Capítulo 6
— Por quanto tempo mais planeja dormir, idiota?
A voz que trovejou em sua cabeça, conspirou com a dor penetrante para o despertar.
Ele se ergueu, tomou uma posição e olhou em volta. Um frio de rachar penetrava a sua pele.
Branco.
Tudo estava branco.
Era a escuridão branca, a mesma de sempre. Ele estava mais familiarizado com esse mundo do que com a luz do sol.
Ele estava em uma caverna — provavelmente no fundo — rodeado por água e gelo.
Não muito depois que ele percebeu onde estava, outro golpe retumbante atingiu a lateral de sua cabeça. O golpe foi quente e doloroso, como se tivesse sido atingido por tenazes[1], e o seu contraste com o frio o confundiu completamente.
— O que você está procurando? Se se sentir capaz, então me cumprimente!
A voz nasalada ecoou através da caverna, mas ele não podia ver sua origem.
Ele não se atreveu a tentar descobrir de onde a voz vinha. Se ele espiasse ao redor da caverna, ele só iria convocar outro golpe.
E não era possível ver através da invisibilidade de Assaltante, para começar.
Nesses meses — ou anos? — de treinamento, ele tinha compreendido muito bem. Nessa semiobscuridade, sua noção do tempo era no mínimo confusa. Era como flocos de neve que voavam e se recusavam ser pegos.
O velhote era conhecido por muito nomes, incluindo o Viajante, mas ele preferia ser chamado de Assaltante ou Mestre.
— Claro, mestre. Obrigado por estar aqui.
Ele curvou a cabeça, embora ele não soubesse para onde devia se curvar.
Ele ouviu um bufo silencioso e sentiu uma emoção momentânea de nervosismo. Se ele tivesse enfurecido o mestre, ele não escaparia com uma simples repreensão. O mestre poderia mesmo parar de o treinar.
E isso era uma questão de vida ou morte.
— Hmm. Bom, o suficiente.
Seu mestre parecia satisfeito por enquanto.
Ele permaneceu prostrado, cuidadoso para não suspirar de alívio. Ele permitiu um pouco de neve se assentar em sua boca, depois fechou seus lábios. O sopro que ele tinha deixado escapar tão descuidadamente era quente, e o vapor que criou no ar podia o denunciar. Não seria a primeira vez que ele fora repreendido por essa falha.
— Mestre, o que devo fazer hoje?
— O que você deve fazer? — Assaltante deu um pequeno bufo zombador. — Essa é a pergunta mais estúpida que já ouvi! Que tipo de idiota você é?
De repente, algo voou até ele da escuridão.
Ele foi pego completamente desprevenido, e a bola de neve o atingiu em cheio no rosto. A sensação úmida rapidamente se tornou em um desconforto pleno.
Assaltante comprimiu deliberadamente o projétil ligeiramente, de modo que espalhasse a neve fria sobre ele. Quão maldosamente inteligente.
— Te peguei! Então, agora vá pegar eles! Os goblins!
— Sim, senhor.
Ele olhou para frente, sem sequer se incomodar em limpar o gelo de seu rosto. O pensamento de que talvez lhe desse congelamento nem sequer passou pela sua mente. A dor, a amargura, os goblins. Eram todos apenas parte da sua vida cotidiana. Quase nem valia a pena mencionar.
Mas ele ouviu o murmúrio de Assaltante: — Que tal? Eles são espertos, são cruéis e são muitos. Eles são vis. Consegue matar os goblins?
— Eu os matarei.
— Mesmo quando eles estavam se divertindo com a sua irmã e você só assistiu?
Assaltante lhe deu uma risada estranha e irritante.
Ele sentiu o calor desaparecer de sua barriga, juntamente com o sentimento acalorado que pesava em sua mente como uma pedra.
— Eu sei o que você vai dizer. Que você não tinha a força naquele momento, não é?
Ele mordeu os lábios.
— Sim, senhor.
— Errado! Está errado!
Dessa vez, a sensação úmida se misturou com uma dor fraca. Assaltante era inteligente e cruel. Ele tinha adicionado pedras na neve vagamente comprimida.
Sua testa doeu; ele sentia que estava inchando com cada batida do seu coração. Ele sentiu sangue escorrer da ferida, se fundindo a neve grudada em seu rosto enquanto escorria.
