Capítulo 2: Além da Noite Tranquila
Tradutor: João Mhx
A dor nunca foi embora.
Mas Haruhiro pensou: “Estou feliz.”
Obrigado, dor.
Obrigado a Você!
Por quê?
Agradecer?
O que há para agradecer?
Está doendo.
Dói muito.
Não há nada além de dor.
O Haruhiro estava andando? Ou ele havia parado?
“Haru-kun.”
É a Yume.
Ele ouviu a voz de Yume. Ela estava dizendo alguma coisa. O que Yume poderia estar dizendo? Yume estava dizendo alguma coisa. Disso ele tinha certeza. Mas ele não conseguia entender. E ainda assim, apesar de não ouvi-la direito, ele estava balançando a cabeça. Mm-hm, mm-hm, Haruhiro estava balançando a cabeça.
Mm-hm.
Mm-hm…
Por quê?
Por que Haruhiro estava balançando a cabeça? Sobre o que ele estava balançando a cabeça?
Com certeza está escuro, pensou ele.
É noite.
Já era noite?
Hã…?
Ele achou isso estranho.
Não era noite antes também…?
Antes?
Antes de quê?
Antes…
Antes da noite. A noite anterior.
A noite vem e vai. Noite e dia.
Portanto, esta noite e a noite anterior não eram a mesma. Aquela tinha sido uma noite diferente.
Essa deve ser a razão… Sem dúvida…
Ainda assim, onde foi isso?
Onde estou de novo?
pensou Haruhiro sem realmente pensar.
Por onde estávamos andando…?
Nós.
Ah…
Ah, certo.
Agora fazia sentido para Haruhiro. Pois é. Ele tinha ouvido a voz de Yume.
Eu não estou sozinho.
Yume estava com ele. Ali, ao lado de Haruhiro. Yume estava caminhando ao seu lado. Ficando com Haruhiro. Ela estava preocupada com ele.
“Haru-kun.”
“Haru-kun?”
“…Haru-kun?”
“Haru-kun…”
Yume falava com ele toda vez que algo surgia.
Eu não estou… sozinho…
Alguém estalou a língua.
Não era a Yume, né…?
Não era. A Yume não estalava a língua assim.
Foi o Ranta.
Ele me irrita…
Sempre que havia algo de que o Ranta não gostava, ele estalava a língua. Devia ser um hábito.
Será que ele poderia parar…?
Ele queria dizer “para com isso”.
Mas estava abalado.
Bem… Prefiro tê-lo aqui do que não tê-lo…
Yume.
Ranta.
E Itsukushima também estava por perto.
Além disso, Poochie. O cão-lobo estava com eles.
Poochie… Há quanto tempo ele estava aqui…?
Inicialmente, ele não estava por perto. Não, não no começo… No início?
A que momento se referia “no início”?
Quando eu notei… ele estava lá.
A que horas foi “no início”?
Quando?
Haruhiro tentou se lembrar disso.
Quando eu percebi…
Foi quando eles deixaram o Reino Sangue de Ferro? O Poochie estava com eles?
Ele não estava. Não, Haruhiro achava que não.
Em algum lugar… Sim… Nós o encontramos em algum lugar. Onde foi…?
Quando?
Onde?
Onde…?
Onde foi isso?
Isto é…
Não era a floresta. Ele não estava mais no mar de árvores que se espalhava pelo sopé da Cordilheira Kurogane. O terreno aqui era plano. Sem elevações ou depressões repentina. Andar por ali não tinha sido nem de perto tão fácil.
Onde fica esse lugar…?
Será que Haruhiro estava pensando nisso? Ou ele estava dizendo isso?
Dizendo isso?
O Haruhiro estava falando?
Com quem?
Com ele mesmo?
Ele estava falando consigo mesmo?
Sim.
Sim…
Quando se deu conta, Haruhiro estava balançando a cabeça.
“Haru-kun?”
Era a voz de Yume.
Sim.
Sim…
Ele precisava responder. Sim. Precisava lhe dar uma resposta.
