelmente eram parecidas dentro do Império.

A língua de alguém, sua cultura, classe social ou traços raciais com os quais nasceu. As pessoas eram desprezadas e excluídas pelos detalhes mais insignificantes.

— A Kurena me disse que enviaram uma unidade militar só por rivalidade com o avô do Shin. Se o alto escalão do exército ainda é assim, provavelmente é o mesmo em toda a Federação… Ah.

Theo interrompeu-se e virou-se ao perceber que os passos que ouvia ao fundo estavam se aproximando da mesa. Um oficial subalterno com uma braçadeira da polícia militar se aproximou com um grupo de oficiais. Eles acenaram para Theo e voltaram os olhos para Annette, que parecia surpresa.

— Com licença… Você é a Major Henrietta Penrose, certo?

Tendo pegado um voo de transporte da base mais próxima para o sanatório, Lena parou na capital para fazer uma conexão de volta a Rüstkammer.

Ao chegar lá, ela foi recebida de forma inesperada.

— Hã…?

— Coronel Vladilena Milizé, eu estava esperando por você.

Ele tinha mais ou menos a idade dela, o que significava que era um oficial especial. Um garoto Ônix de cabelos pretos e olhos negros, com um olhar ao mesmo tempo direto e que não permitia que ninguém lesse suas intenções. Ele usava o distintivo de segundo-tenente e, embora estivesse à espera dela, Lena não se lembrava de tê-lo conhecido antes… Ou melhor, não.

De repente, ela o reconheceu. Era o ajudante do Comodoro Willem Ehrenfried, o chefe do estado-maior da frente ocidental; ele estava sempre atrás do comodoro, como uma sombra.

— Peço que me acompanhe e não resista.

Dustin se levantou de um salto, chocado. O noticiário estava sendo exibido em uma grande tela de TV no primeiro refeitório da base de Rüstkammer. Três dos terroristas responsáveis pelos atentados foram identificados: Hina Shinaga, Saya Hiyo e Yukiri Hakuro. Todos eram Eighty-Six que haviam desaparecido de suas casas, e a polícia estava à procura de seus colegas que haviam sumido na mesma época, considerados suspeitos-chave. Caso algum deles fosse avistado, não deveriam ser abordados, mas imediatamente denunciados às autoridades.

As fotos de várias garotas apareceram na tela, e uma delas—uma garota com cabelos dourados e olhos violetas brilhantes. De pele clara e aparência etérea, com traços faciais gentis.

Ele nunca poderia esquecê-la. Mesmo uma década depois e com ela mais velha, Dustin não a confundiria com ninguém. Ela era sua colega de classe… sua amiga de infância. Uma garota que ele acreditava ter morrido após ser levada para o Setor Eighty-Six junto com a maior parte de sua cidade em uma única noite.

— …Citri…?

O âncora do noticiário leu seu nome sem expressão. Citri Oki.

Lena não conseguiu voltar no dia previsto para seu retorno—em vez disso, chegou a notícia de sua prisão. A mensagem em si não mencionava a palavra “prisão”, mas ela foi levada sob custódia contra sua vontade e trancada, o que na prática era uma prisão. Tratamento claramente inadequado, considerando que ela não sabia de nada.

— …O que é isso? Por que fizeram isso?

Enquanto Shin a encarava com indignação, Grethe, que estava sentada do outro lado da mesa, não o repreendeu pelo tom.

— Surgiu um problema de segurança. Dito isso, a Coronel Milizé não é responsável por nada disso… Capitão, você viu as notícias sobre os ataques em série com bombas?

Shin franziu a testa, desconfiado. Conferir as notícias durante o café da manhã fazia parte de sua rotina diária, então ele sabia, em linhas gerais, do que se tratava… Na verdade, a caminho dali, tinha ouvido as notícias sobre os suspeitos ao passar pelo lounge.

No entanto, ele não percebeu que Grethe evitou deliberadamente chamar os ataques de terrorismo.

— Você sabe por que estão fazendo isso?

