Capítulo 05 – O Dia de Treinamento nos Arredores da Cidade
— Como é…?
Anão Xamã estava na taverna da Guilda, sujando o rosto todo com purê quente de batata. Estava um pouco cedo para o almoço – a refeição em questão podia ser considerada um café da manhã atrasado.
— Você me quer?
— Sim.
À sua frente estava um homem com uma armadura de couro suja e um capacete de aço de aparência barata: Matador de Goblins. Não havia sinais de que havia comido ou de que estava comendo alguma coisa.
Matador de Goblins colocou a mão no capacete como se estivesse sentindo alguma dor de cabeça e tomou um pouco de água pelos sarrafos de seu visor.
— Você fará isso?
— Claro, não me importo, mas…
Anão Xamã comeu outra colherada de purê de batata. Os anões eram conhecidos como gourmands que provavam de tudo e, assim sendo, eram muito bem-vindos em qualquer restaurante. A comida só precisava de um gosto meio decente e ser abundante. Se o sabor fosse especialmente requintado, seria considerado um bônus.
Alta Elfa Arqueira, se questionada a respeito de sua opinião, poderia caracterizar isso como falta de contenção, mas Anão Xamã provavelmente teria respondido que os elfos simplesmente careciam de imaginação.
Apesar de tudo, o lançador de feitiços ficou muito feliz ao comer uma montanha de purê de batatas que tinha apenas um pouco de sal para dar sabor.
— Batata?
— Mmf, mrf… Sim! Hoje eu estava no clima para batatas — respondeu ele, tossindo de forma indelicada enquanto dava outra garfada. — Você não vai provar nem um pouco?
— Tenho goblins para matar.
— É mesmo? — Anão Xamã pegou o copo de Matador de Goblins, o encheu até a borda com o seu vinho e o empurrou de volta. — Bem, beba. Você pode ficar alguns minutos comigo, não pode?
— Mm. — Matador de Goblins engoliu todo o conteúdo de seu copo. Anão Xamã observou com um sorriso.
— Tenho a impressão de que eu e nosso impetuoso amigo praticamos tipos ligeiramente diferentes de magia — disse Anão Xamã.
— Não sei os detalhes, mas suspeitei — respondeu Matador de Goblins.
— E acho que seria melhor você pedir isso a alguém que não fosse eu.
— Isso não vai acontecer. — Matador de Goblins balançou a cabeça lentamente. — Você é o lançador de feitiços mais capaz que conheço.
— …
A mão do Anão Xamã congelou enquanto partia para pegar outra porção de batatas. Ele girou a colher (que antes fazia incessantes viagens para a sua boca) na pilha de comida, sem tato algum.
Depois de algum tempo, suspirou.
— Bem, não diga não, é isso? — disse ele. Então lançou a Matador de Goblins um olhar ressentido. — Aposto que você poderia dizer a mesma coisa para aquela senhora bruxa.
— Com certeza não poderia — disse Matador de Goblins suavemente. Até mesmo o Anão Xamã poderia adivinhar o que ele queria dizer com isso.
— Sinto muito. Isso foi algo ruim a se dizer, mesmo como brincadeira.
— Se isso for demais, fique à vontade para recusar.
— Um pensamento tolo. Só recuso o trabalho de pessoas que não gostam de anões.
Anão Xamã então voltou a comer com voracidade. Ele nem se preocupou em limpar a barba, mas acabou deixando purê escorregar de sua boca, assim como faria o vinho em um barril.
Quando, por fim, reduziu a montanha de comida, jogou a colher de lado.
— Mas, Corta-Barba, quero que me diga uma coisa.
— O quê?
— O que resultou nessa ideia?
Matador de Goblins ficou calado.
Essa não era uma história tão incomum. Ele era um guerreiro; tinha pouca aptidão para a magia. Quando precisava de alguém com talento nessas artes, por que não recorrer a um xamã?
Mas não era isso que o anão estava a perguntar. Até Matador de Goblins compreendeu isso, olhando por cima da barba do Anão Xamã para se deparar com seus olhos.
— Sou Matador de Goblins. — Ele tomou um gole de vinho, parecia ser para molhar os lábios. — E ele é um aventureiro.
— Justo. — Anão Xamã bufou e encostou seu pequeno corpo contra as costas da cadeira. Ela rangeu sob o peso de sua cintura pesada. — Quando nossa amiga de orelhas compridas ficar sabendo disso, não acho que você ouvirá o final do sermão lá muito cedo.
— É mesmo?
— Suponho que sim.
— Entendo.
Anão Xamã empurrou seu prato vazio para Matador de Goblins e acenou com a mão.
Havia ali um conjunto de cinco ou seis pratos vazios, e a garçonete – esta com almofadinhas – apareceu e os levou para serem lavados.
— De qualquer forma, aceito. Mas posso… precisar que você espere um pouco.
— Não me importo. Disse a ele para vir esta tarde. — Matador de Goblins serviu um pouco de água enquanto falava. Ergueu e moveu ao redor, observando as minúsculas ondas correndo ao longo das bordas do copo. — Acha que ele estará lá…?
— Heh! Podemos apostar nisso, se você quiser. — Anão Xamã sorriu e esfregou as mãos. Foi um gesto dramático, como um mágico se preparando para exibir o seu próximo truque. — Pois bem. Acho que preciso de mais alguns drinques antes de ir. E então de uma caminhada calma e agradável. — Ele bateu alegremente em sua barriga. — Afinal, só comi o suficiente. Sem muita fome, mas não tão cheio!
Matador de Goblins não disse nada, só levou seu copo vazio à mesa.
— …
O garoto estava parado no centro de treinamento, ainda em construção, então uma boa parte da área parecia pouco mais que um campo gramado.
Ele era a própria imagem de alguém sendo forçado a fazer algo contra a vontade. Suas bochechas estavam estufadas, parecia fazer beicinho e estava com o queixo entre as mãos enquanto olhava para o homem que havia o chamado.
— O quê, não está matando goblins…?
— Não. — O homem com a armadura de couro encardida e o capacete de aço balançou a cabeça. — Pretendo ir assim que te entregar.
— Não lembro de ninguém ter pedido para você cuidar de mim.
— É mesmo?
— Sim!
— Sinto muito.
Sua atitude indiferente irritou o garoto.
Mas que cara para se ter em um grupo!
Se tivesse sido ele quem tivesse acabado naquele grupo – bem, não poderia ter recusado categoricamente, mas seria bem desagradável. Como aquela sacerdotisa podia suportar isso? Ou aquela elfa, ou aquele homem-lagarto? Ou…
— Ah, aí está. Excelente, isso é um sinal de compromisso. — Ou o anão, que estava agora rolando pela grama.
Ele estava sorrindo, embora o garoto não pudesse imaginar qual era a graça, e tomando goles de um jarro de vinho que mantinha em seu cinto.
Sim, ele era um Prata. Era, sem dúvidas, um usuário de magia muito capaz.
Mesmo assim, isso não significava que o garoto queria ter que aprender os seus passos.
Não queria, e ainda assim…
— …
O garoto voltou a si ao som de seus próprios dentes rangendo.
