O Soberano de Ossos – Novel - Capítulo 2 - Anime Center BR

O Soberano de Ossos – Novel – Capítulo 2

A Pureza de Todas as Coisas

 

As nuvens tinham um cinza fosco, a brisa gélida e passageira, levava consigo os gritos dos culpados, estes que vinham do mais profundo da masmorra leste. O trabalho de vigia sempre fora um fardo solitário e amargo. Escutar os gritos de homens, mulheres e em situações extremas até mesmo crianças, poderia levar um homem à loucura. Mas não, isso não aconteceu a Edmond.  Há mais de trinta anos na profissão, parte de sua vida se resumiu em colocar grilhões em homens livres e os mandar para sua execução. Mas isso já não incomodava, ele já não via prisioneiros como pessoas, mas como inferiores, uma plebe que tão pouco, era digna de caminhar em seus dois pés. Talvez, fosse a mesma relação de um açougueiro com um porco. Quantos dias de sua vida teria perdido em frente a um portão? Pelo que ele se lembrava, quando entrou naquele posto era jovem e atlético.

E hoje mal conseguia amarrar os cadarços sem ficar ofegante, com o suor se aglomerando pela cabeça calva. Mesmo com uma existência medíocre, o gordo da prisão leste, tinha um senso de grandeza tão grande quanto sua vaidade. Em sua imaginação fantasiosa, ele estava protegendo a glória da grande Gomin. E um herói precisa de uma recompensa.

Naquela tarde, as planícies desertas cujo o velho vigiava tinham em seu horizonte nuvens carregadas, a grama verde que vinha em torno da estrada estava seca, então a chuva não seria de todo o mal. Mas esse não era o único pensamento dentro da mente de Edmond, em um dos bolsos da pesada armadura negra do calvo velho, repousava a semente de seus problemas, ou melhor dizendo, sua única salvação que não fosse uma forca. Erva de ninfa.

A droga, ou melhor dizendo, o “medicamento” era tido como divino. A ele não existia doença ou enfermidade que não poderia curar, desde traumas a fervorosas diarreias. Mas o efeito colateral, esse talvez não valesse o risco. O vício era tamanho, que se instaura em suas veias, a compulsão, a necessidade por mais. A sensação de que você pode morrer a qualquer momento sem dar um último trago, levou diversos homens à loucura. Mas o que eu poderia perder? Pensou Edmond. A idade já havia chegado, certas partes já não funcionavam como deveriam. Uma mulher infiel e tagarela, dois filhos, ambos imprestáveis e bêbados, o mais novo, Bicard, havia arrancado os dentes da frente da esposa na última discussão.

Fora isso, a certeza que em breve já não mais iria vigiar o portão leste, e uma terrível e insuportável dor que o queimava por dentro quando mijava. Então o que mais poderiam lhe tomar? A vida? Pois então que o façam. O velho calvo olhou por cima dos ombros, ele não era alto então estava habituado a sempre ter de olhar levemente inclinado para cima.

E mesmo sabendo que ao seu redor, existiam somente madeira, pedra e tocha, para que correr o risco? Uma das mãos flácidas e ásperas adentrou o bolso, tocando o saco de pano marrom com as pontas dos dedos. Um alívio quase instantâneo subiu pelo corpo do velho Edmond, fazendo seus pulmões se aliviarem e surgir em seu semblante algo que já não existia fazia anos. Um sorriso. Em uma das botas, num bolso costurado com carinho atrás de sua panturrilha, seu velho colega de trabalho repousava, seu cachimbo. Amarelado e sujo, o velho jamais tinha pensado em limpar, ele dizia que o bolor tinha um sabor tão gostoso no fumo quanto no queijo. Ele retirou a erva de dentro do saco com as mãos trêmulas, segurando um dos ramos entre o polegar e o indicador, ele aproximou a droga das narinas, lhe dando uma lenta e prolongada fungada. Era como um degustador de vinhos numa adega, não tinha pressa. Com gentileza ele apertou o fumo contra o fornilho do cachimbo. Edmond jamais tinha tido tamanha excitação em sua vida, ou pelo menos não se recordava de algo que se comparasse a aquele momento. Ele não tinha fósforos consigo, devia os ter deixado em casa, mas nada que um pouco de improviso não resolvesse. Do chão, arrancou uma farpa da tábua solta que forrava o solo, e então a aproximou de uma tocha, servindo assim para acender o cachimbo. Era quase como um orgasmo. Edmond não desejava e nem queria que aquele momento acabasse, mesmo assim, ele salivava pela primeira tragada. Quando finalmente repousou o cachimbo entre os lábios, fechou seus olhos, se entregando de peito aberto para aquela experiência. Era como se seu espírito fosse agraciado com um beijo lento, as mãos dos deuses se envolvessem em seu peito num abraço convidativo, e seus pés deixariam o solo.

— Pelos deuses, isso é bom para um cacete— Disse o velho retirando o cachimbo da boca.

Mesmo assim, amaldiçoados sejam os humildes por almejar um prazer que não podem possuir. O pobre velho era arrastado para fora de seus sonhos mais profundos por uma forte mão, cujo pressionava seu ombro como uma prensa de carne. Uma voz jovial exclamou irritada ao velho, um arrepio de pavor subiu por seu corpo, como uma corrente elétrica subindo dos pés ao bigode.

— Se divertindo no horário de trabalho? Acho que você não está batendo bem da cabeça— ironizou a voz jovem.