Sim… eu preciso, não preciso…?
Não posso deixá-la preocupada, pensou Haruhiro. Eu estou bem.
Estou totalmente bem.
Eu estou bem?
Eu, bem?
Como estou bem?
Já era noite.
No final das contas, isso era tudo o que Haruhiro sabia.
“Ah, que se dane! Yume, deixe-o descansar! Ele claramente não pode fazer isso!”
“Mew. Haru-kun, sente-se aqui. Ok?”
Sim.
Sim…
Mas estou bem…
Andar, sentar, até mesmo deitar, nada disso mudaria muito. Sendo assim, não era melhor que ele continuasse se movendo? Movimentar-se. Andar.
Era melhor se mexer?
Para quê?
Ele não sabia. Havia muito pouco que Haruhiro sabia. Muito pouco.
De qualquer forma, ele parecia estar sentado. Alguém provavelmente o havia sentado. Yume, que estava cuidando dele, talvez.
Quando ele estava assim, sem se mexer, parecia que estava afundando lentamente na terra. Talvez estivesse exausto. Só pode ter sido isso. Exaustão. Um conceito importante. Haruhiro provavelmente estava exausto. Como poderia não estar? Ele estava exausto e com dor também. Dor. Outro conceito importante. Ela doía. Doía de verdade.
Mãos? Eu as tenho? Minhas mãos…
No final das contas, suas mãos esquerda e direita ainda estavam lá? Por algum motivo, Haruhiro não conseguia senti-las. Elas ainda estavam presas? Será que caíram?
Elas doíam…
Bem, nesse caso, elas não poderiam ter desaparecido. Provavelmente estavam lá. Ele ainda tinha suas mãos. Se ele tivesse perdido as duas mãos, elas não poderiam estar machucadas agora.
Machucar.
Dor.
Um estímulo e uma resposta definidos.
As mãos, que estavam lá, doíam.
“Haru-kun, vou trocar suas ataduras, está bem?”
Sim.
“Está doendo, não é? Não tem como não doer.”
Sim…
“Aguente mais um pouco, está bem?”
Está bem.
Ele aguentaria.
Eu estou bem…
“Estranho, não é?”
O que é estranho…?
“Sim.”
De quem eram aquelas vozes? Duas pessoas estavam conversando.
“Devem ser as Planícies de Bordo. É um antigo campo de batalha, certo?”
Planícies de Bordo…
“Sim. É o que dizem.”
“A história diz que, há muito, muito tempo, os anões lutaram contra a Aliança dos Reis e morreram como loucos nos campos daqui, não é?”
Planícies de Bordo.
Era assim que as pessoas chamavam as planícies entre a Cordilheira Kurogane e as Montanhas Dioze há muito tempo.
Eu acho…
Embora fossem chamadas de planícies, elas eram entrecruzadas por centenas, talvez milhares de ravinas finas, como marcas de garras deixadas por um deus demônio. No entanto, por causa de toda a grama e dos arbustos, as ravinas não se destacavam muito, e havia um sério risco de cair acidentalmente em uma delas. As Planícies de Bordo pareciam um campo gramado despretensioso durante o dia, mas a área era, na verdade, bastante perigosa. E à noite era possível ver claramente, mesmo sob a fraca luz da lua, que as Planícies de Bordo eram ainda mais perigosas.
“Ouvi dizer que havia mais cadáveres em movimento do que insetos. Pode ser um exagero, no entanto.”
“Sim, acho que sim.”
“De qualquer forma, é tudo por causa daquela coisa. Você sabe, a maldição do No-Life King.”
“Sim.”
“Não era para os mortos começarem a vagar à noite por causa disso? Porque não estou vendo nenhum deles. O que está acontecendo?”
As Planícies de Bordo… Ah, estou vendo, pensou Haruhiro. Esta não é a floresta. É as Planícies de Bordo. “Eles também a chamam de ‘Campo dos Homens Mortos’ “, disse Ranta, cheirando. “Eu achava que o lugar era uma má notícia, então estava me preparando para isso, sabe?”