— Bom. Então posso contar com você para lidar com isso? — perguntou Matador de Goblins a Anão Xamã.
— Tenho certeza de que você pode. E não vá se esforçando só porque não tem um lançador de feitiços por aí.
— Claro que não.
— E qualquer dia desses me pague um pouco de vinho.
— Tudo bem.
Enquanto o garoto observava, os dois homens conduziram a conversa com curtos intervalos, quase como se pudessem ler os pensamentos um do outro. Ele os encarou com um olhar furioso, indignado por não poder entrar na conversa.
Matador de Goblins então se virou em sua direção.
— Ouça o que lhe for dito, não cause problemas e leve isso a sério.
Ele parecia quase um irmão mais velho dando instruções ao seu irmão mais novo. O garoto apenas bufou. Matador de Goblins pareceu tomar isso como aceitação, já que deu de costas. Em seguida, partiu em seu habitual passo ousado e indiferente.
— Ei, espera…!
— Foco em mim, garoto, é comigo que você deve se preocupar.
O garoto não conseguia se livrar da sensação de que estava sendo deixado para trás, mas Anão Xamã agarrou o seu ombro. Sua mão pequena, mas áspera, era forte o suficiente para que quase doesse.
— Sente-se, garotão. Tentar aprender de pé ou sentado faz diferença. Você não vai usar a cabeça, de qualquer forma.
— Tudo bem… — respondeu ele, petulantemente, acrescentando para si mesmo: Só tenho que sentar, hein?, e então sentou na grama.
De longe, soaram vozes entusiasmadas e o retinir de armas. Somado a isso, estavam os trabalhadores carregando materiais e trabalhando em suas ferramentas.
O céu estava azul, a luz do sol quente o bastante para fazer suar. O garoto soltou um breve suspiro.
Anão Xamã percebeu; ele lentamente se sentou em posição de lótus e sorriu.
— Muito bem. Não sou especialista, mas… Quantos feitiços você pode usar e com que frequência?
Essa era a pergunta que o garoto menos queria responder.
— Bola de Fogo. E… apenas uma vez — disse baixinho, quase com os lábios fechados. — Mas você já sabe disso, certo…?
— Seu idiota sem jeito. — Um punho caiu sobre o garoto.
— Gah?!
— Tô te falando, você tá errado à beça.
O garoto gemeu, segurando a cabeça que latejava onde recebera o golpe. Os lançadores de feitiços não deveriam ser fisicamente fracos?
Não, espera, este era um anão. Droga. O garoto grunhiu.
As diferenças entre raças não podiam ser menosprezadas.
— Er… Ergggh. Isso dói demais… Você podia ter rachado a minha cabeça!
— A cabeça de um lançador de feitiços, para começo de conversa, não deveria ser tão dura! Você ficará melhor se ela rachar.
— Achei que anões costumavam ser todos guerreiros…
— Nós também somos monges, se é que não sabia. E por que não? Temos inteligência de sobra, e até espírito também.
— Eu… eu acho que já ouvi sobre Anões Sábios…
— Isso é só história — disse Anão Xamã soltando um suspiro profundo. — Escute — disse, sussurrando como se fosse contar um segredo. — Bola de Fogo não é o único feitiço que você tem.
— Hein?
O garoto esqueceu a dor em sua cabeça de imediato, seu rosto assumindo uma máscara de surpresa. Três dedos apareceram diante de seus olhos.
— Carbunculus: pedra ígnea. Crescunt: surja ou torne-se. Iacta: atire ou solte. É isso, não é?
— Uh.
— Você junta três palavras de verdadeiro poder e elas se transformam em Bola de Fogo. Entende o que estou dizendo?
— Sim, eu sei disso, mas…
Ele engoliu o resto do que estava prestes a dizer.
Isso é tão óbvio.
O feitiço que aprendera consistia em três palavras de verdadeiro poder, entrelaçadas para criar um único feitiço.
Isso significava que o poder também residia em cada uma delas, mesmo individualmente. Quão simples poderia isso ser?
Cada palavra pode conter muito menos poder do que o encantamento todo. Mas, ainda assim, qualquer um que reagisse a um ensinamento óbvio, mas novo, com um “Sim, que seja…” não passaria de um idiota…
Anão Xamã observou o rosto do garoto ficando tenso, então revelou um enorme sorriso.
— Excelente! Parece que começaram a aparecer as primeiras rachaduras no seu crânio. Então, quais são as implicações? Diga o que você acha.
— Criar fogo. Expandir. Lançar…
— Viu! Agora você tem quatro opções.
— Quatro?
— Você pode lançar a sua Bola de Fogo, ou pode colocar fogo em algo, ou pode fazer algo crescer, ou atirar algo.
Embora eu suponha que atirar uma bola de fogo grande ainda seja a coisa principal.
O garoto olhou para as palmas das mãos, ergueu os dedos, contando.
Quatro…
Ele acreditava que tudo o que podia fazer era uma Bola de Fogo – e, ainda assim, todo esse tempo possuía quatro feitiços?
— Ei…
— Hrm?
— Isso devia mesmo ser tão simples?
— Mudar a maneira como você vê o mundo não é… Bem, suponho que não seja exatamente isso que estamos fazendo. Estamos apenas verificando quantas cartas temos em nossas mãos.
Com isso, Anão Xamã puxou um baralho de cartas aparentemente do nada.
O que foi isso – um truque de mágica? Seus dedos grossos se moveram tão rápido que ficaram quase invisíveis enquanto ele cortava o baralho e dava as cartas.
— As cartas baixas ainda são cartas, não?
— Acho que sim…
— Não precisa achar! Elas são.
Ele juntou o baralho que então, como em um passe de mágica, desapareceu.
O anão não parou para chamar a atenção para esse truque de magia em momento algum, mas, em vez disso, sussurrou de forma conspiratória:
— Diga, garoto, lembra de uma certa usuária de magia, uma muito adorável? Uma bruxa?
— Sim… — disse o garoto, corando ao imaginar uma formosa lançadora de feitiços. — Eu a conheço.
— Ela usa inflammarae para acender o cachimbo.
— Espera, sério…?
Foi a primeira reação honesta de verdade que o garoto mostrou durante o dia todo, e não era de admirar. Se alguém fizesse isso na Academia, os professores partiriam sua cabeça.
Os feitiços mágicos eram compostos de palavras de verdadeiro poder, capazes de alterar a lógica do mundo e manipular a forma como as coisas eram. Não deviam ser usadas de forma leviana – aventureiros experientes não ficavam o tempo todo dizendo essas coisas?
Não baixe a guarda. Não hesite em matar. Não desperdice seus feitiços. E fique longe dos dragões…
— De qualquer forma, acho que você entende que só lançar feitiços para lá e para cá não é bom. Mas pense nisso. — Anão Xamã cruzou os braços e fez um barulho pensativo; o garoto ainda não o entendia direito. — Digamos que você esteja sob a chuva, não tenha pederneira e todo o combustível esteja molhado, mas você só precisa fazer uma fogueira. É aí que você o usaria.
