Spice and Wolf - Volume 5 - Capítulo 2.1 - Anime Center BR

Spice and Wolf – Volume 5 – Capítulo 2.1

Volume 5

Capítulo 2.1

Bem, suponho que as coisas sejam assim,” murmurou Lawrence.

“Hmm?” Holo olhou para ele, seu rosto meio escondido pelo copo do qual ela bebia.

“Nada. Não derrame isso.” “Mmm.”

Holo bebeu seu copo da famosa cerveja forte de Lenos e depois pegou um marisco ligeiramente carbonizado.

Os mexilhões que foram retirados do rio que passava por Lenos, o Roam, eram do tamanho da mão de Holo. Uma iguaria famosa na cidade era feita pegando a carne macia dos mexilhões, misturando-a com migalhas de pão e servindo-a na concha. Servida com sementes de

 

 

mostarda, era difícil imaginar um acompanhamento mais refinado para uma boa cerveja.

Holo soltou um grito de prazer ao ver as muitas barcas ancoradas ao longo da curva do porto, mas seu coração logo foi roubado pelos aromas deliciosos que pairavam sobre dos vendedores de alimentos, que tinham suas barracas montadas para alimentar passageiros famintos. Estivessem eles começando ou terminando suas viagens.

Eles se sentaram em uma mesa construída com caixas de madeira velhas; na frente de Holo havia três porções de mexilhões, além das duas cervejas que ela já havia drenado.

Lawrence suportou um olhar desagradável de Holo quando pediu vinho quente, não muito diferente do que Arold bebia antes.

Com essa acidez, tudo o que ele precisava agora era tempo de apreciar adequadamente o vinho.

“Ainda assim,  à  primeira  vista,  não  parece  haver  nenhum problema em particular com a cidade,” disse Lawrence.

Caixas do tamanho de um homem estavam sendo descarregadas por grupos de mercadores, que imediatamente começaram a discutir sobre o conteúdo, qualquer que fosse ele.

Um porto desse tamanho movimentava uma quantidade impressionante de mercadorias. E mesmo sem o porto, ficava claro desde a primeira vista que uma cidade como essa exigia uma concentração maciça de materiais.

Não era apenas a comida necessária diariamente. Por exemplo, a indústria madeireira precisava não apenas de madeira, mas também de ferramentas — serras, cinzéis, pregos, martelos — portanto, metalúrgicos viriam à cidade para reparar e manter essas ferramentas. A embalagem e o transporte terrestre de madeira precisavam de corda, couro e cavalos ou burros, além do cuidado exigido pelos animais — a lista continuava sem parar.

Além disso, o simples fato da cidade ser um porto significava que os construtores de navios e suas ferramentas eram um comércio ativo,

 

 

assim como os próprios navios. Somente uma divindade onisciente poderia esperar compreender as quantidades e variedades de bens envolvidos.

Olhando para a avassaladora vivacidade e energia desta cidade portuária diversa, quaisquer pequenos problemas sutis seriam imediatamente perdidos na confusão.

Usando uma faca que havia pegado emprestado de Lawrence, Holo habilmente pegou o molusco picado da concha e enfiou na boca, examinando o ambiente ao ouvir as palavras de Lawrence. Ela então tomou um gole de cerveja. “De longe, a floresta pode parecer calma, mesmo quando duas matilhas de lobos estão em uma feroz batalha por território dentro dela.”

“Mesmo com seus olhos e ouvidos, você não pode perceber isso de longe?”

Holo não respondeu imediatamente, olhando para baixo com um olhar exageradamente grave e contraindo os ouvidos sob o capuz.

Normalmente, Lawrence ficaria impaciente com Holo, que o provocaria, mas hoje ele tinha seu vinho quente. Ele tomou um gole e esperou a resposta dela.

“Está vendo aquilo ali?” Ela perguntou depois de um tempo, apontando com a faca para um homem cercado por algum tipo de vapor. O homem se encostou em um balde grande, da altura da cintura, que havia sido cheio até a borda com rochas finamente esmagadas. Ele era musculoso e não era difícil imaginá-lo como um pirata.

Ele  fez  uma  careta,  e   o   objeto   dessa   carranca   era um mercador magro segurando um pacote do que poderia ser pele de carneiro.

Lawrence assentiu em resposta à pergunta de Holo. “O homem está com raiva,” disse ela com seriedade. “Oh?”

 

 

“Parece que o imposto sobre a carga do navio foi muito alto e ele não quer entregar as mercadorias pelo preço original. Algo sobre o preço da cabeça?”

“Um imposto de reféns. Porque os navios que sobem o rio são essencialmente reféns do proprietário dessa parte do rio.”

“Mm. De qualquer forma, a resposta do sujeito magro é a seguinte: “A cidade está em crise porque os militares não realizaram sua campanha no norte este ano.” Ele está dizendo que eles deveriam ficar gratos por receber algum dinheiro.

Todo inverno, a Igreja financiava uma grande campanha militar nas terras do norte, como uma maneira de mostrar seu poder, mas havia uma sombra sobre o relacionamento entre a Igreja e a nação de Ploania,  pela  qual  sua  campanha  passava,  de  modo  que  a incursão deste ano foi cancelada. Como consequência, Lawrence havia sido levado à beira da falência.

Lawrence olhou para Holo um pouco surpreso. Ela continuou a ouvir atentamente, a cabeça baixa e os olhos fechados.

Então Lawrence olhou para os dois  homens. Mesmo  a  essa distância, ele podia ver o mercador dar ao marinheiro o que parecia ser sua palavra final sobre o assunto.

“‘Nesse caso, você e essas peles podem esperar o resultado da reunião,’” disse Holo, abrindo os olhos.

Era exagero considerar que ele estava dependendo demais de Holo? Lawrence se perguntou.

“Existem muitas conversas como esta. Eu diria… umas quatro. Os impostos estão muito caros. Campanha do norte. Importações da cidade — e assim por diante.” Holo raspou a carne de um molusco enquanto falava. Quanto mais carne se acumulava na lâmina da faca, mais sua atenção se voltava para ela.

No momento em que ela finalmente trouxe o monte de carne à boca, a lâmina poderia o mundo inteiro para ela.

 

 

“Agora que você mencionou… acho que não há como uma cidade que se apoia na distribuição de mercadorias não sentir os efeitos de uma campanha cancelada no Norte. Foi assim que tive problemas em Ruvinheigen. Mas qual é a relação entre isso e o acampamento de mercadores fora da cidade?” Ponderou Lawrence.

Se as condições na cidade fossem anormais, surgiriam oportunidades de negócios anormais.

Lawrence ficou perdido em pensamentos profundos, até que Holo deu um arroto vulgar e bateu na mesa.

“Você quer pedir mais?”

A atenção de Lawrence foi totalmente capturada pela situação em Lenos. Um rápido cálculo de custo-benefício deixou claro que se ele conseguisse fazer Holo ficar quieta ou talvez até mesmo o ajudar com suas suposições, comprar uma ou duas bebidas para ela era uma pechincha.

Ele acenou para o lojista e fez outro pedido, quando Holo deu um sorriso satisfeito, inclinando a cabeça.

“Eu ouso dizer que o vinho que você acabou de pedir foi por sua própria vontade do que a minha.”

“Mm?”

“Minha bebida me deixa bêbada, mas a sua tem um efeito completamente diferente.” Seu rosto satisfeito tinha um leve rubor.

Evidentemente, ela havia notado que, embora Lawrence geralmente hesitasse e franzisse a testa, desta vez ele pediu outra rodada para ela sem nenhum problema.

“Sim, mas é preciso dinheiro para comprar bebidas alcoólicas, enquanto fica bêbado com as possibilidades de negócios diante de seus olhos.”

“E você certamente está pensando que, se eu parar de uivar ou me dignar a ajudá-lo, uma bebida ou duas seria um preço pequeno a pagar, não é?”

 

 

Ela era uma gigante do tamanho de uma garota.

Lawrence resumiu seus pensamentos para Holo, que tinha um pouco de espuma de cerveja no canto da boca.

“Ah, embora seja divertido vê-lo confundir as coisas, vou ficar sentada aqui bebendo e olhando de lado,” disse Holo.

Quando o pedido de vinho e mexilhões quentes  e crepitantes chegou, Lawrence entregou algumas moedas ryut de cobre desgastadas ao lojista, olhando fixamente para Holo. “Eu imagino que devo olhar para você de vez em quando para garantir que não tenha desaparecido?”

Ele passou o copo cheio de cerveja para Holo, que sorriu. “…Boa ideia.”

Holo era uma aluna difícil de lidar, então Lawrence tomou isso como um elogio. “Obrigado,” ele disse sabiamente.

 

Um pouco antes do meio dia, Lawrence acabou andando por Lenos sozinho.

Holo se surpreendeu com o grau que o cansaço da viagem que ainda persistia foi ampliado pelos efeitos do álcool. Ela conseguia se levantar com facilidade, mas estava com tanto sono que não conseguia fazer nada além disso.

