Spice and Wolf - Volume 5 - Capítulo 3.2 - Anime Center BR

Spice and Wolf – Volume 5 – Capítulo 3.2

Volume 5

Capítulo 3.2

Já era o crepúsculo.

O pôr do sol estava vermelho, aqui e ali brilhavam as primeiras luzes da noite, como se fossem fragmentos remanescentes do sol que desaparecia. À medida que o frio da noite se instalava,  as  pessoas corriam para casa, com os rostos enterrados nos cachecóis quentes.

Lawrence olhou a cidade por um momento; depois que o sol se pôs completamente e as ruas da cidade se esvaziaram, ele fechou a janela de madeira do quarto da estalagem. Holo continuou a ler seus livros à luz de uma lâmpada de sebo.

Os livros pareciam ter sido organizados cronologicamente, e Holo leu as crônicas mais recentes primeiro.

Considerando o que haviam  aprendido  na  aldeia  de Pasloe, Lawrence achou que ela encontraria o que procurava mais rapidamente se partisse dos registros mais antigos, mas ele suspeitava que ela evitasse fazê-lo para preservar um pouco de compostura.

De qualquer forma, restavam apenas dois volumes; portanto, a probabilidade de que ela logo encontraria o que procurava era muito alta. Holo parecia estar muito preocupada com o  que  aconteceria depois disso, e mesmo depois que a escuridão caiu, ela disse que queria ler. Assim, Lawrence deu permissão para ler à luz das lâmpadas, desde que tivesse o cuidado de manter a fuligem — e principalmente a chama — afastadas das páginas.

Holo não usava suas vestes normais enquanto lia. Ela estava completamente vestida, pronta para sair a qualquer momento.

 

 

Isso não era por causa do frio, mas porque eles logo negociariam com Eve.

“Bem, então vamos?” Lawrence perguntou.

A hora da negociação não havia sido definida com precisão, mas Lawrence estava razoavelmente certo, já que “à noite” era um intervalo de comum acordo entre os mercadores. Uma vez que desceu as escadas com Holo e esperou, foi difícil não se sentir como  um pequeno mercador excitado pela ideia de lucro.

Mas Eve estava atrasada — muito atrasada — o que era rude. Talvez essa fosse sua ideia de um teste.

Ela não tinha dito para se encontrar ao pôr do sol porque os mercadores preferiam escrever suas contas durante o dia, quando não eram necessárias velas, e porque demoravam um certo tempo para voltar à estalagem.

Então, presumivelmente, ela queria esperar até que a onda de mercadores retornasse à estalagem e se acalmassem.

Se ele escutasse atentamente, Lawrence poderia dizer quais ocupantes haviam retornado para quais quartos.

Pesando isso contra o número de quartos na estalagem, ele esperava que Eve chegasse em breve.

“Vocês, mercadores, são realmente muito problemáticos,” disse Holo, fechando o livro com um baque e sentando na cama, se esticando.

Mesmo uma garota normal teria sido capaz de dizer que Lawrence estava inquieto pensando na hora.

“Se eu devo agir mesmo em meu próprio quarto de estalagem, quando devo relaxar?” Perguntou Lawrence, meio por brincadeira.

Holo saiu da cama, parecendo pensar em algo enquanto ajustava os ouvidos e a cauda sob a capa. “Por algum tempo depois que nos

 

 

conhecemos… não, mesmo recentemente, você parecia sempre um pouco inquieto ao meu redor.”

“É a primeira vez que viajo com uma garota. Leva tempo para se acostumar.”

Também era a primeira vez que ele relaxava tanto na frente de alguém.

Ele nunca se sentiu tão confortável com alguém antes.

“E, no entanto, quando acabamos de nos conhecer, suas narinas se dilatavam só de andar comigo,” disse Holo.

“Sim, e sua cauda inchava se me visse com outra mulher.” Lawrence revidou.

Holo olhou para ele como se dissesse: “Você tem muita coragem.” Ela então disse: “Mas assim um homem gradualmente revelaria suas verdadeiras cores e, eventualmente, se transformaria em alguém que você nunca conseguiria imaginar.”

“Isso não é verdade para praticamente todo mundo depois de conhece-lo melhor?”

“Idiota. Vocês, humanos, não têm um ditado que fala: ‘Não alimente o peixe que você captura’?”

“Isso não se aplica aqui. Eu não peguei o peixe, ele se esgueirou sozinho na minha carroça, não foi? Esqueça sobre dar comida; eu deveria estar cobrando pelo transporte.”

Mas assim que ele falou, Lawrence se encolheu.

O olhar agudo de Holo era iluminado pela luz tremeluzente da lâmpada. Ela não estava brincando.

Ele a tratara mal? Ou seu estado de inquietação estava sendo ainda mais irritante do que ele imaginou? Talvez ela não tenha gostado da sua resposta.

“Hmph… o que eu quis dizer foi, não esqueça sua intenção original.”

 

 

Lawrence não sabia o que havia desencadeado isso, mas assentiu docilmente.

Holo podia ser estranhamente infantil às vezes, então talvez ela estivesse irritada com o fato de Lawrence não ter se deixado perturbar, mas sim ter contra-atacado.

Talvez percebendo sua própria culpa, ela recuou. Lawrence deu um sorriso fino e cansado e suspirou. “Há algo irritante nisso,” disse Holo.

“É sua imaginação… Não, talvez você esteja  certa.” Lawrence pigarreou e depois olhou para Holo. “Você pode ler minha mente?” Ele fez a pergunta que havia feito a sério quando se conheceram.

Holo sorriu e depois se aproximou. “Idiota.” “Ai!”

Ela chutou a canela dele.

O sorriso de Holo permaneceu imperturbável enquanto ela passava suavemente por Lawrence e colocava a mão na porta.

“Você vem?”

Lawrence engoliu o comentário que lhe veio à mente — que Holo nunca o teria tratado assim quando se conheceram — e a seguiu porta afora.

Ela lhe dissera para não esquecer sua intenção original, mas isso era realmente impossível.

As palavras tinham um significado pesado. O tempo nunca poderia voltar, e todo mundo sabia que não havia uma pessoa que nunca mudava.

Lawrence sabia disso, então não havia dúvida de que Holo também sabia.

 

 

“Claro, também é verdade que eu posso pegar sua mão facilmente apenas porque estamos viajando há tanto tempo juntos. Mas” — o rosto de Holo ficou subitamente triste — “os poetas não falam em querer ficar eternamente como eram ao conhecer uma amante pela primeira vez?”

Por apenas um momento Lawrence pensou que ela estava fazendo sua provocação habitual.

Ele se surpreendeu com as palavras de Holo, com o quão obviamente ela queria voltar no tempo, ao se tornar mais consciente do fim da jornada.

Holo parecia estar sempre olhando para o futuro, mas isso não era verdade.

E, no entanto, Lawrence ficou emocionado ao saber que não era para os tempos felizes, séculos antes, quando ela chegara à sua aldeia, que ela queria voltar, nem para o tempo antes disso, antes de começar sua jornada.

Ela o segurava com a mão esquerda. Embora o envergonhasse, ele entrelaçou seus dedos nos dela enquanto falava. “Você pode querer voltando àquela época, mas da minha parte eu entraria em colapso com o excesso de trabalho.”

Holo se aproximou dele enquanto desciam as escadas. “Não se preocupe, pois eu estaria lá no seu leito de morte,” ela falou com um sorriso malicioso, que Lawrence só conseguiu responder com um sorriso cansado.

Foi a caminho do primeiro andar que Lawrence percebeu que suas palavras não eram inteiramente uma piada.

Se Holo dissesse que a busca por sua terra natal poderia ser adiada, Lawrence certamente morreria antes dela. Se a jornada de Holo não terminasse, a jornada deles em dupla certamente terminaria.

De repente, Lawrence sentiu como se tivesse entendido os motivos dela para não responder quando, em Tereo, perguntou quais eram seus planos depois que eles chegassem à sua terra natal.

 

 

Tais pensamentos ocuparam sua mente quando chegaram ao primeiro andar, e Holo soltou sua mão. Lawrence não era corajoso o suficiente para se sentir confortável entrando em uma sala enquanto segurava a mão de uma garota, mesmo que essa garota fosse Holo. Ao mesmo tempo, porém, ele não queria ser o único a soltar. O fato dela se sentir acomodada com seus sentimentos aquecia seu coração.

Era como se ela estivesse  respondendo  à  pergunta  do  que aconteceria quando chegassem à sua terra natal.

O sentimento o ajudou a reunir mais do que sua quantidade habitual de seriedade quando cumprimentou Eve e Arold, que já estavam lá. “Desculpe por faze-los esperar.”

“Bem, então, vamos começar?” Perguntou Eve com sua voz rouca.

 

“Então, o que você aprendeu com a sua investigação?” Eve perguntou.

Não havia necessidade de apresentar o Holo.

