Youjo Senki – Volume 1 – Capítulo 1 - Anime Center BR

Youjo Senki – Volume 1 – Capítulo 1

Parte 1

JUNHO, ANO UNIFICADO DE 1923, TERCEIRA LINHA DE PATRULHA, FRONTE NORDEN, DISTRITO MILITAR SETENTRIONAL.

Por que eu estou aqui lutando no meio de uma guerra? Meu eu consciente, atribuído à identidade da Segunda-Tenente Feiticeira Tanya Degurechaff, faz a questão novamente, enquanto eu aperto um orbe em minhas pequenas mãos, deixo o rifle que uso de cetro no chão e voo para o céu.

Como acabei assim?

— Fairy 08 para Controle Norden. Fairy 08 para Controle Norden. Câmbio.

Um único ponto se destaca nos sombrios e nublados céus de Norden. Este pontinho, que se funde com as nuvens, não é outro senão um dos poderosos oficiais feiticeiros aéreos do Império. Devido a uma reviravolta do destino, se eu me olho, estou amaldiçoada a ver uma garotinha participando da guerra. O uniforme e o orbe operacional são a prova de que sou um soldado. Através de meios científicos, a espécie de joia que carrego é capaz de controlar os fenômenos sobrenaturais conhecidos como “fórmulas”, e permite que os feiticeiros exerçam influência sobre o mundo conforme sua vontade. Como está implícito no nome moderno dos antigos orbes, uma cortesia da ciência e da magia, esse fruto da engenharia mágica serve para desvendar os valores numéricos do mundo.

Minha missão é atuar como uma observadora de artilharia a partir de um espaço aéreo predeterminado, mantendo uma velocidade terrestre confortável e uma altitude de um quilômetro e oitocentos metros.

— Fairy 08, Controle Norden na escuta. Nenhum problema com sua localização. Câmbio.

Essa vai ser moleza. É apenas uma missão de apoio aéreo na fronteira entre o Império e a Aliança Entente. Mas esta feiticeira vigilante de observação, mantendo sua fórmula de voo com o círculo computacional em volta do pescoço, deve parecer incrivelmente pequena.

E eu  sou minúscula. Isso faz com que as pessoas se perguntem se já cheguei aos dez anos. Além disso, ainda tenho uma estatura pequena, mesmo para uma garota. Comparar o físico atual com o da minha vida anterior chega ser deprimente. Foi uma desgraça descobrir que o meu pescoço era estreito demais para usar o headset de aviação com laringofone¹ da devida maneira.

— Fairy 08, entendido. Alcancei o espaço aéreo da missão — respondi. Já estou conformada com a voz saindo à força de minha boca, mas o tom agudo me faz sentir como se algo estivesse me assombrando. Não importa o quanto esteja acostumada a ouvir isso, não aguento mais. Sempre que minha língua não consegue acompanhar minha mente acabo quase mordendo ela ou gaguejando, isso é tão humilhante.

— Controle Norden, afirmativo. Prossiga para sua missão atribuída.

Realmente temos que dar o braço a torcer por esse exército que parece não demonstrar apreensão alguma, mesmo depois de escutar esse problema vergonhoso na minha fala… Talvez seja apenas uma questão de pragmatismo, mas os militares adotaram a posição de que a aptidão de uma pessoa para as artes mágicas pode ser uma condição mais que suficiente para o alistamento militar, já que os feiticeiros se concentram no combate aéreo. No Império, onde isso foi tomado como conclusão lógica, os requisitos de idade para os feiticeiros viraram coisa do passado. Por isso que o exército não tem nenhum problema ao empregar alguém que pareça novo o bastante para ainda estar sob a guarda de um adulto, mesmo que seja para servir apenas como observador de artilharia.

— Fairy 08, entendido. A área está limpa. Repito, a área está limpa.

— Controle Norden, recebido. Há um batalhão de infantaria designado à sua área de observação. Código de chamada Golias 07. Salvo novas ordens do controle do espaço aéreo, continue a executar suas tarefas de observação até que a área esteja pacificada. Câmbio desligo.

As demandas da posição geopolítica do Império desempenharam um papel importante nesse método de aquisição de recursos humanos. Cercado por potências mundiais, devido às circunstâncias históricas, o estado foi forçado a enfrentar inimigos em potencial que estavam de todos os lados. Assegurar a força militar necessária para a defesa nacional de seu território é uma questão de urgência máxima. Para resolver o problema, os esforços incessantes do Estado-Maior² chegaram ao ponto em que passaram a explorar qualquer pessoa ao alcance.

— Fairy 08, Batalhão Provisório do Corpo de Artilharia, código de chamada Golias 07, na escuta. Copiou?

Ao que parece, o exército não parece ligar em jogar uma garotinha na fronteira de uma patrulha área, desde que seja útil. Sou literalmente uma criança soldado.

— Golias 07, Fairy 08 na escuta. Recebido e operante. Confirmei o avanço da infantaria inimiga. Enviando os dados agora. Reconhecimento. — Aposto que a visão de uma jovem voando pelo ar, com sua voz adorável se restringindo a um relatório, deve parecer bem surreal. No final, supõe-se que um exército adequado deve ser composto também por soldados adultos adequados. Isso é apenas bom senso.

Mas isso não é só um sinal estático… ouvir vozes de mulheres e crianças no microfone acabou se transformando algo normal para feiticeiros. As forças armadas têm uma exceção prática para quase tudo. Mais do que qualquer outra coisa, os dias difíceis de serviço esgotam as pessoas decentes, de modo que qualquer desconforto inicial em permitir que uma garotinha participe do combate já se esgotou há tempos.

— Golias 07, entendido… Iniciando fogo de calibração.

É por isso que a feiticeira aérea alistada como Segunda-Tenente Tanya Degurechaff está servindo como observadora de artilharia durante esta batalha na região setentrional de Norden, entregando relatórios periódicos e calmos através de um aparelho de rádio quase tão grande quanto ela. Sinceramente, não é como se eu não questionasse ou duvidasse do que estou fazendo, voando nesse fim de mundo.

— Impacto confirmado… Parece um golpe certeiro. Parece que está dentro da margem de erro permitida de dez metros. Disparos de efeito.

— Golias 07, recebido. Começando a missão de supressão agora.

Enquanto meus olhos azuis fitam tudo com atenção, não há como negar o brilho de frustração dentro deles. Por que eu renasci neste mundo, no sexo oposto e durante uma guerra?

As coisas mais irritantes são as mudanças físicas. O corpo de uma criança é terrivelmente inconveniente. No início, embora as meninas se desenvolvam mais rápido que os meninos, a diferença de tamanho era grande demais para poder manobrar meu corpo com o mesmo equilíbrio em que confiei por anos. Além disso, em diversas ocasiões, senti na pele como é péssimo ser uma criança franzina desde que me juntei ao exército.

Não pude segurar sequer uma arma. Era grande demais. No fim, não consegui mirar em nada, e o coice acabou machucando meu ombro. Quando treinava, havia um traço de pena no rosto de meu colega sempre que ele me derrubava.

Até que pudesse ver o mundo como três vetores numéricos com o orbe operacional e pegar o jeito de sobrepor o reino dos números com fórmulas mágicas de interferência, tive que rastejar sobre a barriga com braços e pernas que se recusavam a me obedecer. Porque dependiam de cérebros, não de músculos, as artes mágicas foram a única área em que eu consegui sucesso, mesmo que apenas um pouco. As limitações do meu corpo não me incomodavam, e eu podia voar pelo céu enquanto sobrepusesse o mundo às fórmulas.

Talvez, por causa da sua utilidade como ferramenta, eu tenha superado todas as dúvidas que poderia ter sobre magia. Mas por que deveria usar uma ferramenta apenas por tê-la?

Ah, entendi. É essencial que possamos usar um MBI³ quando o momento exigir. É por isso que existe a necessidade de tomar providências para manutenção, exercícios e operações. Dito isto, existe alguma razão pela qual precisamos ter MBIs? Seguindo o mesmo raciocínio, as conversinhas sobre relações aparentemente tensas com as nações vizinhas já não são novidade.

O Império e a Aliança Entente disputam já faz algum tempo, sempre em conflitos fronteiriços não-oficiais. Mas na área da política internacional, pelo menos, não há, em tese, qualquer disputa sobre esse território.

O problema não é reconhecido por o Império ser uma potência incrível. No que diz respeito a Tanya, é algo bem simples, como na época da União Soviética que as suas nações vizinhas evitavam disputas fronteiriças com ela a qualquer custo.

No entanto… agora o mesmo não pode ser dito do Império.

Vários acidentes isolados ocorreram ao longo da fronteira. Houve fogo “não-intencional” de ambos os lados, que deu origem a tiroteios por conta de mal-entendidos. Todos os incidentes foram resolvidos entre os oficiais de comando locais, mas não há como negar a tensão crescente.

Em circunstâncias normais, se o Império entrasse em um estado de “quase guerra” neste momento, a posição de Tanya permitiria que ela retornasse ao escalão da retaguarda e servisse em posição de não-combatente. Afinal de contas, a Suboficial Tanya Degurechaff foi cadete na Academia Militar até o início das hostilidades. Um novato só iria atrapalhar na vanguarda, então seria normal que ela servisse em algum lugar da retaguarda, como no Arsenal Técnico ou no Comando Logístico, visto que o Império começou a fazer seus preparativos em antecipação à guerra.

Porém, apesar do estado inquietante dos assuntos mundiais, os superiores otimistas de Tanya decidiram que tudo seria resolvido com uma diplomacia de risco. Graças a eles, ela acabou presa com a finalização de seu treinamento de campo. As patrulhas de voo das quais participou, em coordenação com o exército, destinavam-se apenas a servir como extensão da educação recebida na academia. Tendo perdido a oportunidade de se retirar para a retaguarda, foi oficialmente comissionada como segunda-tenente e enviada para completar seu treino. Também lhe foi atribuído o código de chamada Fairy 08. Claro, as pessoas obviamente a compararam com uma fada. Com base apenas nas aparências externas, não passa de uma criança insignificante — sério — uma criança jovem demais. Além disso, seus olhos azuis parecem refletir uma vontade forte e o cabelo loiro cortado curto e amarrado para trás a faz parecer difícil de controlar. E considerando sua pele pálida e clara, seu código de chamada começou a parecer apropriado.

O problema começou logo depois de Tanya assumir seu novo posto no campo com o exército fronteiriço. A unidade administrativa era composta de gente que recebeu uma promoção direta na escola de treinamento de oficiais feiticeiros e pessoas realocadas. Como uma nova transferência, ela foi forçada a aceitar ordens para ficar a postos por quarenta e oito horas. Supondo-se que fosse um exercício de treinamento tradicional concebido pelos superiores para testar suas capacidades de lidar com as coisas e manter o estado de alerta, Tanya se vestiu relutante e assumiu o cargo vinte e quatro horas atrás.

Então os alertas de emergência vieram voando das posições dos postos de segurança espalhados ao longo da fronteira, o timing foi tão incrível que com certeza fez até o Diabo sorrir. Pelo que parecia, surgiram sinais de que a Aliança Entente estava planejando realizar uma operação transfronteiriça de larga escala.

A sua nova orientação política já era um motivo de preocupação. A redistribuição de executivos, resultante de uma mudança administrativa, e o consequente aumento do nacionalismo exigiram uma mudança de doutrina bem dramática. Honestamente, a operação da Aliança Entente foi realizada com um planejamento tão ridículo e desprezível que não apenas Tanya, como todos do Exército Imperial ficaram curiosos. Por que justo agora? Antes que percebessem, a Aliança estava enviando vários avisos exigindo a retirada dos imperiais — uma declaração de guerra.

Em outras palavras, a Aliança Entente insistiu: “Os soldados imperiais devem se retirar do território de nossa nação dentro de vinte e quatro horas.” Talvez um simples funcionário de alguma empresa fosse incapaz de compreender a razão para isso, mas provavelmente a suposição fosse de que o Império deveria evitar o engajamento militar completo, visto que os conflitos regionais eram sensíveis ao extremo no lado político.

Se a Aliança não pudesse encarar a realidade, é possível que seria esquecida na história por todos os motivos errados. Eles são estúpidos? Algumas pessoas podem ter pensado. Talvez tenham planejado algo genial que os levará à vitória?

Apesar de não conseguir compreender o programa ou objetivo da Aliança Entente de Legadônia, o Império, porém, fez manobras burocráticas bem apuradas e suas organizações militares seguiram de acordo com o protocolo. Eles agiram conforme as regras e fizeram preparativos para interceptar as forças inimigas. Como uma engrenagem para seu país, Tanya não teve escolha a não ser trabalhar de forma proporcional ao seu salário. É certo que, neste ponto, ela previu, com otimismo, que tudo não passava de propaganda interna.