— Não o motivo, mas como… Pode perguntar os detalhes para ela e falar comigo depois.

Grethe fez um gesto com os olhos em direção a alguém que ele não havia notado sentado na sala de estar. Amari. Ela se levantou nervosamente. Desde a operação na Mirage Spire, ela estava ferida e havia sido enviada para se recuperar na capital. Pensando bem, estava prestes a retornar à base, mas Shin não tinha recebido notícias sobre sua alta ainda.

Sua expressão habitual, séria, parecia dessa vez inusitadamente aflita e frágil.

— Me desculpe, Capitão. Eu ia relatar isso; não achei que as coisas terminariam assim…

— Amari, está tudo bem. Explique o que aconteceu. E…

Outra pessoa deveria voltar da capital ao mesmo tempo que ela. Se ela já tinha retornado, ele deveria ter voltado antes.

— …Onde está Yuuto?

Quando entrou em uma sala no quartel-general, Annette, que estava sentada ansiosa na beirada de um sofá, se levantou.

— Lena!

— Annette. Você também…?!

Lena a abraçou apressadamente ao se aproximar, e as duas ficaram juntas por um momento. Ver os olhos prateados da amiga suavizarem levemente com alívio permitiu que Lena lhe desse um sorriso tranquilizador. Mas então, ela se virou para outra pessoa que entrou na sala. Sua postura mudou instantaneamente de aliviada para autoritária.

— Exijo uma explicação, Segundo-Tenente. Qual é o significado disso?

— É uma medida de segurança — respondeu o jovem oficial com voz calma, apesar de basicamente ter prendido Lena e a levado para aquele pequeno edifício anexo ao quartel-general militar em Sankt Jeder.

Ele colocou o baú dela e a transportadora do TP, que havia tirado de suas mãos, ao lado dos sofás e continuou. Era uma instalação de alojamento para oficiais de alta patente, com uma suíte adjacente e mobília luxuosa e adequada ao ambiente.

— Acredito que esta seja a primeira vez que nos encontramos, Major Penrose. Permita-me apresentar-me. Segundo-Tenente Jonas Degen, afiliado ao estado-maior geral da frente ocidental. Sou ajudante de ordens do chefe do estado-maior, Comodoro Willem Ehrenfried.

Ele repetiu o nome completo e a afiliação que já havia dito a Lena. Mas agora, diante de dois pares de olhos prateados fixos nele, Jonas devolveu o olhar e deu sua posição real, que não havia revelado a Lena antes.

— Mas, no momento, atuo como o único filho da família Degen, que trabalha sob a liderança da família do Marquês Ehrenfried. Em outras palavras, meu mestre, Willem Ehrenfried, está colocando você sob custódia para sua proteção, e estou aqui para manter as aparências perante o restante do exército.

Lena franziu o cenho. Certamente não era a melhor forma de explicar aquilo.

— …Sob proteção dele?

— Sim. Proteção. — Jonas assentiu sem rodeios.

Seus traços eram sinceros e jovens, quase infantis, mas sua expressão fria ocultava seus pensamentos e emoções.

— Peço desculpas por tudo ter ocorrido de forma tão repentina. No entanto, isso está bastante relacionado às duas. Quem recebeu o relatório deixou de informá-lo ao superior, e agora estamos muito atrasados…

— Isso não são ataques terroristas. Pode ser algum tipo de nova mina autopropulsada.

O comentarista do programa transmitido pelo governo tinha uma expressão grave, refletindo a gravidade da situação. E o que ele dizia era igualmente sério:

— Todas as Eighty-Six desaparecidas faziam parte das dez mil crianças-soldados Eighty-Six que resgatamos há um ano. Não é impossível imaginar que um novo tipo de mina autopropulsada, uma que seja indistinguível de um humano, possa ter estado entre aquelas dez mil.

Não, isso é impensável. Que ideia absurda.