O que era visível do seu rosto embaixo da capa, junto com sua postura e seus movimentos na cadeira falavam muito.

A maneira um tanto utilitária de Eve não era irracional. Vender Holo não era, afinal, seu objetivo final, mas sua pretensão era um pouco avassaladora.

“Eu descobri que você realmente vendeu estátuas para a Igreja, que vocês se separaram em termos ruins, e que as vendas de peles serão restritas ao dinheiro,” disse Lawrence, observando Eve com atenção dando sua resposta. Essa era uma tática de negociação fundamental.

Mas, nesse sentido, Eve era hábil o bastante para esconder o rosto, para que os olhos de Lawrence não pudessem discernir muito, e ele não esperava aprender nada. Era como se aquecer antes de um exercício pesado.

“Com base na minha experiência e intuição como mercador, acredito que o que você me disse é verdade, Eve.”

 

 

“Oh?” Veio sua voz desinteressada e rouca. Ela parecia estar bem acostumada à negociações.

“Mas há uma coisa que me preocupa.” “Qual seria?”

“O motivo de sua separação com a Igreja.”

Não havia nada mais inútil do  que perguntar isso  a  ela,  mas Lawrence decidiu que tentaria comparar a resposta de Eve com a informação que ele já havia reunido. Se não fosse consistente, ele saberia que ela estava mentindo.

Holo, sentada ao lado dele, provavelmente também poderia dizer se ela estava sendo honesta, mas confiar em Holo para fazer isso não era diferente de tratá-la como um oráculo. Não, se a resposta de Eve não concordasse com o que ele estava pensando, abandoná-la seria o melhor caminho.

Afinal, eles estariam vendendo Holo com base no julgamento de Lawrence, então a responsabilidade de fazer esse julgamento cabia inteiramente a ele, ele pensou.

“O motivo da minha separação? Suponho que você gostaria de saber sobre isso,” disse Eve, limpando a garganta.

Ele sabia que a mente dela estava acelerada.

Qualquer que seja o resultado indesejável de Lawrence se retirar do acordo, provavelmente significaria o fracasso do plano.

Ela certamente estava tentando adivinhar o que ele tinha visto e ouvido pela cidade hoje.

Se ela iria mentir, suas chances de combinar com qualquer informação que Lawrence reuniu hoje eram quase nulas.

“O bispo da igreja aqui é uma relíquia dos velhos tempos, um passado que ele não pode esquecer,” começou Eve. Ele é ambicioso. Em sua juventude, ele veio para cá como missionário, suportando dificuldades infernais, e o que o levou a superar isso foi seu

 

 

objetivo de se tornar poderoso e influente. Ele quer estabelecer uma catedral aqui. Em outras palavras, ele quer ser um arcebispo.”

“Um arcebispo…” A palavra era praticamente sinônimo de poder.

Eve assentiu e continuou. “Como eu disse antes, posso ter caído em desgraça, mas sou da nobreza. Quando comecei a procurar nessa área por boas oportunidades de negócios, ouvi falar de um bispo obtendo lucros assombrosos. Era o bispo daqui. Na época, ele estava usando uma empresa de comércio como fachada e o dízimo para entrar no comércio de peles, mas no fim, ele simplesmente se trancou em sua igreja para contar a dívidas. Ele estava ficando cada vez mais no vermelho. Então, propus uma maneira de matar dois coelhos com uma cajadada só.”

“Que seria o comércio de estátuas.”

“Exatamente. E eu não apenas lhe vendi estátuas. Eu sou da nobreza do reino de Winfiel, afinal. Ainda posso falar com os que estão no poder. Eu o coloquei em contato com o arcebispo lá, cuja base de poder é inabalável.”

Lawrence se viu acenando com a cabeça internamente.

Se isso fosse verdade, então as estátuas provavelmente eram feitas pelos mesmos pedreiros itinerantes que o arcebispo reunia para manter sua catedral. Uma vez concluídos os reparos na intrincada alvenaria de uma catedral, eles normalmente se mudavam para outra cidade ou realizavam trabalhos esporádicos.

Mas mesmo assim, a quantidade de alguns tipos de trabalho é limitada, o que pode ser uma fonte de atrito entre grupos de pedreiros em uma área. E, ironicamente, eram os pedreiros itinerantes, que passavam algum tempo aperfeiçoando suas habilidades, que eram de longe os mais capazes, e eram os únicos que podiam lidar com a manutenção nos intrincados trabalhos em pedra das catedrais.

Portanto, nas cidades que possuíam uma catedral, sempre que exigiam reparos, os pedreiros locais se preocupavam em ter seus negócios roubados e serem esquecidos.

 

 

Foi assim que os negócios de Eve, baseados em trabalhos em pedra, ajudaram a aliviar essa preocupação.

Era uma ponte entre a catedral que queria contratar pedreiros viajantes apenas quando eram necessários, a cidade e os próprios pedreiros viajantes. Eve pôde então dizer ao arcebispo de lá que o bispo de Lenos queria conhecê-lo e, finalmente, obter lucro movendo estátuas de pedra de uma cidade para outra.

Era uma situação ideal; aquela em que todas as partes lucravam.

“Que bom que você entende. Isso facilitará a explicação. É como você disse, a razão pela qual me contentava com as pequenas margens da venda de estátuas era porque estava contando com o bispo aqui se tornando arcebispo. Mas então —”

Lawrence não sabia dizer se o tom que apareceu na voz de Eve era um ato ou resultado de sua raiva reprimida.

Mas até agora todos os fatos se encaixavam; A história de Eve era muito plausível.

“À medida que o bispo se beneficiava de seu acordo comigo e solidificava sua posição, as pessoas ao seu redor começaram a adivinhar qual era seu objetivo, e  o  bispo  começou  a  eliminar obstáculos. O último caso foi apenas uma desculpa conveniente para ele me eliminar. Ele me devia. Ele provavelmente pensou que quanto mais tempo eu estivesse por perto, mais exigências desfavoráveis eu faria para ele. E, claro, eu tinha planejado fazer exatamente isso. Era o meu direito. Mas ele decidiu que preferia lidar com uma empresa comercial já estabelecida, em vez de um único mercador tentando se estabelecer. Até eu consigo entender o raciocínio, mas isso não significa que concordo.”

Lawrence pensou consigo mesmo que a raiva ardia tão visivelmente quanto qualquer chama.

“Então discutimos e nos separamos,” finalizou Eve.

Sentada ao lado de Lawrence, Holo estava tão quieta que era fácil esquecer que ela estava lá.

 

 

Lawrence repassou a história de Eve novamente em sua cabeça. Parecia ser totalmente consistente. Tão consistente, de fato,

que o deixou desconfiado.

Se era uma mentira, era boa o suficiente para que ele quase não se importasse de trabalhar com ela.

“Entendo. Foi por isso que se tornou difícil transformar suas estátuas em dinheiro e por que você não pode esperar pela campanha do norte do próximo ano.”

O silêncio de Eve sob seu capuz contrastava fortemente com sua eloquência anterior.

Lawrence respirou devagar e silenciosamente. Ele fechou os olhos.

Se duvidasse mesmo dessa história consistente, qualquer outro acordo também seria difícil.

Por outro lado, ele podia estar apenas se enganando.

Somente   mercadores,   constantemente     tramando  e    sendo traçados, tinham que se preocupar com essas coisas.

“Entendido,” disse ele, exalando o ar que estava segurando. Ele notou que os ombros de Eve se moveram levemente.

Ele estava confiante de que isso não era um ato da parte dela.

Nenhum mercador era capaz de permanecer completamente inexpressivo nesses momentos.

“Vamos discutir os detalhes do acordo,” ele terminou.

“…Sim, vamos.”

Lawrence teve a sensação de que, na sombra de seu capuz, Eve sorriu.

Ela estendeu a mão.

Lawrence pegou; ela tremia levemente.

 

 

 

 

Posteriormente, Lawrence e Eve, com Holo acompanhando, se aventuraram pela cidade.

A expedição deles não era para celebrar o contrato recém- estabelecido. Os mercadores não comemoravam nada até que o lucro estivesse em suas mãos.

Não havia como saber exatamente quando o Conselho dos Cinquenta tornaria pública sua decisão e desencadearia a correria dos mercadores que tentavam monopolizar o comércio de peles; portanto, eles precisavam garantir o dinheiro necessário o mais rápido possível.

Então, na cidade, eles procuraram a companhia que lhes emprestaria o dinheiro com Holo como garantia.

A empresa comercial se chamava Delink Company.

Embora estivesse convenientemente localizada perto do porto, o prédio era pequeno e não tinha doca de carregamento.

A única coisa que a identificava como uma empresa comercial era uma pequena bandeira pendurada discretamente na porta.

No entanto, a construção de pedra do prédio era tão boa que nem um fio de cabelo podia deslizar por entre elas e, apesar de ter cinco andares, não parecia se encostar aos prédios vizinhos.