Lawrence a levou de volta para a estalagem, lamentando e se divertindo ao mesmo tempo.

Parte de Holo odiava a ideia de Lawrence se meter no que estava acontecendo nesta cidade. Olhando para as experiências deles até agora, Lawrence não podia realmente discordar dela, mas se olhasse ainda mais para trás, para experiências anteriores ao seu tempo com Holo, era ainda mais difícil ficar parado.

Assim, era bastante conveniente poder passear pela cidade como quisesse.

 

 

Não que ele tivesse conhecidos particularmente próximos aqui.

Depois de um momento se debatendo, Lawrence finalmente decidiu ir para uma taberna com a qual já havia feito negócios.

Era um estabelecimento com o nome estranho de A Besta e Rabo de Peixe. Um grande letreiro de bronze em forma de roedor pendia dos beirais. A criatura curiosa e inteligente que ele representava, construía represas nos rios e tinha o corpo de um mamífero — exceto por sua cauda larga e plana e pés traseiros como palmilhas, que faziam com que a Igreja a declarasse como peixe.

Assim, apesar do delicioso e saboroso cheiro de carne que saía da taberna, atraía um número significante de clérigos. Não importa quanto “peixe” eles comessem, ninguém poderia criticá-los.

Embora a capacidade da taverna de servir essa carne rara a tornasse popular à noite, a essa hora, ainda não era meio-dia, até A Besta e Rabo de Peixe estava praticamente vazia. Não havia clientes, apenas uma vendedora sentada em uma mesa no canto, costurando o avental.

“Vocês estão abertos?” Lawrence perguntou da entrada.

Um pedaço de linha presa no canto da boca, a garota ruiva levantou o avental para examinar seu trabalho sorrindo. “Acabei de consertar um buraco. Dá uma olhada?” disse a moça em resposta.

“Melhor não. Você sabe o que eles dizem, ‘olhos são como punhais.’ Se eu olhar muito de perto, sou capaz de abrir novos buracos.”

A garota guardou a agulha em uma caixa de costura, depois se levantou e amarrou o avental recém-consertado, balançando a cabeça com a piada. “Então, o motivo pelo qual meu avental está desbotado é porque os clientes vivem olhando para ele e não para mim?”

Sem dúvida, a garota lidava com muitos clientes bêbados.

Mas, como mercador, Lawrence não podia simplesmente perder esse pequeno duelo de inteligência.

 

 

“Tenho certeza de que eles estão apenas sendo atenciosos — eles não desejam arruinar sua beleza abrindo uma nova narina em seu nariz, afinal.”

“Oh? Que    pena. Isso     poderia     me     ajudar     a  farejar clientes suspeitos um pouco mais facilmente,” disse a garota tristemente ao terminar de apertar o avental.

Lawrence cedeu, derrotado. Ele tinha que dar crédito à garota.

Ela riu. “Acho que é verdade que os clientes de fora da cidade realmente são diferentes. Então, o que deseja? Vinho? Uma refeição?”

“Dois rabos de peixe. Embrulhados, por favor.”

Um olhar momentâneo de preocupação passou pelo rosto da garota, provavelmente por causa dos sons de panelas que saíam da cozinha.

Provavelmente estavam preparando os almoços para servir à pressa para os trabalhadores que logo chegariam das docas.

“Não tenho pressa,” disse Lawrence.

“Talvez um pouco de vinho, então?”

Em outras palavras, ele estava disposto a esperar?

Lawrence sorriu com a perspicácia nos negócios da garota, depois assentiu.

“Temos cevada e vinho de uva, além de pera.” “Vinho de pera nesta época do ano?”

Vinho de frutas estragava rapidamente.

“Por alguma razão, nunca ficou ruim no armazenamento. Opa…” disse a garota, cobrindo a boca com um gesto exagerado.

A taberna sempre estava lotada quando Lawrence a visitara antes, então ele nunca teve uma conversa adequada com essa garota, mas agora era fácil ver que a taberna devia muito do seu sucesso a ela.

 

 

“O de pera, então.”

“Já está saindo! Só um momento, por favor.” Ela desapareceu no fundo da taverna, sua saia — que era de um vermelho escuro e cinza que tornava impossível conhecer sua cor original — tremulando atrás dela.

Uma garçonete inteligente e alegre como ela em uma cidade portuária como essa poderia acabar como a esposa do segundo filho de um mercador de sucesso, com muitos navios em seu nome.

Ou  ela  poderia  tratar  friamente  qualquer  homem  rico  ou rapaz bonito que  a  viesse  cortejar,  e   se  apaixonar   por um mercador completamente normal que conhecesse na taverna.

Quando se tratava de saber para onde uma mercadoria comprada deveria ser levada, Lawrence tinha alguma ideia, mas esse tipo de coisa estava fora de sua área de especialização. Se ele perguntasse a Holo, ela provavelmente poderia ter dito a verdade, mas isso era frustrante de certa forma.

“Aqui está. O resto vai demorar um pouco, mas isso lhe dará a chance de fazer qualquer pergunta que possa ter.”

Ela realmente era uma garota inteligente.

Se ele conseguisse fazer com que ela falasse com Holo, seria uma conversa magnífica.

“Os mercadores que chegam aqui a essa hora do dia realmente têm apenas uma coisa em mente. Se for algo que eu possa responder, ficarei mais do que feliz,” disse a garota.

“Vou pagar primeiro.”

Lawrence largou duas moedas de cobre escuro antes de pegar o copo de vinho de pera.

Nesta taberna, um cobre era suficiente para dois ou três copos.

O rosto da garota era a própria imagem de uma garçonete de taverna. “E?”

 

 

“Ah, sim, bem, não é nada sério. A cidade parece um pouco diferente do normal. Suponho que devo perguntar sobre o acampamento de mercadores do lado de fora dos muros.”

Dada a generosidade da gorjeta, a garota provavelmente deveria receber informações privilegiadas de uma das empresas comerciais. Ela pareceu aliviada ao ouvir a pergunta de Lawrence.

“Oh, eles. Todos eles negociam peles ou produtos relacionados a peles.”

“Peles?”

“Sim. Cerca de metade deles vieram de longe para comprar peles. A outra metade trata dos materiais necessários para o curtume e o tratamento de peles. Vejamos…”

“Cal e alume?”

Eles eram os materiais mais comuns necessários para o trabalho de curtume. Estranhamente, excrementos de pombos também eram utilizados. Se as peles fossem tingidas, seria necessário muito mais bens.

“Isso mesmo.”

Lawrence lembrou das palavras de Arold.

Não havia dúvida de que a reunião do Conselho dos Cinquenta tinha algo a ver com o comércio de peles.

“E você queria saber por que todos esses mercadores estão acampados lá fora, certo? Bem, neste momento, todos os líderes da cidade estão se reunindo para decidir se vendem ou não peles para eles. No geral, compra e venda de peles é proibido. Então, naturalmente, os artesãos não sabem se faz sentido comprar algum material necessário para o curtume, é neste que estamos agora.”

Depois  de   ter   sido   questionada   várias   vezes,   a  garota provavelmente estava acostumada a explicar o assunto. Mas se fosse verdade, a situação era grave.

 

 

“Então, o que causou isso?” Perguntou Lawrence, esquecendo completamente o vinho de pera.

“Essa coisa, você sabe, onde muitas pessoas vão no inverno.” “A campanha do norte.”

“Certo, isso. Foi cancelado, então eles dizem que nenhuma das pessoas que normalmente compram roupas de couro está vindo esse ano. Normalmente, haveria muito mais pessoas nesta cidade nesta época do ano.”

Quando as pessoas vinham, também traziam moedas. As peles do norte eram especialmente populares no Sul, por isso serviam como excelentes presentes.

Mas por que, então, havia uma reunião discutindo se deveria proibir completamente o comércio de peles?

Os mercadores não estavam acampados em frente à cidade para comprar peles? Mesmo sem o boom normal das vendas de roupas de couro que vinha com a campanha do norte, eles não deveriam vender para os compradores haviam chegado?

Ele precisava de mais informações.

“Entendo que as pessoas que geralmente compram roupas de couro não estão por aí este ano, mas não deveriam vender para os mercadores fora da cidade?” Perguntou Lawrence.

A garota olhou para o copo intocado de vinho de pera na mão de Lawrence e com um sorriso gesticulou para ele beber.

Ela tinha um entendimento instintivo de como incitar um homem. Se ele tentasse resistir, ela ficaria irritada ou flertaria com ele.

Ele humildemente colocou o copo nos lábios, com isso a garota sorriu como se dissesse: Boa resposta. Cavaleiros e mercenários, eles são livres para usarem suas moedas. Mas os mercadores que chegavam à cidade eram tão avarentos quanto eles. Ela brincou à toa com as duas moedas de cobre que Lawrence havia

 

 

entregado. “Me deram coisas, vestidos excessivamente babados como os que a filha de um nobre usaria, vestidos muito caros. Mas…”

“Oh,” Lawrence murmurou. Quando ele estava bebendo com Holo, sua cabeça estava embaçada pelo vinho. “Agora eu entendo. Antes de transformar em roupas, as peles são surpreendentemente baratas. Mas uma vez que elas são transformadas em roupas, elas não vendem — o dinheiro que entra na cidade diminui,” disse ele.