— Bem, sim, eu acho…
— Mas se você for inteligente mesmo, poderá, nessa situação, acender uma fogueira de outro jeito e poupar um feitiço.
Se juntar galhos e casca de árvore, às vezes consegue acender uma fogueira, e os galhos das árvores caídos no chão na maioria das vezes estão secos. E dependendo do cuidado com que empilha a lenda, um galho molhado pode muito bem secar enquanto o fogo queima, tornando-o em combustível útil.
Ter mais massa cinzenta é a melhor maneira de cuidar dos próprios feitiços. Qualquer habilidade suficientemente avançada é indistinguível da magia.
— A única diferença é o método — disse Anão Xamã.
Cada método é uma alternativa, e alternativas significam, por sua vez…
— Mais cartas no seu baralho.
— …
— E mais uma coisa… — Anão Xamã ignorou o Garoto Feiticeiro, que estava de braços cruzados e resmungando. Ele então puxou a rolha do frasco em seu quadril. Um cheiro pungente de álcool, o aroma único de vinho de fogo dos anões, surgiu. — O trabalho de um lançador de feitiços não é entoar feitiços.
Isso fez com que o garoto piscasse, confuso.
— É usá-los.
— …? E qual é a diferença?
— Se não consegue perceber nem isso, não vai chegar a lugar algum.
Enigmas como esse estavam no cerne do significado por trás de ser um mago.
Que peso realmente havia nas palavras de quem sempre saía por aí proclamando possuir a verdade?
E que valor real havia na verdade que alguém detinha? Perante isso, um feiticeiro riria. Riria e diria: Talvez sim, talvez não.
— Só um amador que não sabe de nada pensaria que um feiticeiro não faz nada além de lançar bolas de fogo ou raios em seus inimigos.
Anão Xamã então sorriu feito um tubarão.
Matador de Goblins acertou a pederneira, acendendo sua tocha com as fagulhas. O cheiro de resina de pinheiro queimando se misturou ao cheiro de umidade e mofo, assim como de odores menos saudáveis que pairavam pela caverna.
Isso parecia ser o mesmo que alertar os goblins sobre a chegada de aventureiros, mas, por mais estranho que possa parecer, goblins não conseguiam reagir ao cheiro de uma tocha. O cheiro de mulheres, crianças ou elfos era bem mais propício a chamar a sua atenção e provocar um ataque.
A hipótese de Matador de Goblins era de que os diabinhos não conseguiam distinguir o cheiro da tocha do odor de podridão por toda a sua casa. Ao mesmo tempo, acreditava que não havia nada melhor para minimizar o cheiro de metal da armadura.
— Ugh… Isso é tããããão injusto…
E também não se deve esquecer de encobrir o aroma de elfos.
O rosto da Alta Elfa Arqueira estava manchado de sujeira, e ela gemeu e sorriu sem graça. Parecia muito menos do que satisfeita enquanto esfregava a lama de suas roupas de patrulheira. Suas longas orelhas caíram lamentavelmente, tremendo.
— Por que só eu preciso ser coberta por essas coisas?
— Porque você vai agitar os goblins.
A resposta foi curta. Alta Elfa Arqueira se abraçou e estremeceu. Desde que se juntou a este aventureiro obcecado, viu mais do que algumas vítimas de “goblins agitados”. Se lembrava até da vez em que ela mesma quase foi morta por eles, uma coisa que não queria imaginar voltar a passar.
Se queria evitar esse destino, tinha que tomar medidas apropriadas.
E, assim, parecendo completamente patética, continuou a se pintar com o vil efluente na entrada da caverna.
— O que aconteceu com a mistura de ervas que usou da última vez?
— Acabou… — A expressão da Alta Elfa Arqueira estava vaga, e ela desviou o olhar, evasiva. — O dinheiro…
Parecia que até mesmo os Alto Elfos, com linhagens que remontam à Era dos Deuses, estavam sujeitos a problemas tão comuns. Essa talvez fosse parte da razão pela qual se juntou a um grupo em que não faria nada além de matar goblins, trabalho que tanto detestava.
Não passou pela sua cabeça que fosse por gratidão a Matador de Goblins.
— Assim como as suas flechas — disse ele suavemente —, é importante gerenciar todos os seus recursos.
— Já te falei, eu odeio dinheiro!
— É mesmo?
— É só você usar e ele já acaba!
— Sim, isso é verdade.
— Mas ele nunca dá em árvores!
— Isso.
— Eu não entendo…!
— Entendo.
Suas orelhas balançavam para cima e para baixo, movidas pela raiva; Matador de Goblins ouviu sempre impassível.
O que lhe importava eram os desenhos que os goblins haviam deixado nas paredes da caverna. As formas grosseiras e caricaturadas de animais não identificáveis foram pintadas em uma cor carmesim escura.
Ele olhou para tudo, confirmando que não via qualquer relação entre esses desenhos e a marca que havia sido usada pelo goblin paladino.
— Totens simples. — Matador de Goblins esfregou um dos símbolos, que tinha sido pintado com o sangue de uma criatura viva. O sangue seco escorreu da parede, deixando uma sujeira avermelhada na palma de sua luva. — Há um xamã aqui.
— Hmm. — Alta Elfa Arqueira não parecia tão interessada. Ela tirou o arco das costas e preparou uma flecha. — Quantos?
— Menos de vinte, suspeito — disse Matador de Goblins, fazendo uma suposição com base na poluição que havia fora da caverna. — Vai entrar?
— Vamos lá — respondeu Alta Elfa Arqueira, estufando o peito magro. — Se acham que podem nos tratar de forma leviana por sermos apenas dois, terão que aprender algumas coisas.
Apenas dois.
Sim, desta vez eram apenas dois aventureiros a desafiar o ninho de goblins: Matador de Goblins e Alta Elfa Arqueira.
Anão Xamã estava ajudando o garoto, enquanto Lagarto Sacerdote e Sacerdotisa tinham algum tipo de negócio o qual resolveriam juntos.
Quando se tratando de enfrentar vinte goblins, um guerreiro e uma patrulheira não eram a melhor das combinações.
Mesmo assim, goblins surgiram.
E ele era Matador de Goblins.
A missão era extremamente simples – tão comum quanto de costume. Alguns goblins apareceram por perto de uma aldeia. Os aldeões tentaram simplesmente deixá-los em paz, mas isso permitiu que se multiplicassem.
As colheitas foram roubadas. O gado fugiu. Uma garota que foi colher ervas foi atacada, sequestrada.
Por favor, por favor, ajude-a. A recompensa era uma bolsa de moedas sujas e enferrujadas, uma de pelo menos duas gerações atrás.
Mas não havia razão para ignorar.
Um caso estereotipado. Uma recompensa lamentável. Mas, e daí?
Os inimigos eram goblins. De que outra razão poderia ele precisar?
Matador de Goblins com certeza não poderia responder a essa pergunta.
— Se nada mais, você é consciencioso, Orbolg — disse Alta Elfa Arqueira, olhando para ele e sorrindo. — Percebo que, quando há uma chance de resgatar alguém, você nunca usa gás venenoso, água ou fogo.