Enquanto Lawrence examinava a bandeira mais de perto, que estava mal iluminada pela luz tremeluzente de uma lamparina a óleo, ele podia ver que era uma peça  bordada  da  mais  alta  qualidade. Colocado contra as pedras cinzentas da névoa, dava à companhia a aparência de um pequeno gigante, não de uma recém- formada.

Lawrence imaginou se a abordagem da empresa à publicidade era diferente da de outras casas.

“Sou Luz Eringin, representante da Companhia Delink.”

 

 

Os mercadores que lidavam com mercadorias diferentes tinham costumes bastante variados.

Quatro homens da Companhia Delink saíram para cumprimentar Lawrence e sua comitiva, cada um deles vestidos para representar sua companhia, nenhum deles se destacando dos outros.

Lawrence ouvira dizer que grupos que lidavam com mercadorias humanas sempre faziam com que várias pessoas julgassem a qualidade de seus produtos. Esses quatro eram sem dúvida os gerentes da empresa.

“Eu sou Kraft Lawrence.”

Lawrence apertou a mão de Eringin.

As mãos do homem eram estranhamente macias, e um sorriso vago grudou em seu rosto, tornando impossível dizer o que ele estava pensando.

Os mercadores de ovelhas tinham vozes altas como as de um cachorro latindo. Então era esse o sorriso de um mercador de escravos?

Holo apertou-lhe as mãos em seguida, e seus olhos enquanto os observava eram reptilianos — como os de lagartos ou de cobras.

A Eve removeu seu capuz, mas não trocou nenhuma saudação.

Talvez essa empresa tivesse intermediado o negócio quando ela foi vendida para aquele mercador que entrou na riqueza.

“Sente-se,” convidou Eringin, e todos se sentaram em cadeiras cobertas de feltro de qualidade, recheadas com algodão. “Eu já ouvi os detalhes do honorável chefe da casa de Bolan.”

“Então não vamos perder tempo com conversas vazias,” ele parecia estar dizendo.

Lawrence   não   tinha   intenção   de    negociar    o    preço. Ele não sabia nada sobre o mercado de jovens nobres.

 

 

“Gostaria de perguntar só uma coisa,” disse Eringin. “Ouvi dizer que você, Sr. Lawrence, é membro da Associação Comercial Rowen?”

Os três homens atrás de Eringin ficaram ali  sem sequer     se contrair, olhando para Lawrence.

Embora nenhum deles tivesse uma expressão específica, eles formavam uma aura que era completamente inquietante.

Até Lawrence, acostumado a assinar contratos, sentiu a pressão.

Talvez fosse uma técnica deles; tendo entrado em contato com esta empresa, seria difícil mentir para eles.

“Sim,” respondeu Lawrence brevemente, e a aura opressiva dos três homens desapareceu imediatamente.

Parecia que eles realmente estavam tentando arrancar a verdade dele.

“Rowen, então. Acredito que lorde Goldens tenha lidado com você várias vezes. Talvez tenha sido ele de quem eu ouvi que a sua é uma guilda de olhos aguçados.”

Lawrence não pôde deixar de ficar inquieto com a menção de uma das figuras centrais da guilda — mesmo sabendo que Eringin o havia citado para fazer Lawrence pensar que a fuga seria impossível.

“Se você é membro de uma guilda, você é um homem a ser considerado, e sua companheira é uma garota da nobreza. Agora, se eu puder explicar o que nós quatro decidimos.”

Eve disse que queria 2.500 peças. O sorriso de Eringin aumentou.

Em qualquer lugar do mundo, eram os que tinham dinheiro que eram fortes.

“Duas mil peças de prata trenni.

Era menos que o objetivo, mas com duas mil em sua conta, o plano teria um sucesso incrível.

 

 

Lawrence se esforçava para não expressar o nervosismo em seu corpo. Eve parecia estar fazendo o mesmo.

Ela forçou o rosto a ficar sem expressão.

“A Senhorita Eve propôs 2.500, mas não podemos negociar essa quantia com mercadores individuais. Isso é para aquele… negócio de peles que está circulando, não é? Em troca, renunciaremos à nossa comissão padrão e lhe emprestaremos o valor total. Mas como não temos tanta prata disponível no momento, a remessa será na forma de sessenta lumiones de ouro.”

Uma única peça de ouro lumione valia aproximadamente trinta trenni. Lawrence não tinha certeza dos detalhes do mercado de Lenos, mas quando usado em troca de mercadorias com outras moedas, o lumione possuía um poder singular.

Dependendo das circunstâncias, isso poderia reunir significativamente mais peles do que os dois mil trenni conseguiria.

Mas o que surpreendeu Lawrence ainda mais era o fato de que eles estavam dispostos a emprestar o montante fixo.

A mera posse de moedas de alto valor detinha valor. A moeda de ouro ou prata era um ativo versátil que poderia ser derretido, se necessário, e era muito superior aos registros de dinheiro em papel.

Quando alguém assinava o nome em papel e pedia dinheiro emprestado, era comum pagar também uma taxa.

Mas não desta vez.

“Isso é generoso da sua parte,” murmurou Eve.

“É um investimento,” disse Eringin, aprofundando o sorriso. “Você é uma pessoa inteligente. Você conseguiu tirar proveito do estado e dos arranjos desta cidade. Há poucas dúvidas de que você usará esse sucesso para alcançar posições ainda maiores, e desejamos compartilhar essa boa sorte. E” — ele se virou para Lawrence — “você é um homem de sorte. Foi apenas boa sorte que nos levou a nos conhecermos. E você não está sendo dominado pela

 

 

empolgação com um negócio tão grande. Acreditamos que isso ocorra porque você se acostumou à boa sorte. Nos nossos negócios, o elemento da fortuna é muito importante. A menos que alguém esteja acostumado a tanta fortuna, pode cometer erros. Nesse sentido, confiamos em você.”

Mesmo enquanto Lawrence admirava o método de estimar valor do homem, não lhe escapou que a única coisa que lhe era elogiada era sua boa sorte.

Ele tentou decidir se ficaria satisfeito ou ofendido e de repente teve a sensação de que, ao lado dele, Holo estava rindo às suas custas.

“Nosso trabalho não é diferente de explorar uma mina de ouro. Para encontrar parceiros, não vamos deixar de investir dinheiro.”

“Então, como devemos aceitar o dinheiro que silenciará tantas línguas inquietas?”

Eringin sorriu com a pergunta de Eve e, pela primeira vez, ele parecia sincero. “Você vai comprar peles da Companhia Arkieh, correto? Você certamente tem um bom olho. Eu adoraria que nos contasse o seu segredo.”

“Minha voz está um pouco rouca hoje em dia. É difícil falar,” disse

Eve.

Não parecia brincadeira. As palavras de Eve eram difíceis, e as

palavras de Eringin eram astutas e ameaçadoras, como uma cobra.

Foi uma conversa estranha, diferente das que Lawrence já havia experimentado antes.

É claro que não havia necessidade das partes negociando se darem particularmente bem, mas faltava cortesia humana básica entre essas duas.

Contanto que ganhassem dinheiro, cada um não se importava com o bem-estar do outro.

Era tão óbvio quanto o ar.

 

 

“A transação? Ela será da forma que preferir.”

“O que você quer fazer?” Eve perguntou, olhando para Lawrence pela primeira vez.

Eles não haviam acertado com antecedência, então Lawrence disse o que lhe veio à mente.

“É difícil dormir com moedas tão brilhantes iluminando a escuridão.” Foi a presença de Holo ao lado dele que o ajudou a se endireitar um pouco e administrar um leve sorriso.

Eringin fez uma cara de impressionado, depois sorriu, dando de ombros. “Uma resposta memorável! À medida que se lida com quantias cada vez maiores, o orgulho também aumenta. Essa liberdade te torna altivo e sarcástico. Mas suas palavras, modestas, porém incisivas — essa é a verdadeira liberdade. Todos devemos aprender com o seu exemplo.”

Eringin   lidava   com    quantidades    terríveis    de  dinheiro diariamente? Até a taxa de serviço em duas mil peças de prata seria  uma  soma  significativa,  mas  ele   a   renunciou  sem pensar duas vezes.

Quando um mercador surgia no mundo, era isso o que esperava?

“Bem, então, devemos enviá-lo pouco antes de você comprar sua pele?”

Pensando no que Eve estava pensando, Lawrence não respondeu imediatamente, a fim de lhe dar uma chance de falar se ela quisesse — mas, no final das contas, ela não disse nada.

“Sim, por favor,” disse Lawrence.

“Muito bem.” Eringin estendeu a mão.

Lawrence aceitou. O aperto de mão era um pouco mais forte do que o que o precedeu.

 

 

Em vez de se voltar para Holo, Eringin encarou Eve e ofereceu sua mão, que Eve aceitou. Apesar das negociações duras, parecia que ainda havia um pequeno indício de civilidade.