A garota sorria angelicamente como uma santa com um pedinte suplicante diante dela, como se dissesse, “Muito bem.”

Com isso, Lawrence pôde ver a base da situação.

No entanto, antes que pudesse dar um passo atrás e confirmar todos os detalhes, a garota de repente se inclinou sobre a mesa.

Segurando suavemente uma das moedas de cobre no peito, sua expressão mudou. “Até agora, você podia ouvir isso de qualquer um em qualquer taberna da cidade,” disse ela, suas palavras ficando um pouco vulgares enquanto o olhava de baixo, com o queixo para frente. Lawrence tentou olhá-la, mas sua postura naturalmente atraiu seu olhar para suas esbeltas e bem torneadas clavículas.

A moça certamente entendia como pressionar um consumidor embriagado.

Lawrence lembrou a si mesmo que isso era sobre negócios.

“Afinal, é preciso tratar adequadamente os clientes generosos,” disse a garota. “Vamos manter o que estou prestes  a  dizer  entre nós dois, tudo bem?”

Lawrence assentiu, fingindo estar totalmente absorvido  pelas ações da garota.

“Há uma chance de oito ou nove a cada dez de que os mercadores fora da cidade sejam proibidos de comprar peles, embora eu tenha certeza de que os artesãos e os corretores de peles ficarão zangados.”

 

 

“Como você sabe disso?” Lawrence perguntou. A garota apenas fechou a boca tentadoramente.

A intuição de Lawrence disse que a fonte de informação da garota era sólida. Era provável que um membro do Conselho dos Cinquenta também fosse patrono da taberna, mas ela, é claro, não podia dizer isso.

Ela nem explicou esse fato, já que sua declaração não passara de uma conversa consigo mesma, e era impossível avaliar sua veracidade.

De certa forma, ela poderia estar testando Lawrence, caso contrário, dificilmente deixaria escapar informações tão vitais.

“Sou uma simples garçonete, então me importo pouco com o preço das peles, mas mercadores como você gostam dessas coisas para acompanhar sua cerveja, não é?”

“Sim, gostamos tanto que  as  vezes  bebemos  demais,” disse Lawrence com seu melhor sorriso de mercador.

A garota sorriu levemente, seus olhos se fechando. “Uma boa taberna envia todos os seus clientes para casa bêbados. Eu ficaria satisfeita se você estivesse entre eles.”

“Bem, eu bebi meu vinho, então eu tenho certeza que vou sentir isso em breve.”

A garota abriu os olhos.

O sorriso estava em seus lábios, mas não chegava em seus olhos.

Lawrence estava prestes a abrir a boca para falar, mas uma voz da cozinha chamou a garota.

“Ah, parece que sua comida está pronta,” disse ela, se levantando da cadeira e voltando a ser a garçonete que era  quando  Lawrence entrou pela primeira vez na taberna. “A propósito, senhor,” disse ela, olhando por cima do ombro antes de sair da mesa.

“Sim?”

“Você tem uma esposa?”

 

 

Lawrence    ficou    momentaneamente     surpreso     com  a pergunta inesperada, mas talvez graças a Holo constantemente jogando armadilhas sobre ele, ele foi capaz de se recuperar e responder. “As cordas da minha bolsa de moedas não estão amarradas. No entanto… minhas rédeas estão firmemente seguras,” ele respondeu.

A garota sorriu amplamente como se estivesse conversando com um amigo. “Meu Deus, mas isso é frustrante. Tenho certeza de que ela também é uma boa pessoa.”

Ela parecia ter algum orgulho em sua capacidade de persuadir seus clientes bêbados.

E até Lawrence poderia ter sido atraído facilmente se ele não conhecesse Holo — ou estivesse um pouco mais bêbado.

Mas se ele dissesse isso, seria como esfregar sal no orgulho ferido da pobre garota.

“Se você tiver a chance, traga-a para a taverna,” disse ela.

“Sim,” disse Lawrence, e ele falava sério.

Uma conversa entre essa garota e Holo seria algo bom de se ver, embora, como espectador, ele poderia ser sugado para algo terrível.

“Espere um momento, então. Eu vou pegar sua comida.” “Muito obrigado.”

A garota voltou para a cozinha, a saia tremulando novamente atrás dela.

Lawrence a observou partir enquanto levava o copo de vinho de pera aos lábios.

Até outras pessoas sabiam, ele percebeu, que Holo era  muito importante para ele.

 

 

Segurando o pacote quente de carne de rabo de peixe embrulhado em um pano, Lawrence desceu a larga avenida que corria ao longo das docas para dar uma outra olhada nos barcos ancorados por lá.

Com as novas informações da garçonete, as barcaças realmente pareciam um pouco diferentes.

Olhando atentamente, Lawrence pôde ver como haviam sido usados tecidos de palha ou de cânhamo para cobrir as mercadorias empilhadas no convés dos barcos, e muitos dos próprios barcos estavam bem amarrados ao cais, como se não esperassem sair tão cedo. Alguns deles, é claro, estavam apenas passando o inverno na cidade, mas o número parecia um pouco alto para que essa fosse a única explicação. Em um palpite, esses eram os barcos que carregavam peles ou os materiais necessários para processá-las.

O volume de transações de peles em Lenos era grande o suficiente para ser chamado de cidade da madeira e peles.

Sendo um mero mercador viajante, Lawrence  não  conseguia estimar facilmente a quantidade total de peles comercializadas na cidade, mas se um mercador comprasse um único barril de peles de esquilo, que poderia chegar a 3.500, até 4.000 peles. O fato de tais barris estarem rolando constantemente pela cidade o fez se sentir fraco.

Que tipo de impacto profundo o congelamento do comércio de peles causaria na cidade?

Mas ele conseguia entender os esforços de Lenos para tentar coletar o máximo de impostos possível, e o fato era que os mercadores estrangeiros que compravam apenas peles cruas em vez de roupas deixavam muitos artesãos da cidade para trás. Era de conhecimento geral que em qualquer empresa, itens processados da matéria-prima tinham margens de lucro muito melhores.

No entanto, com as campanhas do norte canceladas, a falta de viajantes do sul significava que não havia absolutamente nenhuma

 

 

garantia de que haveria alguma maneira de transformar esses bens em moedas.

Deixando de lado a qualidade das peles e a qualidade do curtume, havia inúmeras cidades cujo artesanato era superior ao de Lenos. Pegar as roupas que normalmente teriam saído das prateleiras como lembranças e, em vez disso, pagar os custos de remessa envolvidos na exportação para outra cidade, geraria uma dificuldade significativa.

Lawrence achava que, do ponto de vista da cidade, seria melhor se decidissem seguir em frente e vender as peles para os mercadores que esperavam, mesmo que tivessem que superar a resistência dos artesãos para fazê-lo.

Pelo menos assim, eles poderiam conseguir lucro com as peles. A razão pela qual tantos mercadores se reuniam em Lenos era por causa das peles de alta qualidade que vinham para a cidade. Tais peles exigiam um preço justo.

Mas a garçonete havia dito que o Conselho dos Cinquenta havia proibido a compra de peles.

O que deixava apenas algumas possibilidades.

Para começar, era estranho que os mercadores estivessem acampados fora da cidade.

Os mercadores alegremente levariam outra pessoa à ruína   se tivessem decidido que isso traria lucro, então era inimaginável que um grande grupo deles simplesmente se reuniria esperando pacientemente.

Havia claramente alguma outra autoridade em ação aqui.

Mas se era uma gigante guilda dos alfaiates com sede em uma cidade famosa por seus produtos de alfaiataria do outro lado do mar ocidental ou alguma empresa estonteante e massiva tentando monopolizar o comércio de peles, Lawrence não sabia.

Fosse o que fosse, exercia um tremendo poder.

 

 

E   as   mentes   que    governavam    Lenos    sabiam   disso, concluiu Lawrence, enquanto passava pela entrada das docas e se misturava na confusão.

Os mercadores de fora da cidade estavam sem dúvida negociando suas partes.

“Você estará em uma situação difícil se não vender suas peles,” eles diziam. “Vamos comprá-las para você? Embora isso por si só não valha para sempre. E se viermos no próximo ano e no ano seguinte?”

Se Lenos aceitasse isso, ela não passaria de um lugar onde as peles eram recolhidas e depois passadas  adiante. E  uma  vez  que  isso acontecesse, a consolidação do próprio pelo seria eventualmente tomada por alguém de fora e removido da cidade.

No entanto, a razão pela qual as pessoas da cidade não simplesmente afastavam os mercadores não era apenas por causa da oposição dos artesãos.

Este problema não parava na cidade; envolvia a nobreza da terra à qual a cidade também estava conectada. Quando um problema econômico se tornava político, a quantidade de dinheiro necessária para resolvê-lo aumentava em três, às vezes em quatro dígitos.