Os olhos do velho se arregalaram, suas rugas e linhas de expressão saltaram para fora de seu semblante relaxado e então, ele se atirou ao chão como um escravo. Os olhos de Edmond ficaram marejados, morrer? A forca? Não estava preparado para morrer ainda, seus filhos? Eles não eram tão ruins, ah como eu amo meus filhos, pensou o velho pançudo.

— Perdão! Senhor! Não quis ofender a grande nação de Gomin! — Exclamou o senhor.

O silêncio tomou conta do posto de vigia, deixando a brisa assobiar e contar as notícias distantes. E então a voz jovial começou a gargalhar, uma risada contida, que cresceu se tornando alta e estridente.

— Ah! Velho, relaxe, não me reconhece? Sou eu Andlhiio— Disse o jovem guarda, não conseguindo parar suas risadas que cederam espaço para uma tosse com pigarras.

Passou mal de tanto rir. O velho se levantou, com os ossos dando uma fisgada a cada movimento, ele estava irritado, mas a dor de sentir suas costas estalando ao se levantar era maior que sua fúria.

— Ora! Seu pirralho! Eu pensei que era o imediato.

— Bom veja pelo lado bom, se fosse o imediato a sua cabeça agora estaria numa estaca lindíssima na praça Floranca.

Os olhos do velho vieram ao chão, e uma tristeza amargou seu semblante, o deixando novamente preso aquela realidade.

— Oh, deuses…—Disse o velho com uma voz cheia de pesar ao ver seu velho companheiro ao chão. Com semanas de economia espalhadas no solo. O moreno espalmou uma de suas mãos contra as costas do velho inconsolável, ele mais do que ninguém sabia como a vida do gordo era sofrida, era a coisa mais próxima que ele tinha de um amigo. Os olhos de Andlhiio rolaram de um lado para o outro das órbitas e então se fixaram no horizonte, paralisado a uma imagem que só significava uma coisa, problemas.

— Aquele…não é o primeiro em comando da guarda?

Na planície abençoada pelo sol, dentro dos preciosos muros e gozando da proteção que os deuses lhe ofereciam. O povo de Gomin começava sua sinfonia rotineira, o maestro claro era o sol, que dava seu primeiro batuque fazendo os ferrolhos das portas dos comércios iniciarem o conserto. Em seguida as placas de “aberto” dos cabeleireiros, ferreiros e padarias pendiam de um lado para o outro, regrando o ritmo da valsa da clientela. As carroças se preparavam para deixar os portões, maridos preocupados davam um último beijo na esposa e um abraço nos filhos. Na rua principal, sobre a calçada da praça, usando a fonte de Adema como referência, os camelôs faziam sua própria música, para eles não existia uma forma única de fazer arte. Afinal, cada vítima, digo, cliente estava sempre esperando por um produto de primeiríssima qualidade. Desde tapetes de qualidade duvidosa, a finos vinhos de uvas não tão finas. A mídia não podia ser parada também, um rapaz cujo carregava um cesto de pergaminhos gritava de maneira esganiçada por onde ia passando. “Info-tomos! Info-tomos de hoje! Encontraram o corpo de Abalio Masan, dono dos campos Masan!”

Por onde iria passando, o rapazinho atraía diversos tipos de plateia, de vagabundos cujo claramente não tinham o menor interesse nas notícias, mas usariam o papel para enrolar o próximo trago. Até nobres estudiosos, que faziam uma visita aquela parte da cidade, procurando por especiarias quais não se vendiam onde habitavam, ou se vendiam por um preço salgado.  E assim a primeira voz do coreto foi guiando seu próprio espetáculo, o garoto de roupas gastas e uma boina rasgada era em si, um show à parte. Cujo chamou sua atenção.

Uma voz em meio a multidão, uma voz melódica nada grosseira, nada igual as que o rapaz já estava habituado a ouvir, das ruas de pedra, usando uma veste decotada semelhante a uma odalisca. Um longo chapéu de palha com um laço branco e uma maquiagem chamativa se faziam presentes, Awami chamava pelo pequeno.

— Eu gostaria de um info-tomo, por favor— Disse a mulher de corpo esbelto, com sua voz aveludada.

O pequeno havia ficado paralisado, suas bochechas ficaram rubras com os pensamentos que lhe vieram em sua mente. Um nervosismo estranho o fez se sentir quase incapaz de realizar aquela venda. A mulher percebeu a reação do pequeno garoto, cujo escondia o rubor baixando o rosto e estendendo o cesto de tomos a ela. As mãos delicadas de unhas pintadas deslizaram pela borda do cesto, como se escolhesse um, apesar de serem todos iguais. O rapaz mordeu o lábio inferior suando frio, e quando ela finalmente encontrou o tomo, ele suspirou aliviado.

— S-São sete Gômios de bronze— Disse o pequeno com os bracinhos trêmulos.

— Oh! Poxa, veja só você, eu não tenho trocado aqui meu pequeno… então— A mulher retirou uma moeda dourada de dentro da bolsa que se apoiava em seu abdômen.

— Compre algo que você goste… e pague o meu tomo com o troco— Disse a mulher, dando um beijinho rápido na bochecha do rapaz enquanto deixava a moeda delicadamente na cesta.