Entretanto, quando tarde demais, ou após ajudarem a pessoa, ele era impiedoso. Alta Elfa Arqueira soltou uma risadinha.
— Aqui, pega isso. Uma coisinha para a sua barriga.
Ela jogou algo para ele: um pouco da comida secreta dos elfos, pequenas guloseimas assadas.
A própria Alta Elfa arqueira já mordiscava uma das coisas, igual um esquilo ou qualquer outro animal pequeno. O elmo de Matador de Goblins estava virado em sua direção.
— Com você por perto…
— O quê?
— Com você por perto, é sempre animado.
— Isso foi um elogio…? — Ela olhou para ele com desconfiança, correndo em sua direção como um passarinho. Então olhou profundamente além do seu visor, suas orelhas caindo no ritmo de suas sobrancelhas por um momento. — Essa não é a sua maneira de me mandar calar a boca, é?
— Só quis dizer o que eu disse.
— Bem… — Ela girou nos calcanhares, deixando uma palavra não dita pairando pelo ar. Seu cabelo esvoaçava como se fosse um rabo.
Então disparou mais adentro da caverna, livre como o vento, mas ainda…
— Heh heh!
Suas orelhas balançavam com alegria, algo que podia ser visto muito bem, mesmo por trás.
Claro, os dois não estavam tão desatentos quanto sugeria o comportamento. Qualquer um que não fosse um completo iniciante saberia que, quando em um lugar como este, estavam em terreno inimigo.
Matador de Goblins empurrou a guloseima através de seu visor, sacando sua espada enquanto mastigava.
Os sentidos aguçados de Alta Elfa Arqueira faziam suas orelhas balançarem sempre que ouvia algum barulho.
A conversa despreocupada – mesmo que fosse toda por parte de Alta Elfa Arqueira – era uma forma de preservar a sanidade.
A prova chegou um momento depois, quando ela de repente parou no meio do caminho.
— Eles são rápidos.
— Sim. Mas não tive a sensação de que estavam nos observando.
Não precisavam de palavras. Matador de Goblins já estava com sua arma pronta, Alta Elfa Arqueira estava tão tensa quanto um arco pronto.
— Se sequestram uma jovem, é normal que aventureiros venham.
A batalha entre goblins e aventureiros vinham acontecendo desde tempos imemoriais. Ao longo de um estonteante acúmulo de eras, até mesmo os goblins conseguiram aprender algo assim, os aventureiros virão.
Eles sempre vinham. Vinham, matavam e levavam o que lhes pertencia. Portanto, os matariam.
Foi por puro fracasso deles em refletir sobre as próprias ações ou tomar qualquer tipo de cautela que tornou os goblins no que eram.
— Qual direção?
— Direita. — Alta Elfa Arqueira fechou os olhos, suas orelhas tremendo. — Cinco ou seis deles, talvez. Também ouço algumas armas.
— E à frente?
— Por enquanto nada.
Em outras palavras, não haveria a tentativa de um movimento em pinça. Matador de Goblins bufou, então pegou sua espada em um aperto reverso, segurando-a pela lâmina e assumindo uma posição.
— Sempre pensam que emboscada é uma habilidade que pertence apenas a eles.
No segundo seguinte, pegou sua espada e bateu na parede de terra, como se cortasse lenha.
— GROOOORB?!
A terra, provando-se pouca após ser cavada, desabou para dentro, caindo no túnel lateral. O goblin à frente do grupo de escavação arregalou os olhos, completamente confuso.
Deveriam cercar os aventureiros idiotas, espancá-los, humilhar a mulher, fazê-la suportar…
Matador de Goblins acertou um golpe na cabeça da criatura, colocando um fim em seus planos – e em sua vida.
— Um. Vamos atacá-los por aqui. Vamos.
— Isso é tão apertado. Fica difícil de atirar. — Claro, mesmo enquanto reclamava, Alta Elfa Arqueira disparou três flechas ao mesmo tempo, por cima do ombro de Matador de Goblins, perfurando três goblins.
— GROR?!
— GOOBBR?!
Uma flecha foi à garganta; os monstros de cada um dos lados foi acertado nos olhos, um à esquerda, um à direita. Eles colapsaram e Matador de Goblins perfurou seus corpos.
— Quatro…
Uma espada banhada até o punho por miolos não seria de muita utilidade. Ele chutou um goblin que tinha agora uma lâmina brotando de sua testa, pegando a pá reta que o monstro usava como arma.
— Cinco…
O quinto goblin o atacou. Ele bloqueou o golpe de picareta do monstro e, no mesmo movimento, pegou a tocha, a qual segurava do mesmo lado do escudo, e a acertou no rosto do monstrengo.
— GROORRORBRO?!
Houve um som crepitante e o horrível fedor de carne cozendo. Matador de Goblins observou o monstro tendo seu rosto frito gritando. O contra-ataque fracassado logo se tornaria conhecido, presumiu. Pouca diferença faria um grito.
Ele foi totalmente sem misericórdia: enfiou a pá bem no meio do pescoço do goblin.
— GROORB!!
O último dos monstrinhos uivou, embora nada ainda lhe houvesse acontecido. Jogou até mesmo a machadinha que segurava de lado, erguendo os braços acima da cabeça. Babando e choramingando, se prostrou diante dos aventureiros.
Uma criatura que deixamos escapar no mausoléu?
Matador de Goblins jogou a tocha agora quebrada de lado e pegou a machadinha manchada de vermelho. A colocou no cinto, pegou uma nova tocha e a acendeu com a antiga.
— Pois bem.
— GOR?!
Matador de Goblins deu um chute na criatura, a qual gritou e caiu de costas. Mas logo retomou sua postura patética, raspando a cabeça contra o chão.
Estava implorando por sua vida. Será que tinha um mínimo de inteligência? Estava calculando o que seria de seu interesse? Tinha noção do que era uma rendição?
Dado que esteve na retaguarda do grupo, talvez tivesse certa posição até mesmo entre os goblins.
Então, parando para reparar, era fisicamente o menor. Uma criança, será…?
— Orcbolg…
— Sim.
A voz de Alta Elfa Arqueira tremia. Matador de Goblins balançou a cabeça.
O jovem goblin estava tentando sacar uma adaga envenenada de seu cinto.
Em torno de seu pescoço estava um colar.
Um que havia roubado.
Os objetos do colar foram todos perfurados com uma sovela e então costurados juntos. E também foram cortados por uma machadinha. Dez dedos recém-cortados de uma jovem mulher.
Para este goblin que se encolhia e se curvava, o tempo todo escondendo uma adaga nas costas, Matador de Goblins tinha apenas uma coisa a dizer:
— Mataremos todos.
— Parando para pensar…
— Hmm?
— Esta pode ser a primeira vez que estamos só nós dois.
— Ah, de fato, acho que você está certa sobre isso — disse Lagarto Sacerdote, suavemente balançando o rabo.
Estava de tarde no campo de treinamento. Embora as instalações estivessem quase na metade das obras, o lugar continuava aberto às intempéries.
Aventureiros novatos, assim como trabalhadores, vadiavam em um canto e outro da grama, comendo seus almoços.