“Enquanto está claro lá fora…” Itsukushima estava aparentemente tentando acender uma tocha. “Os mortos se escondem nas inúmeras ravinas, e depois saem rastejando quando escurece.”
“Barrancos, hein? Deve haver algumas por aqui também, certo?”
“Sim. Por que você não vai dar uma olhada?”
“Você não está tentando fazer com que eu morra, está?”
“Tudo bem, é natural sentir medo.”
“Quem você está chamando de medroso? Nada assusta um cara tão incrível quanto eu.”
“Ah, sim?”
“Como se eu fosse ficar com medo. Não, não. De jeito nenhum. Sim. Vou só dar uma mijada e dar uma olhada enquanto faço isso. Só uma olhadinha, sabe?”
“Tenha cuidado.”
“Heh. Não precisa. Afinal de contas, sou invencível.”
“Mesmo que você consiga lidar com os mortos, ainda será difícil sair das ravinas se você cair.”
“Para qualquer um que não seja eu, certo? Você não sabia? Eu posso pular como se tivesse asas, está me entendendo?”
“Parece conveniente.”
“Não fique me ignorando, meu velho…” Então, virando-se para Yume, Ranta disse: “Ei, vou dar uma mijada”.
“Você não precisa avisar a Yume toda vez que tiver que fazer xixi.”
“Por que eu não deveria? De qualquer forma, cuide daquele idiota, Parupiro, para mim.”
“A Yume está cuidando dele muito bem sem que você diga nada. E o Haru-kun não é um idiota, certo?”
“Não fique brava.”
“A Yume não está ficando brava.”
“Sim, você está. Seja mais tolerante. Deixe seu coração voar livremente.”
“Você está falando demais.”
“Já pensou o que aconteceria se eu ficasse quieto? Seria o fim do mundo de verdade.”
Ranta saiu andando para algum lugar. Para onde ele estava indo? Para se aliviar, talvez? Haruhiro sentiu como se estivesse dizendo algo assim.
“Haru-kun?” Yume colocou uma mão nas costas de Haruhiro. “Você está chorando?”
Haruhiro balançou a cabeça. Era para cima e para baixo ou para a esquerda e para a direita? Nem mesmo ele sabia. Haruhiro não conseguia respirar direito. Ele estava ofegante. Como um homem se afogando. Ele estava se afogando. Embora esse lugar, as Planícies de Bordo, fosse em terra firme. Obviamente. Seus pulmões estavam com espasmos. Seus olhos estavam quentes. A parte interna de seu nariz também.
Desculpe…
Se ele abrisse a boca agora, tinha a sensação de que algo estranho aconteceria. Haruhiro não havia dito nada. Nenhuma palavra teria saído de sua boca.
“Você não precisa pedir desculpas”.
No entanto, por alguma razão, Yume continuou repetindo isso enquanto acariciava suas costas.
“Ouça, Haru-kun. Não há necessidade de se desculpar, entendeu? Você não tem nada pelo que se desculpar. Então, pare com isso, está bem? Não há problema em você chorar. Você pode ir em frente e chorar muito, muito bem, mas não se desculpe”.
Ele não tinha percebido que estava chorando. De quem vinham aqueles soluços? Provavelmente dele mesmo. No entanto, o ladrão não conseguia se imaginar derramando lágrimas. Que motivo tinha para chorar? Ele não estava triste. Não sentia nada parecido com raiva. Será que ele estava em desespero? Não podia dizer que não estava. Mesmo assim, não era como se ele não tivesse esperança. Yume estava com ele, assim como Ranta. De alguma forma, os dois ficaram ao seu lado. Haruhiro sentia que era um fardo para eles. Um peso morto. Como o grupo tinha Ranta, Yume, Itsukushima e Poochie, eles já estavam completos. Eles ficariam bem sem Haruhiro. O ladrão não tinha lugar aqui.
Em algum momento, Haruhiro se deitou. Havia algo firme apoiando sua cabeça. Algo quente. Era Yume. A cabeça de Haruhiro estava apoiada no colo dela.