Esta era uma batalha entre titãs, onde as expectativas de mercadores individuais eram totalmente insignificantes.

Lawrence coçou a barba.

“A quantidade de dinheiro envolvida deve ser incrível,” disse ele para si mesmo. Ele não falava sozinho havia algum tempo, e a sensação era boa, como tirar os sapatos que haviam sido usados por uma semana.

Quanto maior a quantidade de dinheiro em jogo, maiores serão as sobras.

E a alquimia de um mercador permitia que ele transformasse as complicadas  relações  entre  bens  e  pessoas  em  uma  fonte  da qual jorraria dinheiro.

 

 

Ele imaginou uma folha de pergaminho amarelado em sua mente. Nela, desenhava esboço após esboço da situação dos pelos,

e gradualmente a página se tornou um mapa do tesouro.

Então, onde estava o tesouro?

Quando    ele     fez    a     pergunta,    lambendo    os     lábios, a mão esquerda alcançou a porta do quarto da estalagem e a abriu.

“…”

Ele quase não se lembrava de quando voltara para a estalagem, mas não foi por isso que ficou em silêncio.

Holo, talvez descansada depois de uma soneca, estava arrumando a cauda, mas agora a escondia atrás das costas enquanto o observava.

“…Qual é o problema?” Perguntou Lawrence de repente, depois de encarar um olhar propositadamente cauteloso de uma Holo agora evidentemente sóbria.

“Não vou aceitar,” disse ela.

“Hã?”

“Não vou aceitar que minha cauda seja vendida,” disse Holo, deixando um pouco de sua cauda aparecer por trás dela, como uma donzela tímida espreitando por trás de uma árvore, antes que se escondesse novamente.

Lawrence entendeu naturalmente.

Seu rosto havia sido consumido por seu eu mercantil.

“Eu não sou caçador,” ele sorriu e deu de ombros quando entrou na sala, fechando a porta atrás de si e caminhando até a mesa.

“Ah não? Você parecia estar pronto para vender o que visse pela frente.” O olhar de Holo caiu sobre o pacote que Lawrence segurava, depois voltou ao seu rosto.

“Sim, bem, eu sou um mercador. Eu compro de uma pessoa para vender para outra. É um princípio básico.”

 

 

Todos os mercadores desejavam dinheiro, mas quando esqueciam exatamente que tipo de mercador eram, esse  desejo  por dinheiro corria solto. Quando isso acontecia, coisas como “confiança” e “ética” não eram vistas em lugar algum.

Em seu lugar havia apenas avareza.

“Então não, eu não vou tirar sua cauda de você. Embora, quando o verão chegar, se você decidir arrancar um pouco do seu pelo, eu felizmente vou colecionar e vender depois,” disse Lawrence enquanto se inclinava contra a mesa.

Ainda sentada na cama, Holo infantilmente deu a língua para ele antes de pegar a cauda nas mãos novamente.

Por parte de Lawrence, ele não tinha interesse em ver a cauda de Holo sem pelo.

“Hmph. Então, o que é isso?” Perguntou Holo, olhando para o pacote que Lawrence segurava em uma mão enquanto mordiscava a cauda.

“Isto? Isto é… de fato. Se você puder adivinhar apenas pelo aroma, de que parte é e de qual animal é, eu comprarei a maioria das suas comidas favoritas para o jantar.”

“Oh ho.” Os olhos de Holo brilharam.

“Eu acho que há um pouco de alho nele… mas você deve ficar bem.”

Lawrence saiu da mesa e entregou o pacote a Holo, quando sua expressão ficou imediatamente séria e ela cheirou a comida embrulhada com cuidado, analisando como um lobo. Isso não era nem um pouco raro por si só, mas seus modos eram tão encantadores que Lawrence não pôde deixar de observar.

Holo pareceu notar seu olhar. De repente, ela olhou para ele, carrancuda.

Ela não se importava de ficar nua na frente dele, mas aparentemente esse era um olhar que ela não podia suportar.

 

 

Lawrence supôs que todos tivessem suas peculiaridades. Ele obedientemente começou a se virar, mas depois parou.

“Tenho certeza que nenhuma loba sábia e orgulhosa estaria pensando em dar uma olhada dentro do pacote enquanto minhas costas estão viradas,” disse ele.

A expressão de Holo não mudou, mas a ponta de sua cauda deu um repentino espasmo.

Evidentemente, ele acertou em cheio.

Ele  tinha  que  ter   cuidado; ela   tinha   sentidos   além   dos humanos comuns.

Holo deu um suspiro teatral, depois se virou, a boca fazendo um beicinho que Lawrence tinha certeza que tinha um toque de culpa.

“Então você já descobriu?”

“Paciência,” disse ela irritada, depois cheirou o pacote novamente. Lawrence discretamente desviou os olhos.

No mesmo instante, o som de uma garota fungando suas lágrimas ecoou desconfortavelmente pelo quarto.

Lawrence deliberadamente voltou sua atenção para o clamor que entrava pela janela do quarto. O dia estava bom, então a luz do sol também aparecia pela janela.

Estava realmente frio, mas ter um quarto com uma janela ainda era uma coisa boa.

Uma sala quente e sem janelas faria Lawrence sentir como se estivesse hibernando em um porão em algum lugar. O julgamento de Holo tinha sido excelente.

“Agora sim.”

Ao som da voz dela, Lawrence voltou sua atenção para Holo. “Você já descobriu?”

“Certamente.”

 

 

Havia, é claro, inúmeros animais cuja carne era cozida e servida. Era fácil o suficiente diferenciá-los de seu sabor e textura, mas apenas pelo cheiro? Especialmente se fosse algo tão raro e estranho como a carne da cauda de um roedor achatado. Mesmo que Holo soubesse da existência de uma criatura assim, as chances dela ter comido eram baixas.

Talvez  fosse  um  pouco  mesquinho,  mas  Lawrence   havia lhe oferecido a liberdade de comer o que ela quisesse no jantar como recompensa.

“Então, qual é a resposta?” Ele perguntou, e Holo o encarou com um rosto mais irritado do que a resposta  positiva dela o levaria  a esperar.

“Devo dizer que parece um pouco injusto, dadas as condições que você propôs.”

Lawrence encolheu os ombros. Parecia que ela realmente não sabia a resposta, afinal.

“Você deveria ter dito isso logo,” disse ele.

“Suponho que sim…” Holo olhou vagamente para o chão como se estivesse pensando em algo.

Tinha sido uma aposta simples, de modo que mesmo a inteligente Holo não tinha espaço para manobrar com suas queixas típicas. Os contratos mais simples sempre eram os mais fortes.

“Então, a resposta?” Lawrence perguntou novamente. De repente, o rosto de Holo mostrou total derrota. Embora seja um pensamento maldoso, ele não pôde deixar de sentir, mas queria ver esse rosto com mais frequência.

Mas foi apenas por um momento; assim que esse pensamento passou pela mente de Lawrence, a expressão de Holo mudou para uma de triunfo.

“Eu não sei o nome da criatura, mas é uma cauda de roedor grande, não é?”

 

 

Lawrence ficou sem palavras. Ele ficou atordoado.

“Eu disse que parecia um pouco injusto,” disse Holo com uma risadinha maliciosa quando ela começou a abrir o pacote.

“V-você sabia?”

“Se você tivesse me acusado de abrir o pacote e dar uma olhada, eu estava pensando em pedir tanta comida para o jantar que  você desabaria em lágrimas, mas acho que vou demonstrar misericórdia.”

A comida dentro do embrulho de tecido havia sido cuidadosamente enrolada em tiras de casca de árvore e amarrada com folhas finas; seria quase impossível espiar dentro sem mexer no conteúdo.

E, de qualquer forma, olhar a refeição finalizada não tornava mais fácil adivinhar a forma original. Holo deve estar de alguma  forma familiarizada com isso.

“Eu sou uma loba sábia, não se esqueça. Não há nada neste mundo que eu não conheça,” ela disse, mostrando suas presas.

Era um exagero óbvio, mas sua convicção era tão forte que era difícil contestar.

Quando ela desamarrou as folhas e removeu a casca da árvore, o vapor subiu da comida. Holo estreitou os olhos de prazer, abanando o rabo.

“Não está certo dizer que eu sabia,” disse Holo, imitando o tom de Lawrence. A carne foi cortada em fatias pequenas e, como estava, não havia realmente nenhuma maneira  de  discernir  sua  origem. Holo pegou um dos pedaços, inclinou a cabeça para trás e lentamente pôs o pedaço na boca aberta. Ela fechou a boca e os olhos e mastigou delicadamente.

Devia estar delicioso.

 

 

No entanto, havia algo diferente em seus modos.

“Mmph… ah, sim,” disse Holo. Em vez da forma habitual e apressada de devorar sua comida, o que dava a impressão de que ela estava preocupada que tomariam sua comida a qualquer momento, Holo comeu devagar, saboreando como se isso a fizesse se lembrar de algo. “O mestre desta estalagem disse algo assim, não disse?” Ela continuou, lambendo o óleo dos dedos e olhando para Lawrence. “Os meses e os anos derrubam até edifícios de pedra.”