Não havia garantia de que alimento seria fornecido e, mesmo que fosse, a atividade física deixava o corpo faminto.
— Mesmo os deuses e espíritos não podem curar um estômago vazio — meditou Lagarto Sacerdote.
— Você está se esquecendo dos milagres Criar Água e Criar Comida — disse Sacerdotisa.
Não que eu já os tenha.
— Ho ho — gargalhou Lagarto Sacerdote apreciando. — Se eu mudasse de religião, as bênçãos disponíveis também mudariam, pelo que vejo.
— Verdade. Embora eu não ache que possa orar mais por hoje…
Por que os dois estavam no campo de treinamento? A resposta era o treino, combinado com o fornecimento de alguma cura.
Não eram apenas os aventureiros inexperientes que corriam riscos durante a prática. As pessoas que trabalhavam na construção da instalação provavelmente eram as que corriam maior perigo.
Batidas e arranhões, é claro, poderiam ser tratados com primeiros socorros simples, mas ossos quebrados poderiam afetar muito mais do que a obra. Recorrer aos deuses por um milagre de Cura Menor poderia fazer toda a diferença.
Por fim, os dois clérigos estabeleceram-se na periferia do campo para comer.
Sacerdotisa se sentou com os joelhos dobrados juntos e desfez o pacote que continha seu almoço. Era pão e queijo, junto com vinho diluído e vários pedaços de frutas secas.
— Ora — disse Lagarto Sacerdote, espiando as previsões dela de onde estava, sentado de pernas cruzadas. — Será o suficiente para você?
— Sim — respondeu Sacerdotisa. Não se tratava de uma dieta balanceada; apenas tendia a não comer muito. — Eu, ahem… — Ela desviou o olhar do dele, suas bochechas ficando um pouco vermelhas. — Parece que ganhei alguns quilos desde que me tornei uma aventureira.
Lagarto Sacerdote abriu suas enormes mandíbulas e gargalhou.
— Ha ha ha ha ha ha! Não se preocupe! Isso com certeza se deve aos seus músculos.
— Acho que pode ser por haver tantas coisas boas para se comer nesta cidade…
— Eu penso, criança, que um pouco mais de carne em seus ossos faria bem. Você está muito magra.
— A Sacerdotisa Chefe me disse a mesma coisa…
Em certa idade, talvez até as moças do clero se preocupassem com essas coisas. E ter mulheres tão atraentes, como Vaqueira, Garota da Guilda e Bruxa ao redor provavelmente não ajudava.
Sacerdotisa soltou um suspiro curto e logo ofereceu uma prece de agradecimento por sua comida à Mãe Terra.
Lagarto Sacerdote, por sua vez, fez um de seus estranhos gestos de juntar as palmas das mãos e abriu uma bolsa feita de pele animal.
— Ah — disse Sacerdotisa. Arregalou um pouco os olhos, e então sorriu gentilmente. — Um sanduíche, hein?
— Heh heh heh heh heh.
Lagarto Sacerdote fez uma expressão que talvez fosse um sorriso de orelha a orelha, então revirou os olhos e, triunfante, ergueu seu sanduíche. Consistia de um pedaço grosso de pão com manteiga passada, cheio de fatias de carne grelhada.
O que realmente chamou a sua atenção, entretanto, foi o queijo, era tanto que ameaçava ser mais do que o pão poderia conter. Chegou a quase esconder toda a carne; o queijo era obviamente a estrela maior. Era o completo oposto de um sanduíche normal, no qual a carne seria o principal componente e o queijo um simples complemento.
— Os ingredientes favoritos de alguém, organizados como alguém deseja. Esta é a verdadeira liberdade. — Ele parecia tão feliz quanto um marisco, e Sacerdotisa não conteve o sorriso.
— Não posso dizer que não entendo…
— Mm. Se comida é de fato cultura, seria necessária uma civilização verdadeiramente iluminada para produzir isso. — Enquanto falava, Lagarto Sacerdote engoliu seu sanduíche. Metade dele sumiu em uma mordida; dois nhacs depois, desapareceu. — Ahh, néctar! Delícia!
— Heh heh. Você realmente gosta de queijo, não é?
— De fato. Fico grato por ter me aventurado no mundo humano.
Smack, smack. Seu rabo bateu no chão em uma demonstração de bom humor.
Sacerdotisa seguiu esse movimento.
Ela abriu a própria boca, muito menos larga que a de Lagarto Sacerdote, e começou a mordiscar pedaços de pão. Enquanto mastigava, um sabor de noz invadiu sua boca. O qual foi acompanhado por um gole de vinho de uva.
— Que tipo de comida você comia em sua casa? — perguntou Sacerdotisa.
— Éramos guerreiros e caçadores, sabe. Comíamos pássaros ou animais que pegávamos. — Tendo terminado o seu primeiro sanduíche, Lagarto Sacerdote partiu para o segundo. — Os guerreiros mais jovens comiam com os de sua idade, e os mais experientes com sua própria coorte. E os superiores com os superiores. — Segurando o sanduíche com uma das mãos, bateu com a outra na grama. — Comíamos no solo ou no chão, bem assim.
— Vocês não comiam todos juntos?
— Se um rei ou general aparecesse entre os soldados comuns, como poderiam relaxar?
— Entendo.
— Banquetes, porém, eram diferentes. Quando conquistávamos uma vitória nas batalhas, as fogueiras eram acesas em praça pública e todos se sentavam juntos.
Em sua mente, Sacerdotisa descobriu que podia imaginar a cena de uma terra na qual jamais estivera. Uma enorme multidão de homens-lagarto se reunia ao pé de uma grande árvore de floresta tropical, erguendo suas taças e bebendo seu vinho, celebrando todos juntos.
Entre tudo isso, uma grande besta era assada no espeto, bravos guerreiros cortando pedaços de carne e erguendo suas vozes. Por alguma razão, um deles, em particular, estava alegremente comendo bocados de queijo… Mas isso devia ser só um detalhe da sua imaginação.
Se nada mais, então…
— Parece muito festivo.
— Eu poderia dizer isso — disse Lagarto Sacerdote com confiança. — Às vezes, também saíamos em busca de milho ou batata…
— Ooh. Batatas combinam bem com queijo, sabe.
— Oh ho! — Lagarto Sacerdote de repente se inclinou para a frente, seus olhos brilhando e suas mandíbulas abertas. Não era de se admirar que Sacerdotisa recuou um pouco, soltando um grito assustado. — Gostaria de ouvir mais sobre esse assunto!
— Er, bem, eu… nos tempos do Templo, costumava cozinhar…
Corte as batatas, misture com molho de leite, farinha e manteiga, cubra com queijo ralado e leve ao forno. O resultado era uma refeição rica para dias de festival de inverno ou qualquer tipo de celebração.
— Se reuniam todos no Grande Salão, oferecíamos nossas preces e depois comíamos juntos.
— Isso parece excelente…!
Tanto a receita quanto a refeição, queria ele dizer.
— Compartilhar uma refeição com os companheiros — proclamou Lagarto Sacerdote —, é aprofundar os laços com eles.