Mesmo sem considerar a habilidade de Shin, essa teoria parecia impossível, pensou Theo, irritado. Sua raiva vinha, em grande parte, do fato de Annette ter sido levada diante de seus olhos, e ele ter sido impotente para impedir. Os policiais militares haviam se comportado de forma educada o suficiente, mas isso se limitou à conduta deles. Annette estava visivelmente confusa e assustada ao ser subitamente cercada e levada. Theo tentou intervir e detê-los, mas um dos oficiais previu que ele faria isso e se adiantou para interceptá-lo.

Theo perguntou ao oficial do que se tratava, mas tudo o que ouviu foi que era uma “medida de segurança”. Ele sabia que o exército operava sob o princípio da informação restrita, mas, emocionalmente, ele não conseguia aceitar aquilo.

Tendo presenciado tudo e ciente do quanto ele estava chateado, os colegas de Theo o deixaram em paz por enquanto. Mas o programa na TV continuava, indiferente ao ocorrido.

— Ou talvez seja alguma arma biológica da Legion. Seja como for, é possível que a Legion esteja misturada às críticas amplas e descontroladas que as forças armadas têm enfrentado desde o início da segunda grande ofensiva.

Ele podia ouvir seus colegas, que também assistiam ao grande televisor, murmurarem com irritação.

— “Arma biológica”? Do que ele está falando? Não é como se um vírus pudesse transformar pessoas em bombas.

— Não, ele provavelmente acha que são monstros que vieram de algum laboratório ou algo assim.

— Ele assiste a muitos filmes. Será que ele já viu uma mina autopropulsada na vida real? Só sendo cego para confundir uma dessas com uma pessoa.

As minas autopropulsadas não tinham olhos, nariz ou boca; seus membros dobravam-se em direções impossíveis, e elas rastejavam de quatro como animais. As pessoas eram enganadas por elas em combate porque os campos de batalha eram lugares caóticos, e elas conseguiam se aproximar sorrateiramente, mas não eram tão bem feitas a ponto de alguém confundi-las com humanos após uma boa observação.

— Quero dizer, talvez não desse para notar se elas fossem realmente projetadas para parecerem humanas… Mas a Legion não consegue fabricar armas que pareçam humanas, nem tampouco armas biológicas.

Havia uma anedota que circulava entre os soldados da Federação como uma piada. O Império havia proibido a Legion de criar e utilizar armas biológicas, para não mencionar o tipo de “arma biológica” que se vê em filmes.

E, para impedir que essas armas mecânicas, capazes de aprender e evoluir, encontrassem brechas nas ordens, foi-lhes dada uma definição extremamente rígida do que constituía uma arma biológica. Como resultado, unidades aliadas que carregavam até mesmo uma simples faca eram consideradas como violando essa proteção, forçando a Legion a desarmá-las. Por causa disso, a Legion, criada para servir como arma para o Império, não conseguiu lutar ao lado dos soldados imperiais.

— Além disso, se existisse algum vírus que pudesse transformar pessoas em minas autopropulsadas, todos que estão lutando na linha de frente já seriam minas. Especialmente os Eighty-Six—eles estão batalhando contra elas há anos.

— …Corta essa.

Enquanto outro soldado o repreendia, a expressão do primeiro congelou. Ele olhou para Theo de forma constrangida, mas Theo apenas levantou a mão e acenou de forma displicente. Desta vez, no entanto, ele não disse que estava tudo bem.

E o programa de notícias continuava, alheio à atmosfera constrangedora que criava.

— Podemos presumir, então, que as condições são semelhantes na linha de frente. Em outras palavras, é possível que nossos soldados da Federação estejam lutando, sem saber, lado a lado com minas autopropulsadas. Quem sabe, talvez todos na linha de frente sejam minas autopropulsadas—

— Não, isso é impossível! — gritaram todos na sala em uníssono.

Assistir comentaristas fazendo teorias tão absurdas de maneira tensa e exageradamente séria proporcionava aos soldados da linha de frente, que tinham poucas opções de entretenimento, um pouco de alívio cômico.

— Espera aí, vocês ouviram isso, pessoal?! Nós somos minas autopropulsadas! — gritou um soldado com surpresa exagerada, arrancando gargalhadas de todos os outros ao redor do rádio.