“Para não falar de lembranças,” concluiu Lawrence.

Holo assentiu, satisfeita. Ela então deu um pequeno suspiro e olhou para a janela, apertando os olhos com o brilho. “Você sabe o que fica mais tempo na memória?”

Outra pergunta estranha.

Era o nome de uma pessoa? Números? Imagens da terra natal? Essas noções apareceram uma após a outra na mente de

Lawrence, mas a resposta de Holo foi completamente diferente. “Esse aroma, sabe, ele dura mais tempo do que todo o resto.” Lawrence inclinou a cabeça confuso.

“Esquecemos as coisas que vimos e ouvimos com tanta facilidade, mas os aromas permanecem claros e distintos.” Holo olhou para a comida e sorriu.

O   sorriso   dela   parecia   completamente   desajustado para Lawrence; era suave, quase nostálgico.

“Eu não tinha lembranças desta cidade,” continuou ela. “Para ser sincera, isso foi um pouco preocupante.”

“Você não tinha certeza se realmente veio aqui?” Holo assentiu e ela parecia inteiramente honesta.

Agora que ele pensava nisso, Lawrence sentiu como se finalmente entendesse por que Holo esteve brincando constantemente.

 

 

“Mas esta comida — eu me lembro vividamente. É uma criatura tão estranha, afinal, então mesmo no passado, ela era considerada especial. Eles a colocavam presa no espeto e as assavam magnificamente.”

Segurando a comida nas mãos como se fosse um gatinho dormindo no colo, ela olhou para cima.

“Eu me perguntei o que era isso que você trouxe de volta, mas quando cheirei, quase chorei com a lembrança — e esse foi o ponto de virada.”

“Então você fez isso de propósito?”

Agora que ele pensava nisso, a ideia de Holo realmente fazer algo tão superficial quanto espreitar o interior do pacote enquanto estava de costas parecia um pouco estranha.

E quando ele desviou o olhar, talvez ela tivesse chorado um pouco.

“Você está dizendo que eu sou do tipo que se aproveitaria a boa vontade de outra pessoa?”

“Você se aproveita de mim o tempo todo,” retrucou Lawrence, e ele viu Holo exibindo seu sorriso habitual.

“Então,” disse Holo, acenando para Lawrence.

Guardando um pouco de suspeita, ele se aproximou dela cautelosamente até que ela agarrou sua manga e o puxou para perto.

“Também não esquecerei esse aroma.” Ele esperava palavras nesse sentido.

Mas Lawrence descobriu que não rebater como de costume, pois Holo havia enterrado o rosto no seu peito, ficando imóvel.

Ela não era uma mera companheira de viagem.

Ele podia olhar para as orelhas e a cauda dela e trabalhar sua própria forma de entender seus movimentos.

 

 

“Nem eu,” ele respondeu, e com um suspiro suave, ele acariciou a cabeça dela com a mão.

Holo esfregou os cantos dos olhos dela nas roupas dele e sorriu sem jeito. “Você parece idiota quando diz isso. Também não esquecerei essa parte.”

Lawrence deu um sorriso forçado. “Desculpa.”

Holo sorriu, esfregou o nariz, depois sorriu de novo — e voltou ao seu antigo estado de espírito. “Então, parece que eu realmente visitei esta cidade.”

“Então deve haver lendas suas por aqui.”

Ele não adicionou “em livros em algum lugar,” mas Holo certamente notaria e apreciaria sua consideração.

Por outro lado, se ele não tomasse esse cuidado, seria impossível evitar machucá-la.

“Então, quais são as notícias que você ouviu por aí?” Perguntou Holo, como uma mãe pedindo ao filho para se gabar de algum novo conhecimento que ele adquiriu.

Ela nunca ficava frágil por muito tempo.

“Desta vez vai ser muito empolgante,” começou Lawrence. Holo ouviu atentamente enquanto comia a carne.

 

Por fim, eles tinham dois motivos para conhecer Rigolo, o cronista da cidade e secretário do Conselho dos Cinquenta.

O primeiro era perguntar se restava alguma lenda de Holo e pedir que mostrasse  os  registros  onde   essas   lendas   poderiam   ser encontradas. O segundo  era descobrir os detalhes de como  a cidade chegou na situação que atualmente enfrentava.

A última razão era puramente resultado da doença ocupacional de Lawrence e, dado o precedente estabelecido em suas viagens   até agora, Holo ouviu sua explicação, mas não ficou nada satisfeita.

 

 

De fato, se perguntassem para Lawrence se era realmente necessário testar o perigo envolvido na alquimia financeira, que era necessário para sugar dinheiro das fendas do conflito atual, a resposta seria não — não era. Dado o lucro que ele conseguira obter na cidade pagã de Kumersun, desde que continuasse quieto por mais algum tempo, o dia em que seria capaz de abrir sua própria loja não estava muito longe. Nesse caso, seria melhor usar seu tempo moderadamente, carregando suas mercadorias e obtendo lucros normalmente, em vez de arriscar o pescoço em perigosas especulações. A longo prazo, passar o tempo na cidade calmamente e com cuidado fazendo conexões comerciais seria muito melhor para os lucros futuros de Lawrence.

Não sendo mercadora, Holo não usava termos como lucros futuros, mas sua essência era a mesma: você não está com pouco dinheiro, então relaxe.

Ficar simplesmente parado ali no quarto fazia frio, então, enquanto conversavam, Holo se arrastou para a cama e, eventualmente, começou a cochilar. Lawrence se sentou na cama enquanto eles falavam, e Holo — sem nenhuma intenção particular — segurou lentamente a mão dele com a sua.

Sentado na cama e passando o tempo conversando em silêncio, Lawrence teve que admitir que Holo estava absolutamente  certa. O fato, porém, era que nenhum mercador ambulante era tão relaxado para apenas passar o tempo em uma cidade, principalmente enquanto estavam no meio de uma jornada.

Ele queria que ela entendesse isso, mas provavelmente era impossível.

No entanto, talvez fosse bom que Lawrence não pudesse fazer nada imediatamente.

Dada a situação em Lenos, nenhum dos membros do Conselho dos Cinquenta, incluindo Rigolo, se encontraria casualmente com um mercador estrangeiro.

 

 

Como o caso se concentrava no comércio de peles que era a alma da cidade, se encontrar com um mercador de origem desconhecida seria profundamente suspeito e equivalia ao suicídio social. Não, Lawrence não seria capaz de ver um membro do conselho.

O que significava que, se ele quisesse entrar em contato com um, precisaria de um mediador.

No entanto, quando Lawrence repensou se isso seria realmente necessário, era difícil se convencer. E se ele forçasse a questão e causasse uma má impressão, eles nunca veriam os registros de Holo.

Embora exteriormente Holo tenha pressionado Lawrence a se segurar e não se envolver, no fundo de seu coração não restava dúvida de que havia uma oportunidade de ver esses registros, ela queria isso. Ele não podia arriscar nada que colocasse em risco sua capacidade de fazer tal coisa. Enquanto ele repensava várias vezes, finalmente percebeu o som da respiração de Holo enquanto ela dormia.

Quando estava com fome, comia e,  quando  estava  cansada, dormia.

Na verdade, ela era tão livre quanto qualquer animal, e aqueles que passavam seus dias constantemente trabalhando para manter a barriga cheia tinham sonhado com essa vida pelo menos uma vez.

Lawrence não pôde deixar de sentir um pouco de inveja da vida que   Holo considerava   correta. Ele   tirou   a   mão   da   dela  e roçou levemente a bochecha que parecia porcelana polida com a parte de trás do dedo indicador. Depois de adormecer, nem um toque a acordava. Ao toque de Lawrence, sua expressão se contraiu em irritação, mas seus olhos permaneceram fechados enquanto ela enterrava o rosto no cobertor.

Era um momento tranquilo e feliz. Nada acontecia, exceto pela passagem do tempo, mas essa era uma das coisas que Lawrence desejava quando conduzia sozinho a carroça. O mercador sabia disso com quase certeza e, no fundo de seu coração, sentia

 

 

uma impaciência, um sentimento de que estava desperdiçando uma chance.

Ele não pôde deixar de sentir que, se não estivesse ganhando dinheiro ou coletando informações para seus negócios, estava sofrendo um prejuízo que nunca seria capaz de recuperar.

O espírito do mercador é  uma  chama  que  nunca  se apaga, dissera seu mestre, mas essa chama poderia muito bem ser o fogo do inferno, queimando sua carne.

Quando alguém estava sozinho, a chama fornecia calor, mas acompanhado… ele sentiu que estava muito quente.

O sorriso de Holo era especialmente quente. O mundo não era como desejava que fosse.

Lawrence se levantou da cama e andou pelo quarto.

Se ele não ia se envolver nos acontecimentos de Lenos, ele pelo menos queria entender os detalhes por satisfação própria.

A melhor maneira de fazer isso seria se encontrar diretamente com um membro do Conselho dos Cinquenta e, para obter informações imparciais, uma testemunha que não representasse nenhuma parte interessada seria ainda mais desejável.