“Vamos orar por uma transação bem-sucedida,” disse Eringin, fechando os olhos, embora não parecesse que ele acreditava em algum tipo de deus.

Havia algo de divino naquele espírito, o espírito daquele mercador que buscava lucro acima de tudo e atropelava qualquer deus em seu caminho.

 

“Um homem desagradável,” declarou Eve quando eles deixaram a casa comercial depois de terem assinado vários papéis.

Suas palavras estavam cheias de tanta emoção que Lawrence achou isso um pouco incomum.

“Eu nunca o conheci antes. Isso me fez perceber o quão pequeno sou como um mercador,” confessou Lawrence honestamente. Eve olhou para ele além do capuz e ficou em silêncio por um tempo.

“…Você realmente acha isso?” Perguntou Eve.

“Sim. Eu luto para fazer algumas centenas de peças de prata, mas agora vi um nível totalmente diferente.”

“E ainda assim você conseguiu ser firme com ele.” “Oh, esse negócio sobre as moedas de ouro?”

Eve assentiu e começou a andar lentamente.

Lawrence pegou a mão de Holo e seguiu sua nova parceira. Holo parecia  ter  entendido  perfeitamente  o   papel   que   ela deveria desempenhar e ficou obedientemente silenciosa o tempo todo. Quando Lawrence pegou a mão dela, porém, ele notou que estava quente.

Ela também não deve ter gostado do olhar de Eringin.

 

 

“Foi bastante refrescante ouvir tamanha inteligência,” disse Eve. “Você deixou Eringin desequilibrado. Ele não subestimará um mercador viajante novamente.”

“Estou honrado,” respondeu Lawrence. Ele ouviu a risada áspera de Eve.

“Você tem certeza de que não é filho de uma rica casa mercante?” “Há noites em que me sinto assim.”

“Eu desisto,” murmurou Eve, e pela primeira vez, os olhos sob seu capuz não eram severos enquanto ela falava. “Você não está com sede após esse discurso?”

Eles não haviam concluído o acordo inteiro, mas a primeira barreira havia sido superada.

Lawrence não estava tão duro a ponto de discordar.

Mesmo depois do anoitecer, ainda haviam muitas barracas vendendo bebidas perto das docas.

Lawrence pediu três copos de vinho e os três ficaram sentados em caixas descartadas nas proximidades.

“Aqui, ao sucesso,” disse Eve, levantando sua xícara em um brinde.

Os três simplesmente fingiram bater seus copos de madeira antes de beberem o vinho.

“Suponho que seja um pouco tarde para perguntar isso…” começou Eve.

“O que seria?”

“Onde você encontrou sua companheira?” “O qu—?”

Lawrence não conseguiu esconder sua surpresa, mas não porque tinha relaxado após negociações tensas.

 

 

Era simplesmente porque ele nunca esperava que Eve se importasse com essas coisas.

“É estranho que eu pergunte?” Questionou Eve com um sorriso triste. Felizmente, Holo apenas segurou seu copo com as duas mãos e não disse nada. “Eu disse que não bisbilhotaria, mas estou curiosa.”

“Sim, bem… as pessoas costumam perguntar.”

“Então, onde você a encontrou? Não ficarei  surpreso  se me disser que ela é filha de um senhorio rico, deposto em uma revolta camponesa.”

Era o tipo de piada que só poderia ter vindo de Eve, sendo ela própria uma nobre decaída, mas mesmo assim era  surpreendente. Lawrence ouviu um leve som de zumbido vindo das costas de Holo, e sempre tão casualmente, ela pisou em seu pé.

“Evidentemente ela nasceu no norte. Ela viveu por um longo tempo nos campos de trigo do sul.”

“Oh?”

“Eu tinha feito muitos negócios em uma cidade da região, então parei em minhas viagens para ver um amigo, mas ela se esgueirou na minha carroça.”

Pensando nisso, Lawrence percebeu que Holo estava aconchegada entre as peles que ele estava carregando na época.

Talvez a cauda lhe desse algum tipo de conexão estranha com o pelo.

“Ela disse que queria voltar para sua terra natal e, depois de várias reviravoltas, acabei atuando como sua escolta.”

Era uma história simples de se relacionar. Não havia mentiras. Holo assentiu e Eve tomou um gole de seu vinho.

“Parece um encontro sonhado por um bardo qualquer,” disse ela. Lawrence teve que rir.

Afinal, era verdade.

 

 

E, no entanto, o que aconteceu depois disso era algo de valor imensurável.

Era um absurdo, era delicioso, e Lawrence queria que continuasse pelo resto de sua vida.

“São essas voltas e reviravoltas que me interessam,” disse Eve. “Mas duvido que você diria isso a um padre.”

“Eu certamente não saberia dizer se um padre seria mais apropriado.”

Era a verdade, e, no entanto, o que Lawrence quis dizer e o que Eve assumiu eram duas coisas muito diferentes.

Eve riu alto, mas o porto não era tão silencioso a ponto de dar a alguém motivo para se virar e olhar.

“Bem, você certamente a vestiu muito bem. Está claro o suficiente que foi um encontro que você apreciou.”

“No momento em que baixei a guarda, ela mesma comprou.” “Não duvido. Ela parece uma garota inteligente.”

Sem dúvida, a garota inteligente estava sorrindo para si mesma sob o capuz.

“E vocês parecem se dar bem,” continuou Eve. “Embora  eu recomendo que vocês mantenham suas vozes um pouco mais baixas na estalagem.”

A mão de Lawrence congelou pouco antes de levar o copo de vinho aos lábios. Por um momento, ele se perguntou se ele e Holo teriam sido ouvidos por outras pessoas na estalagem, mas então percebeu que Eve estava tentando levá-lo a revelar algo.

Holo agora pisou em seu pé, como se lhe dissesse para não cair no truque.

“É algo a ser valorizado. O dinheiro pode comprar companhia, mas não a sua qualidade.”

 

 

O olhar de Lawrence se desviou para o que estava por baixo do capuz de Eve.

Os olhos azuis dela o espiavam — de um azul raro e nobre.

“O rico mercador que me comprou era um homem terrível,” ela falou, olhando para longe, espiando Holo antes que seus olhos se desviassem para as docas. Foi seu sorriso de auto-depreciativo que finalmente afastou o olhar de Lawrence. “Se eu alegasse não querer sua simpatia, estaria mentindo, mas agora isso já é passado. E ele morreu pouco tempo depois.”

“Entendo…”

“Sim. Você provavelmente já sabe, mas na minha terra natal, o comércio de lã é próspero. Ele fez uma fortuna competindo com rivais estrangeiros em ativos de lã e, justamente quando obteve ouro suficiente para aumentar seu status, foi à falência quando o rei mudou a política. O acordo valia muito, uma quantidade inacreditável para nobres caídos como nós, que tinham problemas até para comprar pão. Mas ele era um homem orgulhoso, mais orgulhoso que a nobreza; portanto, quando sua ruína estava declarada, ele cortou sua própria garganta. Essa era a única parte dele digna do nome Bolan.”

Eva não falou com raiva, nem tristeza, nem se divertia sombriamente com o destino do seu novo mestre. Ela parecia quase nostálgica.

Se isso fosse fingimento, Lawrence nunca mais seria capaz de acreditar em ninguém.

“A cerimônia de casamento foi grandiosa. Meu mordomo chorou, dizendo que este foi um dos casamentos mais grandiosos da história da casa Bolan. Claro, para mim foi um funeral. Mas havia coisas boas nisso. Eu não precisava me preocupar com como eu iria comer. E eu não engravidei.”

Laços de sangue eram mais importantes para a nobreza do que para qualquer outra pessoa.

 

 

As crianças não eram presentes de Deus, mas ferramentas políticas.

“E ninguém me viu roubando dinheiro da bolsa dele, pouco a pouco. Uma vez que ele faliu e toda a família foi confiscada, era o suficiente para eu começar por conta própria como mercadora.”

Para ter riqueza suficiente para comprar uma família nobre, ele realmente deve ter possuído uma grande casa comercial.

Para uma garota nobre como Eve escolher o caminho de mercadora, ela deve ter tido a ajuda daqueles que estavam dentro da empresa para poder organizar essas coisas.

“É meu sonho, entenda, construir algo maior que ele e a empresa dele,” disse Eve claramente. “Foi apenas a sorte que permitiu que ele me comprasse. Na verdade, não sou tão barata a ponto de ser comprada por um mercador como ele, e quero provar isso. Infantil, não?” Ela perguntou com a voz rouca e, quando sorriu, seu rosto parecia muito jovem.

Quando eles apertaram as mãos concordando em fazer esse acordo, a mão dela tremia.

Ninguém era perfeito. Neste mundo, todos tinham uma fraqueza.

“Ha, por favor, esqueça tudo isso. Às vezes, sinto que quero falar sobre isso, sabe? Suponho que significa que ainda tenho caminho pela frente,” disse Eve, drenando sua xícara de vinho e arrotando silenciosamente. “Não, não é isso.”