— Ai não, vou explodir! Mamãe, preciso ir para onde a Legion está!

Todos caíram na gargalhada, abraçando o próprio corpo de tanto rir. Começaram a mencionar nomes de pessoas que poderiam realmente ser minas autopropulsadas—comandantes odiados, recrutas egoístas ou tropas voluntárias da República.

— Mas e se minas autopropulsadas realmente tivessem entrado no país?

Ali viviam suas famílias, e a ideia de que elas pudessem se ferir deixava os soldados ansiosos. Precisavam rir disso para aliviar a tensão.

Jonas falou, seus olhos negros frios e sem emoção:

— Certamente, vocês viram a série de atentados a bomba nos noticiários. As culpadas—ou melhor, aquelas garotas—são, sem dúvida, as vítimas aqui…

Amari, com seus olhos cor de noz e típicos dos Eighty-Six, falou com tristeza na voz:

— Essas garotas são chamadas de Actaeon. A República as usou—usou os Eighty-Six—para transformá-las em bombas suicidas.

As diversas proteínas que compõem o corpo humano são formadas por aminoácidos, com base no RNA presente nas células do corpo. Quando um vírus invade o organismo, as células infectadas passam a se replicar com base no RNA do vírus em vez do próprio. Existem também bactérias fúngicas chamadas diazotróficas, que sintetizam nitrogênio da atmosfera para produzir amônia, funcionando como pequenas e elaboradas fábricas químicas do tamanho de uma célula.

Pesquisadores militares da República conseguiram usar RNA para criar células artificiais, estruturas baseadas em proteínas que convertem nitrogênio em compostos nitrados. Outras células artificiais, que coexistem com as primeiras, possuem RNA que converte os compostos nitrados e o glicerol—matéria-prima da gordura—em outra substância.

Normalmente, quando esses dois tipos de células são introduzidos no corpo de um sujeito de teste, ambas permanecem dormentes. Contudo, uma vez ativadas, elas se espalham para outras células no corpo como um vírus, injetando seu RNA e transformando essas células em fábricas químicas que produzem um composto específico baseado em nitrados.

Em outras palavras — nitroglicerina. A matéria-prima para criar dinamite.

De alguma forma, a Federação conseguiu descobrir a pesquisa ultrassecreta Actaeon e associá-la aos atentados suicidas.

Quando questionada sobre por que fizeram algo assim, Primevére apenas mordeu os lábios.
Pesquisadores e oficiais de alto escalão do exército da República, assim como funcionários do governo republicano, haviam sido levados para interrogatório em uma instalação policial de Sankt Jeder.

— Tentamos recriar as minas autopropulsadas.

Ela não podia falar a verdadeira razão na frente de pessoas que não eram suas compatriotas Celena. Ninguém poderia saber sobre isso, nem a Federação, nem mesmo seus concidadãos Alabaster e Adularia da República.

— Fizeram isso para defender a nobre raça Celena.

As células criadoras de nitroglicerina (apelidadas de “Dear”) foram injetadas no Actaeon. Se conseguissem implementá-las totalmente, não haveria mais necessidade de treinar soldados ou se preocupar com a falta de efetivo. Não haveria mais necessidade de considerar se as pessoas eram capazes ou estavam dispostas a lutar, nem de se preocupar com idade ou resistência física. Qualquer um poderia ser utilizado.

No fim, os Alabaster e Adularia subordinados aos Celena se tornariam uma fonte abundante de pessoas que poderiam ser convertidas em armas para defender o país. Assim, mesmo que todos os Eighty-Six perecessem diante da Legion, o Actaeon poderia ser usado para proteger o território. Isso era muito mais eficiente e simples do que o 86º Setor, que exigia tanto Processadores quanto Juggernauts.

— As armas blindadas do nosso país, os Juggernauts, já foram vítimas de minas autopropulsadas no passado. Nesse caso, minas autopropulsadas também poderiam ser eficazes contra a Legion.