O pequeno quase caiu para trás, seu coração estava eufórico e seus olhos brilhando, sua empolgação era tamanha que só faltava pular de alegria. Ele se virou correndo na direção de uma das padarias que começava a abrir, e com a boca salivando ao sentir o cheiro dos pães doces, saiu em disparada. Já quanto a mulher, ao ver o tornado que se tornará o garoto, deu uma suave gargalhada colocando uma das mãos sobre a boca. E então… ela parou, jogando um olhar por cima do ombro, fixando-se num beco escuro, cujo não havia circulação de pessoas.

— Você é péssimo seguindo pessoas, sabia? — Disse a mulher se virando ao beco.

— Podia ser uma armadilha, e se ele fosse um assassino dos Shioantu? já pensou no que faria? Awami? — Respondeu uma voz masculina, deixando as sombras do beco para olhar fixamente a mulher.

— Pelos Deuses… é uma criança! Uma criança, cujo passou tantas necessidades quanto eu e você, Téran— Disse Awami jogando os cabelos de lado, para não encarar o homem diretamente.

O capuz do rapaz veio abaixo, dando aos fios castanhos e olhos amendoados um pouco da gloriosa luz de Gomin, o rapaz de bochechas cheias se aproximou dela com os braços cruzados acima do peito. Ainda a olhando com desaprovação.

— Eu sei, mas meu trabalho é suspeitar até de uma folha que ousar entrar em seu caminho, a Alcateia me deu ordens claras sobre—Fora interrompido antes de terminar sua fala.

A mulher estendeu uma das mãos em direção ao peito do rapaz, sem ter tempo de reação, o ladrão sentiu uma forte pressão contra seu peito o projetando para trás o fazendo bater contra um amontoado de lixo empilhado em sacos marrons. As unhas da mulher soltavam uma fumaça que se condensava em meio ao ar, com partículas roxas e amarelas.

— Você tem sorte de eu gostar de você, Téran. Pois se qualquer membro da Alcateia vier até mim falando essa mesma besteira, eu não tenho problemas em lhes dar uma lição ainda mais dura.

Disse ela esfregando as mãos uma na outra, limpando a sujeira imaginária que estava nas palmas enquanto caminhava até o rapaz que, por sua vez, recobrava os sentidos

— Agora me diga, quais são suas ordens? E por que eles mandaram justamente você? Foi um ataque pessoal? — Perguntou ela, retirando um lencinho de sua bolsa e jogando ao rapaz.

— Não… urgh, eu me candidatei, não gostaria que você estivesse atolada em mais problemas por matar um espião, e também, por me preocupar com você— Ele respondia enquanto lutava para se manter de pé.

— Oh… nesse caso, isso é muito fofo da sua parte— Concluiu a mulher desviando o olhar daquela cena num revirar de olhos.

— Mas também tem outra coisa… achei que você gostaria de saber…— O ladrão abriu sua bolsa, entregando a ela uma carta, envelopada e com um selo da casa Viéra.

— O que é isso? — Perguntou a mulher tomando o envelope em mãos— Eu não lembro de ter sido convidada para muitos banquetes.

— Não é um banquete, é um convite do atual barão Viéra, ele enviou cartas para todos os aventureiros de rubi para cima— Disse o rapaz colocando uma das mãos sobre a carta a puxando de volta.

— Hum? Vários aventureiros sendo convocados de uma só vez? Já não limparam todas as masmorras? — Ela sorriu irônica com sua própria piada, tremendo na voz por achar no mínimo, curioso.

— E limparam… Até onde sabemos, pode ser alguma criatura maior, ou um exército, e bom… eu posso levar uma acompanhante.

— Não. —Respondeu seca.

— Nada consegue quebrar a barreira, então não temos que nos preocupar com isso, é só trancar a cidade e ir limpando o cerco com magia destrutiva.

Ela fez uma pausa, deslizando uma de suas mãos para dentro de sua bolsa, a morena devagar trouxe aos lábios um suporte de cigarro que se prendia entre seus dedos. Com a outra mão, uma pequena fagulha saia de uma de suas unhas coloridas, enquanto acendia o fumo e com uma lenta tragada enchia seus pulmões. Ela cerrou os olhos pensativa, e enquanto a fumaça deixava suas narinas, um sorriso se formou em seus lábios.

— Mas… se eles forem servir comida, posso pensar em seu caso. Afinal, finalmente poderei estrear meu vestido novo e me gabar que jantei na casa de um nobre.

Ela sorriu ligeiramente ao rapaz, que estava desorientado com aquela maldade que a morena tinha no olhar, radiante agora como uma criança, ela disse o puxando por um dos braços animada agora com as possibilidades.

— Vamos! Vou comprar sapatos novos agora mesmo! Serei a dama mais elegante dali!

O ladrão baixou as sobrancelhas, e desejou que nunca tivesse rompido sua cobertura naquele beco. Do outro lado da floresta, repousando em um tronco de madeira podre, com as roupas úmidas rasgadas, se encontrava Zel. Deitada em meio a uma pequena clareira, com uma fogueira quase extinta em sua frente, ela encarava as chamas com seus olhos já sem brilho. Aquelas mortes, aquele sangue… Aquelas imagens se repetindo de novo e de novo, em frente de seus olhos. O sentimento de estar impotente, de ter que assistir todo aquele massacre sem conseguir mover um músculo para revidar. Os olhos da mulher estavam irritados, o nariz mucoso e as olheiras profundas, deixavam evidente que ela se afogava em seu próprio luto cada vez mais.

