Capítulo 2071
Fragmentos da Guerra (8)
Era um tipo de terror silencioso, algo que Kai não estava acostumado. Encontrar um novo medo era quase divertido, como fazer um novo amigo.
Na verdade, Kai era uma pessoa medrosa. Ele sempre foi sufocado pelo medo… primeiro pelo medo do fracasso, vergonha, solidão e rejeição, depois pelo medo da morte, agonia, perda e tragédia.
E, acima de tudo, arrependimento.
Ele apenas havia se tornado melhor em ignorar seus medos com o passar do tempo, a ponto de as pessoas frequentemente confundirem isso com coragem inata. Mas ele não era — não como seus amigos e companheiros, que pareciam ser naturalmente destemidos, quase de forma imprudente.
Veja Effie, por exemplo…
Ao notar o estado estranho de Morgan, ela sequer ficou tensa. Em vez disso, olhou para o caldeirão de ensopado com uma expressão melancólica, aparentemente preocupada apenas com ele ser derramado. Sua mão, no entanto, moveu-se para mais perto do cabo de sua lança, que estava próxima.
Ou Jet. A Ceifadora de Almas permanecia onde estava, apoiada confortavelmente em uma rocha. Aquela mulher sabia realmente parecer confortável em qualquer lugar… seus olhos azuis gelados seguiam Morgan atentamente, mas sua expressão permanecia calma e relaxada. Até um pouco divertida.
Aether e Bloodwave não pareciam notar a estranheza, mas pelo menos Naeve parecia ser um humano normal. Ele havia ficado imóvel, lançando um olhar cauteloso para a princesa.
Era um alívio.
Kai, por sua vez, olhou furtivamente ao redor, procurando por qualquer superfície reflexiva. Não era surpresa que o primeiro pensamento que lhe viesse à mente fossem os Outros… já havia ocorrido um incidente em que uma daquelas entidades assumira a forma de um humano, afinal.
Naquela ocasião, eles só evitaram o desastre por causa de Kai. O imitador passou várias horas com eles, fingindo ser Aether… e, embora não soubessem disso na época, a coisa estava ficando mais forte a cada instante em que alguém a reconhecia como o verdadeiro Aether — seja ao se dirigir a ela, seja ao reconhecê-la de qualquer forma.
Não importava o que dissesse, suas palavras não eram nem verdade nem mentira. Kai percebeu a estranha e assustadora discrepância quase imediatamente ao retornar de sua patrulha — foi assim que eles conseguiram destruir o Outro, perdendo apenas torrentes de sangue em vez de vidas.
O próprio Aether havia dormido durante todo o ocorrido, descobrindo que alguém andava por aí usando seu rosto apenas quando a batalha terminou.
Se Morgan tivesse sido substituída por um Outro…
Ela estava cercada por cinco pessoas, e já estava assim há pelo menos uma hora. Se essa coisa funcionasse da mesma maneira que a anterior, então sua existência já havia sido reconhecida em um grau assustador.
O coração de Kai batia descontrolado, mas ele respirou fundo e se acalmou.
Não, não era o caso. Mais cedo, ela havia dito… que sabia que sua captura era boa. Essas palavras eram verdadeiras, diferente de como as palavras do Outro anterior soavam.
Então, novamente, talvez o primeiro ainda não tivesse alcançado o ponto de imitar intenções humanas.
Diferente deste.
Morgan lançou um olhar duvidoso para Kai e balançou a cabeça.
“Não sou um Outro.”
Notando sua expressão de surpresa, ela riu.
“Estava escrito no seu rosto.”
A primeira afirmação era verdadeira, mas a segunda não. Kai hesitou por alguns momentos, então olhou para seus companheiros e deu um pequeno aceno.
Effie tirou a mão da lança e a usou para cobrir um bocejo.
“Está…”
Morgan assentiu.
“Sim, está pronto. Sirvam-se.”
Os sete compartilharam o ensopado — a maior parte foi para a tigela de Effie, é claro — mostrando um apetite voraz. Enfrentar o Príncipe do Nada dia após dia, por um mês inteiro, era uma boa maneira de abrir o apetite.
Effie estava em êxtase.