Tudo bem? Ele se perguntou vagamente. Ele se sentia culpado. Como se não devesse estar fazendo isso, pelo bem de Ranta. O cavaleiro das Trevas tinha saído para algum lugar e ainda não tinha voltado, mas quando voltasse, provavelmente ficaria furioso.
Eu não deveria impedi-la?
Mas Haruhiro só pensou nessas palavras. Ele não podia dizer nada. Ele não estava em posição de falar.
Honestamente, o ladrão estava agradecido. Yume estava fazendo muito para ajudá-lo.
Haruhiro estava tocando as coxas de Yume. Ou melhor, ele estava esfregando seu rosto contra elas. Mais precisamente, ele estava enterrando o rosto nelas. Por meio de seu contato com Yume, ele teve a sensação concreta de que estava conectado a algo. Essa era uma sensação de que Haruhiro precisava desesperadamente agora.
Talvez não precisasse ser Yume. Mas ela era a única que estava ao lado de Haruhiro agora. Somente ela.
Ele estava feliz por ser a Yume.
Haruhiro não conseguia, com precisão, definir o que Yume representava para ele. Companheira, sim. Amiga, também. Mas era muito mais que isso. Apenas “amiga” e “companheira” não chegavam nem perto.
“Ugh! Não consigo ver nada! Está muito escuro!” Ranta estava gritando em algum lugar ao longe.
“É claro que ele não consegue. É a calada da noite, sabe?” Yume disse enquanto acariciava a cabeça de Haruhiro como se ele fosse uma criança, soltando uma risadinha. Apesar dessa risada, sua voz estava chorosa.
A perda deles foi imensa.
Tantas coisas haviam lhes sido tiradas.
Parecia que haviam perdido tudo e estavam à beira do colapso. Mas pelo menos a noite estava tranquila.
Tranquila demais, na verdade.
Em algum momento, as pálpebras de Haruhiro se fecharam. Provavelmente ele as fechou sozinho. Achava que Itsukushima estivesse acendendo uma fogueira, mas não conseguia ver nenhuma luz.
Ouviu a respiração de Yume. Ou talvez fosse a sua própria respiração. Parecia estar se fundindo com a noite. Ele vagamente se lembrava de ter pensado isso. A noite que envolvia as Planícies de Bordo estava transformando Haruhiro em geleia.
Abriu os olhos. Ainda estava escuro. Não um breu absoluto. O céu agora tinha um leve tom de cor. O amanhecer se aproximava. Haruhiro continuava deitado de barriga para cima, com a cabeça no colo de Yume. Ela estava deitada com as pernas estendidas. As mãos entrelaçadas repousavam sobre o plexo solar.
Haruhiro tentou sentir as mãos. Bem, elas não haviam desaparecido. Ao levantar os braços, sentiu dor. Força fluía pelos pulsos. Ele podia até mexer os dedos.
Estava em melhor estado agora do que antes de desmaiar, pelo menos. Conseguira dormir um pouco, embora não soubesse quanto. Talvez fosse por isso.
Ele tentou se levantar, mas sua cabeça estava embaçada e ele não tinha certeza se deveria. Ele não se sentia bem. Não, ele se sentia mal, mas já havia sobrevivido a coisas piores.
A fogueira havia se apagado. Poochie, o cão-lobo, estava deitado ao lado dela. Itsukushima estava sentado no chão, apoiando as costas em seu companheiro animal. Ele estava acordado? Não, parecia que estava dormindo.
Poochie levantou a cabeça para olhar para Haruhiro. Seus olhos se encontraram. Então, o cão-lobo imediatamente se deitou novamente.
“Ranta…?” Haruhiro chamou o nome do cavaleiro das Trevas em voz baixa. Ranta não estava em lugar nenhum.