— Suas lágrimas não vão os trazer de volta, elfa.

Do outro lado do fogo, a voz profunda que fez tal afirmação repousava de joelhos, as mãos cadavéricas com dificuldade, tomavam pequenas pedras em mãos, e com esforço tentavam manter o fogo acesso. Mas a falta de aderência nos ossos fazia com que as pedras lhe escapassem entre os dedos. Puxada para fora de seus devaneios, a pequena elfa se fez voraz, a sua fúria queimava em seu interior e mesmo com a sua aparência de uma casca vazia, ela se levantou em uma fagulha de adrenalina e gritou.

— Por que você me mantém viva?! — Exclamou ela levantando-se do tronco, seus instintos gritavam, e ela sentia que se arrependeria daquilo.

O cadáver pegou uma das pedras entre os dedos, finalmente achando uma forma confortável de erguer o objeto, as órbitas vazias viraram a elfa e a voz lhe respondeu.

— Que bem me trataria matar uma elfa? Ainda mais uma de cabelos grisalhos.

Ela engoliu em seco, aquelas órbitas vazias quando encaradas por muito tempo lhe davam uma sensação sufocante, era como estar amarrada, e uma lâmina estivesse deslizando por sua pele sem nunca cortar, era completamente agonizante. Em uma ação de fúria impulsiva, uma de suas mãos veio de encontro ao cadáver, socando-lhe a mão que trazia a pedra. Sua revolta mais uma vez fez ecoar na clareira.

— E que bem traria a morte deles?! Que bem trouxe a você? Você não se alimentou da carne deles, nem mesmo roubou seus pertences! Você os matou por prazer!

Os cabelos brancos lhe cobriram o rosto, sua respiração ofegante e a doce liberdade de ter reagido de alguma forma a deixaram num êxtase, um êxtase passageiro que foi substituído por um terror genuíno quando aquela figura macabra se levantou. Uma das mãos do cadáver se prendeu no pescoço da elfa, lhe erguendo pouco a pouco, as pontas dos dedos afiadas como navalhas lhe acariciavam o pescoço. Zel revirou os olhos, a morte estava em sua porta como havia desejado, mas não queria que fosse assim, conforme o ar foi se esvaindo de seus pulmões o pavor foi aumentando, ela já não tinha mais forças para implorar, nem para chorar.

Se gritasse ninguém iria ouvir, então só coube a fechar os olhos, e pedir aos deuses que a levassem a um lugar bonito.

— Eu não mato por prazer, eu não sou um maníaco— Respondeu a voz profunda finalmente demonstrando um sentimento que não fosse indiferença, irá.

— Então por que os matou? — Perguntou a elfa usando o último fôlego que tinha sem dificuldades.

Os ossos em torno do pescoço da mulher se abriram, o impacto de suas costas contra a grama nunca foi tão aliviante para ela, uma de suas mãos veio de encontro a sua garganta lhe massageando enquanto que com a outra a usava de apoio para se levantar. O cadáver tornou a sentar, desta vez, apoiado no tronco onde antes ela estava.

— Eu os matei para deixar um recado, saíram quatro aventureiros da cidade, e voltaram os corpos apenas de 3, sendo que uma está faltando— Ele estendeu uma das mãos a Zeliarsa— Esse método lhe parece familiar?

Ela parou, os pensamentos desconexos como um quebra-cabeça começaram a se encaixar devagar, ela cerrou os dentes e então murmurou baixo.

— Salteadores, salteadores usam esse método para conseguir escravos.

— Exatamente— Respondeu o cadáver recolhendo a mão— Logo isso deixaria de ser um problema para outros aventureiros se envolverem, e se tornaria um caso da guarda de Gomin, creio que uma patrulha já até mesmo deve ter encontrado os corpos.

— Mesmo assim, não há como saber que uma pessoa foi levada, isso não vai levar a lugar algum— Retrucou a elfa impaciente.

— Elfa, onde está sua plaqueta de aventureiro? — Ele perguntou levantando o crânio cadavérico para cima, como se estivesse observando o céu.

Os olhos de Zeliarsa se arregalaram, ela tocou seu peito inconscientemente e ao sentir a ausência de sua plaqueta, ela engoliu em seco, estava trêmula.

— Você deixou minha plaqueta para trás.

A voz profunda do cadáver se fez suave por um momento, a mandíbula do crânio abriu lentamente e ele concluiu.

— Seus amigos, não morreram em vão se é isso que te preocupa, elfa.

As mãos esqueléticas deslizaram por cima do peito da armadura, no canto esquerdo superior um pequeno feixe pressionado fez o canto direito se abrir.

— Eu sim olhei alguns dos pertences que vocês tinham, seria um desperdício agora que estou de mãos abanando deixar a oportunidade passar.

Zel ergueu seu rosto devagar, em seu semblante vazio uma luz se fez presente, seu coração bateu acelerado ao ver o objeto que a transportou de volta para o abraço de quem um dia amou. A pequena bolsa de moedas de Byn, ela sorriu brevemente com aquele souvenir de uma época, até uma das garras afiadas do demônio transpassar o tecido. Ela estendeu uma de suas mãos a sacola em um ato falho de talvez parar o tempo antes que aquilo também lhe fosse tomado. Mas era tarde demais. O mar de prata e ouro fez uma pilha em frente ao cadáver, porém, o que deixou Zeliarsa boquiaberta não havia sido o rasgo, mas sim a quantidade de dinheiro.