Era o cronista e secretário Rigolo quem melhor se encaixava nessa descrição.

Mas nenhum membro do conselho teria interesse em se encontrar com alguém de fora.

O problema começava a parecer impossível.

Lawrence teria que adotar uma abordagem diferente, mas  no momento sua única fonte de informação era a garçonete. Expandir seus contatos para incluir mais informações dos mercadores da cidade envolveria um esforço significativo.

Certamente haviam várias pessoas usando diversas táticas para coletar informações, e Lawrence sinceramente duvidava que seu

 

 

próprio intelecto fosse suficiente para lhe dar alguma vantagem sobre o resto. Quem sabe até que ponto o preço dessa informação poderia subir, dado o escopo da demanda?

Se fosse uma cidade onde Lawrence tivesse algum conhecido, ele poderia conseguir se aproximar da essência das coisas e fazer algo acontecer. Se você quisesse mercadorias, o dinheiro poderia comprar qualquer coisa, mas, para obter informações, você precisava de confiança.

Diante dessa situação fascinante, Lawrence teria apenas que assistir e esperar.

Se sentindo como um cachorro frustrado, andando de um lado para o outro na sala, enquanto olhava um pedaço de carne que podia ver através de uma pequena rachadura na parede, Lawrence finalmente soltou um suspiro.

Ele sentiu como se estivesse se afastando cada vez mais     do mercador que desejava ser.

Pior  ainda,  a  lógica   e   a   prudência   que   ele   deveria ter desenvolvido há muito pareciam desaparecer. Era como se tivesse regressado àquele período em que acabara de atingir a maioridade; sua cabeça cheia de esquemas ridículos de enriquecimento rápido.

Seus pés estavam inquietos.

Ele repetiu o problema para si mesmo, olhando para Holo.

Seria porque essa loba atrevida estava constantemente passando uma rasteira nele?

Parecia possível.

Ele gostava muito de conversar com Holo.

Por isso ele começou a negligenciar outras coisas.

“…”

Lawrence acariciou a barba, murmurando consigo mesmo que transferir a culpa não seria uma má ideia.

 

 

Era uma oportunidade desperdiçada, mas o problema do pelo teria que esperar.

O que significava que a próxima ação seria buscar informações que os colocassem no caminho para Nyohhira, ainda mais ao norte de Lenos.

Se tivessem sorte, a estrada ainda não estaria intransitável com a neve e seguiriam adiante.

Informações sobre peles… podem ser coletadas  depois  disso,  Lawrence disse a si mesmo ao sair do quarto.

 

Lawrence  desceu  para  o  primeiro  andar,   onde   havia um som farfalhante vindo do canto da sala bagunçada.

Não havia segurança, mas parecia  que um  bom  número  de mercadores ainda usava esse armazém.

A taxa não era muito alta, e alguns a usavam para armazenar mercadorias quando o preço flutuava com a estação. Lawrence não ficaria surpreso de saber que um contrabandista ou ladrão mantinha itens lá também.

Embora tivesse ouvido o som de alguém mexendo com mercadorias no armazém, a pessoa estava nas sombras, e Lawrence não sabia dizer quem era. Mas Arold, o estalajadeiro, não parecia pensar nem por um momento que um de seus hóspedes estivesse abrindo a bagagem de outra pessoa. Ele apenas jogou um pouco de água no fogo, que havia ficado um pouco forte demais.

“Uma estrada para o norte?”

Embora Arold tivesse reagido à pergunta de Lawrence sobre cronistas naquela manhã como se uma criança tivesse feito uma pergunta teológica difícil, ele parecia estar muito mais acostumado a esse tipo de questionamento.

Ele assentiu levemente, como se dissesse: “Bem, nesse caso,” então, sem prestar atenção ao fogo, ele limpou a garganta e falou.

 

 

“Não há muita neve este ano. Não sei para onde você está indo, mas não acho que seja muito difícil.”

“Estou indo para Nyohhira.”

A sobrancelha esquerda de Arold se ergueu e os afiados olhos azuis enterrados nas dobras profundas de suas pálpebras brilharam.

Por trás do sorriso de mercador, Lawrence se encolheu um pouco e Arold continuou, limpando um pouco da cinza que havia subido quando ele derramou água sobre as brasas um tempo atrás.

“Indo até um país pagão, hein? …Bem, suponho mercadores sejam assim, carregando sacolas de dinheiro por cima do ombro e partindo para qualquer lugar.”

“Sim,  e  jogamos  tudo  fora  em  nossos  leitos  de   morte,” disse Lawrence, tentando aliviar as coisas com o devoto Arold, mas o estalajadeiro apenas deu uma risada irônica.

“Então, por que se preocupar em lucrar? Ganhar apenas para jogar tudo fora…”

Era algo que muitos mercadores se ponderavam.

Mas Lawrence ouvira uma resposta interessante para essa pergunta. “Você não faz a mesma pergunta quando limpa um quarto, faz?”

Se dinheiro era lixo, o lucro era a coleta de lixo.

Um mercador famoso de um país do sul havia se arrependido no leito de morte, dizendo que coletar e jogar fora o dinheiro que poluía o mundo que Deus havia dado ao homem era a virtude suprema.

O clero ouviu essas palavras e ficou emocionado, mas os mercadores ocultaram seus sorrisos incertos por trás de seus copos de vinho — porque quanto mais bem-sucedido se tornava, os ativos já não eram coisas concretas e sim certificados e inscrições em livros de contabilidade.

 

 

Assim, se essas anotações escritas no livro poluíam o mundo, então os ensinamentos escritos de Deus não eram muito melhores. A ironia de que essas escrituras também deveriam ser jogadas fora para um mundo melhor — essa era a visão da maioria dos mercadores.

Lawrence se sentia da mesma forma. Ele se sentia mal por Holo, mas ele preferia os negócios de um mercador bem-sucedido do que rezar a deuses que nunca respondiam.

“Heh,” Arold riu. “É justo,” disse ele em um tom incomum e divertido. Seu humor havia melhorado.

Ele parecia mais animado pela ironia por trás das palavras  de Lawrence do que pelas próprias palavras.

“Você vai embora em breve? Eu lembro que você me deu uma boa quantidade de moedas para a sua estadia…”

“Não, pretendo esperar até que o Conselho dos Cinquenta termine sua reunião.”

“…Entendo. Você queria ver Rigolo. Você perguntou sobre um cronista esta manhã, pelo que me lembro. Essa é uma palavra que eu não ouço há algum tempo. Quase ninguém olha para o passado hoje em dia…” disse Arold, estreitando os olhos enquanto observava o vazio.

Talvez o velho estivesse olhando para sua vida até agora.

Mas seu olhar logo voltou a Lawrence. “Bem, se você estiver indo para o norte, seria melhor ir mais cedo. Seu cavalo deve ser capaz de fazer parte do caminho, mas além disso… você vai precisar de cavalo de montanha um trenó. Se estiver com pressa, é claro.”

“Havia um desses no estábulo, não havia?”

“Sim, seu mestre é um homem do norte. Acho que ele conhece o caminho muito bem.”

“O nome dele?” Perguntou Lawrence.

 

 

Arold pareceu surpreso pela primeira vez. Era  estranhamente encantador. “Hã. Ele vem aqui há algum tempo, mas nunca perguntei o nome dele. Ele também está mais gordo a cada ano. Me lembro bem dele. Estranho… acho que essas coisas acontecem…”

Que tipo de estalagem carecia de registro de hóspede?

“Ele é um mercador de peles do norte,” continuou Arold. “Ele está andando por toda a cidade no momento… mas se eu o vir, vou passar suas perguntas.”

“Eu ficaria muito grato.”

“Sim. Mas se você continuar esperando o Conselho dos Cinquenta terminar, é provável que fique aqui até a primavera,” disse Arold, colocando o copo de vinho quente nos lábios pela primeira vez.

Era a primeira vez que Lawrence via Arold tão eloquente. Ele devia estar de excelente humor, Lawrence supôs.

“A reunião vai demorar tanto assim?” perguntou Lawrence, pressionando por mais informações.

O rosto de Arold ficou ilegível e ele ficou em silêncio. Sem dúvida, a melhor resposta se ele esperava viver os seus anos restantes em paz, pensou Lawrence.

Lawrence estava prestes a agradecer como forma de terminar a conversa, mas Arold falou, interrompendo-o.

“As vidas das pessoas têm altos e baixos, e as cidades em que vivem também. Afinal, essas cidades são apenas grupos de pessoas.”  As palavras de um homem que se aposentara de uma vida ativa.

Mas Lawrence ainda era jovem. “É da natureza das pessoas resistir ao destino, eu acho. Assim como buscamos perdão depois de cometer um erro.”

Arold observou Lawrence em silêncio com seus olhos azuis. Havia raiva em seu olhar, e desprezo.

 

 

Mas Lawrence gostava do velho quando ele ficava assim, então ele se manteve firme.