— Sim — concordou Sacerdotisa balançando a cabeça e sorrindo. Então pensou em algo e inclinou a cabeça em direção a ele. — Ah, se quiser, podemos cozinhar um pouco quando tivermos a oportunidade.
— Eu gostaria disso — respondeu Lagarto Sacerdote.
Foi então que uma voz alegre e animada chegou a seus ouvidos:
— Ei, parece que você tem algo bom para comer aí!
Sacerdotisa olhou em direção à voz. A primeira coisa que viu foi um par de pés descalços. Pequenos, mas musculosos, levavam a pernas cobertas por calças curtas e, depois, a uma camisa leve. Ela estava com calor e suando, abanando a gola para fazer o ar correr. Era Lutadora Rhea.
— Um sanduíche? Sorte sua! Posso dar uma mordida?
Com um grunhido, Lagarto Sacerdote jogou o resto da comida boca adentro, balançando o rabo de forma intimidante enquanto mastigava.
— Entre os ensinamentos que recebi, não estava a partilha dos alimentos.
— Aww…
Ela, entretanto, não parecia realmente desapontada, e Lagarto Sacerdote revirou os olhos.
— Bem, não é como se eu não tivesse trazido o meu próprio almoço! — disse. — Posso me juntar a vocês? — Ela riu abertamente e mostrou um pacote na mão. Estava embrulhado, com todo o cuidado, em um lenço vermelho, e era também bem grande.
Sacerdotisa, que estava mastigando alguns feijões doces secos, engoliu tudo e fez um ruído afirmativo, acenando com a cabeça.
— Ah, sim. Não me importo.
— Nem eu me incomodo.
— Então não se importem se eu fizer isso! — A garota rhea se jogou na grama ao lado dos dois, ocupada enquanto desembrulhava seu almoço. Era uma pilha de panquecas fofinhas, cozidas até ficarem dourado-amarronzadas, não muito diferente de pele de raposa. Cada uma delas era tão grande quanto a face de uma pessoa, e havia uma, duas, três, quatro – cinco! – delas.
Considerando o tamanho físico de um rhea, isso era equivalente a comida suficiente para alimentar um anão.
Ela pegou uma garrafa e abriu a rolha, derramando mel rico e grosso sobre as panquecas, então comeu.
Sacerdotisa se viu piscando.
— Você está com bastante apetite, não é?
— Comemos cinco ou seis vezes por dia! — Mas nem sempre conseguimos fazer todas as refeições durante uma aventura… A garota lambeu e limpou um dedo pegajoso e melado. — Por isso, tenho que comer, de uma só vez, o suficiente para não morrer de fome entre as refeições!
— Ha ha ha… — Sacerdotisa riu de um jeito evasivo. Ela tinha a nítida sensação de que a rhea teria comido a mesma quantidade, mesmo se pudesse fazer todas as suas refeições. — A propósito — disse —, você agora está sozinha, não está?
— Sim, estou. Então estava pensando em talvez caçar alguns ratos ou coisas do tipo.
Cuidar dos ratos gigantes nos esgotos era uma tarefa básica para os aventureiros iniciantes. Isso não significava que era um trabalho dos mais populares – as pessoas achavam que não era aventura o suficiente. Ninguém se tornava aventureiro só para lutar contra roedores superdesenvolvidos. Queriam lutar contra monstros terríveis, desbravar masmorras e obter itens de baús do tesouro. Era disso que se tratavam as aventuras.
Mas não era fácil fazer essas coisas sozinho.
— Além disso, lá está cheio de guerreiros novatos. — Sem grupo para mim.
Ela riu.
Por melhor que fosse unir forças com algumas pessoas com as quais se dava bem e sair para se aventurar, da mesma forma, ficar sozinho poderia ser doloroso.
Se não fosse por Matador de Goblins…
O que teria acontecido com ela?
Era isso que estava na mente de Sacerdotisa.
Isso era algo estranho. Se aquelas três pessoas não a tivessem chamado naquele dia, onde estaria?
Se não tivesse ido naquela aventura, não estaria onde estava.
Foi tudo graças àquela aventura e de todas as lutas que seguiram depois, acumulando-se dia após dia. As mínimas decisões que tomou, no calor do momento, produziram esse exato instante.
— Um… — O pensamento fez com que as palavras saíssem de sua boca quase que por vontade própria. — Se você quiser, por que não… tenta se aventurar conosco?
— Aventurar-se? — A rhea olhou para eles, um pouco perplexa. — E quanto ao seu amigo armadurado, Matador de Goblins, ou quem quer que seja? Acho que não o vi hoje…
— Ah, hmm…
— Acontece que — disse Lagarto Sacerdote, inclinando-se para frente e pegando o fio da momentaneamente inarticulada Sacerdotisa —, para avançar entre as classificações, ela deve demonstrar suas habilidades e, assim sendo, está procurando parceiros de aventura temporários. — Enquanto falava, ele mastigou e engoliu outro sanduíche ao fazer barulho.
— Provavelmente estaríamos juntos em apenas uma missão… — disse Sacerdotisa, desculpando-se.
— Hmm. — Lutadora Rhea cruzou os braços e olhou para longe.
Aventureiros iniciantes eram às vezes chamados de “ralé” e, nesse grupo, guerreiros humanos e anões estavam aos montes. Muitos deles eram fortes e sólidos, seja por terem treinado muito ou por nascerem assim.
— Só avisando, não sou nada demais — disse Lutadora Rhea com um breve sorriso. Sim, ela treinava, mas levantou um dos braços para demonstrar que ainda era menor que o de um humano ou anão. — Digo, sou uma rhea. Não tenho o melhor dos equipamentos. E sou só uma guerreira.
De armadura de couro. Uma espada e escudo. Equipamento decente, mas definitivamente pouco.
À luz de suas habilidades, força e equipamento, estavam provavelmente muitos guerreiros melhores do que ela.
— Vocês têm certeza disso?
— Ah, mas — disse Lagarto Sacerdote, balançando a cabeça sombriamente —, você tem sorte.
— Sorte…?
— Chamam isso de uma relação de convívio com o destino. Não?
— Com certeza! — concordou Sacerdotisa com Lagarto Sacerdote, quase que de imediato. Ela estufou seu pouco peito da melhor forma que pôde. — Tipo, você não nos perguntou sobre nossas poções? É por isso que…!
Por isso que te convidei.
— Hein, então você lembra daquilo? — disse Lutadora Rhea e acenou com a cabeça. — Bem, então tá bom, tudo bem… Mas devo dizer que vai ser um pouco difíííícil só para eu e você. — Então… cerrou os punhos e os ergueu bem alto. — Vamos convidar mais algumas pessoas! Pode deixar comigo… tenho umas ótimas ideias!
— Ah, eu também vou!
Assim que a ideia alcançou sua cabeça, Lutadora Rhea moveu-se surpreendentemente rápido. Ela estava correndo como uma lebre; Sacerdotisa se levantou tarde demais para segui-la.
Enquanto a garota saiu correndo, Sacerdotisa girou e fez uma profunda reverência a Lagarto Sacerdote.