— Eu não tenho certeza como o dinheiro funciona nessa época, mas na minha essa quantia tinha um valor que nenhum ladrão de plaqueta de cobre deveria ter.

Ela se aproximou das moedas em silêncio, tocando a primeira peça de ouro devagar, observando seu reflexo nela de tão polida que estava.

— A única explicação plausível para ele possuir uma quantia tão absurda, e mesmo assim usar um equipamento tão precário, é que ele planejava uma venda.

O rosto da elfa se fechou, ela apertou ao ouro com firmeza em um dos punhos tremendo tamanho o fervor de seu ódio, ela olhou no fundo daquelas órbitas vazias, não mais com temor mas com desgosto.

— Não fale do Byn como se o conhecesse, você não sabe nada dele!

— De fato, você tem razão, mas sei o valor de duas mulheres e um homem no mercado de escravos, são 75 gômios de ouro e 87 gômios de prata.

As palavras cessaram, o silêncio se fez presente enquanto a elfa, em silêncio rolava os olhos do cadáver a quantia, seu coração parou, na verdade. Ela nunca havia se machucado daquela forma, mas era mentira, tinha que ser mentira, Byn disse que eram melhores amigos. Ela se levantou com ódio escorrendo por entre a saliva que espirrava de sua boca e então chutou a pilha de moedas, segurando o cadáver pelos chifres.

— Você acha que vou cair nesse truquezinho barato?! Você é um monstro e eu jamais vou crer nas suas mentiras seu demônio!

As garras lhe voltaram a entornar pelo pescoço, porém dessa vez era feroz, o demônio a empurrou contra o chão caindo sobre o corpo da mulher, lhe segurando pelos pulsos. Ela se debatia gritando enquanto olhava no fundo dos olhos sem vida.

— Que os deuses te amaldiçoem demônio! Que a fúria deles caía sobre você.

A cabeça pouco a pouco fora se aproximando da elfa, quando ela finalmente pode sentir as presas ásperas do crânio se esfregando contra seu lábio, a voz dele disse de maneira serena, enquanto o ar de Zeliarsa começava a se esvair.

— Criança, eu vou foder os seus deuses.

Um silêncio se fez na floresta, os olhos de Zeliarsa foram ficando pesados, o vento tinha um barulho suave, as lágrimas que se acumulavam nas laterais de seus olhos foram escorrendo. E então um último pedido, uma súplica que calou todo o ambiente.

— Me mate… por favor. — Foram as últimas palavras dela, antes de desaparecer.

De volta à masmorra leste, residindo em suas entranhas, no profundo de uma das celas que agora se fazia de “sala de operações”, que ainda seria uma palavra muito forte, para um local úmido, frio e com iluminação precária de tochas. Um “abutre” fazia seu trabalho com um sorriso de orelha a orelha, à sua frente o corpo de uma bela jovem. Devia ter lá por seus vinte e poucos verões, teria dado uma ótima esposa, se seu ventre não tivesse sido dilacerado por algo que ele julgava ser uma lâmina. Os órgãos ainda inteiros da moça, vinham em um saco de pano marrom ao lado do homem que assobiava enquanto fazia seu trabalho.

— Você teve um tremendo azar, não foi garota? — Disse o baixinho, alisando os cabelos do corpo de maneira serena.

— A lâmina entrou rasgando de ponta a ponta… não só isso, como o desgraçado ainda retirou seu ar enquanto você agonizava, não é?

O cadáver não o respondeu, afinal de contas, não poderia mesmo. Bahulo suspirou, fez algumas anotações em seu livro preto que vinha próximo ao corpo da garota, escreveu sua idade, causa da morte e pensou se valeria a pena notificar um familiar. Já estava tão acostumado a escrever “não é necessário”, que por força do hábito já nem pensava no que marcar. Mas aquela jovem, ela poderia ter família ou até mesmo um amante.

— Ah… o que posso fazer por você? Me sentiria mal de jogar um corpo tão bonito para alimentar os prisioneiros.

O pequeno corcunda alisou sua barba rala, baixou a cabeça e desceu do banquinho que usava para se manter no mesmo nível da mesa, bom… Era melhor pensar no que fazer de barriga cheia, pensou ele. O corcunda limpava as mãos e pegava o saco do chão, o colocando em suas costas. O transitar entre os corredores da masmorra o deixava mal… ele sentia que talvez, os que ali estivessem, não mereciam isso. Mas quando pensava demais, fazia questão de sufocar os pensamentos. Ao menos, gostava de conversar com um dos prisioneiros em específico.  O sangue respingou no chão de pedra, ecoando pelo longo corredor por onde ele passava, quando parou em frente a uma cela, encarando uma escura silhueta.

— Olá Darmien, como passou a noite? — Perguntou o pequenino, olhando para o profundo vazio em sua frente.

No pequeno e escuro cubículo, oculto pelas sombras das paredes e pela pouca iluminação, despido, machucado e sujo. Uma criatura com uma cabeça de cabra olhava para baixo, encarando uma cumbuca vazia com arranhões e mordidas nas laterais. Sangue seco se envolviam na madeira do objeto. Em seu peito, eram cravados espinhos sobre sua carne que brilhavam num intenso azul, num desenho familiar, um círculo com raios ao redor dele, como se fosse o próprio sol.