E assim, ela não podia revelar o verdadeiro propósito para ninguém que não fosse Celena. Em vez de fornecer a razão real, Primevére transformou o meio — a utilização das minas autopropulsadas — na justificativa.

O interrogador sentado diante dela não usou violência, mas emanava uma aura ameaçadora que sugeria que ele não hesitaria em recorrer a isso, caso necessário. Por conta disso, ela não teve escolha senão falar, movida pelo medo.

— Felizmente, os Eighty-Six tinham forma humana e eram mais inteligentes do que cães ou gatos. Ao transformá-los diretamente em minas autopropulsadas, poderíamos lutar contra a Legion sem depender dos Juggernauts… Que razão teríamos para não desenvolver esse método, então?

O pessoal do laboratório nos campos de refugiados dizia isso, mas Citri, Kiki e as outras garotas do projeto Actaeon sabiam que não era verdade.

Sim, garotas. Todas as Actaeon eram jovens mulheres na adolescência tardia.

As mulheres tinham uma porcentagem de gordura corporal maior do que os homens e tecidos adiposos maiores nas regiões do peito, pelve e coxas, excedendo o necessário para a sobrevivência. Além disso, sua capacidade de engravidar — o ato de carregar outra forma de vida dentro do próprio corpo por um longo período — permitia que seus corpos isentassem objetos externos da rejeição pelo sistema imunológico em determinadas condições.

E… garotas eram menos úteis do que garotos na luta contra a Legion.

— O que somos, Yuuto… Somos armas para serem usadas contra os Eighty-Six. Quando a guerra contra a Legion terminar, seremos usadas para eliminar qualquer Eighty-Six que sobreviver.

Parecendo exatamente como os Eighty-Six, elas viveriam ao lado deles e, quando chegasse a hora, explodiriam para matá-los.

— É provável que tenham sido planejadas como armas antipessoais. Já ouvi um relato assim. Uma fita de demonstração mencionava que, se a República atacasse, eles contra-atacariam não apenas com soldados da República, mas com todas as criaturas que conseguissem encontrar.

Tudo isso aconteceu antes do nascimento de Vika. A fita mostrava imagens ampliadas de células artificiais devorando rapidamente adipócitos, crescendo em tamanho e eventualmente explodindo. Depois disso, um porco corria em pânico atrás de vidro à prova de explosão, antes de se romper em uma explosão muito maior do que qualquer carga explosiva que poderia ter sido colocada em seu estômago.

A República era um país agrícola que dependia da pecuária. Seu vasto território, na época, estava repleto de inúmeras ovelhas, cabras, vacas, cavalos e porcos — o número de animais de criação era significativamente maior do que a própria população da República.

— Nitroglicerina. Assim como está, é instável demais e reage com facilidade, então, como na dinamite, usa-se um plastificante para reduzir sua reatividade. De qualquer forma, não tem força suficiente para danificar a blindagem frontal de uma arma blindada. Contra a Legion, a República teria que usá-la em grandes quantidades e a curta distância, como fazem as minas autopropulsadas. E, já que a nitroglicerina não tem força suficiente, deve haver algum tipo de truque para compensar isso. Mas, quando usada contra alvos humanos, todas essas falhas deixam de ser um problema.

A República empurrou o campo de batalha para o distante 86º Setor e a luta para os Eighty-Six. Eles não sabiam que a Legion havia superado seu limite de vida e achavam que o fim da guerra contra a Legion estava próximo. Assim, caso algum país sobrevivesse, seria necessário começar a preparar combates antipessoais.

Lerche falou com uma expressão de desgosto ao mencionar que já tinha ouvido sobre tais táticas sendo usadas ao longo da longa história de combate da humanidade.

— Soldados tendem a baixar a guarda perto de mulheres e crianças.

Elas viriam com uma flor na mão ou implorariam por doces. E, uma vez que os soldados se aproximassem, as mulheres e crianças se transformariam em bombas suicidas, eliminando os soldados inimigos.

— Não, Lerche. — Zashya balançou a cabeça.

— Vai além disso.