Afinal de contas, não havia maneira alguma de que a vizinha Federação iria querer que duas nações próximas entrassem em guerra. Todos esperavam que isto parasse a Aliança, seja por mediação ou intimidação. Além disso, o Reino Aliado e a República estavam apoiando a Aliança Entente. Decerto colocariam freios nesse avanço suicida, devido ao medo de que toda a ajuda fornecida fosse por água abaixo. Sim, a grande maioria dos oficiais e soldados estava certa a respeito do futuro. Afinal, o povo militar já era realista por natureza.

Não é preciso dizer, mas a Aliança não podia fazer nada diante do Império. Todo mundo estava certo de que uma ou outra nação iria acabar intervindo para arbitrar as coisas, então os políticos e diplomatas das duas nações com certeza começariam a espalhar algo.

Mas o cenário que era inimaginável — exceto, talvez, para a Aliança Entente — se tornou realidade e surpreendeu todos os humanos vivos no tempo atual.

— Desarmem-se e entreguem-se ao avanço do Exército da Aliança Entente ou partam imediatamente.

Do ponto de vista do senso comum, as exigências da Aliança Entente só poderiam ser descritas como “chocantes”; mesmo assim, o Império continuou monitorando toda a situação, incrédulo. Embora os relatos de que a Aliança havia cruzado a fronteira não fosse tão inesperados, era difícil para o Império ver como uma coisa do tipo poderia acontecer de verdade.

Parecia tão absurdo, que Lergen, um oficial do Estado-Maior do Exército Imperial, mais tarde expressou sua suspeita:

“Fomos tão incapazes de determinar o que a Aliança Entente esperava conseguir com isso, que fez mais sentido suspeitar que os nossos próprios líderes militares estavam tramando algo por trás das cortinas…”

Deixando as dúvidas e ambiguidade de lado, o pragmatismo do Exército Imperial respondeu de modo sóbrio, ordenando uma resposta imediata à principal operação transfronteiriça da Aliança Entente. Embora houvesse hesitação e confusão a respeito do programa da Aliança, uma vez que os sinais indicassem que um conflito potencial estava se formando, os militares começaram a acumular suprimentos para a preparação. Todas as divisões do Grande Exército que formavam o núcleo do poderio militar do Império foram então dispostas por via férrea desde a Central. O Exército Imperial mostrou tamanha eficiência que fez tudo sem qualquer incidente. Na verdade, tudo correu tão bem que foi internamente considerado como uma “vitória organizacional”.

Entretanto, embora o Império tenha adquirido um número considerável de suprimentos e chegado até a mobilizar tropas, um ceticismo parcial era sempre constante. Sério? Sem chances que fariam isso!

O Império era conhecido por seus armamentos superiores, mesmo entre as grandes potências mundiais. Em tempos de paz, seria implantada uma guarnição do tamanho de um corpo do exército na fronteira, sob o pretexto de estar seguindo com patrulhamento rotineiro. O corpo adicional reunido para atender o número mínimo de reservas, por precaução, incluía a unidade de Tanya. Com a guerra de informações em mente, o Império chegou a estender convites para grandes imprensas de vários países. Então, como de costume, os militares estavam preparados por completo, mas o “costume” era justo o que fazia todos pensarem: A Aliança Entente vai invadir mesmo?

Tanya nunca sonhou que a Aliança Entente iria, sem justificação alguma, lançar suas forças inferiores através da fronteira em uma ofensiva contra um titã militar, bem na frente da mídia.

Mas a verdade é mais bizarra que a ficção. Tanya naturalmente achou a mudança de acontecimentos muito desconcertante. Se pudesse ser direta, com certeza teria descrito isso como testemunhar o momento em que um desejo de morte toma uma forma concreta.

“É guerra! Gente, eu repito, é guerra! Uma guerra acabou de começar! O Império declarou guerra à Aliança Entente de Legadônia por violar a fronteira! Momentos atrás, o Exército da Aliança começou a invadir em vários locais! As tropas do Exército Imperial estão correndo em direção à fronteira para reagir! Recebemos relatos de que as batalhas já começaram em algumas regiões!”

Mas não havia como ignorar a visão das forças blindadas amigas e das demais tropas se posicionando com rapidez. Ao mesmo tempo, os correspondentes de guerra levantaram suas vozes para transmitir as últimas notícias para o mundo inteiro, tudo através de ondas de rádio.

Certamente… o Império só faria isso se tivesse confiança absoluta na vitória. Bem, dado o seu poderio nacional, nível de tecnologia e armamentos, escolher o próximo movimento visando a vitória foi algo óbvio.

Se jornalistas estivessem relatando desde os acontecimentos na fronteira até a declaração de guerra, significava que os militares estavam relaxados o bastante a respeito da situação para pensar em coisas como publicidade; espalhar propaganda sobre o justo e poderoso Império não iria deteriorar a situação política. Além disso, a Aliança Entente sendo a primeira a cruzar a fronteira, forneceu uma justificação legítima. E, ao admitir a presença da mídia de massa, estavam anunciando que essa era uma guerra que com certeza venceriam. Mesmo neste mundo alternativo, líderes nacionais que cogitariam permitir a cobertura livre dos jornalistas em batalhas perdidas não passavam de fantasia. O fato de as autoridades imperiais não terem nada a esconder, ou, pelo menos, terem pouco, era a prova de que tudo corria bem.

Todos esses fatores ajudaram a aliviar os nervos de Tanya. Para ser sincera, quando ouviu pela primeira vez que estava sendo enviada ao norte, para treinamento de campo, ela logo quis gritar: “Vão se danar!” para o estado militar que planejava fazer uma jovenzinha trabalhar na fronteira até seus ossos doerem. Queria amaldiçoar aquele Existência X por jogar uma pessoa boa e decente em um mundo caótico desses.

Mas Tanya está completamente satisfeita com o Império, que lhe apresentou uma oportunidade de subir entre as posições em um conflito unilateral como foi na Guerra do Golfo. A guerra já está ganha, e os soldados serão os vencedores. Sua missão é de apenas eliminar os inimigos, na segurança do céu em que se encontra, e ser promovida. Apesar da oportunidade ter vindo do nada, não é um mau negócio. Na verdade, melhor do que “não ser mau negócio”, Tanya foi presenteada com uma chance em um milhão. As missões de patrulha na fronteira são simples, porém perigosas, e mesmo se obtiver resultados, há uma tendência de os superiores afirmarem que suas conquistas são nulas graças a algo ridículo como “consideração política”. Por consequência, o serviço de patrulha no Território Disputado de Norden, tem uma reputação de “muita dor e nenhum ganho” dentro do Exército Imperial.

Não é fácil acumular conquistas ali, e para piorar as condições desfavoráveis, goste ou não, Tanya Degurechaff tem o físico de uma menininha de pele clara, olhos azuis e cabelo loiro. Além disso, uma olhada nos seus registros mostra que já é uma graduada na Academia Militar, próxima a se tornar uma feiticeira de elite. Se for selecionada para uma tarefa e falhar, uma situação de as Relações Públicas dizendo que o exército arruinou a mente de uma jovem com um futuro promissor era mais que certa. Deixando de lado suas capacidades e indo apenas por sua aparência externa, até Tanya se sente desestimulada por sua carinha de boneca. Se eu não fosse esta mesma garota, preferiria passar longe dela fora de minha função como soldado.

Essa perspectiva objetiva tem sido consistente desde que foi contratada pelo Exército Imperial. Antes, Tanya não tinha uma má reputação entre os instrutores, mas o fato de que suas contribuições de trabalho correspondem ao quanto é paga simplesmente não foi o suficiente para limpar a mancha de rumores sobre a “garotinha feiticeira”. A solução era produzir resultados bons, entretanto, por mais que quisesse fazer isso, a oportunidade nunca apareceu… Até agora.

Em suma, mesmo com Tanya sendo uma feiticeira, ninguém a reconhece como tal. Tratam-na como uma fedelha. De certa forma, é o mesmo que afirmar que ela é defeituosa. O que chega a ser insultante a maneira como nem sequer aparentam prestar atenção em sua carreira. Por ironia, o Império acabou dando a essa garota a possibilidade de servir numa situação em que seu exército dominava o campo de batalha com facilidade — um inesperado golpe de sorte justo em sua primeira batalha.

Parece que a guerra continuará por um tempo sob condições favoráveis. Se Tanya planeja continuar sobrevivendo, precisa usar esse tempo para ganhar status e influência. Também quero que ela consiga algumas conexões. Para tal, é imperativo que desempenhe um papel adequado nessa guerra previsível e acumule honrarias e condecorações.

Pensando nisso, inconscientemente, seus lábios rosados se curvam em um sorriso, enquanto reavalia a situação. Pode ser que isso não seja tão ruim afinal.

— Na verdade, não seria algo perfeito para minha carreira…? Acho que eu deveria considerar como um acordo e tanto. — Ninguém está por perto para ouvir seu sussurro egocêntrico. Mesmo se alguém estivesse voando nas proximidades, os ruídos da artilharia imperial teriam suprimido sua voz, sem contar o eco interminável dos projéteis atingindo a terra firme e explodindo. Se penso na cacofonia como uma visão privilegiada do Fuji Firepower⁴, porém com uma artilharia várias vezes maior, não é tão ruim assim.

— Fairy 08, Golias 07 na escuta. Solicitando resultados do disparo.

— Golias 07, Fairy 08 na escuta. Efeito positivo sobre o alvo. Repito, efeito positivo.

O trabalho de Tanya é simples. Ela só precisa observar com calma e reportar às baterias da artilharia. Voar com o aparelho de rádio pesado enquanto mantém a fórmula de voo não é fácil, mas o orbe operacional do Exército Imperial está à altura da tarefa. Devido à natureza controversa do Território Nordenho, muitas das tropas espalhadas pelo norte são transferências temporárias do Comando Central. No papel, Tanya está emprestada pela Central após ter concluído seu treinamento de campo.

Se ela levar seus serviços a sério, com certeza poderia voltar para a guarnição na Central em breve. Uma posição no escalão da retaguarda não seria apenas um sonho vazio. Uma vez que for escolhida como feiticeira oficial da retaguarda, há uma possibilidade distinta de que possa passar o resto da guerra aguardando por ordens de defender a capital. Dependendo de como olhar para isso, pode ser considerado como um ticket dourado para desenvolver uma carreira duradoura e promissora.

Tanya ficou amargurada quando soube da decisão de treinar nesse norte tedioso, porém perigoso, mas isso mostra que não há como dizer na vida quando um mal vem por bem. É um pouco tarde, mas eu provavelmente deveria enviar cartas de agradecimento aos meus instrutores, reportando minhas últimas informações o quanto antes. Tenho que construir boas conexões.

Já posso prever uma bela carreira. Mesmo em meio ao conflito, Tanya está animada enquanto dar assistência à artilharia no campo de batalha.

— Fairy 08 para Controle Norden. Copiou?

— Controle Norden. Alto e claro.

Os projeteis explodindo abaixo estão devastando de forma satisfatória a infantaria da Aliança Entente que cruzou a fronteira nacional. Não importa o quanto o terreno montanhoso de Norden seja acidentado, uma vez que a artilharia esteja totalmente implantada, os soldados avançando na fronteira se tornam nada além de alvos. Ainda mais se a disposição do solo deixar todos dispostos.

— Fairy 08, entendido. Inimigo sob fogo de supressão. Acredito que os neutralizamos. A infantaria inimiga está se dispersando.

Mantendo uma distância adequada, as excepcionais baterias de artilharia disparam contra alvos desprotegidos sob a orientação de um observador que fica em uma área onde os dados balísticos foram calculados antecipadamente. É impossível que a eliminação não seja efetuada. Lá embaixo, os enxames da infantaria, que uma vez esteve ordenada, são atacados com facilidade pelos obuseiros, enquanto começam a fugir em todas as direções. Ao passo que Tanya confirma a situação, usando um par de binóculos, torna-se claro que tudo já não passa de desperdício de munição.

— Controle Norden, recebido. Proceda à segunda linha de patrulha e oriente a supressão contra a infantaria primária do inimigo.

— Fairy 08, entendido. Continuarei com a missão de observação.

Sua troca impassível com o Controle é tão livre de ruídos que Tanya chega até a pensar, tranquila: Não esperava que os rádios funcionassem tão bem em reais condições de combate. O céu permanece nublado até onde seus olhos azuis podem ver, então não é como se o tempo impedisse a interferência do sinal inimigo. No entanto, o nível de ruído pode ser chamado de “quase imperceptível”. O sinal é tão limpo que é quase ridículo que ela esteja carregando um enorme aparelho de rádio nas costas, usado para evitar a má recepção devido a anormalidades magnéticas causadas por depósitos minerais em Norden. Tanya sobrevoa as tropas desordenadas da Aliança Entente e se sente genuinamente intrigada, conforme avança a fim de fixar sua vista nos restos perseverantes do exército inimigo.