Não era grave.
O crânio era um dos ossos mais duros do corpo, não era quebrado tão facilmente. Mais uma lição que ele tinha aprendido bem. Ele não fez nenhum movimento para limpar o sangue, apenas olhou para a direção que ele pensou que Assaltante estaria.
— Foi porque você escolheu não fazer nada!
Isso o afligiu.
Seus punhos já pareciam mais como uma pedra do que uma mão, mas ele apertava ainda mais.
— O que é isso? Por que você não lutou contra os goblins? Por que você não fugiu com a sua irmã?
O ar se moveu ligeiramente. Assaltante provavelmente chegou perto o suficiente para encarar seu rosto, só para salientar. Ele conseguia sentir o cheiro de vinho na respiração de Assaltante, mas ainda não conseguia o ver.
— Foi porque você se recusou a lhe salvar. Questões de êxito ou fracasso, vida ou morte, vem mais tarde!
— Eu não teeenho poder! Eu não tenho naaaada!
— Oh! Os deuses me concederam força! Agora eu consigo matar os goblins!
— Oh! Um herói lendário foi meu mentor! Agora eu consigo matar os goblins!
— Oh! Olhe para essa espada sagrada que encontrei! Cuidado, goblins!
— Agora eu tenho o poder para fazer alguma cooooisa!
A cantoria zombadora de Assaltante ecoou por toda a câmara gelada.
— Acha que um garoto que não fez nada quando não tinha poder fará alguma coisa uma vez que o ganhe?
— …
— Mesmo que o fizesse, seria apenas um espetáculo! E todos os espetáculos acabam, mais cedo ou mais tarde.
Vuum. O ar ondulou outra vez. Ele não moveu os olhos, mas tentou seguir a sensação dele.
— Ouça — disse Assaltante. — Você não tem genialidade. Você não tem talento. Você é mais um vagabundo sem nome com nada para se distinguir.
Pat. Alguma coisa acertou suavemente seu peito.
Ele olhou apressadamente para cima para ver um olho olhando para ele abaixo. O pequeno orbe brilhante era de uma cor amarela e estranha, como uma tocha queimando.
— Mas, você é o único que cabe escolher.
Ele engoliu em seco.
— Quando você decidir agir, essa será a sua vitória. Não que você não será alvo de chacota se tentar e falhar.
A voz de Assaltante de repente ficou calma. Ele estalou os dedos e uma fogueira que ele deve ter preparado em algum momento ganhou vida.
As paredes brancas da caverna assumiram a cor das chamas.
Isso era sem dúvida uma fissura nevada, em sua volta com gelo, neve e ar frio.
Mas, no momento que esse pensamento o distraiu, Assaltante desapareceu, deixando nem mesmo uma sombra.
— Você precisa de sorte, perspicácia… e culhões! — berrou Assaltante com uma voz que ecoou perturbadoramente.
Ele tentou acalmar a respiração e a manteve aos poucos.
Ele tomou uma postura: braços elevados, pés ligeiramente afastados, quadris flexionados.
— Primeiro, decida se você vai fazer isso… então o faça!
— Sim, senhor.
Quando ele assentiu, algumas gotas de sangue voaram, respingando vermelho em todo o seu pé. Ele ignorou. Se concentre em não escorregar na neve.
— Se conseguir entender isso, você poderá transformar gigantes em pedra, esmagar aranhas maiores do que você, matar dragões, até mesmo derrotar o rei do inferno!
— Sim, mestre.
— Você tem azar e não é muito esperto. Mas, você tem força de vontade? Eu vou treinar tudo isso ao mesmo tempo… olhe para cima!
Ele olhou obedientemente para cima. Uma luz deslumbrante e perigosamente brilhante encontrou seus olhos.
[1] Na raw é 火箸 (Hibashi), —> IMAGEM <—, é praticamente hashis, só que de metal, e que os japoneses usavam para pegar carvão de uma cesta de carvão 箱炭斗 (hakosumitori).
Era o campo de estalactites que cresceu no teto da caverna de neve. Com suas pontas perfurantes miradas diretamente para ele, elas pareciam como um exército de cavaleiros.
O calor do fogo tinha começado a surtir efeito: Uma gota respingou em cima dele.