Ela levantou a ponta do capuz. Lawrence pensou o que ela pretendia.

“Eu estava com ciúmes de vocês dois,” disse Eve. Seus olhos azuis se estreitaram e estavam brilhantes.

Lawrence se perguntou como responder e finalmente se refugiou no copo de vinho.

Holo zombaria dele por isso, sem dúvida.

Eve riu. “Que absurdo. Devemos nos preocupar com o lucro. Estou errada?”

Lawrence olhou para seu reflexo no vinho.

Assim como o de Eve, não era o rosto de um mercador.

“Você está certa,” disse ele, passando o vinho de volta. Ele temia ouvir o que Holo teria a dizer sobre isso mais tarde, mas quando Eve levantou a voz em uma risada curta e seca, os dois se levantaram e retomaram suas expressões comerciais apropriadas.

“Nós faremos o acordo assim  que  o  conselho  anunciar sua decisão. Mantenha Arold informado sobre sua localização.”

“Eu irei.”

Eve voltou a ser completamente o mercador áspero quando estendeu a mão para ele. “Este acordo vai correr bem,” ela falou.

“É claro,” disse Lawrence, pegando a mão dela.

 

Lawrence lembrou-se da resposta de Holo, ao entrar em Lenos, quando lhe dissera para não se zangar caso encontrassem pele de lobo.

Ele não estava preocupado consigo mesmo, mas não podia estar em paz com alguém que sabia que estava sendo caçado.

Isso também parecia se aplicar aos negócios.

Comprar uma criança para adotar em uma família ou comprar um escravo para usar no trabalho… esse era um comércio necessário e não algo a se questionar.

Mas, mesmo considerando brevemente a ideia de realmente vender Holo, o coração de Lawrence ficava em desordem. Ele sentia como se entendesse pela primeira vez a exigente denúncia da Igreja ao tráfico de escravos.

Uma vez que eles voltaram para a estalagem, Eve permaneceu no primeiro andar, dizendo que iria beber com Arold.

 

 

Holo foi a único envolvida nesse caso a cair exausta na cama, uma expressão desgastada no rosto.

“Essa certamente foi uma maneira insuportável de passar o tempo,” ela declarou.

Lawrence sorriu cansado enquanto acendia a lâmpada de sebo.

“Você estava tão mansa quanto um gatinho.”

“Bem, é com este ‘gatinho’ que você está conseguindo dinheiro emprestado. Eu não tive escolha.”

Lawrence decidiu que podia confiar na história de Eve e, em troca, Eve ajudou o acordo a prosseguir sem problemas. Enquanto nada inesperado acontecesse, não era um otimismo cego acreditar que o negócio de peles seria bem-sucedido e que suas bolsas de moedas logo inchariam com dinheiro.

Ninguém   riria   dele   por   sentir    prematuramente   aquele calor confuso em seu estômago, do qual o mendigo havia falado.

Fazia muito tempo desde que sentira essa sensação.

Afinal, seu desejo de ser um mercador da cidade estava finalmente começando a se materializar.

“Você  foi  uma  grande  ajuda,”  disse  Lawrence, acariciando levemente o queixo. “Obrigado.”

Holo olhou para ele de uma maneira não muito amigável. Ela sacudiu os ouvidos como se quisesse tirar a poeira deles, suspirou resignada, depois rolou deitada com as costas para cima e abriu um livro.

No entanto, na verdade, ela parecia um pouco tímida.

“Alguma coisa te preocupou?” Lawrence perguntou.

Holo tirou o roupão enquanto olhava o livro, uma tarefa em que Lawrence a ajudou de bom humor. Ela não estava sendo difícil,

 

 

então o palpite de que ela se sentia tímida com os agradecimentos provavelmente não estava muito errado.

“Muitas coisas me incomodaram. Dizem que há um demônio que canta uma canção de mau agouro enterrado na encruzilhada.”

“Eu ouvi essa.”

“Oh?” Seu cabelo caiu como óleo sobre a água depois de ter tirado a capa. Ela o juntou.

“Existem músicos viajantes que carregam instrumentos e andam de cidade em cidade, e às vezes são acusados de serem servos de um demônio e acusados de trazer azar ou doença com eles. E o lugar onde tocam é sempre a encruzilhada fora da cidade.”

“Oh ho.” A faixa de Holo, desfeita, escorregou em sua cauda; Lawrence a tirou enquanto ela tentava libertá-la. Ela aninhou a cauda como se estivesse agradecendo.

Quando ele brincou  como  se  fosse  tocá-la,  ela  se  desviou rapidamente.

“Depois que o músico demônio morre, eles desejam que  seu espírito assombre algum outro lugar. É por isso que as encruzilhadas próximas às cidades são mantidas tão cuidadosamente livres de pedras com buracos na estrada rapidamente preenchidos. Se alguém tropeçar lá, diz-se que o demônio enterrado pode voltar à vida.”

“Hmph. Os humanos acreditam em todo tipo de coisa,” murmurou Holo, parecendo genuinamente impressionada, depois voltou sua atenção para o livro.

“Os lobos não têm superstições?” “…”

Holo ficou subitamente séria, fazendo Lawrence pensar se ele acidentalmente pisara em sua cauda, mas ela parecia estar simplesmente pensando. Depois de um tempo, ela olhou para ele.

 

 

“Agora que você mencionou, eu percebi que — não.”

“Bem, é bom que você não tenha nada que impeça as crianças de fazer xixi à noite.”

Holo parecia atordoada por um momento, depois riu.

“Só   para   você    saber,    não    estou    falando    de mim,” acrescentou Lawrence.

“Heh.” Holo sorriu, sua cauda balançando.

Lawrence bateu levemente em sua cabeça e ela se afastou como se estivesse fazendo cócegas.

Ele então casualmente colocou a mão na cabeça dela.

Ele tinha certeza de que sua mão seria afastada, mas Holo deixou que ela ficasse ali, suas orelhas se movendo levemente. Através da mão dele, Lawrence podia sentir o calor do corpo dela, apenas um pouco mais quente do que o de uma criança.

O quarto estava tão quieto que ficava triste. Esses momentos eram preciosos.

Então, como se ela estivesse finalmente preparada, Holo falou abruptamente.

“Você nunca me perguntou se as palavras dela eram verdadeiras.” Ela tinha que estar falando sobre Eve.

Lawrence removeu sua mão, sua única resposta foi um aceno de cabeça.

Holo nem sequer olhou para ele. O gesto dele era tudo o que ela precisava.

“Se você tivesse, eu teria provocado você, desprezado você, tirado sarro de você. Então eu teria respondido e você me deveria.”

“Que arriscado,” disse Lawrence. Holo sorriu alegremente.

 

 

Ela deixou a cabeça cair na cama e depois olhou para ele.

“Eu entendo por que você está tentando determinar tudo por conta própria. Me vender faz  você  sentir  um estranho  senso de responsabilidade, não é? Mas também sei que as pessoas não são tão fortes. Se eles têm uma maneira de saber com certeza qual é a verdade, eles querem usá-la. E ainda assim você não usou… por quê?”

Lawrence queria saber qual era a intenção de Holo em perguntar isso, mas como tentativas desajeitadas de descobrir acabariam mal, ele respondeu honestamente.

“Se eu não for mais capaz de diferenciar, você vai ficar com raiva.” “…Você é tão honesto. Por que não tenta confiar mais em mim?”

Uma vez que começasse a confiar nela, a resistência em fazê-lo certamente diminuiria.

As pessoas podem se acostumar com qualquer coisa. Era preciso a autoconsciência de um santo para não se esquecer disso.

“Eu não sou tão inteligente,” disse Lawrence.

“Você pode se acostumar com qualquer coisa com a prática.” Os cabelos que Lawrence tinha ordenado balançavam quando caíam novamente. “Você gostaria de praticar?”

“Praticar confiar  em  você?”  Lawrence  retrucou brincando. A cauda suavemente ondulada de Holo parou gradualmente de se mover.

Ela fechou os olhos e os abriu lentamente. O sorriso dela era gentil, como se perdoasse qualquer erro.

O rosto dela dizia que aceitaria qualquer maneira coma qual Lawrence pensasse em confiar nela.

Se ela estava fazendo isso para provocá-lo, era realmente uma piada cruel.

Quem o culparia por ser pego por algo assim?

Dessa forma, a mente de Lawrence ficou ainda mais fria.

 

 

Ele chegou ao ponto de considerar se isso realmente mostrava o quanto ela estava irritada e se tudo isso era uma armadilha para tentar fazê-lo sorrir.

Parecia que o principal objetivo de Holo era vê-lo assim. Eventualmente, ele sorriu, com um toque de malícia.

“Você está me dizendo para não fazer uma armadilha tão desagradável? Não estou com raiva,” disse Holo.

“Se você estiver, não são palavras que vão desfazer isso.”