Sério, o que a Aliança está tentando fazer? Se querem ser alvos vivos para descarte de munição, deveriam ter dito logo. Eu teria me oferecido como voluntária em vez de apenas observar, mas isso só se soubesse que a coisa seria tão fácil quanto caçar pássaros. Aqueles por trás dos bombardeios nessa batalha possuem escoltas e controle do ar, e, se isso não for o bastante, têm prioridades por abater os alvos mais suculentos. Estou com tanta inveja que mal aguento.

— Fairy 08 para Controle Norden. Avancei para a posição designada.

— Controle Norden, recebido. Transmitindo a situação para a artilharia. Continue observando pontos de impacto.

— Fairy 08, entendido. Permanecendo na observação de artilharia até que seja ordenado o contrário. Câmbio.

— Controle Norden, entendido.

 

NO MESMO DIA, ALIANÇA ENTENTE DE LEGADÔNIA, SOBRE O TERRITÓRIO NORDENHO.

 

Querido Deus, por quê? Como isso pode estar acontecendo? O Tenente-Coronel Anson Sue se viu perguntando aos céus, com o seu rosto grosseiro coberto de neve e contorcido pela angústia. No céu, ele estava familiarizado com seu trabalho como feiticeiro da Aliança Entente, mas os ecos do bombardeio da artilharia do Império soavam com vigor. A batalha que se desenrolava abaixo era completamente unilateral. Não, qualquer soldado sensato descreveria isso como um massacre, e não uma batalha. Tampouco era um avanço de veículos leves… A infantaria havia marchado em formação, como se estivesse fazendo um desfile pelas colinas, mantendo uma posição cuidadosamente arranjada.

— Isso não foi o que nos disseram! Esses desgraçados estão abrindo fogo!

— Socorro! Médico! Rápido! Não tem ninguém?!

— Para trás! Retirada! Criem uma cortina de fumaça!

— Meu braço! Eu perdi meu braço!

— Ainda não temos suporte aéreo…!

— Comando! Comando, o que está havendo?! Qual é a situação?!

A “fronteira”, de acordo com o Império, ou a “zona desmilitarizada provisória”, segundo a Aliança Entente, era um tipo de pseudo-fronteira estabelecida pelo Tratado Londino⁵. Se as forças da Aliança fossem apenas dançar no local e atacar as sempre diligentes posições do Exército Imperial de frente, deveriam saber que isso aconteceria. Não importava o que passava na cabeça dos políticos, os sinais que chegavam pelo rádio provavam que soldados por todo o campo de batalha estavam pagando por um erro político com suas vidas… Eram os soldados a pagar o preço com suas vidas.

— Que o Diabo carregue esses malditos burocratas…!

A economia estava passando por uma recessão, a diferença entre as classes aumentava e a taxa de desemprego só piorava. Os problemas internos que a Aliança enfrentava sem parar ameaçavam jogá-la em uma enorme crise devido à desestabilização das forças centrípetas. O governo estava pagando um preço alto por incentivar o nacionalismo e o exclusivismo como uma solução para todos os problemas. Não, os verdadeiros horrores ainda estavam por vir.

Isso significava guerra… Pior ainda, uma guerra que a Legadônia não tinha qualquer esperança de ganhar.

Desse modo, o Tenente-Coronel Sue praguejava os oficiais conforme voava. Ele os condenou pelo erro de continuar espalhando as chamas do nacionalismo, recusando a realidade escancarada.

O Tratado Londino era um acordo que abordava a disputa de fronteira entre o Império e a Aliança Entente, seus termos eram apenas toleráveis e foram decididos após o Reino Aliado se envolver como mediador. A zona desmilitarizada provisória que dividia o território disputado era, na realidade, uma fronteira nacional, com direitos administrativos sobre a região servindo de garantia para manter o acordo. O que o tratado fez foi uma demonstração provisória de respeito, declarado por ambas as partes, em consideração à reivindicação de domínio da Aliança.

— Que parte disso é “apenas marchar sob pressão”?!

Em resumo, a Aliança tinha a liberdade de proclamar suas ações como justificadas a nível interno, mas o tratado expôs que, na realidade, a comunidade internacional, quase que em unanimidade, se uniu ao Império. Não importava com quanta veemência os sonhadores locais gritassem que o território estava sob uma disputa oficial e caía dentro da soberania da Aliança Entente, outros viam isso como nada mais do que o lamento dos perdedores. É óbvio que ninguém os levaria a sério.

— Marcha?! Essa é a ideia deles sobre uma marcha?!

A Aliança enviou seus militares para patrulhar seu próprio domínio? Arbitrariamente? Isso não fazia sentido. Pelo que parecia, todos aqueles políticos começaram a se apaixonar pela própria propaganda em algum momento. Sue desejou que alguém dissesse que tudo não passava de uma piada de mau gosto.

Algum porta-voz do governo, ou talvez alguém que recebia demais para fazer de menos, capaz de vomitar asneiras através de propagandas inúteis, na verdade teve a coragem de descrever essa invasão como um “exercício de marcha sob pressão” em uma coletiva de imprensa. O que foi algo terrivelmente imprudente.

— Cunningham! Qual é a situação das nossas forças restantes?!

— Desculpe, senhor. O sinal é instável e só piora. Não tenho ideia do que está acontecendo…

As tropas se encontravam em um estado de caos absoluto. Era claro isso. Não havia maneira de alguém permanecer calmo depois de cruzar a fronteira sem pensar na possibilidade de guerra… Apenas para dar de cara com o Exército Imperial em plena formação para os interceptar e abatê-los. Não há dúvida de que essa loucura entraria para a história.

— E os centros de comando? O Controle do Espaço Aéreo ou o Centro de Direção de Combate também servem. Consegue contatar alguém?

— As linhas estão em completa confusão… Seja como for, não consigo entrar em contato com elas; nem mesmo temos a frequência certa.

O Primeiro-Tenente Cunningham, que era considerado um veterano até mesmo na equipe de Sue, franziu o cenho enquanto tocava no rádio de longo alcance sobre seus ombros. Os sinais estavam confusos o bastante para confundir um veterano com ótimas habilidades aéreas… Uma prova de que a Aliança havia se jogado em uma operação descuidada. Se não fosse o próprio país de Sue, ele sem dúvidas ficaria espantado com essa ação.

“Eles nunca violariam a fronteira sem fazer uma transição adequada para a guerra. Claramente, o governo da Aliança Entente só está utilizando diplomacia para fazer provocações. Pelo menos, o Império não jogaria um jogo tão perigoso se não estivéssemos prontos para isso.” Essa havia sido uma citação de um porta-voz do Estado-Maior do Exército Imperial que Sue lera dois dias atrás em um artigo de jornal. O comentário dissera tudo.

No máximo, a provocação da Aliança Entente só deveria ter chegado ao ponto de mostrar sinais de um aumento nas atividades militares, visando discernir como o Império reagiria. O porta-voz havia oferecido uma opinião razoável, seu rosto contorcido em uma carranca, igual a de um homem mordendo algo azedo. Quem teria pensado que a Aliança iria empreender ações militares que arriscariam o destino da nação sem nem se preparar antes?

— Não me importo se você usar comunicações de curto alcance. A essa altura, pode se conectar direto com as forças terrestres. Vamos ajudar as tropas remanescentes a bater em retirada.

— Entendido.

Fosse isso bom ou ruim, o batalhão de Sue estava em uma posição na retaguarda quando o incidente de violação de fronteira começou. Estavam se reorganizando depois de sofrer baixas pesadas em repetidos conflitos irregulares perto da fronteira nacional. Para unidades do tamanho de uma companhia ou um pouco maior, seria possível retornar à capital e se reorganizar. Sue interpretou mal a situação justo porque estava frequentemente envolvido em operações que não podiam ser anotadas nos registros oficiais… Se ele e seus homens pudessem recuar, então isso decerto dizia que o país não tinha intenção de ir à guerra; isso significava que o governo estava à altura de sua propaganda costumeira.

Sue e seus homens — que eram dignos de serem chamados de os melhores, mesmo entre as tropas da vanguarda da Aliança Entente — não se continham nos palavrões para descrever a idiotice sem fim dos políticos e estadistas militares. Eles estavam bem conscientes de que seu governo era uma latrina de imbecis. Simplesmente não perceberam que a administração faria um movimento tão estúpido que dali não tinha mais volta.

— Darton, desculpe, mas você poderia entrar em contato com as outras tropas? Quero ter uma ideia melhor da situação.

Devido a sua posição inicial, foi tarde demais para reagirem e agora estavam perdidos com a tarefa impossível de dar apoio às tropas que se retiravam diante das forças inimigas completamente superiores. Para piorar a situação, não só falharam em alcançar o controlador designado das linhas de frente, como as coisas estavam tão caóticas que nem sequer recebiam apoio do Centro de Direção de Combate, que existia para garantir pelo menos a coordenação mínima necessária entre as tropas de feiticeiros, os corpos aéreos e as forças terrestres.

— Se necessário, nos encontraremos com reforços. Atenção pelotões, se acontecer de vocês se separarem e não conseguirem reagrupar, há a opção de se reunir em grupos sob qualquer autoridade que possam encontrar.

— Comandante, tenho contato!

Sue pegou o transceptor oferecido. Após uma breve troca de informações, ele descobriu que a situação já estava descontrolada. A Aliança estava pagando pelo erro de usar, em tempos de guerra, a mesma cadeia de comando que usava em tempos de paz, perdendo qualquer ilusão de controle. Era fácil para quem quisesse ver.

— Entendido. Bom, não podemos travar uma guerra sem liderança. Precisamos fazer algo quanto ao bombardeio que está causando todo esse tumulto. De acordo?

A situação era tão terrível que, em vez de resistir em conjunto, cada unidade estava por si. Mesmo entre seus colegas soldados no campo de batalha, com quem podiam se comunicar, ainda que quase nada, era impossível encontrar uma unidade que tivesse o conhecimento de todas as circunstâncias até então e possuísse liderança boa o bastante para tomar as medidas necessárias.

— Estou em pleno acordo. As posições de artilharia com certeza estarão fortificadas… mas e os observadores?

Sue teve que concordar que o apoio mais realista e prático que poderia oferecer, dadas as forças dispostas, era interferir com o fogo direto do inimigo, eliminando seus observadores.

— Comandante Sue! Aqui é a Sexta Divisão Terrestre. Ainda podemos observar e sinalizar.

— Ótimo! Veja se podem encontrar observadores de artilharia inimigos.

Por sorte, recuperar as comunicações com essa divisão, que mantinha organização por um fio enquanto recuava, ofereceu a oportunidade que precisavam.

— Bingo…! Estão enviando os números!

Vários feiticeiros observadores voavam sozinhos, sem se preocupar com a necessidade de esconder suas localizações. Com base na frequência das mensagens codificadas sendo enviadas em intervalos regulares, definitivamente eram comprimentos de onda codificados exclusivos dos observadores de artilharia que transmitiam as informações de inteligência.

— Desacompanhado, como esperado, hã? Estão nos menosprezando demais.

— Talvez, mas esse não está atrás de uma enorme linha de alerta?

Sue estava ciente disso. Ele queria resmungar, observando o modo como o corpo aéreo imperial e as tropas de feiticeiros tomavam o caminho seguro e fácil na batalha pela supremacia aérea, com uma rede coordenada de interceptação. Era nítido que deveriam ter montado uma linha de defesa aérea adequada o suficiente para permitir que elementos de suporte voassem sozinhos.

— Sério, nós somos loucos para ir à guerra contra uma potência militar. Devia ter pego minha família e fugido.

— Comandante Sue, aposto que aqueles cães imperiais estão lá, coçando a cabeça, imaginando se guerra era pra ser tão fácil assim.

— Bem pensado. Vamos torcer para que tenham baixado a guarda então.

Enquanto pensava em como tudo havia ficado terrível, só o que Sue pôde fazer foi se voltar para Deus.

Deus, para ser sincero, onde foi que erramos…?


Notas:

1 – É isso (imagem). Um headset de aviador com um laringofone. O laringofone é essa parte que vai no pescoço. O que faz dele útil é que você não precisa falar alto para que a outra parte escuta, é só sussurrar, e a vibração da laringe vai fazer que a mensagem seja enviada. Bacana, não? Quanto ao headset, vocês têm que saber o que é isso.

2 – O Estado-Maior do Exército é o órgão de direção geral responsável pela elaboração da política militar terrestre, pelo planejamento estratégico e pela orientação do preparo e do emprego da Força Terrestre.

3 – Míssil Balístico Intercontinental. O primeiro foi criado pelo Dr. Wernher von Braun na Alemanha nazista. Bom, é uma arma de destruição massiva, é bem comum vermos as potências mundiais falando sobre esses mísseis, eles são usados principalmente com produto nuclear, então quando tá rolando aquelas brigas para ver quem tem o pau maior, é nisso aqui que eles embasam o poder de fogo.