— Hora de um jogo de adivinhas. Tenho uma adivinha para ti! Se quiser viver, é melhor responder rapidamente!
— Sim, mestre.
— Ótimo, ótimo!
Ele ouviu um som de estalo de Assaltante lambendo seus lábios. Adivinhas eram uma forma de batalha tão antiga quanto os deuses; sagrado, inviolável, absoluto. Era dito que elas remontavam mesmo antes dos deuses começarem a jogar dados.
É claro, nada disso importava para ele. Ele iria responder. Isso era tudo.
— Eu cruzo o céu.
— Com um bico feroz rasgo carne.
— Seu pesadelo! Seu inimigo mortal!
— Mas me mate, e é o seu sangue que irá fluir.
— O que eu sou?
A primeira coisa que ele pensou foi um goblin.
Mas, goblins não voavam e não tinham bicos.
Assim que ele estava prestes a cruzar os braços para pensar, outra bola de neve veio voando contra ele.
Ele deslizou de lado através do gelo para a evitar. Algumas gotas de sangue voaram de seu rosto e caíram no gelo, se misturando com a água derretida e se tornando rosado.
A resposta veio a ele em um lampejo.
— Um mosquito.
— Certo! — Assaltante bufou sugerindo que ele não estava satisfeito. — Mas isso foi apenas um aquecimento. Próximo!
— Os mares estão secos.
— Os rios não correm.
— As árvores estão nuas.
— As cidades não têm edifícios.
— Os castelos sem homens!
— Onde estamos?
Ele não tinha a menor ideia.
Os nomes dos reinos devastados tanto históricos quanto míticos flutuaram pela sua mente, depois se afastaram. Todos eram lugares que ele tinha ouvido falar nas histórias que sua irmã lhe contou. Nenhuma delas conheceu um destino tão terrível quanto o enigma descrevia?
— Blááá, qual é o problema? — demandou Assaltante. — Não sonhe acordado assim! Vamos! Ou vai ser o seu fim!
Antes que pudesse sequer pensar nisso, ele rolou reflexivamente para o lado.
Uma estalactite atingiu o chão e se despedaçou.
Ele não tinha seu capacete. Ele tinha se concentrado em proteger sua cabeça.
Então, de repente, ele se recordou da resposta de um jogo de adivinhas que ele e sua irmã tinha jogado há muito tempo. Embora na época, ele não fora capaz de levar a melhor.
— Devemos estar em um mapa.
— Ha-ha! Exatamente! Mas por que demorou tanto tempo?
Ele ouviu aplausos gozador. Eles ecoaram pelas paredes até que ele não pudesse descobrir de onde é que estavam vindo.
Ele bloqueou o som em seus ouvidos, em vez de olhar para perto e longe, de um lado ao outro, depois para o teto. Ele não podia baixar a guarda. Seu pensamento tinha que ser claro. Controle sua respiração.
O lugar estava muito frio, mas a certa altura ele tinha começado a suar. Ele tentou limpar o sangue e o suor com o braço para os impedir de chegar aos seus olhos, mas fazer isso trouxe uma ardência desagradável aos seus ferimentos.
— Vamos lá, continuemos!
— Mais justo que os deuses.
— Mais maligno que os Deuses das Trevas.
— Os ricos precisam de mim.
— Mas para mim, os pobres não encontram utilidade.
— O que eu sou?
Para ele, essa foi particularmente difícil. E Assaltante não estava disposto a deixar ele pensar calmamente. As bolas de neve vieram voando de todas as direções; ele rolou pelo gelo para as evitar.
Ele estava perdendo a sensibilidade dos membros; eles tinham ultrapassado o azul e estava se tornando roxo.
Mas, não havia tempo para se preocupar com isso. Um chiado soou acima dele.
— Cuidado! Aí vem outro!
Outra estalactite se desprendeu do teto e caiu na direção dele.
— …!
Assaltante nem mesmo o deixou desviar com segurança. Mais uma bola de neve veio e o atingiu no ombro; neve se espalhou por todo o lado e as pedras perfuraram sua pele. Ele se esforçou para suprimir um gemido de dor.
Não havia tempo. Ele não conseguia pensar. Ele não tinha uma resposta. Ele não tinha nada. Isso o deixou irritado, e então ele teve uma ideia.