Era disso que tratava a fita de demonstração. Provavelmente havia sido distribuída como um alerta para outras nações na época, caso a República obtivesse os materiais necessários para experimentos humanos…

— Elas seriam usadas principalmente em prisioneiros de guerra… Imagine se um prisioneiro resgatado, de repente, se tornasse uma bomba suicida? Seja na linha de frente ou, pior ainda, na retaguarda, onde deveria ser seguro e pacífico.

Lerche franziu as sobrancelhas com desagrado. Vika concluiu a explicação com frieza.

— Isso poderia acontecer na Federação. As pessoas começariam a suspeitar que aliados presumidos são, na verdade, inimigos. Duvido que tenham feito isso ser infeccioso, mas mesmo assim.

— Coronel Milizé, Major Penrose, certamente vocês entendem. Devemos colocá-las sob nossa proteção, tanto para sua segurança pessoal quanto para que este país mantenha sua forma como Federação.

Apesar de suas palavras, Lena e Annette não puderam concordar. Elas permaneceram em silêncio, rejeitando claramente a proposta, mas Jonas sequer franziu a testa. Elas eram frágeis Celena, e ainda por cima oficiais mulheres. Mesmo que resistissem fisicamente, seriam tão impotentes quanto um par de gatinhos para Jonas. Apenas o silêncio delas não representava muita coisa como forma de resistência.

— Como seu guarda e atendente-chefe, assumirei total responsabilidade por sua segurança e conforto. Contudo, sou um homem, e não seria apropriado atender às necessidades de duas senhoras, então a Casa Ehrenfried enviou subordinados para cuidar de vocês.

Algumas soldados mulheres entraram silenciosamente na sala e se curvaram. Todas eram Onyxes de cabelos e olhos negros, e cada uma delas tinha os traços claros, porém estranhamente esquecíveis, típicos da antiga nobreza imperial. Por gerações, haviam se disciplinado para servir como sombras de seus mestres, não sendo notadas a menos que fosse necessário.

— Elas servirão como seus escudos, caso algo aconteça. Mas, no caso de a situação exigir que saiam deste quartel, algumas delas devem sempre acompanhá-las.

Fundamentalmente, Lena e Annette não deveriam sair desta sala. As duas não responderam a essa instrução implícita, mas Jonas ignorou o silêncio delas. Afinal, assim como havia dito antes…

Grethe retomou a conversa após Amari, com a expressão rígida, mas a voz suave.

— Não podemos enviar a Coronel Milizé para a linha de frente até que o incidente Actaeon seja resolvido. Você entende o porquê, Capitão, certo?

Grethe não tinha intenção de trazer Lena de volta por enquanto.

A raiva queimava nos pensamentos de Shin, mas ele conseguiu suprimí-la por pouco. Explodir contra Grethe ali e agir como uma criança birrenta não resolveria nada. Mais importante…

— …Ainda assim, esta prisão é desnecessária. Não podemos registrar uma reclamação?

Grethe piscou lentamente.

— Sim. Claro.

— Exijam que ajam de forma rápida e diligente para resolver isso, e que confirmem o retorno imediato dela assim que a situação estiver resolvida. Digam a eles que a 1ª Divisão Blindada do Esquadrão de Ataque não trabalhará sob o comando de ninguém além dela.

Ao sair do escritório, ele conseguiu, de alguma forma, manter uma fachada de compostura e fechou a porta gentilmente atrás de si. Mas então sua raiva irrompeu, e ele não conseguiu se conter.

— Merda!

A intensidade com que ele exalou a palavra fez Amari, que havia saído da sala com ele, se sobressaltar. Ao vê-la recuar instintivamente, Shin se forçou a se acalmar. Ele respirou fundo e perguntou novamente.

[Azure: Calma Shin no fim tudo vai dar certo… Eu espero!]

— O Dispositivo RAID do Yuuto… Ele o tirou durante o tratamento, certo? Ele tinha algum outro meio de comunicação?