— Bom dia, Bahulo — Respondeu a figura com uma voz calma, fechando os olhos vermelhos.

O homem olhou para a cumbuca vazia, e novamente sentiu aquele desconforto. Ele sabia das torturas dos guardas. Aquela mesma tigela deveria ter sido usada por pelo menos mais vinte a trinta prisioneiros sem nunca ter sido lavada. E a sua inauguração pelo novo dono sempre começava péssima. Ele desviou o olhar para a criatura, e então disse abrindo um sorriso pequeno.

— Você gostou do livro que eu trouxe? É uma ótima leitura, não concorda? — Perguntou o pequeno, repousando o saco ao seu lado.

— Sim, eu o terminei pela manhã.

— Oh que bom… o que achou da história?

— Eu a achei hilária— Ele fez uma pausa, tendo descrença em sua voz enquanto pegava o livro.

— Um herói humano, que se deita com quase toda mulher que encontra pelo caminho, derrota criaturas místicas sem medo algum e se mostra o preferido dos deuses— A criatura retirou o livro debaixo de si, o empurrando para próximo das grandes num único empurrão.

— É uma piada, uma piada ególatra de um povo orgulhoso— Concluiu a criatura.

O pequeno se aproximou das grades pegando o livro de dentro da cela, sua feição com um sorriso breve se desfez. Adorava as crônicas daquele tipo de herói, de um bravo homem que derrotava as feras e tinha todas as mulheres que desejava. O que tinha de errado com isso? Não lhe agradavam as histórias de valentia e coragem?

— Bahulo, eu posso te fazer uma pergunta? — Disse a criatura com sua voz profunda, se levantando de onde estava sentada.

A figura tinha quatro vezes o tamanho do pequeno, sua cabeça de bode era quase do tamanho de Bahulo por completo, suas garras longas em suas mãos semelhantes às de um humano faziam o pequeno tremer. O pelo sedoso e agora longo que cobria o corpo humanoide tinha um denso preto, que mesclava as sombras da cela, o deixando quase invisível.

— C-Claro, pode falar—Disse o pequeno não conseguindo disfarçar o pavor em sua voz, diante daquela criatura.

— Por que você me ajuda? — Perguntou a criatura se aproximando das grades enquanto olhava para baixo.

Era uma força esmagadora à sua frente, se não fosse as grades, certamente o que restaria do pequeno abutre seriam apenas pedaços. A sensação de impotência por parecer somente um inseto em meio a algo tão grandioso, o deixava mal por ter a permissão de censurar tamanha beleza.

— Porque… eu não compactuo com esse tipo de tratamento— Respondeu ele levantando a cabeça um tanto temeroso.

— Então, irei lhe poupar.

Bahulo abriu a boca pensando em balbuciar algo, mas antes que pudesse, a criatura que sempre fora cordial lhe interrompeu, dizendo de maneira melódica.

— Ele acordou… e eu posso sentir, no chão, no ar, antes ele rastejava pela terra, mas agora ele caminha entre nós e ele não vai parar até que não sobre nada além de ossos.

A criatura esticou a mão pelas grades, e então, puxou o pequeno para próximo de si, o fazendo olhar para seus olhos de bode, cujo tinham um profundo vermelho agora. A respiração quente da criatura fez o pequeno tremer, enquanto que com aquela pressão, Bahulo apenas sentia sua carne arder.

— Corra. — Disse a criatura o soltando, e voltando a se recolher em um dos cantos escuros do quarto.

Lágrimas se acumulavam pelo rosto de Bahulo, suas mãos estavam trêmulas demais para conseguir segurar a alça do saco sem que ele escapasse entre elas. Nunca tinha estado tão perto da morte, pelo menos é o que ele achava.

Uma gota de chuva deslizou por uma folha de orvalho, os ventos de um verão distante sopraram numa catedral iluminada pelo sol.  Banhando a sala de cerimônia com seu olhar de julgamento, as estátuas dos deuses sobre o altar dourado, repousavam com incensos finos recém acessos. O cheiro de baunilha e cravo se misturava ao ar, fazendo o peso do corpo dos ali presentes sumir, como se fossem um punhado de areia em uma ventania. O longo tapete vermelho que separava os fiéis de seus deuses intercalava as arquibancadas. E em uma delas, dormindo sereno sobre o colo de uma mulher, um rapaz jovem de cabelos negros se encolhia no abraço de uma morena. Ela sorria, um sorriso doce e sincero, tocando a face do rapaz e deslizando o polegar sobre uma de suas bochechas de maneira carinhosa. Com uma voz melódica, a mulher de longos cabelos cacheados, dizia com um sarcasmo aparente em sua voz.

— Elegor, hora de levantar, da última vez que nós pegaram aqui tive que lavar a louça do jantar — Disse a jovem segurando o nariz do rapaz entre o indicador e dedo médio, lhe dando um suave belisco.

Uma das mãos do rapaz veio de encontro a da jovem, que insistia em lhe retirar o ar enquanto ria numa gargalhada proveitosa, ela o soltou num súbito ato, deslizando sua mão para os cabelos negros do rapaz, se perdendo ali. Quando as pálpebras do rapaz se abriram, e suas pupilas vermelhas se encontram aos olhos avelã, ele sorriu, bobo e ingênuo.