Ela entendeu perfeitamente o que o clérigo naga havia arquitetado em seu nome.
Já fazia um ano desde que os quatro formaram um grupo.
Lagarto Sacerdote lhe deu um aceno encorajador, como se dissesse “Não se preocupe com isso” e ela voltou a acenar para ele.
— Eeeeei, vamos lá! Todo mundo vai voltar a treinar assim que tiver terminado de comer!
— Certo! Claro! Sinto muito, e obrigada…!
— Yaaah! — Bem à frente de Sacerdotisa, Lutadora Rhea estava dando um chute no garoto ruivo.
Quando Sacerdotisa a alcançou, ela se curvou várias vezes e explicou o que estava acontecendo. Anão Xamã riu fazendo barulho. Nesse intervalo, Lutadora Rhea avistou seus próximos alvos e saiu correndo em direção a Guerreiro Novato e Clériga Aprendiz.
Esta última estava argumentando que estavam bem no meio do almoço, até que Sacerdotisa apareceu com Garoto Feiticeiro a reboque, mais uma vez se curvando e se desculpando.
— Ahh, sorte é uma virtude, e virtude é sorte — disse Lagarto Sacerdote, feliz enquanto comia e observava o que acontecia.
Afinal, estavam juntos há um ano. Ele conhecia bem a personalidade da garota, sua bondade de coração.
Então, bem. Sua mente trabalhou enquanto terminava o seu último sanduíche. E quanto à virtude de milorde Matador de Goblins, o estranho fanático no coração de nosso grupo?
Chirp, chirp. Chirp, chirp, chirp, chirp.
Vaqueira despertou das profundezas de seu sono com o canto do canário.
— Hrn… Hmm? Hmm?
Esfregou os olhos e piscou várias vezes. Então se espreguiçou bastante e percebeu que estava sentada em uma cadeira da sala de jantar. Devia ter ficado na mesa após ter em algum momento adormecido.
O sol já estava bem posto, deixando o interior do cômodo escuro; a única luz era o brilho tênue das luas gêmeas.
Sobre a mesa estava uma xícara de chá preto, que esfriou por completo.
Devia ter adormecido esperando por ele.
— Hmm… Pelo menos não estou com a pele marcada — disse, massageando suas bochechas dormentes. Ao fazer isso, um cobertor caiu de seus ombros.
Seu tio devia ter colocado ali. Embora fosse começo da primavera, as noites continuavam frias. Vaqueira o pegou e dobrou.
— Terei que agradecer…
Enquanto fazia isso, o canário continuou ruidosamente piando, batendo as asas em sua gaiola. Vaqueira logo acendeu uma vela, colocando-a em um castiçal e caminhando até a gaiola.
— E aí? Está com frio? Ou será que é fome?
O tom que adotou, como se estivesse falando com uma criancinha, era provavelmente natural. Ela se inclinou para a frente, olhando para dentro da gaiola; o canário inclinou a cabeça e olhou para trás.
Podia ver apenas a sua própria silhueta em suas roupas de dormir, oscilando no reflexo da janela.
Talvez devesse dormir na cama.
O pensamento fazia sentido, mas ela não tinha vontade.
Talvez devesse começar a ir com ele…
Foi até a janela, apoiou o queixo na mão e suspirou.
Não, impossível. Uma fantasia que falhou em todos os pontos.
Ela era bem musculosa, verdade – por mais que odiasse admitir, seu corpo era mais bem construído que o da maioria das garotas de sua idade. Mas, ainda assim, isso não significava que seria capaz de usar uma arma ou enfrentar monstros.
Acima de tudo, porém, se começasse a também ir a esses lugares, ele talvez simplesmente deixasse de voltar para casa…
— Nossa, não seja egoísta logo agora… — Vaqueira não resistiu e riu.
Foi então que aconteceu: com barulho e ruído, a porta foi aberta. O ar noturno entrou, junto com um cheiro estranho. Um cheiro de ferro. Lama, suor e poeira, junto com sangue.
Mesmo sem olhar, Vaqueira logo soube: era o cheiro dele.
— Bem-vindo de volta!
— Estou de volta…
A resposta à sua voz gentil foi tranquila, desapaixonada e direta.
Ele fechou a porta atrás de si assim que entrou, tentando de tudo para ficar quieto, mas o barulho ainda era meio alto. Vaqueira se virou, sorrindo suavemente, e seu capacete tremeu incerto.
— Você ficou esse tempo todo acordada?
— Nah. Acabei de acordar.
— Eu te acordei?
— Não, não. Não se preocupe com isso. Alguém me levantou no momento certo. — Ela apontou para a gaiola e acrescentou: — Né, amiguinho? — ao que o canário respondeu: Chirp! — Este pássaro é realmente incrível. Ele sabia que você estava chegando antes mesmo de entrar.
— Hmm — resmungou ele baixinho, puxando uma cadeira e sentando-se. Vaqueira pensou que poderia tirar de lado ao menos suas armas e armadura, mas não disse nada. Então se afastou da janela, pegando um avental que estava pendurado na cozinha e o jogando sobre a camisola.
— Jantar? — perguntou, olhando por cima do ombro, em direção dele, enquanto amarrava o cordão do avental por trás.
— Vejamos — respondeu, e então: — Sim, por favor. — Por fim, acrescentou ele, bem baixinho: — Qualquer coisa está boa.
— O guisado já está pronto.
Depois de um momento de pausa…
— É mesmo…? — respondeu com um aceno previsível.
Demorou para reacender o fogo do forno e esquentar o guisado.
— Ah, se quiser pode limpar um pouco a sua armadura.
— É mesmo?
— Sim. Tem uma toalha de mão bem ali, pode usar.
— Ah.
Ele obedientemente começou a limpar a sujeira em seu capacete e armadura, embora seus movimentos fossem bastante ásperos. Claro, essas não eram manchas que sairiam após esfregar um pouco, mas foi o suficiente para deixar Vaqueira satisfeita.
Quando ela colocou o guisado diante dele, ele começou a jogá-lo pela viseira, igual um homem faminto.
Já era primavera e não havia necessidade de alimentos tão quentes, mas ela continuava fazendo guisado. Sim, muito simples.
— O tempo todo esses dias, hein?
Ela sentou diante dele, apoiando a cabeça com as mãos nas duas bochechas.
— O que?
— Você sai. — Vaqueira pegou um guardanapo e se inclinou sobre a mesa, enxugando um pouco de guisado do capacete dele. — É por causa daqueles goblins… ou, bem, acho que agora também tem aquela área de treinamento.
— Sim.
— Anda ocupado?
— Não… — respondeu Matador de Goblins que, após pensar por um momento, inclinou o capacete, como se não tivesse certeza. — Acho…
Hmmm. Vaqueira recostou-se na cadeira, o queixo agora na mão, e o observou. Claro, não conseguia ver a cor de seus olhos, que estavam escondidos por trás do visor.
— Eu sabia — disse, rindo um pouco, vindo do fundo de sua garganta. — Você não quer que construam algo lá, quer?