O ladrão hesitou por um tempo, depois descansou a cabeça no colo de Yume novamente. Ele já tinha uma desculpa pronta para isso. Talvez não fosse a pior sensação que já teve, mas ainda estava mal. Ele não estava em condições de se mover, então precisava descansar. Ele não queria fazer nada, e não podia. Ele só queria que alguém lhe dissesse claramente que ele não precisava fazer isso. Haruhiro estava se entregando à bondade de Yume. Ela o deixaria fazer isso incondicionalmente.
Haruhiro voltou a dormir. Quando abriu os olhos novamente, o dia estava um pouco mais claro do que da última vez. Pouco antes de o sol nascer, ele imaginou.
Yume estava respirando suavemente enquanto dormia. Itsukushima e Poochie tinham saído para algum lugar. Talvez para explorar ou algo assim?
“Você está acordado agora, não é?” Ranta se agachou e olhou para Haruhiro.
“Sim…”
Sua garganta estava apertada e era difícil falar. Haruhiro respirou fundo. Ele poderia estar com febre. Seus ferimentos provavelmente estavam infeccionando.
Ranta estalou a língua. O cavaleiro das trevas não estava usando aquela máscara de mau gosto que ele tanto gostava. Em seu lugar – embora não a substituísse – ele tinha bandagens enroladas na parte superior direita da cabeça e na orelha esquerda. Elas não eram apenas para exibição. Estavam cobrindo os ferimentos da katana que ele havia recebido.
Ranta havia levado um golpe do Takasagi. O corte – que começou acima do lado direito da testa, passou diagonalmente entre as sobrancelhas e continuou abaixo da orelha esquerda – pode tê-lo marcado para o resto da vida.
“Isso tá foda.” Disse Haruhiro com voz rouca.
Ranta bufou e deu de ombros, respondendo: “Sempre fui foda.”
“Ah é?”
“Aposto que dormiu bem. Você tem um travesseiro daqueles, hein.”
“É… acho que sim, né?”
“É melhor você ficar grato, seu pedaço de merda.”
“Eu estou,” Haruhiro ia dizer quando, de repente, Yume soltou um resmungo estranho.
“Fwuhhh! É de manhã, hein?” disse ela, sentando-se usando apenas os músculos abdominais. “Mmmeww. Bom dia, Haru-kun.”
Ao ver o sorriso radiante no rosto dela, Haruhiro não pôde evitar um sorriso largo e respondeu com um “bom dia” também.
“Caramba… que graça divina você tem…” Ranta estava murmurando para si mesmo.
“O quê?!” Os olhos de Yume estavam arregalados. “Você também está aqui, Ranta? Hein?”
“Não fale de mim como se eu fosse irrelevante! Eu não sou apenas mais uma pessoa. Eu sou o maldito protagonista!”
“Muh? Você é um proto-névoa?”
“Não, não foi isso que eu disse, e que diabos é um proto-névoa?”
“Como a Yume poderia saber? Foi você quem se chamou de proto-névoa, Ranta.”
“Eu não disse isso! Não tente jogar seus crimes em mim!”
“Yume também não está tentando te dar limas, né?”
“É, não tem nenhuma lima por aqui. Esse não é exatamente o tipo de lugar que você encontraria elas, saca?”
“Yume tem pensado há um tempo, às vezes parece que falar com você não dá pé nem cabeça.”
“Você é quem não faz sentido nenhum! E o que diabo ‘pé nem cabeça’ quer dizer?!”
“‘Pé nem cabeça’ é como primo do ‘falar besteira’ e parente mais distante de ‘resmungar’ e ‘saquear’.”
“Você está mexendo com a minha cabeça!”
“Nossa. Seu cabelo está todo liso assim porque seu cérebro fritou?”
“Eu nasci assim! Espere… ninguém nunca chamou meu cabelo de liso antes?!”
“Com certeza está animado por aqui”, disse Itsukushima ao voltar com Poochie. O caçador tinha vários ratos do campo grandes pendurados em sua cintura. Ele pode ter colocado armadilhas para eles. Haruhiro tentou se sentar e Yume o ajudou.
“Tente não se esforçar”, disse ela.