4 – O Fuji Firepower é uma demonstração de Poder de Fogo das Forças de Autodefesa do Japão. Os exercícios são abertos para o público em geral, visando ajudar os civis a entender melhor como funcionam as Forças de Autodefesa do Japão, mas todos observam as coisas da mesma forma que fazem com festivais, apreciando como um show de fogos de artifício.

5 – Isso faz referência ao Protocolo de Londres de 1852, que foi assinado como compromisso diplomático para acabar uma guerra. Como não era bem um tratado de paz, as nações envolvidas acabaram o violando ao desenvolverem interesses opostos. É um fato que leis e tratados internacionais inconvenientes sempre são quebrados, mas se uma nação ignorar todos, enfrentará uma intervenção humanitária (principalmente se possuir petróleo).


Parte 2

A missão atribuída a Tanya é importante, mas não passa de um trabalho monótono. Tudo o que tem para se fazer é ficar de olho nas rodadas de impacto, usando um rádio e um conjunto de equipamentos de observação. A tarefa de processar os dados em tempo real recai sobre os braços do pessoal da artilharia que os recebe. Um operador do Controle Norden apenas fornece os comandos táticos.

O fato de estarmos ganhando provavelmente tem algo a ver com isso, mas meu dever não passa de assistir a artilharia imperial empregar explosões de ar e continuar as missões de alvo com perícia digna de elogios. De fato, o Império é uma força militar crescente dentre as grandes potências mundiais. E, ao exército que sustenta essa reputação, é fornecido um equipamento relativamente novo, tanto que foram além de acreditar na supremacia do poder de fogo e passaram a obedecê-lo como se fosse uma doutrina.

O Império acredita que “baionetas nunca mentem, tampouco os recursos”. Assim, as artilharias são os “deuses da guerra” do Exército Imperial. Para alguém como a Tanya, essas divindades também são muito mais absolutas do que um ser superficial que se autoproclama o Deus supremo.

Afinal, todos do nosso lado estão em alerta para sinais de guerra, apesar das dúvidas iniciais. Em outras palavras, estávamos totalmente preparados para manter a superioridade aérea com uma rede de vigilância antifeiticeiros instalada. Se eu relatar qualquer resistência esporádica ou um lampejo de fogo inimigo aos deuses da guerra, acabarão com toda uma área apenas com um único chamado.

Este é um trabalho seguro e sadio que, no entanto, é bem respeitado. Espero que continue assim. Afinal de contas, posso desfrutar de uma visão privilegiada da vitória do exército, tomando um papel de liderança nos disparos que fazem o Fuji Firepower parecer brincadeira de criança.

Não é desagradável olhar para o nosso exército esmagando o inimigo como se fosse um inseto, estando na segurança do céu. A artilharia agita as coisas, depois a infantaria e os veículos blindados avançam logo atrás. Nós, feiticeiros, nos encarregamos do apoio aéreo e do combate a patrulhas aéreas. Sobrevoando o campo de batalha, o esquadrão misto de caças e bombardeiros segue adiante como a vanguarda para ataques de penetração mais profundos. É difícil dizer se as coisas correriam bem assim em um exercício. Uma salva de palmas ao Estado-Maior por tal façanha magnífica. Não posso agradecer o suficiente por me darem uma maneira tão simples e segura de subir meu posto.

Sei que é um pouco irreverente, mas temo que eu tenha dificuldades para concordar com a citação do General Lee: “É bom que a guerra seja algo tão terrível, ou cresceremos muito afeiçoados a ela”. Para mim, a guerra é tão divertida que não sei como me conter.

— Controle Norden para Fairy 08. Artilharia iniciando tiro observado. Envie seus dados.

— Fairy 08 na escuta. Pontos iniciais do impacto confirmados. Enviando agora. Não há necessidade de ajustes de disparo. Eu repito, não é necessário ajustes de disparo. Inicie tiro sobre zona.

Em primeiro lugar, nossa artilharia é incrível pelo modo que adere os dados fornecidos, sua precisão é impressionante. As tropas precisam ser muito habilidosas para fazer tudo, desde o disparo inicial até os constantes acertos quase em cheio que se baseiam na artilharia integrada a nível de campo. Claro, o desempenho deles é a prova de que o Império não é considerado uma potência militar à toa. Minha carga de trabalho ser extremamente leve é um resultado disso. Está tudo ótimo.

— Controle Norden, recebido. Atenção para balas perdidas. Planejamos abrir tiro indiscriminado em duzentos. Câmbio.

— Fairy 08, entendido. Câmbio.

Me movo para o oeste buscando me distanciar um pouco do campo de batalha enquanto tento chegar a uma altitude ligeiramente superior. Duvido que a mira da artilharia falharia assim tão fácil, mas seria absurdo se um aliado acabasse me acertando sem querer. E visto que vai ser tiro indiscriminado, haverá uma grande quantidade de projéteis voando para lá e para cá. Os caras da artilharia irão disparar com toda vontade, e eu vou ficar só olhando com inveja. Preciso ficar fora do caminho para que todos possamos aproveitar nossas funções.

Em pouco tempo, a artilharia disparou uma chuva de ferro tão implacável que despertou as lembranças de cenas de filmes de guerra em minha mente. Pelo tanto que posso enxergar, a partir de onde estou no céu, pontos negros estão chovendo para todos os cantos da terra, e logo depois de suas chamas explosivas dissiparem, pedaços do que costumavam ser humanos voam para todas as direções antes de sumirem de vista.

— Fairy 08 para Controle Norden. Impacto confirmado. Repetir.

— Controle Norden na escuta com inteligência da fronte. Área alfa, blo… Bzzt… zzz.

— Controle Norden, Fairy 08 na escuta. O sinal está ruim. Muita interferência. Câmbio.

Ou há interferência magnética ou meu equipamento está defeituoso. Por que não poderia ter acontecido em qualquer momento que não esse? Só para ficar segura, a Tanya começa a verificar se o problema tem algo a ver com o equipamento em suas costas, tentando se conectar ao Controle novamente, quando captura um sinal inesperado.

— Líder Querubim emitindo um alerta da fronte! Repito, alerta da fronte! Captamos um grande número de ecos de radar!

Não se trata de uma mensagem normal ou expressa, mas sim um sinal desconhecido. É estranho que o controlador aéreo declare um alerta sendo que devia estar patrulhando a linha de frente. E como os alertas normalmente não são emitidos durante combates de interceptação, a menos que a linha de alerta à frente da linha de patrulha seja violada, muita coisa pode ser tirada dessa transmissão.

Talvez um novo grupo de soldados formidáveis tenha entrado na batalha. Bem, é uma guerra. Parece que o inimigo não vai se render tão fácil.

— Controle Norden para todos os interceptadores aéreos de prontidão… Transição ROE¹ da patrulha de fronteira para defesa aérea móvel. Repito, Transição ROE da patrulha de fronteira para defesa aérea móvel.

Logo após recuperar a conexão, ordens para interceptação entraram em seus ouvidos. Obviamente, se ecos de radar não identificados apareceram, essa é a única opção. Por isso que Império não somente estabeleceu enormes formações de linhas de frente, como também possui reservas de prontidão no espaço aéreo.

— Contamos um grande número deles! Detectando fórmulas de interferência! Devem ser sinais de tropas inimigas! Elimine-os imediatamente!

O tom da transmissão mostrava que nada de bom estava por vir, mesmo que essa já fosse uma batalha perdida para eles.

— Controle Norden para todos os pelotões. Controle Norden para todos os pelotões! — Embora quase imperceptível, a mistura de pânico e confusão dava para ser ouvida na voz por trás do falante. Essas pessoas, na maioria das vezes, soavam secas e sem vida mesmo se uma invasão alienígena estivesse acontecendo. Seu desespero era uma indicação da gravidade da situação. — Foi confirmado um batalhão de feiticeiros da Aliança Entente violando a fronteira. Repito, um batalhão de feiticeiros violou a fronteira.

Bem, o relatório da situação é tão surpreendente que até o controlador que o leu parecia confuso. Em geral, é um tabu demonstrar comprometimento parcial em operações militares. Saber a maneira de posicionar os reforços para que possam funcionar como uma força auxiliar é crucial para o planejamento de operações militares, mas, ao mesmo tempo, o comando precisa manter um determinado número de reservas estratégicas disponíveis a todo o momento. Um dilema clássico, mas um dos mais difíceis de superar.

Chega a ser um absurdo a Aliança Entente fazer a infantaria cruzar a fronteira sozinha e logo depois enviar suas forças aéreas. Nunca passaria pela minha cabeça que eles enviariam reservas quando as forças Imperiais já estavam no ponto de trocar a posição de defesa para uma de perseguição. Pensando de forma estratégica, faria mais sentido se enviassem o suporte mais cedo, contudo, é por isso mesmo que o Império foi pego de surpresa.

— Intercepte-os de imediato, conforme o cenário previsto! Repito, intercepte-os imediatamente.

A artilharia fez um trabalho meia boca de acabar com o inimigo e, logo quando todas as unidades começaram a mudar as posições e fazer pequenos ajustes, um grupo, maior que um batalhão, formado por feiticeiros, apareceu para resistir em grande escala. Não é como se ninguém tivesse pensado que algo assim poderia acontecer, mas o Exército Imperial imaginou que as principais forças do adversário já estivessem destruídas.

A grosso modo, se o objetivo da Aliança era cobrir a retirada de suas tropas, deveria ter agido mais cedo. Não há dúvidas de que o ataque inesperado dos reforços inimigos deixou as linhas de frente um caos. Apesar de ter reclamado que esta posição medíocre que me deram poderia barrar as chances que tenho de subir minha patente, devo admitir que neste momento minha felicidade é grande de estar perto da retaguarda. Se eu estivesse junto das forças aéreas em prontidão, tenho certeza que estaria voando para um campo de batalha sangrento agora mesmo, entretanto, por sorte, os observadores não precisam ir.

Bzzt…zzz…zzt…

Bem quando estava admirando a minha sorte, um ruído abafa as comunicações com o Controle Norden, apesar de terem relatado a mudança na situação instantes atrás. É o momento mais crítico da batalha e tudo que meu rádio faz é chiar.

Considerando o que aconteceu antes, há uma boa chance dele estar quebrado. O que não deixa de ser desagradável, já que é um aparelho crucial para eu continuar a relatar à artilharia e receber informações do campo de batalha. Porém, de acordo com a memória da Tanya, este rádio sofreu uma boa quantidade de maus-tratos no decorrer de vários exercícios. Valorizados por sua durabilidade, equipamentos de comunicação de combate não era para serem frágeis assim.

É estranho, mas talvez o problema pode ter ocorrido pelo fato de eu estar usando-o em reais condições de combate. No entanto, isso não só me impede de reportar onde os projéteis estão caindo, como também não permite que continue minha função como observadora, mesmo que por problemas técnicos. De qualquer forma, não precisei continuar lamentando a falha do meu equipamento sem fio por muito tempo.

Emissões de radar…?! Foi pura coincidência eu tê-las captado. Mesmo assim, sigo os instintos da Tanya e rapidamente mudo de posição, desviando por pouco de um ataque. Uma série de fórmulas mágicas explodem ao longo do percurso que eu estava voando há poucos segundos. O inimigo chegou.

— Mayday! Mayday! Fairy 08 para Controle Norden! Fairy 08 para Controle Norden! Alerta da fronte! Solicitando assistência imediata! — Saí gritando para o rádio, as ondas colocadas na amplitude máxima; o ruído não se deu por conta de algum defeito, mas sim por interferência inimiga.

Sem dúvidas de que esses feiticeiros são o maior perigo dentre as forças sobreviventes do adversário. A Aliança Entente é considerada uma nação em desenvolvimento no departamento de magia, então seus números não são muitos, porém, para compensar, os poucos que possuíam eram poderosos. Isso foi possível principalmente por causa do suporte das nações posicionadas contra o Império. Simplificando, é o clássico “o inimigo do meu inimigo é o meu amigo”.

No entanto, assumir que as forças mágicas da Aliança deixavam a desejar levou os feiticeiros do Império, isso inclui a mim mesma, a baixar a guarda, mesmo depois de termos recebido a notícia de que eles estavam se reorganizando na retaguarda. De acordo com as informações que tínhamos antes da batalha, a maioria dos feiticeiros de elite inimigos que foram posicionados em Norden ainda estavam se reunindo na região setentrional. Por essa razão que ninguém esperava um adversário perigoso nas proximidades.

Pode-se dizer que isso os permitiu tirar proveito do nosso descuido. De qualquer maneira, a aparição de forças inimigas vai ser relatada de imediato para o posto de comando. Além de haver vantagens táticas, existem várias implicações políticas para considerar. Claro, eu sigo o procedimento e relato eles. Ainda assim, não tenho vontade de agir como um herói e enfrentar o inimigo sozinha. Aqueles com desejo de morte estão convidados a tentar. Minha maior prioridade é sobreviver. A questão é se posso ou não fugir daqui.