— Não precisava me levantar dessa forma, eu acho que um beijo já bastava— Respondeu o moreno, levantando seu tronco devagar, o súbito movimento o fez chutar sua bolsa de couro que repousava no fim da arquibancada. O som do tilintar metálico ecoou pela sala, o sorriso da garota se desmanchou, dando espaço para uma face descrente enquanto encarava a bolsa.

— Isso… São seus frascos de misturas não são? — Perguntou ela apertando o ombro do rapaz, que a evitava de olhar nos olhos.

— Não, não são… São pepitas de ferro, cobre, e bronze — Respondeu ele trazendo a bolsa para perto de si.

O silêncio outrora confortável, agora parecia quebrar as gargantas de ambos de dentro para fora, a moça segurou mais forte em suas vestes sacerdotais, e então cerrando os dentes murmurou.

— Você não para, não é? Não importa o quanto eu implore para você parar, você continua sendo um egoísta imprudente— O amor que brilhava em seus olhos, foi desvanecendo, manchado por uma ira que a fazia tremer.

— Esse emprego paga bem, eu não conseguiria alimentar tantas bocas sendo ajudante de padeiro ou barbeiro— A respondeu frio, trazendo para próximo de si a bolsa de couro surrada, que acumulava sujeira e ferrugem nas travas de ferro.

Ela bufou, o ar lhe saiu quente tal qual seu sangue que borbulhou com aquela afirmação, ela se levantou o segurando pelos ombros o forçando a olhar nos olhos. Sua voz doce se transformou e um rugido, que reverberou em toda a capela como um cântico.

— E então você prefere se arriscar colocando a sua vida na linha para ganhar algumas moedas a mais?!—As lágrimas de fúria se acumularam nas laterais dos olhos da mulher, deslizando pela pele parda enquanto seus dedos travavam nos ombros do rapaz.

— Já conversamos sobre isso, inúmeras vezes, esse dinheiro não é só para mim, e para você também, os remédios da sua av— Sua fala fora interrompida por um tapa forte, que destilou toda fúria da morena e demarcou a pele branca do rapaz.

— Eu já disse que não preciso do seu dinheiro! Eu não preciso que você se esforce por mim, e nem que seja o meu herói! Eu preciso de você vivo! — Ela inspirou fundo, se afastando dele cabisbaixa— Eu não quero ver o homem que eu amo voltando para casa em uma saca de pano, ou em uma urna.

baixou a cabeça, soltando as roupas do rapaz, recolheu as mãos trêmulas em sua fúria e cruzou os braços a altura do peito.

— Eu te amo Elegor, mas estou me fartando de ser a única adulta racional— Seus corpos foram ganhando distância, e a mulher com um dos braços, indicou ao rapaz a saída.

— Vá embora senhor, a capela está fechada hoje.

Ele não respondeu, seus olhos baixaram, e com uma das mãos na alça da bolsa, o moreno seguiu seu caminho até a saída. No caminho, por onde ele pisava era como se o coração da mulher fosse perfurado de dentro para fora. À medida que a figura iria se distanciando, a sala criava uma faísca, a faísca que se tornou brasa, a brasa que se tornou fogo, fogo que se tornou incêndio. O rapaz começou a arder, enquanto a capela desmoronava. desesperada a mulher estendeu a mão ao rapaz.

— Elegor! Volte! Por favor! — Gritou ela uma última vez.

No centro do poder, no palácio de marfim, em uum quarto com o tamanho de um salão, numa confortável cama de lençóis finos. A jovem Salana sentia o ar se esvair de seus pulmões, se asfixiando, se debatendo em sua cama desesperadamente murmurando palavras desconexas. A dor, era como se pregos estivessem sendo enfiados em sua carne.

A camada fina de suor em sua pele deixava os lençóis brancos úmidos, um grito, como uma luz em meio às trevas, uma única fagulha resplandeceu. Num impulso de seu despertar, de olhos arregalados e trêmula, com suas últimas forças e com o pouco ar que lhe restava, a morena se levantou gritando o mais alto que podia.

— ELEGOR, NÃO! — Gritou a jovem estendendo uma das mãos ao teto, procurando algo com um desespero profundo em seu olhar.

As portas do quarto se abriram de maneira brusca, os soldados tomavam a frente enquanto algumas criadas curiosas permaneciam atrás. Os olhares sobre a princesa, de pena, nojo e indiferença a fizeram se sentir suja, uma estranha em meio a tantos rostos que já conhecia.

— Senhora, está tudo bem, escutamos os gritos do começo do corredor— A voz aflita da criada que ultrapassou as lanças dos guardas se fez ecoar na sala. Em uma voz chorosa, e com o corpo trêmulo, Salana abraçou suas pernas que fraquejaram ao tentar se levantar.

— C-Chamem a feiticeira, e avisem a meu pai— Os cabelos cacheados lhe cobriram parte do rosto, e os olhos avelã se perderam no lençol branco, enquanto ela repetia para si mesma — Elegor, Elegor, Elegor.

A chuva jamais havia sido tão fria, os barulhos de trovões distantes fizeram a elfa despertar incômoda, seu corpo inteiro gritava em dor, mesmo que ela não pudesse sentir os hematomas.