“Você não consegue nem se levantar sozinho?” disse Ranta, sorrindo um pouco.
Haruhiro conseguiu se levantar de algum jeito, firmando os pés no chão e inspirando profundamente. Inclinou-se para a frente, alongando o corpo, e depois girou os braços em círculos, o que fez seus ferimentos doerem. Isso o forçou a soltar um gemido involuntário.
Itsukushima sorriu um pouco.
“Você é tão jovem.”
Seu tom não sugeriu que ele estava sendo sarcástico.
“Não sei quanto a isso.”
“Está se sentindo bem o suficiente para dar uma olhada em algo horrível?”
“Será que estou…? Uh, bem, talvez não. Mas tenho a sensação de que isso é algo que preciso ver, certo?”
“Talvez.” Itsukushima começou a andar. “Todos, me sigam.”
Poochie seguiu atrás de Itsukushima. Haruhiro, Ranta e Yume olharam um para o outro por um momento. Então eles foram atrás do caçador e seu cão-lobo.
Itsukushima não tinha ido longe. Não mais do que cem metros ou mais de onde haviam acampado. Depois de passarem por cerca de dez metros de arbustos na altura do peito, Poochie parou. Parecia que o cão-lobo não queria ir mais longe. Seu focinho se enrugou um pouco, com uma expressão de desagrado no rosto. Ou talvez fosse inquietação. Itsukushima, junto com Haruhiro e os outros, continuaram por mais alguns metros.
Havia um barranco do outro lado dos arbustos. Ela tinha menos de quatro metros de largura e vários metros de comprimento – Haruhiro a considerou como tendo cerca de cinco ou seis metros. Provavelmente, também tinha mais de cinco metros de profundidade.
Ranta se inclinou sobre a borda da ravina e olhou para baixo.
“Está cheio deles…”
Haruhiro se ajoelhou e abaixou a cabeça para dar uma olhada melhor. O sol já estava nascendo, mas ele ainda tinha que apertar os olhos para ver o fundo da ravina.
Yume se agachou ao lado de Haruhiro e abraçou os joelhos.
“Nwuhohh…”
Os esqueletos e os restos mortais dessecados no fundo da ravina estavam empilhados uns sobre os outros. Eram muitos para contar. Alguns dos corpos estavam nus, enquanto outros usavam capacetes ou cota de malha. Pedaços de roupas deterioradas se agarravam a alguns deles. Muitos, no entanto, não estavam apenas sem roupas, mas também sem a maior parte da carne. Machados de guerra, lanças, espadas e escudos, ou o que restava deles, chamaram a atenção de Haruhiro. Com base em seus corpos atarracados e barbas, a maioria dos mortos aqui eram anões.
Eu não diria que “enxame” é a palavra certa”, Itsukushima corrigiu Ranta em um tom de voz seco.
“Os mortos não estão se movendo. Quando passei pelas Planícies de Bordo antes, eles se contorciam mesmo durante o dia.”
Os mortos estavam se aglomerando nas sombras das ravinas, onde a luz do sol não chegava, mesmo quando não era noite. Era assim que acontecia antes.
Yume bateu as palmas das mãos. Ela havia abaixado a cabeça e fechado os olhos. Provavelmente estava rezando pelos que partiram.
“A maldição…” murmurou Ranta. “Ela desapareceu, não foi? A maldição do No-Life King…”
“Veja”, disse Itsukushima, apontando. “Ali.”
Não era o fundo da ravina. Ele estava apontando para o declive íngreme do outro lado. Não havia muita grama ou musgo nela, apenas o cinza e o marrom da sujeira e da rocha expostas.
Aquilo é uma cobra?
Esse foi o primeiro pensamento de Haruhiro. Havia uma criatura parecida com uma cobra subindo a encosta.
Longa, fina e preta como azeviche.
“Hrm…?” Yume arregalou os olhos e olhou para a encosta. Ranta inclinou a cabeça e deu uma olhada longa e atenta na área.