“Bem, desta vez não há armadilha. Pratique confiar em mim o quanto quiser.”

“…É isso que você diria, não é?”

Lawrence deu de ombros quando Holo riu, depois repousou a cabeça nos braços enquanto terminava de rir.

“Sendo desmascarada por você — sou uma desgraça como loba.” “Eventualmente, até eu aprendo.”

Holo não riu nem pareceu frustrada, mas havia um leve sorriso no rosto quando apontou para o canto da cama.

“Sente-se,” ela parecia dizer. “Ah, mas seu coração ainda é tão mole como sempre foi.”

Lawrence se sentou no canto da cama enquanto Holo se sentava e continuava.

“Mesmo que eu te atrair para uma armadilha e rir até cansar, mesmo que você fique com raiva, ainda não vai perder a paciência comigo.”

Lawrence sorriu. “Bem, eu não de nada disso.” Então, é melhor você se preparar no futuro, ele ia acrescentar, mas pensou melhor, porque quando ele achou que Holo daria seu sorriso invencível e voltaria com sua sagacidade habitual, ela parecia triste.

 

 

“Não você não vai. Eu sei,” ela murmurou, antes de fazer algo completamente inesperado.

Ela se sentou e se inclinou para o lado de Lawrence, depois se sentou de lado no colo dele. Feito isso, ela o abraçou sem hesitar.

O rosto dela pressionava o ombro esquerdo dele. Ele não podia ver a expressão dela.

Apesar dessa exibição franca, Lawrence não achou que ela estivesse planejando algo ruim.

“É verdade que as pessoas mudam com o tempo. Até pouco tempo atrás, você ficaria assustado se eu fizesse esse tipo de coisa.”

Não importa o que Holo estivesse tentando fingir, suas orelhas e cauda nunca mentiam.

Entre o som da cauda dela e o jeito que ela tocava a mão esquerda dele, Lawrence percebeu que ela estava incerta.

Ele a agarrou levemente.

Naquele instante, Holo se encolheu e enrijeceu. Ele soltou imediatamente.

Antes que pudesse se desculpar, a cabeça dela bateu com força na lateral da dele. “Sem toques desajeitados!”

De tempos em tempos, Holo afirmava que ela o deixava tocar sua cauda como uma espécie de recompensa, mas isso parecia ser um ponto fraco dela.

Verificando que esse não era o objetivo de Lawrence, nem que ele era motivado por simples travessuras.

Ele não conhecia a causa, mas, como Holo não parecia estar completamente desanimada, ele se sentia um pouco aliviado.

“Tolo,” ela acrescentou, suspirando. O silêncio prevaleceu.

 

 

O som intermitente da cauda de Holo se misturou com o som silencioso do estalido da chama de sebo.

Enquanto Lawrence estava se perguntando se deveria dizer alguma coisa, Holo falou.

“Eu realmente sou um fracasso como loba, fazendo você se preocupar comigo.”

Ela deve ter percebido que ele estava prestes a falar.

Suas palavras pareciam a Lawrence como uma simples reclamação, mas talvez fosse apenas sua imaginação.

“Honestamente, confiar em você é uma história completamente diferente. Nós estávamos falando sobre você confiar em mim!”

Ela levantou a cabeça do ombro dele e se endireitou, seus olhos agora um pouco mais altos que os de Lawrence.

Aqueles olhos castanho-avermelhados olhavam para ele, e seu lábio se torcia em irritação. “Quando você vai ficar perturbado por minha causa?”

“Eu poderia ficar, se me dissesse o que realmente está pensando.”

Imediatamente Holo se afastou, seu rosto contorcido como se tivesse provado algo amargo.

No entanto, quando Lawrence deixou de parecer preocupado, ela logo ficou triste. “Vamos, agora —,” ela disse calmamente.

“O quê?”

“Eu quero você confuso.”

“Tudo bem então,” Lawrence respondeu, e Holo mais uma vez encostou no seu peito, completamente imóvel.

“Não podemos terminar nossas viagens aqui?” ela murmurou.

Se Lawrence quisesse explicar a outra pessoa a surpresa que sentiu naquele momento, eles não conseguiria.

 

 

Ele ficou muito surpreso; essa era a única coisa que se passava em sua mente.

Mas então o que ele sentiu foi raiva.

Essa era a única piada que ele nunca queria ouvir.

“Você acha que eu estou brincando?”

“Acho,” respondeu Lawrence instantaneamente, mas não porque ele estava confiante.

Era exatamente o contrário. Ele agarrou os ombros de Holo e a segurou de perto, de frente para ela.

Ela sorriu, mas não de uma maneira que Lawrence pudesse ficar com raiva.

“Você realmente é muito charmoso.”

Lawrence murmurou baixinho que ela só poderia dizer essas coisas se ela lhe fizesse cócegas no queixo e desse seu sorriso diabólico ao fazê-lo.

“Estou bastante séria. Se eu dissesse isso em tom de brincadeira, você ficaria realmente zangado.” Lawrence ainda segurava seus ombros; ela cobriu as mãos dele com as suas e continuou. “Mas você vai me perdoar, porque você é gentil.”

Os dedos de Holo eram esguios  e  suas  unhas,  embora  não fossem bem afiadas, tinham uma forma adorável.

E quando elas caíram nas costas das mãos dele, elas machucaram.

Mas mesmo arranhado, Lawrence não tirou as mãos dos ombros dela. “Meu contrato com você… foi para acompanhá-la à sua terra natal.”

“Estamos quase chegando.” “Então por que aqui, agora —”

“Pessoas mudam. Situações mudam. E meu  humor  também muda.”

 

 

Depois que Holo falou, ela deu um sorriso arrependido, e Lawrence sabia que ela estava lamentando seu próprio rosto arruinado.

Por apenas um momento, ele sentiu terror.

Seria algo que ela decidiria simplesmente por um capricho?

Holo riu. “Parece que existem campos ainda não cultivados. Mas este não é o lugar para pisar com as botas.”

Era tarde demais para ela estar provocando Lawrence e desfrutando de sua aparência visivelmente perturbada, mas, à medida que ele se tornava cada vez mais resistente às piadas dela, seus métodos compensavam se tornaram mais extremos.

Mas, exatamente como Holo havia dito, este era um lugar que ele não queria que ela pisasse.

“Por que isso, de repente?” ele perguntou. “É exatamente como a raposa disse.” “…Eve?”

Holo assentiu e tirou as unhas das costas das mãos de Lawrence.

Um pouquinho de sangue brotou; Holo se desculpou com os olhos e continuou. “O dinheiro pode comprar companheiros, mas…”

“…Mas não sua qualidade?”

“Sim, e então ela disse para valorizar seus encontros. Aquela mera garota humana, estando tão certa… Holo colocou a mão de Lawrence na sua bochecha. “Quero que nosso encontro seja algo bom. Então acho melhor que nos separemos aqui.”

Lawrence não entendia o que ela estava dizendo.

Lá em Tereo, Holo havia evitado a pergunta sobre o que ela faria ao chegar à sua terra natal.

Lawrence achava que isso era porque uma vez que chegassem lá, sua jornada juntos terminaria.

 

 

Isso era natural, dada a natureza de sua promessa, e quando ele conheceu Holo, Lawrence assumiu que era isso  que  aconteceria. Certamente Holo se sentia da mesma maneira.

Mas a jornada tinha sido uma boa, e ele queria prolongá-la, mesmo que por um dia.

Ele era inevitavelmente conduzido por esse desejo infantil.

E Holo não sentia o mesmo? No mínimo, Lawrence achava que poderia olhar para trás em suas viagens e ter certeza disso.

Então, como terminar sua jornada aqui a partir da ideia de que os relacionamentos precisavam ser valorizados?

Enquanto Lawrence olhava para ela com uma óbvia perplexidade, Holo sorriu tristemente, ainda segurando a mão na bochecha dela.

“Seu idiota. Você ainda não entende?”

Ela não estava brincando nem zangada. Holo olhou para ele como ela olharia para uma criança particularmente difícil, sua frustração tingida de carinho.

Ele removeu sua mão quando ela olhou para cima, abraçando-a lentamente mais uma vez.

“Essa jornada foi realmente maravilhosa. Eu ri, chorei… Essa velha loba astuta até mesmo gritou de raiva com nossas brigas. Eu estive sozinha por tanto tempo, então esses dias  têm  sido  muito bons. Eu até desejei que eles continuassem para sempre.”

“Então —,” Lawrence começou a dizer, mas as palavras pararam em sua garganta.

Era uma conversa que ele não poderia ter.

Afinal, Holo não era humana. A expectativa de vida deles era muito diferente.

“Você  é  muito  esperto,  mas  lhe  falta  muita   experiência. Como você é um mercador que trabalha em busca de

 

 

lucro, pensei que logo entenderia, mas… não estou dizendo isso porque não quero ver você morrer. Eu já… já me acostumei com essa ideia,” disse Holo suavemente como um vento de inverno soprando sobre um campo marrom e seco.