O frio do ambiente a abraçou a deixando trêmula, sua cabeça estava zumbindo com um barulho infernal e suas memórias eram como se fossem uma mistura sem cor. Os fios cinzentos e lisos do cabelo da elfa cobriam sua visão numa franja ensopada por um vermelho pegajoso. Ela tocou seu rosto devagar, sentindo algo viscoso, mas que conhecia bem somente pelo cheiro, sangue. Quando os primeiros estalos de consciência arranharam sua cabeça que latejava de dor, as visões de carnificina a deixaram com um enjôo, uma ânsia que a sufocava mais do que seus gritos internos. Ela se virou para o lado na angústia de se sufocar com o próprio vômito, e lutando para se sustentar, ela perdia as forças enquanto suava frio.

— M-Merda…— Disse ela em meio a uma crise de tosse, que fazia sua garganta fechar a ponto de lhe faltar ar.

Quando finalmente se acalmou, ela lançou a visão turva aos arredores, os feixes de luz entravam por uma abertura, os estalos ecoavam pela extensão da rocha, estava deitada sobre musgo úmido e conseguia ver alguns cogumelos crescendo ao lado de onde repousou. Uma caverna, ou algo que parecesse com isso, bom, pelo menos era um abrigo para a chuva,

— Eu consegui fugir? — Ela perguntou a si mesma, buscando forças para se levantar.

— Talvez— Respondeu uma voz jovial, até então desconhecida a elfa.

Zeliarsa estremeceu ao escutar a voz, suas pernas fraquejaram e por alguns segundos ela pensou em lutar, um pensamento que logo lhe foi tirado quando voltou a cair em seus joelhos, dessa vez sem forças.

— É você… não é seu filho de uma puta? — Perguntou a elfa com um sorriso cínico se formando em seu semblante enfermo.

— Sim, sou eu mesmo, Zeliarsa Jähan— Respondeu a voz ainda no mesmo tom.

Um calafrio subiu pela espinha de Zeliarsa, ela cerrou os punhos enquanto buscava a origem da voz com um olhar raivoso, suas sobrancelhas vieram para baixo e seus lábios tremiam, não por fúria, mas de horror. Nem mesmo Byn sabia o nome completo de sua amiga. Era algo que ela gostaria de enterrar no fundo de sua mente e nunca mais trazer à tona.

— Como você sabe meu nome?

A jovial forçou sua visão ainda turva do despertar a outra ponta daquele vazio, em meio a uma poça de sangue, repousando com as costas arqueadas sobre uma das pedras. Uma beleza atípica se apresentava de forma macabra. A pele branca e macia daquele homem era como seda de um vestido de noiva banhado em sangue. Os cabelos loiros eram longos, chegavam até a altura de seus ombros e desciam numa única trança traseira. Os olhos azuis tinham um profundo tom do oceano, como se fosse possível se perder num dia ensolarado somente olhando para o fundo de seus olhos. Porém mesmo tão belo, algo quebrava a fantasia de um príncipe que aquele rapaz exalava. Em seus pulsos as marcas de grilhões já faziam parte de sua carne, num tom roxo como de carne podre ou amoras silvestres. Bolhas de queimaduras subiam por seu abdômen, provavelmente sua pele havia sido usada de cinzeiro. Cicatrizes uma por cima da outra, subindo em suas costas como trilhas de vermes. Uma beleza maculada por violência.

— Eu sei tudo sobre você, que sua casa é nas ruas, que adora comer pães doces, mas não gosta tanto quanto uma boa bebida, que adora ter seu ego acariciado por quem acha atraente, e que se sente impotente quando é superada.

A figura respondeu com indiferença na voz, ele deixava a chuva escorrer por seu corpo se misturando ao sangue que o envolvia, o líquido já havia se tornado um melado borrão viscoso que lhe percorria, mas ele sequer parecia sentir.

— E como sabe disso? — Perguntou a elfa com uma voz vazia, sem emoções, assim como seu olhar e semblante.

— Fomos um só, eu usei seu corpo para chegar até aqui— Disse o homem com naturalidade, fazendo uma pausa para finalmente olhar para ela.

A elfa levou as mãos a cabeça, sentindo uma forte dor, era como se uma força extrema começasse a apertar seu crânio como uma noz, e a casca de noz estivesse quebrando. Sua voz em desespero ecoava pela caverna, ela balbuciava palavras em desespero e quando finalmente parou, só conseguiu olhar para o homem, trêmula. Sai da porra da minha cabeça! SAIA!

—Isso é… outra manipulação, não é? — Perguntou a elfa se arrastando devagar até o homem.

—Não, pois dessa vez, tenho evidências.

A bela criatura jogou a visão por cima do próprio ombro, como se estivesse apontando a direção com o nariz, atrás da silhueta da silhueta, a elfa descobriu a origem do sangue.

Corpos, empilhados como gado recém abatido, seus intestinos estavam dilacerados, nus, alguns até mesmo chegavam a faltar partes. Um ou outro tinham cortes sobre a virilha descendo, cujo haviam destruído suas genitálias.

—Zeliarsa— O homem baixou a cabeça a elfa, estendendo a mão para que se levantasse— Você confia em mim?

A elfa trêmula, pegou a mão do rapaz, lutando para não ceder, mas já não tinha forças, ela desabou sobre os braços do homem, com as lágrimas tomando conta de seu rosto. Ela cedera por completo, quebrando, chorando e soluçando compulsivamente enquanto suas unhas se prendiam a carne do rapaz, deslizando num abraço sangrento e voraz, com a pouca voz que ela ainda tinha, disse a ele com uma voz que perdia a força a cada palavra.

— Sim, Elegor— Respondeu ela.

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