Era muito longa para uma cobra. Muito longa, na verdade. Traçando-a com os olhos, Haruhiro viu que a coisa ia desde o fundo da ravina, que estava repleta de mortos, até a encosta firme de pedra e terra e a borda do outro lado.
Também não era a única.
Havia várias criaturas parecidas com cobras.
“O que…”
Haruhiro estremeceu e olhou para baixo, para seus pés. Elas estavam apenas daquele lado? De repente, ele suspeitou que talvez não fosse esse o caso.
Para o bem ou para o mal, não havia nenhuma perto do grupo. Mas havia uma cobra preta a cerca de dez metros à direita deles.
“Sh…”
“Uau?!” Ranta gritou quando percebeu o fato.
Itsukushima parecia imperturbável, já que ele parecia saber sobre eles com antecedência, mas Yume disse “Gwuhwhuh?!” e pulou no ar.
“Que-que-que-que?!” Ranta estava claramente em pânico, mas tinha presença de espírito suficiente para manter uma mão no punho de sua katana.
Havia algo diferente naquelas criaturas. Não eram cobras. Talvez nem mesmo fossem criaturas.
Haruhiro se levantou. Ele caminhou ao longo da borda da ravina para a direita.
“Haru-kun?!” Yume correu atrás dele.
Ranta o seguiu hesitante, balbuciando: “Ei, cara, ei! Não seja estúpido!”
Haruhiro parou a sessenta ou setenta centímetros da coisa longa e preta. Ela havia se arrastado das profundezas da ravina e estava indo em outra direção.
Haruhiro olhou para o céu, calculando a direção geral com base na posição do sol.
“Leste – e talvez um pouco ao norte, eu acho?”
Será que a coisa preta, longa e fina estava se movendo, saindo da ravina e indo em direção ao leste-nordeste? No entanto, ele não tinha certeza se realmente estava se movendo.
Haruhiro se inclinou. Parecia completamente imóvel, mas também parecia estar se movendo ligeiramente. Ele não tinha certeza.
“O que tá parecendo?” Ranta perguntou, colocando a cabeça por cima do ombro direito de Haruhiro.
E se ele empurrasse Ranta para a frente dele e fizesse o cavaleiro das trevas pisar na coisa preta, longa e fina? Haruhiro pensou nisso por um momento, mas, infelizmente, suas mãos estavam fora de serviço. Além disso, antes que ele pudesse fazer qualquer coisa, Yume se aproximou e gritou: “Pegue isso!”, enquanto lhe dava um chute firme.
“Por quê?!” Ranta pulou em cima de Yume, seu rosto era uma máscara de pânico. Ele a agarrou e a puxou para trás e para longe. “O que você acha que está fazendo, Yume?! Isso é perigoso! O que eu devo fazer se algo acontecer com você?!”
Haruhiro também estava suando muito. Embora Yume pudesse ser excessivamente ousada às vezes, ela não era imprudente. Ela tinha sua própria maneira de julgar essas coisas. Algo a fez decidir que poderia não ter problema.
Haruhiro se aproximou mais, cutucando a coisa preta com a ponta da bota. O estímulo não fez com que ela se movesse. Ele pressionou-a levemente com o pé e sentiu uma espécie de vibração sutil. Ele não achava que estava imaginando aquilo. A coisa realmente estava se movendo.
Teria saído da ravina para ir a algum lugar? Isso não estava claro, mas ele podia ver que a coisa continuava se movendo até sumir de vista.
Haruhiro tirou o pé de cima dela. Tinha menos de cinco centímetros de diâmetro. Talvez três ou mais. Sua seção transversal era redonda? Não parecia ser plana.
Havia várias coisas de aparência semelhante – na verdade, pareciam exatamente iguais – estendendo-se para fora da ravina – dezenas, possivelmente, embora talvez “crescendo” fosse a palavra certa. Haruhiro também não achava isso muito certo, mas não conseguia pensar em outra maneira de descrevê-las. No entanto, ele sabia o que eram essas coisas. Haruhiro tinha certeza disso.
“Sekaishu…”