— Detectei um grupo de feiticeiros inimigos se aproximando rapidamente. Ao que tudo indica, é uma companhia — falo no rádio enquanto me preparo para combate aéreo ao avistar uma grande quantidade de corpos voadores se aproximando. É quase revoltante quantas pessoas têm. — Coordenadas: Fronte alfa, bloco oito. Altitude: 4,300!

Seja qual for o conflito ou agenda política do outro lado, estão certamente mostrando uma feroz vontade de lutar. Sendo honesta, é um pé no saco o modo com que continuam destemidos depois de perder a batalha, voando adiante ainda que transpirando desespero. Meus adversários são soldados esforçados exalando espírito de luta. Duvido que eles deem a mínima a todo o problema que isso traz para mim.

As forças imperiais continuam ganhando de maneira geral. É natural que essa batalha termine com nossa vitória… Por isso que a situação não pode piorar. Se o inimigo invadiu apenas a área sob minha supervisão quando as forças imperiais dominavam a maior parte do campo, o resultado seria literalmente a única mancha negra do Império em toda a batalha.

— E minha incompetência seria gravada como o único fracasso entre o sucesso de todos. — Estou aterrorizada com a possibilidade dos meus atos serem lembrados de uma forma tão ruim a ponto de eu nem ser capaz de me defender da reprovação que vou levar. É horrível pensar que as pessoas vão me desprezar por causa da minha incapacidade em cumprir as tarefas que me foram dadas. Com as coisas chegando a esse nível, só o fato de pensar nisso já desperta medo. E uma vez que os superiores derem a ordem para interceptar, soldados como eu não possuem o direito de recusar.

Eu começo a executar manobras evasivas irregulares, dando o meu máximo. Com o meu corpo pequeno, é esperado ter uma ligeira redução na força-G. Mas desviar por pouco do fuzilamento de um bando de fórmulas mágicas, que mais parecem ogivas, leva a tensão a outro nível.

Pelo tamanho do grupo a vir em minha direção, deve ter o suficiente para formar um pelotão. Não, isso poderia ser um esquadrão de elite. Estão seguindo o padrão, fazendo chover balas no alvo debaixo de seus narizes conforme utilizam poder de fogo superior para controlar o movimento do inimigo. À medida que se aproximam, seu objetivo é nítido.

Sem ninguém oferecendo apoio aéreo, as baterias de artilharia do Império dão belos alvos táticos. Dado que a força principal da companhia inimiga já invadiu até aqui, seu plano de neutralizar o suporte de fogo, do ponto de vista estratégico, vale o risco. Seja como for, a situação é terrível.

Não seria tão ruim se os corpos tivessem usado as autopropulsadas², porém, a maior parte consiste em artilharia rebocada³. Até para o Império, é pedir demais mecanizar militares de artilharia enquanto preserva as divisões blindadas, tropas mágicas e forças aéreas. Logicamente, a artilharia também carece de tempo para engatar os obuseiros e correr ou se esconder.

Por consequência disso, o destino dessas armas depende do desempenho das patrulhas aéreas. Contudo, será preciso uma grande quantidade de força para parar o avanço de um grupo de feiticeiros do tamanho de uma companhia. Simplificando, a ideia é mantê-los ocupados até que reforços sejam enviados.

— Engajando!

— Controle Norden para Fairy 08! Informe sua situação! — Por sorte, nossa contramedida para interferência deve estar funcionando; as transmissões voltaram a ficar claras. Ahh, é isso. Prevejo cem por cento de chance de dar problema. Dizem que intuição feminina sempre acerta. Mas mesmo parecendo uma garotinha por fora, não me sinto exatamente uma dama por dentro. Então o que é isso? Por que estou com essa sensação ruim?

— Fairy 08 na escuta. Entrei em contato. Repito, entrei em contato. Uma companhia de feiticeiros hostis está invadindo nosso espaço aéreo.

— Controlo Norden, entendido. Mantenha o contato e atrase o inimigo. E, se possível, reúna informações.

Ah, isso explica tudo. Eu juro, a situação não pode ficar pior. Combater e conseguir informações? Não, não, atrasá-los é prioridade, né? Mas fala sério, enfrentar uma companhia inteira sozinha? Em céu aberto, sem cobertura? Se a ordem é para que eu morra, pelo menos diga na minha cara.

— Há muita diferença no poder de fogo. Solicitando reforços.

— Controle Norden, recebido. Já estamos reunindo um pelotão de feiticeiros aliados. Uma companhia adicional a postos em espaço aéreo também deve chegar em seiscentos segundos.

Nossa, é mesmo? Parece que os reforços vão chegar em dez minutos. O suficiente para fazer um macarrão instantâneo, comê-lo e lavar a louça. Honestamente, não tem como eu atrasar uma companhia por todo esse tempo.

Se eu levar em consideração a preservação da minha vida, que é o mais importante para mim, a ação mais inteligente seria bater em retirada. É coisa óbvia, não sou patriota o bastante para lutar feito um herói aqui. Posto isso, preciso de uma desculpa para não ser imortalizada na história militar pela desgraça de fugir do inimigo. Se ao menos eu conseguisse a ordem para sair desse maldito espaço sem valor estratégico…

— Fairy 08 para Controle Norden. Requisitando permissão para retirada imediata. Repito, requisitando permissão para retirada imediata.

— Controle Norden para Fairy 08. Temo que não possa permitir isso. Faça seu melhor para deter o inimigo enquanto os aliados estão a caminho.

Argh, merda. Maldito seja esse elitista da central de controle! Você pode tirar uma vida com uma simples ordem de onde está na retaguarda! A minha vontade é de gritar, perguntando se querem trocar de lugar comigo. Deviam vir para a fronte e ver como as coisas funcionam, antes de ficarem dando ordens impossíveis.

— Fairy 08 para Controle Norden. Como está a nossa artilharia?

Dito isso, sou um adulto. Sei que, se deixar a idade física da Tanya levar a melhor sobre mim, começarei a agir pelas emoções e a causar confusão, o que traria problemas mais tarde. Sempre terei a chance de me vingar no futuro. E é exatamente por isso que preciso dar o meu melhor nesta situação.

Meus esforços permitirão que a feiticeira conhecida como Tanya Degurechaff desvie das críticas uma vez que todos irão saber seu grande esforço para completar a missão mesmo em condições desfavoráveis. E, por garantia, caso eles planejem me enviar à corte marcial para jogar a culpa em alguém, mostrarei que agi ciente do perigo de ter que lidar com a artilharia na retaguarda. Posso dizer, mais tarde, que fiz tudo ao meu alcance para resolver o problema. É sempre bom ter uma carta na manga.

— O pelotão de feiticeiros deve chegar na área em trezentos. Ao mesmo tempo, a 7ª Companhia Móvel de Feiticeiros está a caminho para auxiliar. Como dito antes, devem chegar em seiscentos.

Arghh, o pior cenário possível está fadado a acontecer. Maldita seja a lei da causa e efeito por trazer essa situação de merda!

Por que as tropas mágicas inimigas têm que vir justo para a artilharia cujo espaço aéreo está sob a minha supervisão? Que diabos as tropas responsáveis pelas linhas de frente estão fazendo?

Como uma companhia de feiticeiros chegou até aqui sem ninguém perceber? Vai ser inacreditável se me culparem pela falta de atenção de alguém. Se esses caras querem apenas destruir nossa artilharia, não teriam o mesmo resultado se fossem em outro setor? Por que logo este?

Deve ser aquele Diabo maldito. Você ainda está me amaldiçoando? Certo, legal. Se vai ser assim, quero que se foda. Estão aqui para me pegar, não é? Neste caso, não vou cair sozinha. Já decidi. Se for para morrer, vou levar todos vocês comigo. Não estarei satisfeita a menos que leve uma boa quantidade junto.

— Fairy 08, entendido. Controle Norden, vou fazer tudo que puder.

— Controle Norden, afirmativo. Boa sorte.

Irei admitir que gritei meio desesperada… mas “boa sorte”? Sério? Quer dizer, para que esse comentário inútil no final? Não consigo deixar de franzir as sobrancelhas por conta do sentimento sinistro palpitando em meu peito.

A situação me lembra de como, por uma reviravolta do destino, os soldados de Tokugawa que estavam ganhando a Batalha de Sekigahara encontraram as peculiares forças de Shimazu. Em outras palavras, o que quero dizer é: Não cheguem perto. Vão embora. Xô.

Mordendo o lábio, não consigo parar de amaldiçoar minha sorte de merda. Bem, estou sendo tratada feito um brinquedo por seres como o Existência X. Estava preparada para isso, sério mesmo… porém nunca teria imaginado que iria fazer manobras defensivas em um espaço aéreo dominado pelo inimigo.

Cadê o serviço de bem-estar infantil? Não sei se sou tão adorável quanto uma flor, mas pelo menos devo estar perto disso, certo? Sem falar que sou pequena o suficiente para muitos se referirem a mim como “nova” ou “pequenina”. Queria que o inimigo hesitasse em atirar ao me ver, contudo você não pode esperar humanitarismo no campo de batalha.

Qualquer um que saiba o que aconteceu no Holocausto, em Sarajevo e em Ruanda deve ter percebido o quão perigoso é acreditar cegamente nos ideais de humanismo. É fácil para humanos se transformarem em demônios capazes de cometer atrocidades. Isso até pode não ser ensinado nas aulas de ética, mas é a nossa natureza.

Pensando nisso, aquele sensato comentário do ocidente que “um Deus virtuoso tem de existir” justamente pelo fato destes demônios cometerem tamanhas ações malignas, é um tanto intrigante. Infelizmente, já que o Existência X não me passa a sensação de ser muito virtuoso, tenho que discordar.

— “Deus está morto”, hein?

Apesar de controversa, a conclusão de Nietzsche deve estar certa. É impossível Deus existir. As pessoas têm que salvar a si mesmas. Na minha situação, isso significa uma manobra defensiva de contenção.

As ferramentas disponíveis são um uniforme leve à prova de balas, equipamentos de observação e um orbe operacional padrão Tipo 13 da fábrica de armas Volcker. Por estar servindo como observadora, não tenho meu rifle de munição mágica, o qual permite que a vontade do atirador conjure em um alcance maior por meio do carregamento de fórmulas. De qualquer forma, ele é muito pesado para mim.

Como posso atrasar o inimigo desse jeito? Claro, sei que a única opção é encontrar um ponto fraco. Não tenho nenhuma intenção de morrer em silêncio. Se o pior acontecer, planejo me autodestruir ou o que for preciso para levar alguém comigo. Se é isso ou ser morta, não vou me satisfazer até que leve todos eles juntos. No entanto, se for possível, gostaria de continuar viva.

No fundo, sobrevivência é a minha maior prioridade. Sério, quero apenas ir embora. Se eu largar o equipamento de suporte, isso me deixaria mais leve. As tropas invasoras estão mirando na artilharia, então é certo que posso bater em retirada para uma zona segura, abrindo uma distância entre nós. No entanto, mesmo que a fuga funcionasse, não haveria como me safar depois. Não é preciso dizer como o exército pune deserção diante do inimigo… Execução pelo pelotão de fuzilamento. No dia em que resolver desertar, estarei presa em um eterno pega-pega com a polícia militar. Não existe outra opção a não ser lutar, ainda que completamente sozinha, sem sequer um ajudante.

— Receio então que essa seja a minha própria guerra.

No campo de batalha onde a vitória do meu lado está garantida, estou prestes a lutar até a morte. Bem, tecnicamente, o objetivo do inimigo, ao atacar nossa artilharia, é dar suporte para seus aliados recuarem em segurança, não abater soldados. Em outras palavras, para esses feiticeiros, me alvejar não é diferente de esmagar uma mosca irritante.

É insultante ver a forma com que minha vida e carreira militar estão sendo ameaçadas, enquanto sou tratada como uma peça descartável. Eu devo olhar para os outros de cima; ninguém pode ter a permissão de fazer o mesmo comigo. Sem nem pensar no que poderia acontecer, comecei a me dopar com uma fórmula de interferência atrás da outra. Aprimoramento do tempo de reação, aumento da força imediata. Antes da dor de forçar a abertura dos circuitos mágicos se registrar por entre meu cérebro, eu a alívio utilizando entorpecentes intracerebrais. Ahhh, que sensação maravilhosa. Meu corpo está esquentando de entusiasmo.

Me pergunto se essa é a sensação de ficar chapado. Agora, se as coisas piorarem e o inimigo me dar um tiro, poderei escapar sem desmaiar de dor.

— Quanta honra. Isso é demais. Um momento tão maravilhoso. Ahh, isso é tão, tão divertido. Mal consigo me controlar.

— Fairy 08?