Na mosca. A colher dele parou a meio caminho de sua boca.
— Não é… exatamente que eu não queira que o façam.
Hrrrm. Ela tentou agir como se estivesse pensando.
A linguagem corporal dele não mudou nada desde quando eram mais jovens. Quando chateado, ele sempre lutava para esconder isso.
— Isso dá um sentimento de solidão, não é?
— …
— E você está preocupado com aquela garota, não é?
— …
— Está preocupado, mas não consegue pensar em uma boa forma de ajudá-la.
— …
— E, enquanto isso, os goblins continuarão com seus truques…
— …
— Você fica ansioso quando não está fazendo nada.
Ele soltou a colher da mão, ainda em silêncio. Então soltou um suspiro profundo e por fim falou:
— Você me conhece bem…
— E como. Faz quatro anos que estamos juntos. — Ela, finalmente, não conseguiu mais conter o riso e piscou.
De dentro do capacete, o olhar dele estava fixo nela. Isso fez com que Vaqueira se endireitasse na cadeira.
— Não pensa nada sobre isso?
A pergunta foi das breves, mas ela provavelmente era a única que conseguia entender no que ele pensava quando aquilo aconteceu. Na verdade, não tinha certeza nem se ela mesma entendia.
Seu tio, entretanto, não morava naquela aldeia. Os únicos restantes eram ele – e ela.
— Não estou… dizendo que isso nunca me incomoda.
— …
— Eu lembro… de mergulhar no lago e muitas outras coisas. — Relembrou ela.
As vozes de seus pais, sua casinha de tijolos.
O calor amigável da parede de pedra banhada pelo sol.
O vento em seu rosto enquanto corria ao longo do caminho pela aldeia. O som das enxadas e arados dos adultos enquanto trabalhavam nos campos.
O rangido do balde mal pregado ao sair do poço, cheio de água fria.
Aquela arvorezinha que ficava no topo da colina, e como seu coração batia forte quando escondia algum tesouro na sua cavidade.
Eram essas as sensações que tinha enquanto assistiam ao pôr do sol vermelho brilhante se espalhando do outro lado do horizonte para o mundo inteiro.
Como a grama fazia cócegas em suas costas assim que deitava na planície, olhando para as duas luas até tarde da noite.
A dor do tapa que seu pai lhe deu, zangado com ela por voltar tão tarde para casa. A solidão do sótão onde se trancava com raiva.
Como cheirava o café da manhã caseiro de sua mãe, o cheiro que flutuava até depois de cochilar no andar de cima.
Lembrava de tudo.
Era um mundo que já não existia em qualquer lugar, exceto em seu coração, e no dele.
— Mas comecei a pensar, talvez seja só o que foi. — Vaqueira sorriu, fraca. — É assim que tudo acaba, certo? O mundo continua girando, nós continuamos vivendo. O vento continua soprando e o sol continua nascendo e se pondo.
Fwip, fwip. Ela usou o dedo indicador para fazer círculos no ar.
Já fazia muito tempo desde aquele dia, mas não fazia tanto tempo.
Dez, onze anos. Tempo suficiente para uma criança crescer. Para a aparência de um lugar mudar. E cidades também, e pessoas e todo o mais.
Tudo no mundo continuava, mudava, nunca descansava. Até mesmo pensamentos e memórias.
Houve algo que não mudou? Talvez a mudança em si tenha sido a única coisa que não mudou.
Não tenho nem certeza se a mudança é boa ou ruim.
— Isso tudo acaba significando que precisamos aceitar a mudança.
— É mesmo…?
— Sim, é mesmo. — Vaqueira acenou com a cabeça, parecia querer enfatizar o seu próprio ponto. — Tenho certeza disso.
— Entendo.
Isso foi tudo o que ele disse; então ficou em silêncio.
Muitas coisas aconteceram, pensou.
Um ano – fazia um ano desde que partiu naquela aventura para salvar aquela garota sacerdotisa ou, mais precisamente, para matar goblins.
Conheceu Alta Elfa Arqueira, Anão Xamã e Lagarto Sacerdote. Lutou contra aquele monstro cujo nome jamais conseguia lembrar.
Lutou contra um exército de goblins que atacou a fazenda. Lanceiro, Guerreiro de Armadura Pesada e muitos outros ajudaram em sua vitória.
Depois, os goblins que apareceram nos esgotos abaixo da cidade da água. A luta com o campeão. Donzela da Espada.
O festival de outono era outra ocasião que lhe mostrou quantos amigos havia feito.
E no inverno, foram para a montanha nevada e lutaram contra o goblin paladino.
Havia uma diferença inconfundível entre seu eu anterior e seu novo modo de ser. Caso contrário, teria pensado em cuidar daquele garoto?
O caminho da vida era cheio de encruzilhadas e bifurcações. Poderia, agora, escolher qualquer direção que quisesse.
— …
Ainda assim.
Ainda, assim…
E eu ainda a teria, se não tivesse morrido depois que um goblin a esfaqueou com uma lâmina envenenada!!
— Ainda não é possível… — murmurou ele, Matador de Goblins, bem baixinho.
— Mm… — disse Vaqueira. Ela balançou a cabeça, parecendo triste. — Entendo…
— Não tenho provas, mas acho que os goblins voltaram a se mover. — Matador de Goblins escolheu as palavras com cuidado, pensando muito enquanto falava.
Os goblins roubaram ferramentas de construção. Estavam impunemente aparecendo por perto do campo de treinamento.
Estavam apenas interessados no incomum espetáculo da área de treinamento sendo construída?
Impossível.
Era um aviso, um sinal.
O pensamento poderia parecer alarmante, mas, em sua mente, essas coisas estavam conectadas.
Não estava claro se era obra do destino ou do acaso.
A única coisa da qual tinha certeza era de que teria que lutar contra os goblins.
— É por isso que acredito que devo fazer isso.
— Sim. Sim… Eu sei.
Seus olhares se encontraram. O olhar de Vaqueira vacilou de ansiedade. O dele, de dentro do capacete, nunca vacilou.
A garganta dela apertou. O que deveria dizer e como deveria dizer? Por várias vezes, abriu e voltou a fechar a boca.
— Estarei… esperando por você, tá?
— Sim.
Matador de Goblins então levantou-se de sua cadeira. Deixou sua tigela vazia sobre a mesa.
Ela ouviu a porta fechar, e então voltou a ficar sozinha na cozinha.
Vaqueira desviou o rosto da instável luz de velas, segurando a cabeça como se quisesse abraçar a si mesma, mas, em vez disso, voltou a deitar-se sobre a mesa.
O suave chilrear do canário não lhe dava conforto.
Nos três dias seguintes, nada aconteceu.
Os aventureiros gastaram seu tempo em aventuras, treinando ou aprofundando amizades.
Com certeza foi um momento significativo, sem dúvidas.
O fluxo do tempo não poderia ser mais revertido do que a correnteza de um rio.
Mesmo os próprios deuses não podem voltar atrás no lançar dos dados.
Por isso era certo que goblins apareceriam. Destino? Ou acaso?
Aconteceu três dias depois – no crepúsculo.