Arold riu. “É difícil argumentar contra isso… Foi um prazer conversar com você. Esta é sua terceira vez na estalagem, não é? Qual o seu nome?”

Embora nunca tivesse perguntado o nome do mercador de peles que há muito tempo usava sua estalagem, Arold agora perguntava a Lawrence seu nome.

Ele não estava perguntando como estalajadeiro, mas como artesão.

Quando um artesão perguntava o nome de um cliente, era uma marca de confiança que eles completariam o pedido do cliente, por mais difícil que fosse o pedido.

Evidentemente, esse velho chefe de curtume gostava de Lawrence por algum motivo.

“Kraft Lawrence,” disse Lawrence, estendendo a mão.

“Kraft Lawrence, não é? Sou Arold Ecklund. Antigamente, eu fazia um bom trabalho com pulseiras de couro, mas hoje em dia tudo o que posso oferecer é uma noite tranquila.”

“Isso é mais do que suficiente,” disse Lawrence, para o que Arold sorriu pela primeira vez, mostrando um dente quebrado.

Lawrence estava prestes a sair quando o olhar de Arold se voltou para algo atrás de seu hóspede. Lawrence se virou para olhar e não esperava ver a pessoa que estava lá.

Era o mercador que Holo havia afirmado anteriormente ser uma mulher, ainda vestindo as mesmas roupas e carregando um saco de estopa na mão esquerda. Ela deve ter sido quem Lawrence ouviu mexendo no depósito.

“Você não me perguntou até minha quinta visita. E perguntou o nome dele tão cedo, Sr. Arold?” Veio a voz rouca. Se Holo não tivesse

 

 

dito o contrário, Lawrence ainda teria assumido que ela era um homem, um aprendiz de mercador que estava começando.

“Isso é porque eu não falei com você até a quinta visita,” disse Arold, olhando para Lawrence antes de continuar. “E é tão raro você abrir sua boca. Você é tão sociável quanto eu, não é?”

“Talvez,”  disse  a  mulher,  e  um  sorriso  apareceu  sob  seu capuz. Lawrence notou que ela não tinha uma barba — definitivamente era uma mulher.

“Você aí,” disse ela, olhando fixamente para Lawrence.

“Sim?”

“Nós deveríamos conversar. Você tem negócios com Rigolo?” Se Lawrence fosse Holo, suas orelhas tremeriam.

“Sim,” respondeu ele, confiante o suficiente para que nem um único fio de barba se mexesse.

Ao mencionar o nome de Rigolo, Arold se virou e pegou seu copo de vinho. Esse era o efeito que um mercador tinha hoje em dia ao mencionar o nome de um dos membros do Conselho dos Cinquenta.

“Vamos subir?”

A mulher apontou para cima. Lawrence não fez objeções e assentiu.

“Vou aceitar isso aqui,” disse ela, pegando uma jarra atrás da cadeira  de  Arold  e  depois  subindo  imediatamente  as  escadas. Embora não fossem parentes, ela parecia conhecer Arold muito bem — então qual era a conexão deles?

A mente de Lawrence estava cheia de perguntas, mas o rosto de Arold havia retornado ao seu estado normal de não socializar.

Ele se despediu e seguiu a mulher escada acima.

 

 

Não havia ninguém no segundo andar, e a mulher imediatamente dobrou os joelhos e se sentou de pernas cruzadas em frente à lareira. O jeito dela era o de alguém acostumado a ficar sentado em lugares apertados. Se Lawrence tivesse sido um cambista, ele a teria considerado uma camarada nos negócios.

Ela certamente não era alguém que havia começado os negócios ontem.

“Ah, eu sabia. Este vinho é bom demais para ser desperdiçado com um copo quente,” disse ela depois de provar o conteúdo da jarra que havia trazido.

Lawrence também se sentou, imaginando por que a mulher de repente estava tão sociável, se seu comportamento era genuíno ou se não era genuíno, qual seria seu objetivo.

Depois de tomar alguns goles da jarra de vinho, a mercadora a jogou na direção de Lawrence. “Parece que você levantou a guarda. Posso perguntar por quê?”

Enquanto seu capuz cobria o rosto, evitando que Lawrence visse suas expressões, evidentemente ela podia ver o rosto dele perfeitamente.

“Sou um mercador viajante que faz muitos negócios com pessoas que nunca mais voltarei a ver. Suponho que seja um hábito,” disse ele, tomando um gole do vinho oferecido. Era realmente bom.

A mercadora o olhou harmoniosamente por baixo do capuz.

Lawrence deu um sorriso dolorido e confessou: “As mercadoras são raras. Se uma me chama para conversar, não posso deixar de ficar de guarda.”

Ele percebeu que ela ficou momentaneamente perturbada com a declaração dele.

“…Faz anos desde que alguém descobriu isso.”

 

 

“Nos encontramos esta manhã em frente à estalagem. Minha companheira tem os sentidos tão aguçados quanto os de uma fera, entende?”

Ela era parcialmente uma fera, de fato, e se Holo não estivesse lá, Lawrence nunca teria notado que o mercador era uma mulher.

“Não se deve subestimar a intuição de uma mulher. Embora eu suponha que não sou de confiança para falar sobre isso.”

“Eu aprendo essa lição todos os dias.”

Lawrence não tinha certeza se ela sorria ou não, mas, de qualquer forma, a mulher colocou a mão no pescoço e afrouxou a corda que segurava o capuz; depois, com uma mão treinada, ela o retirou da cabeça.

Ele a observou com um pouco mais de curiosidade do que de educação. Que rosto ousado poderia surgir? Quando ele viu o rosto dela, Lawrence não estava nem um pouco confiante de que tinha sido capaz de esconder perfeitamente sua surpresa.

“Meu nome é Fleur Bolan. Mas Fleur não é muito intimidador, então me conhecem por Eve.”

A mulher, Fleur — ou Eve — era jovem.

Mas ela não era tão jovem para que a juventude fosse sua única virtude. Ela tinha idade suficiente para ser polida e refinada, tornando- a ainda mais bonita. Suponho que Lawrence teria mais ou menos a sua idade.

Os olhos dela não eram apenas azuis; eles pareciam forjados em aço azul.

O cabelo dela era curto e loiro. Se ela sorrisse, pareceria um garoto extraordinariamente bonito.

E quando ela não estava sorrindo, ela parecia um lobo — um lobo que morderia seu dedo se tentasse tocá-lo.

“Eu sou Kraft Lawrence.”

“Kraft? Ou Lawrence?” “Nos  negócios, Lawrence.”

“Me chame de Eve. Não gosto muito de Bolan, e sei muito bem como os homens me veem quando uso maquiagem e peruca, e também não gosto desse tipo de elogio.”

Com sua iniciativa roubada, Lawrence ficou em silêncio por um momento.

“Eu pretendia manter isso em segredo, se pudesse,” continuou ela. Ela certamente se referia ao seu sexo.

Não querendo ser descoberta por mais ninguém, ela colocou novamente o capuz na cabeça e o fixou com a faixa.

Em sua mente, Lawrence não podia deixar de imaginar uma faca embrulhada em algodão.

“Eu realmente não sou uma pessoa particularmente reservada. Na verdade, sou faladora e bastante cortês.”

Por alguma razão, Eve estava agora sendo aberta e tagarela, então Lawrence acompanhou seu bate papo.

Ela era uma mulher, sim, mas dificilmente uma princesa a ser protegida. Ele tinha poucas razões para ficar nervoso.

“Você é um sujeito interessante. Eu posso ver porque o velho gosta de você,” disse Eve.

“Foi gentil da sua parte dizer isso. Mas troquei apenas poucas palavras com você, então não tenho ideia de por que você estaria interessada em mim.”

“Os mercadores não são conquistados tão facilmente, infelizmente

— então não foi só isso. Mas você não é tolo, você sabe disso. De qualquer forma, a razão pela qual falei contigo é simples. Eu só queria alguém com quem conversar.”

A julgar pelas feições no rosto sob o capuz, algo nela lembrava Holo, apesar das maneiras um pouco rudes de Eve.

 

 

Se ele não tomasse cuidado, ela passaria a perna nele, assim como Holo.

“E a razão pela qual você me escolheu para essa honra em particular é…?”

“Uma razão seria o fato do velho Arold gostar de você. Ele tem um bom olho para as pessoas. Outro motivo seria sua companheira, aquela que viu através do meu disfarce.”

“Minha companheira?”

“Sim. Sua companheira. Uma garota, certo?”

Se ela tivesse chamado Holo de garoto, esta seria exatamente o tipo de história que um nobre libertino adoraria.

Mas Lawrence entendeu o que Eve estava tentando dizer.

Se ele estivesse viajando com uma mulher, ele seria uma pessoa segura para se conversar.

“Uma coisa é quando estou negociando, mas esconder o fato de que sou mulher enquanto jogo conversa fora não é uma coisa fácil. Eu sei que sou incomum. E não é como se eu não entendesse por que alguém iria querer que eu tirasse o capuz,” disse Eve.