Falei sozinha e em voz alta para que me escutassem, ótimo que o posto de comando atendeu às minhas expectativas. Desse modo, tenho uma testemunha para atestar sobre como lutei até o fim. Estou explodindo de animação. Mesmo com o mundo girando de forma encantadora ao meu redor, o cérebro de um feiticeiro tem a capacidade de manter um pensamento claro. É uma coisa linda.

E impede que os meus pensamentos sejam afetados por drogas ou insanidade. Tenho tanta sorte de ser um… mas não é como se eu quisesse continuar sendo um soldado.

— Tinha medo de que esse seria um trabalho chato, mas agora sou a estrela do campo de batalha, prestes a enfrentar um exército sozinha.

Não posso morrer aqui. O mundo não é justo — e está longe de ser — porém isso é apenas uma questão de deficiência de mercado. Essas falhas precisam ser corrigidas.

Como este problema, no final, resume-se a custo, tenho que aumentar o meu ao máximo. E uma estratégia de marketing é sempre imperativa. Portanto, tenho que mostrar o meu valor. Dando tudo de mim, não deixando uma chance de me autopromover passar. Em outras palavras, aproveitar todas as oportunidades. Se eu fizer isso, a vida vai ficar melhor.

— Temi que ficaria sem ter o que fazer ao lado dos nossos inimigos e aliados na confusão da batalha, mas vejam só: ganhei o papel de destaque.

Isso não me deixa nem um pouco feliz. Estou sozinha e o fato de não conseguir fugir em silêncio só piora a situação. As circunstâncias no campo de batalha me deixaram com pouquíssimas opções. Nesse caso, tudo que posso fazer é agradar a audiência — vulgo meus oficiais superiores — com a minha apresentação. É uma surpresa como os humanos atuam tão bem quando estão encurralados.

— Então essa é a sensação de estar comovida. “Um bom dia para morrer…” Pode crer que é isso mesmo!

Me livrei do equipamento de observação. Os feiticeiros da Aliança, armados até os dentes, planejam um lento combate de longe, porém, ao invés disso, faremos uma dança. Iniciando manobras básicas de combate, eu me animo com o pensamento estimulante. Essa é a melhor opção dentre as minúsculas outras, e, mesmo indisposta a tomá-la, a única coisa que importa é terminar o meu trabalho e sobreviver.

Aparentar ter completado a missão já é o suficiente. Depois de uma disputa acirrada decente, posso fingir que o inimigo fugiu ou me derrubou. O que acontecer depois não vai ser problema meu. Acredito que nem esse grupo, que invadiu o território inimigo numa tarefa impossível de eliminar a artilharia, se importaria em vir atrás de mim se eu sair voando para outro lugar.

Em vez de desertar diante do inimigo, meus esforços apenas não terão sido suficientes, deixando-me incapaz de continuar lutando. O ideal seria cair perto de alguma tropa aliada. E ainda melhor se eu conseguisse deter esses vermes da Aliança Entente. Afinal, tempo vale mais que ouro e os imbecis que invadiram estão tentando conseguir o máximo possível. Seria legal dar o troco, como um prêmio de consolação. Não vou permitir que ninguém além de mim saia ganhando nesse confronto.

Odeio sentir dor e prefiro evitar me sujar, mas não quero morrer. Não há nenhuma razão para isso, na verdade. Eu mergulharia no esgoto se fosse necessário para sobreviver. A vida por si só é uma batalha.

— Comandante Sue! Reforços inimigos! Uma companhia se aproxima depressa! E estou captando um pelotão de feiticeiros bem atrás. Suspeito que também sejam reforços!

Deus, ó Deus, por quê? Por que isso tem que acontecer?

— O inimigo infringiu as defesas da 16ª Divisão Holelstein!

Como que tudo acabou dessa forma?

— O batalhão do Coronel Lacamp está emitindo um pedido de socorro para o grupo de assalto! Eles entraram em combate com um batalhão de feiticeiros imperiais. Disseram que não vão conseguir manter a rota de fuga por muito tempo.

Onde foi que erramos?

— Eu sei! Não temos tempo para isso. Ainda não derrubamos o feiticeiro observador do inimigo?!

Pela visão que tinha do céu, o Tenente-Coronel Anson Sue foi forçado a reconhecer que a situação do exército da sua terra natal, mergulhada nas chamas e em colapso, só piorava a cada segundo. Seu rosto se contorceu de raiva e impaciência, mas mesmo se gritasse para tudo acabar até que ficasse rouco, nada iria mudar.

— Nossos tiros só estão raspando!

Se seu olhar pudesse cuspir chamas, Anson Sue colocaria fogo neste feiticeiro inimigo, voando pelos céus, para queimá-lo até que não restasse nem cinzas. Agh, como isso foi acontecer no espaço aéreo Nordenho, que conhecemos tão bem? Hoje parece que tudo está deixando um gosto ruim na minha boca, até mesmo esse céu familiar.

— O maldito nos deixou em uma posição difícil. Lutar sobre aliados é complicado.

A maior parte de seus homens perseguia apenas uma pessoa. Sue não podia chamar este feiticeiro de covarde por fazer o melhor para sobreviver. Se não estivesse envolvido nisso, teria admirado e respeitado tamanha demonstração de bravura e espírito de luta. Como as coisas estavam, entretanto, não podiam apreciar a coragem dele.

Os ouvidos de Anson Sue escutavam somente os incessantes tiros da artilharia e seus olhos enxergavam nada que não o sofrimento dos soldados da Aliança destruídos pelo bombardeio.

— Aqueles políticos desgraçados…!

Se perguntarem a quem culpar, a resposta era uma só. O xingamento a escapar da boca do Tenente-Coronel já dizia tudo. Queria pegar os idiotas — esses que ridicularizaram o Tratado Londino, ignoraram e fizeram-no parte de suas campanhas eleitorais — e jogá-los no meio dessa loucura. Aqueles sofrendo por causa dessas ideias eram os próprios cidadãos de sua pátria.

— Aproximação! Preparar para avançar!

— Comandante Sue! Vamos usar o plano alternativo e atacar a artilharia! Se deixarmos um esquadrão aqui, não importa o quão rápido esse feiticeiro seja, os que ficarem vão ser suficientes para derrubá-lo!

— Esqueça isso, Lagarde. Reforços inimigos estão a caminho. Seríamos destruídos!

Para o bem ou para o mal, as tropas de Sue penetraram fundo demais nas forças inimigas. Talvez, se tivessem mais homens, pudessem eliminar a bateria inimiga. Porém, quando haviam invadido, ele tivera que deixar várias unidades para manter aberta a passagem de onde adentraram. Seu grupo acabou ficando do tamanho de um pelotão reforçado.

— Cunningham, quanto tempo até que os reforços inimigos cheguem?!

— O mais próximo estará aqui em 480 segundos! Se não nos apressarmos, será difícil escapar!

Caso continuem o ataque, com as unidades imperiais vindo para interceptar, ele não conseguia ver como sobreviveriam a isso. Ainda assim, faria o que fosse capaz com os recursos à sua disposição.

Essa foi a decisão do Tenente-Coronel Anson Sue enquanto soldado da Aliança Entente, e também o limite do que podia fazer com a pouca informação que tinha em mãos. Era indiferente ao romantismo militar, então, quando se deu conta de que as baterias de artilharia inimigas estariam fortemente protegidas, logo desistiu de atacá-las.

Mas a verdade era cruel. O espaço aéreo acima das baterias estava limpo.

— Eu entendo. Se nós… Porra! Lagarde?!

— Capitão?! Capitão Lagarde?!

— Cunningham, dê cobertura! Lagarde, consegue me ouvir? Lagarde!

Na frente de seus olhos, o Capitão Lagarde se precipitou às cegas rumo ao feiticeiro inimigo. O pelotão, sem saber como reagir, parou de atirar, com medo de atingi-lo por acidente, nesse momento o inimigo conjurou uma fórmula. Lagarde arremeteu acreditando que a mobilidade do alvo seria limitada pelos tiros de seus aliados, agora ele estava muito próximo para escapar.

— Ah não, você não vai fazer isso! Me deem cobertura.

O Capitão foi pego por algo muito mais forte que uma onda de choque — um ataque direto de explosão. Mudar de percurso não ajudaria. Em um instante, a membrana de proteção se desfez e o campo de defesa foi destruído. Teve tempo de apenas proteger o rosto com os braços, porém foi só pela graça divina que ele sobreviveu.

— Droga, esse maldito estava querendo nos atrasar! Thor!

O lado de Sue tinha números superiores e estavam concentrados na linha de fogo. Entretanto, o preço que pagaram por deixar escapar um inimigo, que tinham sob controle, foi caro demais.

— Relatório de baixas!

— Dois abatidos, e o Capitão Lagarde está gravemente ferido!

Com os braços queimados, Lagarde estava caindo, somente um traço de sua consciência restando no meio da dor e da perda de sangue. Primeiro-Tenente Thor também foi atingido pela fórmula explosiva a curta distância quando passou pela linha de fogo, na esperança de proteger seu camarada, então estava incapaz de continuar lutando.

— Grah! Ele não vai se safar dessa. Comandante, vou em direção ao inimigo. Me dê cobertura!

— Agh, droga! Ajudem ele!

— Fogo! Vamos! Fogo!

— Você é meu!

No meio disso tudo, Sue teve certeza que escutou alguém falar “te peguei”.

A voz soava quase alegre, como a risada de um lunático.

— Pare, Baldr! Volte. Esse feiticeiro vai… — O Tenente-Coronel começou a gritar, porém, no instante seguinte, o soldado imperial lançou um feitiço que engoliu toda a área em volta.

— Um… ataque suicida…?

Não queria acreditar no que viu, mas estava ali para testemunhar com os próprios olhos.

— Comandante, acabou o tempo! Estão quase nos alcançando!

— Derrubamos o observador…! Retirada!

 

ANO UNIFICADO DE 1923, CAPITAL IMPERIAL BERUN, ESCRITÓRIO DO ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO IMPERIAL, DEPARTAMENTO DE PESSOAL, ESCRITÓRIO DO CHEFE DA SEÇÃO.

 

Major von Lergen, parte da equipe que controla o Departamento de Pessoal do Exército Imperial, estava fumando para relaxar depois de horas de trabalho. Suas feições bem definidas, que lembravam aquelas da aristocracia Junker, passavam a impressão de masculinidade e inteligência. Neste momento, contudo, o rosto se distorceu em uma careta e ele proferiu um suspiro contra a sua vontade.

O papel do Departamento de Avaliação de Conquistas do Estado-Maior da Divisão de Pessoal era analisar os feitos das linhas de frente e propor as condecorações apropriadas e bônus aos superiores. Era a base dos assuntos pessoais do Exército Imperial. E também o local onde os oficiais de média patente do Estado-Maior eram enviados a fim de ganhar experiência para que, no futuro, tornem-se generais do Império. Claro, a tradição era escolher os melhores.

Como esperado, esses indivíduos eram reconhecidos por suas habilidades. Lergen provou que o superior que o indicou como chefe das condecorações tinha um bom olho ao processar todas as nominações sucessivamente em tempo hábil, apesar das duras batalhas no norte e o incessante envio de recomendações.

Inconsciente, ele parou de mover a caneta conforme virava sua cabeça para alguns documentos, vindos de Norden, sobre indicações de condecorações e aplicações para medalhas, e deixou escapar um gemido. Era natural que seus subordinados enviassem olhares preocupados perguntando: “Será que teve algum problema?”

— Não fazia ideia de que ela estava em Norden… — sussurrou enquanto soltava fumaça pela boca, mostrando preocupação e repugnância incontestáveis para com os documentos.

O nome do oficial indicado ali escrito era “Segunda-Tenente Feiticeira Tanya Degurechaff”. Graduada da Academia Militar do Exército Imperial como segunda de sua sala, envolveu-se em um distúrbio em Norden após seu treinamento de unidade no norte. Lutou bravamente junto ao Exército do Norte, onde seus incríveis feitos e contribuição fizeram que os comandantes da região submetessem uma recomendação conjunta. Se Lergen visse isso como outro papel comum recebido pelo Departamento de Avaliação de Conquistas, era de fato só mais um documento formal. A única coisa estranha, neste caso, seria o quão incomum era para eles atribuírem um título.

Naturalmente, como um membro do Departamento, precisava manter a imparcialidade e a objetividade. Não era como se não valorizasse o ato de autossacrifício da Tenente Degurechaff na batalha de Norden. Ela havia dado tudo de si para deter a unidade inimiga. Embora fora incapaz de segurá-los até que os reforços chegassem, derrotou um e possivelmente mais dois outros inimigos em um movimento ousado que parou o seu avanço. Mesmo ficando coberta de machucados, cumprira a missão e dera suporte aos aliados do início ao fim. Até no enorme Exército Imperial, era difícil achar uma ação tão admirável assim.