Ele olhou para cima e gritou:
— Nada! — Ele pisou na terra com ambos os pés, retornando sua postura e acrescentando: — A resposta é nada!
— Sim! Mas há algo mais malvado que os Deuses das Trevas e que possui uma perspicácia mais feroz!
Assaltante não tinha intenção de deixar ele descansar, mas sim arremessar adivinhas para ele tão rapidamente quanto ele podia responder.
Na escuridão branca, sangue fluía do seu ombro e da sua testa, ele se posicionou e enfrentou as questões.
— Escuro
— No interior escuro
— No interior escuro
— No interior escuro.
Ele gritou de volta imediatamente.
— Um goblin… no útero da mulher capturada em uma jaula goblin em uma caverna goblin!
Ele nunca se esqueceu dos goblins, nem por um segundo. A resposta não exigiu nenhum pensamento. Ele sorriu para o seu professor invisível e disse: — Simples.
— Ah, é? Então, tente essa!
— A qualquer momento, a qualquer instante,
— Você pode se encontrar com ele,
— Dele não há como escapar!
— Você não pode falar com ele!
— Ali, ele está ao seu lado!
— Azar o seu! Fim do jogo!
A última adivinha deveria ter sido apenas uma forma de comprar tempo suficiente para pensar em outra. Assaltante era cheio de truques baratos. Elas lhe ensinaram muita coisa.
Mas, a resposta a essa adivinha escapou completamente dele.
Respirando andrajosamente, ele passava pelas bolas de neve e esquivava das estalactites. A neve rasgou sua pele e o gelo a triturou, até que todo o seu corpo inteiro estivesse esfolado e sangrando. O sangue e o suor pingavam de suas sobrancelhas aos seus olhos, ofuscando sua visão, enquanto a ferida em seu ombro latejava.
Apesar de tudo isso, ele pensava afincadamente. As engrenagens de sua cabeça giravam; ele piscou várias vezes, trabalhando toda sua inteligência, procurando por uma resposta.
Não levou muito tempo para descobrir o que estava bem perto dele.
Ele lambeu os lábios ligeiramente e disse a resposta tão claramente quanto podia.
— Ele é a morte.
— Ha-haaa! Uma bela resposta!
As gargalhadas de Assaltante repicaram ao longo de toda a caverna. Um borrifo de gotículas de água caiu, sacudidos pelo eco.
— Você não tem sorte. Você não tem perspicácia. A única coisa que você tem é coragem. Então, pense! Pense com toda a coragem que você tem!
— Sim, mestre.
Ele assentiu obedientemente. Ele não fazia ideia porque Assaltante cuidava dele, mas ele estava sozinho, sua aldeia se foi, e ele tinha apenas um objetivo que lhe restava. O velho estava lhe dando os ensinamentos e estratégias que ele precisaria para o alcançar. Ele jamais considerou questionar as palavras do seu mestre.
— E sendo franco… sim, você se tornou bom nisso. Bom para um garoto como você, enfim. A última!
Assaltante apareceu diante dele como se surgido do nada. Ele era um homem pequeno, menos da metade de sua altura, e negro como uma sombra.
O velho rhea segurava uma espada curta reluzente e usava uma malha de platina. O velho olhou para ele com seus dois olhos brilhantes e sorriu, revelando seus dentes irregulares.
— O que eu tenho no meu bolso?[1]
Era um truque cruel, tecnicamente contra as regras do jogo de adivinhas.
Ele se esforçava para responder, mas não conseguia pensar em nada.
Ele abriu a boca para implorar por pelo menos três chances, mas no próximo instante, uma dor maçante percorreu sua cabeça mais uma vez, e ele sentiu sua consciência desaparecer.
Até os dias de hoje, ele não sabe a resposta para essa adivinha.
[1] Para quem nunca leu O Hobbit, pode não pegar a referência dessa parte, mas no quinto capítulo “Adivinhas no Escuro” do livro, Bilbo e Gollum fazem um jogo de adivinhas, e em um determinado momento, Bilbo, que estava com o Um Anel no bolso pergunta ao Gollum para ele descobrir o que tinha no bolso, e o Gollum pede pelo menos três chances…