“Se eu tivesse um pouco mais de autocontrole, poderia ter suportado até minha terra natal. Eu tinha certeza disso quando deixamos a última vila para trás, mas… você é simplesmente muito gentil. Você aceita tudo o que faço e me dá tudo o que desejo. É terrível suportar… simplesmente terrível.”

Lawrence não ficou nem um pouco feliz ao ouvir essas palavras de Holo, que pareciam algo que alguém encontraria na última página de algum conto cavalheiresco.

Ele ainda não entendia o que Holo estava dizendo, mas havia algo que ele entendia.

Ele sabia que no final de todas as suas palavras viriam as seguintes: “Então vamos nos separar aqui.”

“É simplesmente… tão assustador,” ela falou.

Sua cauda estava inchada para combinar com a crescente incerteza.

Ela disse a mesma coisa depois de comer o porco assado —

que estava assustada.

Na época, ele não havia entendido, mas, considerando tudo isso, só havia uma coisa que poderia assustá-la tanto.

Mas Lawrence não entendeu por que isso a assustava tanto. Ela queria que ele entendesse isso.

Naquela noite, ela dissera que seria problemático se ele entendesse, mas agora que a conversa chegara a esse ponto, ficou claro que ela havia decidido que o oposto era verdade.

Holo era uma sábia loba. Ela não fazia  coisas sem sentido   e raramente estava errada.

 

 

Então isso tinha que ser algo que ele pudesse entender com o que foi dito até aqui.

A mente de Lawrence disparou.

Sua memória aguçada, que era um orgulho para Lawrence como mercador, trabalhava para se lembrar de tudo.

As palavras de Eve. Holo de repente querendo ir embora. Algo que, sendo um mercador, ele deve ser capaz de entender. E o medo de Holo.

Nada disso parecia ter algo a ver um com o outro, e ele não tinha a menor ideia de como eles se conectavam.

O fato de a jornada não ter sido brilhante e alegre não era motivo suficiente para que ela continuasse?

Toda jornada chegava ao fim, mas Holo certamente não estava tentando fugir desse fato inevitável. Ela deveria ter entendido isso o tempo todo; Lawrence certamente entendia. Ele estava confiante de que, no final apropriado da jornada, eles se separariam com sorrisos.

Tinha que haver algum significado para ela querer abandonar a jornada no meio.

O meio da jornada. Esta oportunidade em particular. Porque ela não aguentou até chegarem à sua terra natal…

Quando ele chegou tão longe, Lawrence começou a sentir que estava encontrando as conexões.

Alegre. Viagem. Cronometragem. Mercador.

Ele congelou, ferido, incapaz de esconder o choque que sentia.

“Você entendeu?” ela perguntou exasperada, se retirando do colo e ficando de pé em frente à Lawrence. “Na verdade, eu teria preferido que você não entendesse, mas se eu deixasse continuar, perderia a melhor chance. Você entende, o que quero dizer com isso?”

Lawrence assentiu.

Ele entendia tudo muito bem.

 

 

Não. Ele sabia disso vagamente o tempo todo. Ele simplesmente não queria aceitar.

Holo se afastou de Lawrence sem parecer muito relutante, depois se levantou da cama.

Observado com aqueles olhos castanho-avermelhados de Holo, ele murmurou: “Nem mesmo você conhece uma história dessas?”

“História? Como assim…? Ah entendo. Você é bastante esperto com suas palavras.”

De um modo geral, havia dois tipos de contos no mundo. Alguns contos tinham finais felizes, enquanto outros tinham finais infelizes.

Na verdade, havia realmente quatro tipos, mas os dois restantes eram difíceis demais para os humanos criarem, e os humanos eram imperfeitos demais para entendê-los.

Se havia alguém que pudesse criar e ler essas histórias, isso seria um deus, e era o que a Igreja prometia após a morte.

“Histórias em que vivem felizes para sempre,” disse Lawrence.

Holo caminhou sem palavras até o canto da sala, pegando a jarra de vinho que estava ao lado de suas coisas. Quando ela olhou para trás, ela sorriu. “Não existe tal coisa. Claro, gosto de falar com você. Gosto tanto — tanto que só quero te devorar.”

Se Lawrence a tivesse ouvido dizer isso quando se conheceram, se ele tivesse olhado nos olhos estreitos e vermelhos dela,  não havia dúvida de que ele teria medo.

E, no entanto, agora ele não sentia nenhuma preocupação em particular.

Holo queria voltar a ser o que era quando se conheceram. Esse fato perfurou seu coração.

“Mas não importa quão delicioso seja o deleite, não se pode continuar comendo a mesma coisa para sempre, certo? Torna-se cansativo, não é? E o pior de tudo, à medida que eu gosto mais e mais,

 

 

vou começar a precisar de mais e mais estímulo, e depois? Você sabe, o que está no fim da linha?”

Um tempo atrás Lawrence tremia só de segurar a mão dela, mas agora Holo podia abraçá-lo sem incidentes, e ele beijava a mão dela com a maior facilidade do mundo.

Quando foi além disso, Lawrence entendeu algo que o aterrorizou.

Diante do longo tempo que se estendia à frente deles, não havia muito que poderiam fazer.

Eles podiam trocar de mãos e trocar mercadorias, mas o  fim chegaria antes que percebessem.

Eles poderiam continuar subindo as escadas.

Mas não havia garantia de que essas escadas sempre existiriam.

“Eventualmente, não serei capaz de conseguir o que desejo, e toda a conversa que já foi um prazer desaparecerá, sua alegria permanecendo apenas na memória. E é então que vou pensar em como foi divertido quando nos conhecemos.”

Seu olhar cruel parecia deliberado.

“Foi por isso que fiquei com medo. Assustada com a maneira como isto acelerava o fim desse prazer. Do jeito como a sua” — Holo tomou um gole do vinho da jarra — “gentileza fez isso,” ela terminou como se estivesse se acusando.

Holo, a Sábia Loba.

Uma loba que viveu por séculos, que garantia a colheita do trigo e que temia a solidão acima de tudo.

Havia um aspecto desse medo que era difícil de entender. O modo como ela odiava ser respeitada e temida como uma deusa não podia ser entendido simplesmente com a razão, Lawrence pensou.

 

 

É claro que, como ela viveu por tanto tempo, o número de criaturas que viviam todo esse tempo era muito baixo, o que a tornava particularmente suscetível à solidão.

Mas aqui e agora, Lawrence finalmente entendia a resposta, a razão pela qual, apesar de viverem tanto quanto ela, Holo não procurou criaturas semelhantes — não, ela não podia.

Holo havia dito que ela não era uma deusa. E esse era o verdadeiro motivo.

Dizia-se que Deus havia criado um reino celestial onde nem a velhice nem a doença existiam, onde a felicidade era eterna.

Mas Holo não podia fazer isso.

Assim como um humano, ela só poderia se acostumar com alguma coisa, depois se cansar, passando as noites sombrias pensando: Ah, foi tão divertido no começo.

Ela não podia ficar feliz para sempre.

E essa sábia loba, tendo vivido tanto tempo, sabia muito bem que seu desejo simples e feminino nunca poderia se tornar realidade.

“Há muito que estou impressionado com a inteligência de vocês, humanos, em dizerem: ‘Tudo está bem quando acaba bem’. Embora eu possa pensar comigo mesma: ‘Sim, é verdade’, ainda me encontro incapaz de tomar a decisão de terminar algo que me dá prazer. Não sei o que aconteceria se você viesse comigo até a minha terra natal. É por isso que desejo terminar nossas viagens aqui, para que possa ser algo bom do início ao fim.”

Lawrence não tinha palavras. Ele pegou a jarra quando Holo se aproximou e ofereceu.

Não havia nada de positivo em suas palavras, mas de alguma forma ele ouviu uma nota de determinação em sua voz, talvez porque ela estivesse perto de se tornar desafiadora.

 

 

“Você não está perto de alcançar seu sonho? Não é o momento perfeito para encerrar este capítulo da sua história?”

“Suponho que… sim,” disse Lawrence. Foi por isso que ele não a interrompeu.

“Além disso, eu estava pensando em lhe contar mais tarde e surpreendê-lo.” Holo reprimiu uma risadinha, sentando-se ao lado de Lawrence como se a conversa toda nunca tivesse acontecido. Ela se virou e pegou o livro que estava ao lado da cama. “Eu estava no livro,” disse ela com um sorriso estranhamente triste, que certamente se deve a surpresa de Lawrence ao ouvir essas palavras.

Mesmo depois de não ter demonstrado nenhuma emoção quando ela falou do sonho dele estar próximo.

“Havia todo tipo de coisa no passado, coisas que eu tinha esquecido completamente até vê-las,” disse Holo, folheando as páginas e virando o livro para Lawrence.

Como se dissesse “Leia.”

Lawrence trocou a jarra pelo livro, baixando os olhos para a página.