A princípio, Lergen carecia de razões para hesitar; pelo contrário, teria preparado um documento para acelerar o processo de entrega das condecorações. No entanto, o Major a conhecia desde a época que a garotinha era uma estudante de primeira classe na Academia Militar. Aquele encontro não tinha deixado uma boa primeira impressão nele.

Aconteceu durante uma das várias ocasiões onde o trabalho da Divisão de Pessoal o levou para o local. Foi quando viu desenrolar. Pequena ao invés de delicada, a menina era tão nova que não seria nada estranho vê-la brincando com bonecas. Mas, no lugar disso, testemunhou a cena surreal dela controlando o orbe operacional e dispersando uma fila de cadetes. Essa havia sido a única vez que duvidara de seus olhos.

Na maioria das vezes uma simples nota mental de “ela é uma feiticeira talentosa que pulou alguns anos” seria o suficiente. Na verdade, sua impressão inicial foi “então realmente existem crianças prodígios precoces nesse mundo”.

Apesar de haverem pessoas que tinham problemas em mobilizar crianças, cuja idade ainda não atingira a casa da dezena, para a guerra, a evidência empírica do exército mostrava que os feiticeiros amadureciam mais cedo. Em tempos como estes, as autoridades não se importavam em enviar crianças no ensino fundamental para as linhas de frente, desde que fossem feiticeiros talentosos e voluntários. Claro, os candidatos que passavam na Academia Militar não recebiam privilégios por suas qualificações. Essa menina-prodígio desempenhara dentro dos próprios limites enquanto demonstrava sua devoção ao Império. Sob circunstâncias normais, seria apenas isso. Sob circunstâncias normais. Mas quando ele parava para pensar sobre, a realidade era aterrorizante.

Essa criança… Essa garotinha… não tinha chegado nem aos dez anos de idade. Pensar nela sobrevoando o campo de batalha como um soldado experiente era algo de arrepiar. Embora não fosse sua intenção falar mal da academia, Lergen queria perguntar aos instrutores da menina se o objetivo era fazer uma boneca assassina em vez de uma Segunda-Tenente Feiticeira.

Um típico cadete, aspirante a oficial, sempre exibia grandes inconsistências entre o que falava e o que fazia. Por toda sua ousadia, oficiais novatos eram, por incrível que pareça, inúteis. Não era incomum que falassem aos cadetes entusiasmados para não atrapalharem os veteranos. Contudo, a Segunda-Tenente Degurechaff era um exemplo perfeito de “uma mulher de palavra”. Desde os seus dias na academia, já mostrava vislumbres de valores extremamente realistas.

De acordo com os instrutores entrevistados por Lergen, após ter aprendido sobre a política para os alunos de primeira classe instruir os de segunda, ela proclamou eliminar os idiotas incompetentes. Entusiasmo não era incomum para esses tipos de estudantes, então os instrutores riram como se não fosse nada demais; porém, Degurechaff manteve sua palavra, a ponto de fazer o sangue sair do rosto dos docentes.

Enquanto fazia um treino de campo, um aluno de segunda classe começou a reclamar e contradizer as ordens da Mentora Degurechaff, subestimando-a por conta da idade e aparência. O Major viu o instante em que ela tentou fazer seu dever como oficial de comando, preparando-se para executá-lo por insubordinação ali mesmo, como escrito na lei militar. Esse incidente marcou o momento pelo qual Lergen sentiu que, entre todos os feiticeiros oficiais do Exército Imperial, Tanya Degurechaff era alguém perigosa que valeria a pena ser lembrada.

Claro, o insubordinado deveria ter sido punido de forma severa. Normas e treino compunham o coração do Império. Se ninguém as seguissem, a fundação do exército desmoronaria. Quando o assunto envolvia doutrina fundamental, a postura comum de um oficial era agir com o pulso firme.

Na realidade, historicamente, a arma de um superior servia como uma punição por deserção ou insubordinação. Não havia dúvidas de que manter a disciplina dos seus subordinados era um dos principais trabalhos de um oficial.

Mesmo assim. Degurechaff foi longe demais ao gritar: — Se você é estúpido o bastante para não lembrar de ordens, o que acha de eu abrir esse seu crânio para enfiá-las aí dentro? — E apontou uma lâmina mágica para o cadete que ela derrubara no chão.

Lergen estava certo de que viu a lâmina descendo no momento que o instrutor correu para segurar a menina. Se não tivesse sido parada, aquele homem estaria morto.

Talvez a Tenente fazia uma boa oficial nas linhas de frente, mas a mente dela decerto não era sã.

Em termos de humanidade, ela tinha um parafuso solto. Talvez isso fosse ideal para um militar durante uma guerra. Na verdade, poucos possuíam um perfil inato adequado para o combate. Por isso que o Exército Imperial, bem como o de qualquer nação, treinava as pessoas para serem soldados por meio de regulamentos e exercícios antes de enfim os reconhecerem como combatentes treinados.

Nesse ponto, Degurechaff foi abençoada com grande talento. Chegava a ser tão óbvio que o irritava, precisamente porque Lergen trabalhava no Departamento de Pessoal. A menina era a personificação de um oficial ideal na perspectiva do exército, desde à forma com que, tranquila, usara uma manobra quase autodestrutiva, ao modo como cumpria seu dever com lealdade. Óbvio, ela era claramente perigosa em certos aspectos.

Em particular, o desejo das forças armadas por unidade e coesão, era algo que passava longe da mente dela. A maneira que a Segunda-Tenente pensava era perigosa o suficiente para não poderem deixá-la agir por vontade própria. Ela tinha fome de guerra. Isso forçou o Major a considerá-la um risco em potencial.

— Isso não é brincadeira…

Percebendo que sua opinião pertencia a uma minoria, Lergen, apesar disso, foi tentado a reconsiderar a proposta de condecoração.

A menina protegeu a linha até os reforços chegarem, sua vida estava por um fio quando a infantaria que vasculhava o local a encontrou. Tal conquista era digna de elogios, mas dado o seu temperamento, o Major acreditava que esse era o resultado esperado. Quanto à sua forma de lutar, não foi surpreendente como seguiu ao pé da letra o que os livros diziam ao resistir de maneira tão nobre. Tinha vários ferimentos causados por tiros nos braços e nas pernas, além de sinais de que segurou o orbe operacional com os dentes. Simplificando, tudo apontava que ela tomou a decisão estratégica e sensata de ganhar tempo e de proteger seus órgãos vitais para atrasar o inimigo pelo máximo de tempo possível.

Entretanto, este era o problema. Ao terminar de ler os documentos, Lergen colocou as mãos na cabeça. Era um fato que Degurechaff representava perigo. E, ao mesmo tempo, baseado no princípio de recompensar excelência e punir inadequação, não podia ignorar esse feito incrível. Seria inaceitável se o fizesse.

Não se sabia o que poderia acontecer no futuro, porém, considerando as conquistas que levaram a Segunda-Tenente a receber essas recomendações, muito provável que ela receberia a gloriosa Insígnia Ataque de Asas Prateadas. O Exército do Norte provavelmente considerava este o maior feito nas fases iniciais da guerra. Durante um momento crítico nos primeiros conflitos, uma crise ocorreu. Uma feiticeira da academia teve a distinta façanha que o exército buscava para levantar a moral. Ela obteve resultados concretos. E a história era perfeita. Era uma honra para um feiticeiro ser recompensado com um título, ainda mais no começo da sua carreira. Ele logo compreendeu que o motivo de a terem dado o elegante apelido de “Argenta” foi porque todos estavam empolgados.

Embora Degurechaff talvez não fosse uma heroína para aumentar a moral, Lergen deveria ser justo. Sempre se orgulhou de ser honesto e verdadeiro com o seu trabalho. Entretanto, pela primeira vez, sentiu-se dividido entre as próprias emoções e os deveres de um burocrata militar.

Uma criança desenvolvida para ser uma arma perfeita é apavorante. A única forma de utilizar a Tenente é apontando-a para o inimigo. A transformarei numa heroína. Vou respeitar suas conquistas. Darei meu máximo para que aja por conta própria. E lhe ajudarei da forma que conseguir para ter certeza que ainda poderá lutar. Farei tudo isso, então, por favor, te imploro, vá para a frente de batalha.

Estou certo em dar honra e influência a um soldado que posso apenas ter esperanças de controlar com orações?

— Se apenas isso fosse um ranque mais baixo… — Lergen resmungou para si. A Insígnia Ataque de Asas Prateadas fornecia grande influência e reconhecimento no exército.

A medalha era uma das condecorações mais valiosas que o Império tinha a oferecer. Claro, prêmios por mérito também eram entregues por honra e cortesia depois de anos de serviço contínuo ou até certo ponto da carreira de um soldado. Ainda assim, aquelas ganhadas por coragem e devoção à nação eram vistas com melhores olhos.

Essa tendência era atribuída à força moral e utilitarismo do Império, porém, estava mais para nacionalismo.

Há muito tempo, cada indivíduo recebia uma coroa de louros pelos feitos corajosos. Mas com a modernização do exército, isso foi mudado para as atuais medalhas. Dentre elas, as insígnias de ataque honravam os militares que lutaram bravamente em operações de campo. Era costume que, em ofensivas de larga escala, a unidade da vanguarda recebesse a Insígnia de Ataque Geral, enquanto os que mais contribuíram ganhavam a Insígnia de Ataque com Folhas de Carvalho.

Um soldado portando uma insígnia com as folhas de carvalho era visto como o membro principal da unidade e recebia uma confiança incondicional de seus companheiros. Entretanto, nem essa se comparava à honra de portar a Ataque de Asas Prateadas. Já que era reservada para aqueles que eram como arcanjos indo ao resgate de seus aliados em apuros. Até os requerimentos de nomeação diferiam.

Aqueles nomeados não podiam ser submetidos pelos seus oficiais superiores. Na maior parte das vezes, o oficial comandante da unidade resgatada nomearia o soldado por admiração e respeito. Embora, na maioria dos casos, fosse o oficial da mais alta patente da unidade resgatada que faria isso.

Contudo, essa não era a única particularidade da Ataque de Asas Prateadas; a maioria das pessoas que a receberam já estavam mortas. Em outras palavras, os requerimentos eram tão altos que a insígnia só seria entregue caso o soldado tivesse lutado de forma heroica em condições muito arriscadas.

Poderia um indivíduo salvar toda uma unidade em apuros? Como alguém conseguiria isso? E era possível realizar tamanha façanha por meios normais? Não havia necessidade de pensar muito sobre o assunto, apenas um olhar para as fotos tiradas em comemoração aos que a ganharam servia de resposta. Na maioria delas, as insígnias se encontravam em um capacete repousado sobre um rifle. Os regulamentos oficiais diziam que o único ornamento pelo qual poderia ser entregue ao capacete e à arma no lugar do morto era a Ataque de Asas Prateadas, isso mostrava que não era exagero chamar esses requerimentos de quase impossíveis.

Como resultado, não importava a patente do portador, era apropriado que oficiais e soldados mostrassem respeito a ele. A insígnia evocava este nível de honra.

Devo admitir. Receio o que poderá acontecer se dermos tanta influência a Degurechaff. Essa garota é muito anormal. No começo Lergen suspeitou que a menina havia se conformado bem demais com as vontades excessivas da agência de recrutamento. Perguntando-se se ela passara por alguma doutrinação patriótica fanática. Chegou ao ponto de enviar um conhecido do Departamento de Inteligência para investigar o orfanato. Mas a resposta foi clara. Era um orfanato comum que poderia ser visto em qualquer lugar, de padrões também normais e funcionários adequados. A única coisa que se destacava era que conseguiam providenciar uma nutrição mediana para as crianças, pois as doações deram uma flexibilidade maior para a administração.

Em suma, a base para a lealdade e a vontade de lutar da Segunda-Tenente não eram nem meios para escapar da fome e tampouco uma disposição à prática de violência provocada por abusos. Por curiosidade, o Major checou as respostas da menina no exame de admissão da Academia Militar e acabou descobrindo que ela — este monstro em pele de uma garotinha — havia dito: — Não há outro caminho para mim.

Repleta de devoção e lealdade à nação. Nada menos que uma exibição magnífica do que os militares procuravam em um soldado ideal. Treino contínuo e desejo de se melhorar. Essas coisas eram dignas de elogios. Um militar com qualquer um desses traços faria Lergen perfeitamente feliz como um oficial imperial na administração de recursos humanos.

Se um oficial tem uma combinação dessas, estamos satisfeitos. É exatamente o que o exército quer. Porém, ironicamente, ver essas qualidades encarnadas, o fez perceber que o desejo supremo do Império era apenas outra forma de descrever um monstro. E isso o encheu de medo.

Não sabia o que a menina quis dizer com “não há outro caminho para mim”. Uma de suas teorias era que não passava de um jeito de transformar a sede de sangue, a qual ela tinha guardada dentro de si, em algo prático. Quem poderia afirmar que a garota não nascera faminta por guerra e o exército fosse o único meio de saciar seu apetite?