“Meu Deus. O tempero está perfeito! Do jeitinho que eu gosto… sério, eu não poderia ter feito melhor!”
Pelo menos alguém estava animada…
Eventualmente, o caldeirão ficou vazio.
No silêncio que se seguiu, Kai falou sombriamente:
“Hoje, a lua cheia se erguerá sobre a Cidadela ilusória. Você sabe o que isso significa, Lady Morgan — seu irmão definitivamente virá novamente, e o ataque dele será ainda mais terrível desta vez.”
Ela assentiu calmamente, nada preocupada como ele esperava que estivesse.
A essa altura, Morgan devia estar sem cartas na manga, então Kai realmente não sabia de onde vinha tanta confiança.
Era um pouco frustrante.
Ele estudou a bela princesa de Valor em silêncio por um tempo, intrigado com sua despreocupação.
Para ser justo, Morgan não parecia exatamente calma. Era mais como… exausta e cansada demais para se importar. Como ela havia mudado tanto em apenas algumas horas?
Ele pigarreou e olhou para Jet.
Desta vez, foi ela quem acenou com a cabeça.
Kai continuou:
“Por isso discutimos entre nós. Achamos que encontramos uma solução temporária para detê-lo.”
Morgan lançou-lhe um olhar com a familiar centelha de diversão em seus vibrantes olhos cor de vermelho-vivo.
“Oh?”
Jet suspirou, então inclinou-se para frente e levantou a mão. Logo, uma bela ampulheta apareceu sobre ela, tecida por um redemoinho de faíscas radiantes.
Ela estudou a ampulheta por alguns momentos e então disse, preguiçosamente:
“Esta aqui é uma Memória Suprema do Quarto Nível que nós três conquistamos não faz muito tempo… em uma batalha bastante problemática. Não impedirá nossa eventual queda, mas pode nos comprar mais um dia e, com sorte, revelar qual estratégia Mordret pretende usar a seguir.”
Aether olhou para ela com uma expressão levemente atordoada.
“Santa Jet… você matou um Grande Diabo?”
Ela sorriu.
“Nós três matamos, claro. Por quê? Vocês nunca mataram um Grande Diabo?”
O jovem Santo balançou a cabeça lentamente.
“O primo Naeve matou uma Grande Besta uma vez. Mas não… eu só vi Grandes Abominações de longe, no meu Terceiro Pesadelo.”
Effie inclinou a cabeça.
“Do que você está falando? Matamos um Grande Monstro dois dias atrás, quando o lago ficou raso. De quem você acha que era a carne no ensopado?”
Aether piscou algumas vezes.
“Ah… aquilo era do Rank Grande? Me desculpe. Eu não percebi.”
A caçadora o encarou por alguns momentos e então jogou a cabeça para trás, rindo.
“Deuses… tem certeza de que nunca matou um Grande Diabo? Talvez só não tenha notado a grandeza deles.”
O jovem Santo pareceu corar um pouco e desviou o olhar.
Jet sorriu.
“De qualquer forma, esta Memória é um pouco especial. Pode ser usada apenas uma vez, mas…”
Morgan recostou-se e fez uma careta.
“Mas pode fazer um dia se repetir uma vez. Sim, eu sei.”
Ela estava dizendo a verdade. De fato, sabia.
Kai franziu a testa.
Então, seus olhos se arregalaram.
O jeito como ela pegou a pedra sem olhar… o jeito que ela parecia, e o jeito que falava.
Até mesmo o gosto do ensopado.
Ele sorriu de repente.
“Lady Morgan… você já usou a ampulheta, não usou?”
A princesa o encarou por longos momentos e então suspirou.
“De certa forma.”
De repente, tudo começou a fazer muito mais sentido. Kai estava empolgado.
“Então você está vivendo este dia pela segunda vez?”
Morgan balançou a cabeça lentamente.
Ela permaneceu em silêncio por um tempo e então disse, num tom sombrio:
“Não. Não pela segunda vez.”
Por alguns momentos, todos ficaram em silêncio.
Então, Effie bufou, incrédula.
“Eu não acredito… que isso está acontecendo comigo pela segunda vez!”