“Isso vai parecer um elogio, mas se você o tirar enquanto estiver bebendo com alguns colegas mercadores, tenho certeza que eles adorariam.”

Eve sorriu com um sorriso torto, e mesmo esse gesto era impressionante. “Como disse, penso em com quem posso conversar e, no final, geralmente é um velho ou uma mulher.”

As mercadoras eram mais raras que as fadas. Lawrence não podia nem começar a imaginar suas preocupações do dia-a-dia.

“Você não vê mercadores viajando com mulheres com muita frequência. Só o clero, ou talvez um estranho casal de artesãos ou menestréis. Mas nenhum deles tem algo de interessante para me contar.”

 

 

Lawrence sorriu um pouco. “Bem, existem algumas circunstâncias envolvendo minha companheira.”

“Eu não serei curiosa. Vocês dois parecem acostumados a viajar e não parecem estar conectados por dinheiro, então achei que seria seguro conversar com você. Isso é tudo.”

Eve terminou de falar e estendeu a mão para a jarra.

Não era educado ficar com uma jarra de vinho que estava sendo passada ao invés de ficar com o copo, então Lawrence pediu desculpas e a devolveu.

“De qualquer forma, esse é o resumo da situação, mas você não pode simplesmente ir até alguém e dizer: ‘Ei, que tal uma conversa?’ Foi por isso que mencionei o nome de Rigolo, mas isso não foi só uma desculpa. Você quer vê-lo, certo?”

Eve olhou para Lawrence por baixo do capuz, mas ele não conseguiu ler a expressão dela. Ela claramente era  uma  excelente negociadora.

Isso dificilmente parecia conversa fiada para Lawrence. Ele respondeu com cuidado. “Sim, assim que eu puder.”

“Posso perguntar o motivo?”

Lawrence não podia imaginar por que ela iria querer saber disso.

Pode ter  sido  apenas  curiosidade,  ou  ela  queria  usar  esse conhecimento de alguma forma ou estava testando Lawrence com base em sua resposta a essa pergunta.

Se Holo estivesse ali, ele teria uma vantagem, mas da forma como estavam, parecia que ele estava sendo encurralado.

A situação era frustrante, mas ele teria que ficar na defensiva.

“Ouvi dizer que Rigolo é o cronista da cidade. Eu gostaria de pedir para ver alguns dos velhos contos de Lenos.”

O   assunto   de   peles   era   muito   delicado   para abordar. Enquanto não pudesse ver a expressão de Eve, era perigoso

 

 

se expor. Ele não tinha nada com o que se esconder, então seria fácil para ela ver se ele estava sendo muito cuidadoso.

No entanto, Eve parecia detectar uma certa verdade nas palavras de Lawrence. “Esse sim é um motivo estranho. E aqui eu tinha certeza de que você queria informações sobre o comércio de peles.”

“Bem, eu sou um mercador, então não passaria essas informações se pudesse obtê-las. Mas é perigoso, e minha companheira não deseja isso.” Lawrence não pôde deixar de sentir que tentar qualquer truque na frente de Eve seria inútil.

“É verdade que o escritório do homem está repleto de volumes passados ao longo das gerações. Seu sonho é poder passar seus dias lendo-os, pelo que ouvi. Ele sempre fala sobre como queria renunciar ao cargo de secretário do Conselho dos Cinquenta.”

“É sério?”

“Sim. Ele não é um sujeito muito sociável para começar, mas sua posição significa que conhece todos os meandros do conselho, então não há como as pessoas tentarem suborná-lo. Se você simplesmente tentasse ir vê-lo agora, ele lhe encararia de maus olhos e o mandaria embora do portão.”

Admiravelmente, Lawrence conseguiu falar um “entendo” neutro, mas ele duvidava que Eve pensasse que ele era tão neutro quanto tentava parecer.

Eve estava, afinal,  sugerindo  que  seria  capaz  de apresentar Lawrence a Rigolo.

“Bom. Então, se é nisso que você está interessado, eu tenho bastante contato com a igreja aqui. Rigolo normalmente trabalha como escriba para a igreja, entende? Eu o conheço há algum tempo.”

Lawrence não a questionou.

Se ele o fizesse, havia o perigo de revelar suas próprias motivações, que ela seria capaz de ver isso facilmente.

Então ele falou a pura verdade.

 

 

“Certamente seria de grande ajuda para mim se você pudesse providenciar para que eu visse esses registros,” disse Lawrence.

O canto da boca de Eve pode ter se curvado por apenas um momento, mas talvez fosse apenas sua imaginação.

Ela parecia estar gostando de algo sobre essa conversa.

“Você não vai me perguntar o que eu ganho com isso?”

“Você não perguntou a ocupação da minha companheira, então eu lhe farei a mesma cortesia.”

Essa conversa deixava Lawrence nervoso de uma maneira completamente diferente de suas conversas com Holo.

E, no entanto, isso é divertido, ele pensou consigo mesmo, e foi por isso que quando uma risada ecoou pela sala, ele não percebeu que não era a dele por um momento.

“Heh-heh-heh. Excelente. Excelente mesmo! Por algumas vezes esperei encontrar um jovem mercador com uma companheira, mas estou realmente feliz por ter conversado com você, Lawrence! Não sei se você é tão distinto quanto parece, mas certamente não é um vendedor ambulante qualquer.”

“Estou honrado por seus elogios, mas peço que espere um pouco antes de apertar minha mão.”

Eve sorriu.

O sorriso dela o lembrou tanto o de alguém que ele esperava ver caninos afiados à mostra.

“Eu sei que você não é um idiota,” disse Eve. “Seu rosto foi ilegível desde o início. Entendo por que o velho Arold gostou de você.”

Lawrence aceitou a bajulação. “Bem, então, em vez de perguntar o que você ganha com isso, posso fazer uma pergunta diferente?”

Eve ainda sorria, mas Lawrence tinha certeza de que o sorriso dela não alcançava seus olhos.

“E o que isso poderia ser?”

 

 

“Quanto vai custar a sua taxa de intermediária?” Lawrence jogou uma pedrinha no poço escuro e sem fundo.

Quão profundo era? Havia água no fundo? O som ecoou de volta para ele.

“Não pedirei moedas nem mercadorias.”

Lawrence imaginou se ela estava com sede, mas ela lhe ofereceu o jarro enquanto continuava.

“Tudo o que peço é que você converse comigo.” Um eco molhado havia retornado.

Lawrence livrou o rosto de qualquer emoção enquanto encarava friamente Eve e sua declaração.

Eve riu e encolheu os ombros. “Voce é bom. Mas não, não é mentira. É natural que você ache isso estranho, mas alguém com quem eu possa conversar sem esconder o fato de que sou uma mulher — e um mercador, para começar — vale mais do que um limar de ouro.

“Mas menos que lumione?”

Sua reação a algumas provocações revelaria a profundidade de sua personagem.

Eve parecia saber disso. Ela era uma mercadora. No final, o dinheiro era o que mais importava — ela respondeu com um sorriso uniforme.

Lawrence riu.

Com alguém assim para conversar, ele poderia facilmente conversar a noite toda.

“Mas eu não sei como é sua companheira. Eu prefiro  minhas conversas sem interrupção. Uma companheira mal-humorada estraga o vinho.”

Lawrence buscou em sua memória. Holo era do tipo que ficava com ciúmes dessas coisas?

 

 

Ele sentiu como se ela tivesse ficado um pouco irritada com Norah, a pastora, mas não foi por causa de sua profissão?

“Eu não acho que isso será um problema.”

“Oh? Nada é mais misterioso do que o coração de uma mulher. Eu mesma não entendo nem um pouco do que elas falam.”

Lawrence abriu a boca para falar, depois pensou melhor.

Eve riu. “Mesmo assim, ainda estou aqui para fazer negócios. Não posso perder tempo, mas se nos dermos bem, ficaria feliz em conhecê- lo. Eu posso parecer dura…”

“ — Mas você é realmente conversadora e sociável, certo?”

Ao contra-ataque de Lawrence, Eve riu, seus ombros tremendo de prazer juvenil, apesar de sua voz baixa e rouca. “Ah, isso mesmo.”

Suas palavras eram casuais, mas tinham um tom de sinceridade.

Lawrence não fazia ideia de como uma mulher solteira iria trilhar o caminho do mercador, mas qualquer mulher que pudesse nadar nos redemoinhos de avareza que compunham o mundo mercantil era uma força a ser considerada. Sem dúvidas ela evitava conversas casuais para se defender.

Ele tomou um gole de vinho da jarra, depois se levantou e foi para as escadas do terceiro andar. “Bem, desde que minha companheira não tenha ciúmes,” disse ele.

“Essa é realmente uma condição terrível.”

Os dois mercadores sorriram em silêncio um para o outro.

 

A reunião do conselho terminaria pouco antes do anoitecer. Eve tinha negócios a tratar e não podia acompanhar Lawrence e Holo, mas falou antecipadamente com a família de Rigolo em nome deles.

Então, algum tempo depois do meio-dia, Lawrence e Holo deixaram a estalagem.

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