O Actaeon pediu a Yuuto para levá-los de volta para casa. Como um companheiro Eighty-Six, Shin podia imaginar o que Yuuto estava pensando e sentindo. No entanto, foi um tanto surpreendente que Yuuto, frio e sem emoções como parecia ser, tivesse realmente concordado com o pedido. Mas Shin não questionou o motivo por trás disso.

Eles pediram para voltar para casa, depois de terem sido privados do direito de retornar. Para o campo de batalha do Setor Eighty-Six. Então, se Yuuto tivesse entrado em contato e pedido ajuda, Shin teria feito o que fosse possível para ajudar. Shin não teria dito para ele não fazer isso, e o mesmo provavelmente valeria para qualquer outro Eighty-Six.

Yuuto sabia disso. Então, por que ficou em silêncio? Por que escondeu isso de todos, como se fosse uma traição?

— Ele não podia levar vocês com ele para isso.

Amari balançou a cabeça.

— Nós somos companheiros Eighty-Six, afinal… Se ele tivesse contado para você ou para a Saki, ou para qualquer um do Esquadrão de Ataque, vocês seriam vistos como responsáveis por isso. As pessoas diriam que o Esquadrão de Ataque colaborou com o Actaeon.

— Tch.

Shin prendeu a respiração. Então era isso que Yuuto temia. O Actaeon era formado por Eighty-Six, e muitas pessoas já tinham se perdido. E Shin e o Esquadrão de Ataque também eram Eighty-Six.

— Ele não podia deixar que o Esquadrão de Ataque — todos os Eighty-Six — fossem responsabilizados por isso.

Citri falou, encolhendo os ombros. Eles estavam escondidos em uma cripta nos arredores de uma igreja abandonada localizada na fronteira entre os territórios de Miana e Nareva.

— Sinto muito, Yuuto. Eu não queria que as coisas terminassem assim. Nem as garotas que causaram os bombardeios queriam.

Logo pela manhã, o rádio informou que outra garota do Actaeon havia se explodido em algum lugar. Ao ouvir a tragédia se repetir, Citri e as garotas do Actaeon ficaram desanimadas.

— Nós só queríamos voltar para casa antes de morrer. Deixar nossos novos lares, para não machucar ninguém. Era só isso que queríamos; não queríamos mais nada, e acabou assim… Tantas pessoas acabaram morrendo por nossa causa…

Kiki continuou, parecendo estar à beira das lágrimas.

— T-talvez devêssemos ter… nos matado. Se isso tinha que acontecer, talvez devêssemos ter acabado com tudo quando a Federação nos acolheu. Assim, outras pessoas não teriam que morrer por nossa causa. Nós já sabíamos disso, mas…

Yuuto a interrompeu, balançando a cabeça.

— Eu sei que vocês não queriam isso. A informação simplesmente não chegou a tempo. Não é culpa de vocês.

Os soldados da Federação eram muito mais diligentes do que os preguiçosos Supervisores da República que Yuuto conhecia, e isso o fez esquecer a possibilidade de que o relatório não fosse repassado. Grethe e os oficiais com quem trabalhavam normalmente levavam os Eighty-Six a sério, sempre ouvindo seus relatórios e opiniões. E por isso, ele assumiu que todos os soldados da Federação agiam da mesma maneira.

Mesmo que fosse claro que eles apenas viam os Eighty-Six como cães de caça capazes e nada mais.

Mas, ao ouvir os sussurros cheios de culpa de Kiki, Yuuto fez uma pausa para refletir e continuou.

— Você sabe como os Shepherds… como os comandantes da Legion são frequentemente baseados nos Eighty-Six?

Kiki piscou, confusa.

— …Sim.

— A Legion conseguiu superar sua vida útil limitada porque usou os Eighty-Six como base. Então, isso não significa que todos os Eighty-Six deveriam ter se matado antes de serem capturados pela Legion, para evitar que a guerra continuasse?

Kiki o olhou, atônita. Citri engoliu em seco. Yuuto prosseguiu, com os olhos abaixados em pensamento. Seus olhos escarlates, como chamas, pareciam brilhar intensamente.