Quem poderia garantir que não era uma bomba relógio capaz de se deleitar com a imagem do sangue derramado e de sair voando deixando carnificina em seu encalço? Mesmo que se comportasse como o soldado ideal, o quadro geral sugeria que era louca ou, pelo menos, anormal.

Sem dúvidas, ele entendia que não se vence a guerra com gentileza. Sabia, por experiência, que apenas os que enlouqueciam — ou que já eram loucos — podiam não se enojar com algo assim. Mas e se alguém gostar desse sentimento?

Ouviu uma vez que, para um assassino, a teoria e a prática eram apenas uma diferença a nível de estética. Melhor dizendo, um serial killer confundia suas ideias com a aplicação efetiva delas. Na época, rira disso como se fosse apenas uma opinião louca, mas agora a entendia muito bem. Infelizmente, compreendeu. No mínimo, Degurechaff é uma anomalia, diferente de forma intrínseca do resto de nós.

Talvez isso seja um herói… Alguém que diverge do que consideramos normal. Não há nada de errado em admirá-lo, mas jamais iremos ensinar a “seguir o herói”. Não podemos incentivar algo assim. A Academia Militar é uma organização de desenvolvimento dos recursos humanos, não um lugar para criar lunáticos.

 

MESMO DIA, ESCRITÓRIO DO ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO IMPERIAL, SALÃO DE GUERRA.

 

O Estado-Maior decidiu premiar um certo feiticeiro oficial com uma medalha, uma das raras ocasiões em que a Insígnia Ataque de Asas Prateadas era entregue a alguém vivo, o julgamento foi proferido com uma velocidade sem precedentes. Também foi dado um título ao portador. Porém, ao passo que uma área estava agitada por conta da cerimônia de premiação após a vitória, um debate intenso acontecia no Primeiro Salão de Conferências de Guerra do Estado-Maior, onde os guardas impediam a entrada de qualquer pessoa não autorizada.

Para ser mais exato, dois Generais de Brigada de uma estrela⁴ se punham em firme oposição.

— Está errado! Se agirmos dessa forma, perderemos a flexibilidade para responder de maneira rápida, um risco que supera em muito os benefícios! — Um soldado másculo no auge de sua idade se pôs de pé e gritou em protesto. Os olhos azuis-claros transbordavam uma confiança que o fazia parecer arrogante, entretanto todos que encontravam seu olhar viam que estava sempre voltado para a realidade. O Estado-Maior considerava o General de Brigada von Rudersdorf um oficial cujo balanço entre confiança e habilidade o tornava excepcional. No momento, este homem ignorou a própria reputação e tudo mais, bateu na mesa e prosseguiu: — Nós já temos tropas o suficiente em campo para enfrentá-los enquanto fogem! Precisamos manter uma tática versátil ao mesmo tempo que aplicamos um grau razoável de pressão neles. Nada mais!

— Igualmente, também devo expressar minha opinião. Tivemos sucesso na destruição das forças inimigas em campo. O que mais podemos ganhar com a guerra? Já atingimos nosso objetivo de defesa nacional. — O homem concordou com a ideia de manter a flexibilidade tática. Quieto e de uma aparência erudita, o General de Brigada von Zettour passava uma impressão moderada, característica de uma pessoa que se portava como um soldado. Ele se juntou ao debate, falando com naturalidade, tal como faria um matemático checando o resultado de suas contas.

— Ambos apresentaram ideias válidas… Gostaria de comentar, General von Ludwig? — Presidindo a sessão, o Ajudante de Ordens Marchese sentia que os argumentos apresentados pareciam muito razoáveis para simplesmente desconsiderar. Claro, ele era experiente o bastante para ignorar pontos de vista opostos no debate se achasse necessário.

No entanto, não era como se Marchese não tivesse seus próprios motivos para ficar preocupado. Considerando que a posição tomada pelo Estado-Maior teria uma influência direta sobre o comandante no escritório chefe, valeria a pena ir mais a fundo. Portanto, perguntou ao General de Divisão von Ludwig, chefe do Estado-Maior, que defendia uma ofensiva em larga escala. Tinha a intenção de ouvir os dois lados.

— Sei que é bom ter prudência, mas não há sequer um cheiro de mobilização de alguma nação vizinha. Se quisermos executar uma investida em larga escala sem essas restrições que temos, essa não é uma oportunidade de ouro?

O chefe do Estado-Maior se levantou com um olhar complicado no rosto. Aparentava estar confuso pela posição contrária vinda dos dois subordinados pelos quais ele tinha altas expectativas. Contudo, também sentia raiva. Por estar tentando organizar as suas emoções, tudo o que os outros viram foi sua expressão estranhamente perplexa.

— Mas senhor, ao menos, seria prudente limitar o tamanho da mobilização! Se usarmos todos os nossos recursos iremos destruir a premissa fundamental do Plano 315⁵! — Rudersdorf contestou.

Essa crítica era o resultado da situação geopolítica do Império, a única potência cercada por outras grandes forças globais, assim, em termos de defesa nacional, encontrava-se numa posição difícil de sempre ter que considerar a possibilidade de uma guerra em múltiplas frontes.

Existia também o contexto histórico de como a nação havia construído sua reputação de uma nova potência militar. Obrigado pelo medo e pela necessidade geográfica, o Império teve que almejar por uma superioridade militar capaz de suportar uma guerra de duas frontes.

— Não quero apenas repetir o que o General von Rudersdorf disse, mas não seria bom alterar nossas políticas de defesa nacional, incluindo o Plano 315 — acrescentou Zettour.

Assumindo que estavam cercados por potenciais inimigos em todos os lados, mobilizar e administrar as tropas de forma efetiva ao longo das linhas interiores se tornou a única opção de defesa. O plano detalhado exigia a mobilização em massa para neutralizar o exército de um único inimigo em potencial com forças superiores em número e qualidade. Depois disso, os militares iriam se preparar para enfrentar as outras nações hostis. Este era a política de defesa do Plano 315. A fim de sobreviver a uma guerra de duas frontes, quase impossível de ganhar, o plano tinha sido polido até os mais específicos horários de trem… A estratégia era considerada um obra-prima para o Império. Colocando de outra forma, levaria muito tempo para formar um novo plano se jogassem este fora.

— Zettour, temos que evitar o envio de forças fragmentadas. Não é preciso repetir isso.

— Estou ciente da tolice que é uma mobilização gradual, mas acho questionável a ideia de mobilizar todas as nossas tropas agora que destruímos o exército de campanha do adversário.

Por outro lado, o argumento de Ludwig também fazia sentido. Levando em consideração que o Reino de Ildoa, a República de François e a Federação Russi não apresentaram sinais de mobilização, o palco estava pronto para a derrota absoluta da Aliança Entente. Se o Império fosse atacar, tinha que ser com toda a força.

Todavia, quanto ao lançamento de uma ofensiva imediata, a opinião de Zettour, de que a vitória em Norden já era o suficiente, batia de frente com a ideia do chefe do Estado-Maior Ludwig.

— Concordo com o General de Brigada von Zettour. A vitória está ao nosso alcance, devíamos nos perguntar em como explorar seus frutos! Se mobilizarmos as tropas sem um plano claro, o objetivo tático será ambíguo demais, não vejo como isso beneficiaria nossa defesa nacional. — Rudersdorf não sentia necessidade de aumentar as conquistas. A questão era apenas saber a melhor forma de utilizar os ganhos uma vez que tivessem entendimento da situação. Mesmo que não fosse o ponto principal de sua proposta, o comprometimento da sólida política de defesa nacional sem plano algum também lhe preocupava.

— Enquanto o comandante-chefe não nos passar orientações, Rudersdorf, o Estado-Maior pode apenas buscar aumentar os ganhos militares.

— General, com todo o respeito, seria inconcebível conduzir uma operação militar sem um objetivo tático evidente. Sou totalmente contra uma invasão imprudente que pode arruinar a nossa política de defesa nacional. — Rudersdorf rebateu.

Zettour assentiu com uma expressão amarga no rosto.

— A oportunidade não espera ninguém! Estamos preparados para acabar com a disputa territorial em Norden de uma vez por todas nessa próxima expedição! Podemos resolver o problema geopolítico do Império!

Os aplausos que soaram de alguns dos participantes não eram injustificáveis. Zettour imaginou um belo futuro onde seu país estava livre do eterno problema de ser cercado de todos os lados por outras nações. Se dessem um golpe devastador na Aliança Entente, poderiam eliminar de vez uma de suas ameaças em potencial. Era uma oportunidade única de solucionar o obstáculo geopolítico que os assombrava por séculos.

— Discordo! Não podemos seguir essa ideia à custa de nossa defesa bem estabelecida! — O ponto de Rudersdorf atacou direto no cerne da divergência dos dois lados. Deveriam buscar um futuro seguro arriscando comprometer seu atual plano de defesa? — O objetivo do Império é a segurança nacional. Tendo em vista que estabelecemos uma fronteira graças ao Tratado Londino, talvez esse problema nem exista mais.

Zettour chegou até mesmo a dizer que deveriam esquecer a Aliança Entente. Em outras palavras, não queria abrir o buraco que o tratado havia tampado.

— Não há necessidade de fazer o que o inimigo quer! Não seria melhor seguir o nosso próprio plano? Pretende jogar fora todas as nossas preparações?!

Sobretudo, assim como Rudersdorf havia argumentado com veemência para aqueles ali presentes, essa decisão afetaria a base da defesa nacional do Império.

O Plano 315, alterado constantemente pelo Estado-Maior no decorrer dos anos, era a única política viável para proteger a nação dado a sua situação geopolítica. Cercada por inimigos em potencial, a decisão foi — não importando qual país iniciasse o efeito dominó que seria a primeira invasão — defender o território por meio de contra-ataques coordenados. Na realidade, eles não conseguiram criar outro plano com as mesmas chances de sucesso.

— Quer perder a chance de sair deste cerco, mesmo que parcialmente?

— Se conseguirmos enfraquecer a Aliança Entente, poderemos nos concentrar mais ao leste. E a oeste, poderemos tentar construir uma linha de defesa menos tensa contra Albion e François.

No entanto, eles continuaram com os argumentos um após o outro, o fim parecia longe. O debate originou-se do desejo incontrolável do Estado-Maior em abraçar essa oportunidade; poderiam finalmente escapar desse impasse. Se agirmos agora… Neste momento, pela primeira vez desde a fundação do Império… Poderemos acabar com esse obstáculo de uma só vez.

— Temos sorte de nenhuma potência mostrar sinais de mobilização. Acredito que se agirmos agora, eliminaremos a raiz dos problemas da nossa nação.

Não tinham como saber se essa seria a melhor decisão a se tomar… Pelo menos, não nesse momento da história.


Notas:

1 – Regras de Engajamento. São os meios pelos quais o Comando de uma Força Armada, empregada em uma operação de guerra (bélica) ou de não guerra (não bélica) mantém o controle sobre o uso da força no cumprimento da missão recebida do Poder Político.

2 – A artilharia autopropulsada (AP) ou artilharia automotora consiste na artilharia de grande mobilidade, equipada com armas montadas em veículos terrestres, que podem disparar a partir deles. Este tipo de armas inclui, normalmente, tanto as peças de artilharia, morteiros e obuseiros autopropulsados, como os lançadores autopropulsados de mísseis e foguetes.

3 – Artilharia a tratores ou rebocada: constituída por armamento que se desloca rebocado por tratores mecânicos, que podem ser veículos sobre rodas ou sobre lagartas, blindados ou não. Algum do armamento rebocado pode estar montado em reparos que dispõem de um motor auxiliar que lhes permite deslocar-se autonomamente em distâncias muito curtas, o que facilita a alteração da posição de tiro.

4 – Através de pesquisas extensas, soubemos que estes chefes do exército ocupam posições que não existem no exército brasileiro. Levando isso em consideração, como o local baseado e a época que se passa a obra, tivemos que adicionar a quantidade de estrelas do General de Brigada. No Brasil não há um General de Brigada de uma estrela (OF-6), somente General de Brigada de duas estrelas (OF-7). Como a obra se passa antes da segunda guerra e baseada na Alemanha, nem havia outras divisões de forças armadas (como aeronáutica e marinha), que só foram formadas em 1956.

Em futuras menções, quando os cargos deles subirem uma estrela, ainda estaremos utilizando General de Brigada, adicionando a ênfase que é “de duas estrelas”, mesmo que na Alemanha seja “General-major”.

5 – Este plano faz referência ao Plano Schlieffen do exército alemão no início da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Foi concebido pelo chefe do Estado-Maior alemão em 1892 a 1906. O plano previa resolver uma questão que preocupava os alemães em caso de conflito: uma guerra em duas frentes, ou seja, uma guerra contra a França e, muito provavelmente, contra o Reino Unido, na frente ocidental e, simultaneamente, uma guerra contra a Rússia, na frente oriental.

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