Os contos, escritos em uma mão precisa e cerimonial, eram de uma época em que as pessoas ainda viviam na ignorância e na escuridão.

O nome da Igreja não passava de um mero boato de uma terra longínqua.

E ali, exatamente como a cronista Diana na  cidade pagã    de Kumersun havia dito, estava o nome de Holo.

“‘Cauda de trigo’, eles diziam. Palavras tão complicadas,” disse Holo.

Lawrence sentiu que a frase não estava de todo errada, por isso não disse nada.

 

 

“Parece que você bebe muito desde os tempos antigos,” disse ele, resignado, ao ler a seção relevante e, longe de prejudicar seu humor, Holo estufou o peito e fungou orgulhosamente.

“Lembro-me vividamente, mesmo agora. Havia uma bebedora rival, uma garota um pouco mais nova que você, e não estávamos tão bêbadas quanto cheias. E no final, isso era ainda mais heroico, entenda…”

“Não, obrigado. Não quero mais ouvir nada,” disse Lawrence, acenando para ela. Ele nem precisou pensar nisso para saber como ela havia acabado com a disputa.

E, no entanto, embora houvesse de fato uma história de um concurso de bebida, parecia mais uma saga heroica de Holo e a garota com quem ela havia bebido do que qualquer outra coisa.

Talvez isso não fosse surpreendente.

Holo riu. “Ah, mas isso é nostálgico. E eu tinha esquecido completamente até ler.”

“Bebendo, comendo, cantando, dançando. Tenho certeza de que foi reescrito inúmeras vezes, mas a atmosfera divertida ainda aparece. Certamente a maioria das lendas antigas eram comédias.”

“Sim. Era ótimo. Venha, levante-se.” “…?”

Lawrence fez como lhe foi dito, levantando-se da cama. Ele então largou o livro como Holo o instruiu.

Assim que ele se perguntou o que ela estava fazendo, Holo caminhou em sua direção e pegou sua mão.

“Direita, direita, esquerda, esquerda, esquerda, direita —

consegue acompanhar, não é?”

Ele nem precisava pensar sobre isso.

Era a dança antiga que Holo dançava na história.

 

 

Mas quando ele ficou perto dela, Lawrence entendeu.

Era óbvio o que estava por baixo de seu exterior brilhante.

Holo disse que queria parar de viajar porque era divertido demais.

“No entanto, essa dança é ruim se você estiver bebendo. Seus olhos vão começar a nadar antes que você perceba,” ela disse, olhando para Lawrence e sorrindo, depois baixando o  olhar  para  o chão. “Então é direita, direita, esquerda, esquerda, esquerda, direita

— entendeu? Certo, aqui vamos nós!”

Lawrence nunca dançara uma dança adequada antes, embora Holo o tivesse forçado a sair para as ruas na noite do festival de Kumersun, onde dançaram a noite toda.

Com tanta prática, qualquer um seria decente.

Quando Holo gritou “Agora!” E pôs o pé para fora, Lawrence a imitou.

Norah, a pastora, havia feito a dança dos pastores para provar sua identidade. As danças estavam por toda parte. Havia inúmeras danças, mas todas se pareciam.

Lawrence combinou seus passos com os dela na primeira tentativa, o que surpreendeu visivelmente Holo.

“Hmph.”

Ela provavelmente estava ansiosa para tirar sarro de sua falta de jeito, pensando que não seria tão fácil.

Passos, passos, passos… Eles moveram seus corpos de maneira leve e fácil, e logo era Lawrence quem liderava Holo, com os pés mais propensos a se enroscarem. Depois que uma pessoa entende que esse tipo de coisa tem mais a ver com confiança do que com técnica, tudo o que se precisa é audácia.

Mas a surpresa de Holo apenas embaçou seus movimentos por um instante.

Logo ela planava suavemente, ocasionalmente ficando levemente confusa   de   uma    maneira    obviamente deliberada. Lawrence se perguntou se ela estava tentando fazê-lo pisar.

Ele não se enganaria com isso, é claro.

“Hnn-hmph.”

Pareciam dois bonecos cujas cordas estavam sendo controladas em uníssono. Foi assim que os movimentos deles se aproximaram.

Direita, direita, esquerda, esquerda, esquerda, direita — os movimentos eram simples, mas continuavam pelos passos da dança na pequena sala sem parar nenhuma vez.

Foi somente quando Holo surpreendentemente pisou no pé de Lawrence que a dança terminou.

“Opa…” foi tudo o que Lawrence teve tempo de dizer antes de, felizmente, terminarem juntos na cama.

Suas mãos permaneceram juntas.

Lawrence suspeitava desagradavelmente que Holo tinha feito isso de propósito, mas ela parecia atordoada, como se não tivesse ideia do que acabara de acontecer.

Por fim, ela voltou a si mesma e encontrou os olhos de Lawrence.

“…O que nós estamos fazendo aqui?”

“Eu suspeito que seria melhor não perguntar.”

Holo abaixou a cabeça brincando e mostrou seus caninos. Ela parecia genuinamente feliz.

Talvez fosse assim que ela encontrada a capacidade de continuar.

“A direção para minha terra natal também está escrita.”

Lawrence se lembrou do conteúdo do livro, um sorriso pairando em seu rosto pela conversa tola deles, e assentiu.

 

 

No livro, estava escrito que Holoh, da Cauda de Trigo, vinha das montanhas de Roef, a vinte dias de caminhada a pé, na direção do sono e do nascimento.

O norte era o sono e o leste o nascimento. Dar significados a direções como essa não era incomum.

E a parte mais decisiva do conto era a referência às montanhas de Roef.

Lawrence conhecia o nome.

Era o nome de um afluente do rio Roam, que passava por Lenos.

Praticamente não haviam dúvidas de que dentro das montanhas de Roef estavam as cabeceiras do rio Roef. Com tanta informação, Holo poderia facilmente encontrar o caminho de casa, mesmo por conta própria.

E Lawrence duvidava que suas expectativas estivessem erradas. Seu único erro foi carregar aquele trigo na carroça naquele dia em

Pasloe.

“Então, você leu todos eles?” Lawrence perguntou rapidamente, para que o silêncio não expusesse suas mentiras.

Quando Lawrence e Holo começaram a se sentar, suas mãos unidas se separaram.

“Li sim. O mais velho conta a história do início desta cidade, da pessoa que montou o primeiro pilar do primeiro edifício para   as pessoas morarem, embora não se soubesse se ele era realmente uma pessoa.”

“Um amigo seu, então?”

“Talvez.” Holo riu da brincadeira. “Ainda assim,” ela falou, se endireitando, “devemos devolver os livros antes de derramar vinho sobre eles. Não é como se precisássemos copiá-los, e a maior parte já estava na minha cabeça, para começar.”

 

 

“De fato. E não há garantia de que você não caia no sono e babe todas as páginas.”

“Eu não faço essas coisas.”

“Eu sei. Assim como você não ronca,” disse Lawrence com um sorriso, levantando-se da cama — fingindo que, se não o fizesse, estava sujeito a ser mordido.

“Você gostaria que eu te dissesse exatamente o que fala enquanto dorme?” Holo perguntou, os olhos semicerrados.

O coração de Lawrence deu um salto com suas palavras.

Era tudo o que ele podia fazer para impedir que a tristeza que sentia nessa troca aparecesse em seu rosto.

“Espero que seja algo assim: ‘Eu imploro, por favor, não coma demais!’”

Havia também sonhos frequentes em que ele podia comer   a comida deliciosa que queria.

No entanto, desde que conheceu Holo, ele viu o pesadelo de ter que pagar a conta de alguém que come assim se torna realidade muitas vezes.

“Você está ganhando o suficiente para pagar por isso,” replicou Holo, saindo da cama em frente a Lawrence.

Como se estivessem fingindo brigar.

“Claro, em retrospectiva. Se não tivéssemos ganho dinheiro em Kumersun, você literalmente devoraria todos os meus bens.”

“Hmph. O ditado não diz: ‘Se você já comeu o veneno, pode muito bem comer o prato inteiro?’ Se isso acontecesse, eu também te devoraria.” Holo lambeu os lábios teatralmente, olhando para Lawrence com fome nos olhos.

Ele sabia que isso era um ato há séculos.

Mas algo diferente estava por trás daquele olhar que ele agora entendia dolorosamente bem.

Em algum lugar ao longo da linha, o vínculo entre eles havia se quebrado. Era muito triste, mas não tão triste que ele não pudesse suportar.

O mais triste era saber que um deus mesquinho era a causa.

“Eu vou apenas apostar. Então, depois que devolvermos o livro, o que você quer comer?” perguntou Lawrence.

A     cauda     de     Holo    balançava    enquanto    ela     sorria desagradavelmente. “Vamos decidir isso quando chegarmos lá.”

Suas   conversas,   pelo   menos,   eram   tão  divertidas   como sempre foram.

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