— Se alguém me dissesse isso, eu não concordaria. Não acho que seja certo simplesmente desistir e morrer pelo bem da humanidade.

E por isso, também, essa responsabilidade não recaía sobre Citri e as outras garotas. Nem Yuuto achava que era sua culpa por ter fugido da Federação sem avisar. Ele não iria dizer às garotas que elas eram culpadas por não terem tirado a própria vida, que sua mera existência era uma ameaça para todos ao seu redor e que deveriam ser trancadas até morrerem.

Julgar outra pessoa… Sim, decidir sobre a vida de alguém…

— Não é a coisa certa a dizer. Pelo menos, é o que eu penso.

A Legion estava fazendo mais do que apenas pressionar todas as frentes, procurando unidades inexperientes para destruir e abrir caminho.

<<<Composição de unidades em todas as frentes da Federação analisada — mudando a operação para a segunda fase.>>>

A Legion foi originalmente criada para substituir soldados comuns, oficiais não comissionados e oficiais subalternos, e até mesmo as unidades de comando que controlavam a rede unificada de todo o exército da Legion não necessariamente possuíam as estruturas cerebrais de oficiais de alta patente e comandantes.

Mas, entre eles, estava a unidade de Comandante Supremo No Face, um Shepherd com a personalidade e memórias do Coronel Václav Milizé, da República, um comandante de alta patente. E ele sabia que o golpe que levaria o exército inimigo ao colapso não precisava ser alcançado apenas pela violência direta.

<<<Alvo prioritário definido. Foco em acampamentos com maioria de soldados da República. Acampamentos com maioria de reservistas. Acampamentos com maioria de tropas de minorias. Em paralelo, iniciar bombardeio de longo alcance nas áreas traseiras.>>>

Por todo o território da Legion, estendiam-se trilhos de trem capazes de suportar suas catorze centenas de toneladas de peso. As pernas mecânicas, semelhantes a garras, do Morpho rangeram sobre os trilhos recém-construídos enquanto seguiam para as dez frentes da Federação.

Uma delas era conhecida pelo codinome Nidhogg. Era a mesma unidade Morpho que havia interrompido o trem durante a operação de evacuação da República, cujo fogo anunciou a queda da República. Após ser abatida pelo Kampf Pfau, foi reconstruída no mês seguinte e agora estava se dirigindo para o novo campo de batalha na frente oeste da Federação.

E suas últimas palavras foram:

É a nossa vez. Nossa vez. É a nossa vez.

Sim, tinha o grito agonizante de um Eighty-Six. Alguém que deliberadamente escolheu se tornar um Shepherd para se vingar da República, tornando-se um fantasma mecânico ocupando a unidade de controle de uma máquina de matar.

Seu ódio era intenso o suficiente para abandonar a própria vida, e simplesmente queimar as pessoas da República vivas não era suficiente para aplacá-lo. Sua sede de sangue ainda não havia sido saciada.

Chegou ao ponto de disparo, fixando a mira nas coordenadas designadas. Nidhogg sabia o que estava nasquelas coordenadas. Um impulso semelhante a uma risada encheu seu cérebro de Micromáquinas Líquidas.

Ainda é a nossa vez.

Nossa vez de vingança, de vitória, de massacre. Podemos começar, certo? Posso começar, não posso? Ainda é a nossa vez. A partir de agora, sempre, sempre será a nossa vez. Certo?

[Azure: Rapaz que odio e esse…]

Múltiplos Morpho apareceram na região ao redor do território da Federação. Seu fogo ultrapassou as linhas de frente firmemente construídas e as formações de reserva estabelecidas atrás delas, atingindo as supostamente seguras e pacíficas cidades e vilarejos com projéteis de 800 mm.

 

Azure: E meus caros leitores e assim que damos inicio ao Volume 13 de 86 vendo muita merda rolando os cara prendendo a Lena por nada o Shin ficando puto por causa disso e ate deixando um pouco dos seus sentimentos aparecer e expressando eles kskskssk

 

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