Cap. 42 – Reverberação do Passado (2)
Depois da conversa com Rudger, Rene caminhou pelo corredor com uma expressão turva, como se sonhasse. Mesmo que estivesse perdida na mente, por instinto sentiu que precisava tratar o livro nos braços como algo precioso.
Ela, que estava andando em um ritmo acelerado, parou ao ouvir uma voz a chamando.
— Rene.
— Ah… o quê?
Uma voz suave e agradável a chamou. Era Erendir, a terceira princesa do império.
— O que a veterana está fazendo aqui?
— Fiquei preocupada, então esperei por você desde que foi chamada pelo senhor Rudger.
— Foi? Está tudo bem, hehe…
Erendir ficou desconfiada com a estranha reação da outra.
— Rene, pode ser que o senhor Rudger tenha feito algo com você…
A princesa não gostava das ações dele mesmo antes disso, talvez porque a sua primeira impressão dele foi a pior.
Durante a primeira orientação, ele sequer disse o que ensinaria. Por causa disso, houve muita conversa entre os alunos de Registros Akáshicos, então deve ter sido decepcionante.
Para ela, com seus valores de justiça, o comportamento dele era quase inaceitável. Depois, o conteúdo que passava se mostrou bastante impressionante, e passou a admirá-lo, mas isso por si só não dissipou de imediato a má percepção enraizada nela.
Em vez disso, a sua atitude em relação a ele piorou durante o incidente do lobisomem. Quando ele levou Rene ao seu escritório, era normal que ela tivesse maus pensamentos.
— Sem chances! Ele estava apenas me dando conselhos! Ele nunca nem pensou em me tocar! O senhor Rudger não é um pervertido!
— Hã? — Erendir ficou bastante perplexa. — E-eu não quis dizer isso. Você é… muito atrevida.
— Como assim?!
— Eu estava achando que ele te forçaria a frequentar outras aulas. Caloura, ainda me lembro da relação entre um homem com uma mulher…
— Hum, hein? Calma aí, assim não!
Rene também percebeu que havia cometido um grande erro, e o seu rosto ficou vermelho de vergonha. Com essa visão, Erendir começou a rir.
— Ahaha. Tudo bem. Não é que eu estava preocupado com você, então vou entender assim. Então nada aconteceu, certo?
— Certo.
— Então, o que é esse livro?
— Ah…
Ela apontou para a obra, curiosa. O que ela não sabia era que Rene estava agora lidando com o livro como se fosse a própria vida.
— Isso é do senhor Rudger.
— Senhor Rudger?
Erendir abriu os olhos um pouco, descrente. Ela não sabia muito a respeito dele, porém nunca pensou que ele cuidaria de Rene, já que ela não conseguia acompanhar a sua aula, e pensou que ele ia expulsá-la da aula.
— Sim. Ele me disse que aprender isso me ajudaria muito a acompanhar a matéria.
— Sério?
Erendir não podia acreditar ainda mais quando viu Rene sorrindo de forma tímida. Ele faria um favor assim?
Aquele homem não estava apontando pungente e cruelmente a manifestação dos atributos elementais dos alunos, mesmo na aula anterior? Claro, era tudo verdade, e ela entendeu que era um meio de inspirar alguém tocando a sua autoestima. Mas, apesar disso, ela não gostou.
Por um momento, ele pareceu ter sido particularmente gentil com Rene.
Quando o lobisomem atacou, ela se lembrou dele ser bastante duro com ela, a princesa, e falando um pouco suavemente com Rene. A memória estava um pouco distorcida devido ao mau pressentimento em relação a ele, mas o contexto geral permanecia intacto.
Se ela olhasse para o fato de que ele chamou Rene em particular e entregou o livro…
“‘Sem chance.”
Uma palavra veio à mente de Erendir, mas ela não falou. Ao invés disso, Rene fez uma pergunta.
— É possível que o professor goste de mim?
O pensamento que Erendir estava mantendo em mente foi mesmo trazido pela própria Rene. Ela balançou a cabeça, ponderando em como explicar aquilo.
— Não, não é isso.
— Não?
— Isso.
— Não.
Até Rene pensou ter falado algo irreal. Mas, quando ela disse isso, ficou desconfiada.
“Ele não gosta mesmo de mim?”
Parecia estar orgulhosa de dizer isso, mas Rene estava confiante na sua aparência.
“Não sou bonita o suficiente?”
Na verdade, Rene possuía uma aparência bonita que chamava a atenção até mesmo de alguns nobres. A cor de cabelo dela também era rara, mas a beleza celestial que a acompanhava bastou para fazer o nome dela se tornar familiar pros estudantes homens de Sören.
De repente, ela imaginou a cena em que ela estava com ele. Pensou que seriam um casal bonito, contudo ela logo balançou a cabeça com força.
“Ah, de qualquer forma, estar com alguém que você ainda não conhece bem…”
Ela tinha uma forte personalidade conservadora nessa direção.
Erendir perguntou com cuidado, vendo o seu rosto vazio, e depois balançou a cabeça.
— Você comeu?
— Sim? Ah, não, ainda não.
— Quer comer comigo?
— Você está mesmo bem com isso?
Ela estava tão feliz com a sugestão da princesa que não sabia onde se colocar. Foi porque ela pensou que, se fosse Erendir, haveria pessoas esperando numa fila para comer com ela.
O erro de Rene foi crer que Erendir andava com muitos. O seu status de princesa era ótimo, mas ela era evitada pelos outros por conta dele também.
Ocasionalmente, havia estudantes de famílias nobres que falavam com ela, mas só a contatavam para fins políticos. Eles queriam ver a terceira princesa, não a aluna.
“Meu Deus, é a primeira vez que um veterano pede para comer comigo!”
Aos olhos de Rene, que esteve sozinha o tempo todo por conta do incidente no início do semestre, pareceu uma grande misericórdia dos veteranos. Parecia que ela atrasaria, já que atrasou a resposta.
— Se você não gostar ou se sentir desconfortável, não tem muito o que fazer — falou Erendir, enrolando uma mecha nos dedos.
— Não! Eu quero comer!
Neste momento, as duas se tornaram amigas que comeriam juntas pela primeira vez.
* * *
Tendo enviado Rene de volta, me sentei só no escritório da escola e me lembrei do que falamos havia algum tempo. Ela aparentava não se conhecer, mas eu sabia o poder que ela continha.
“Magia sem atributo… Não seria tão surpreendente. O atributo em si não existiria.”
Para mim, era uma nova forma de magia ainda não descoberta antes porque não tinha atributos e não havia nada de novo nela, visto que magia em si sempre foi nova para mim.
Ironicamente, em comparação com os magos residentes deste mundo, eu, com a memória e o conhecimento de outro, via a magia de um jeito diferente deles.
Os magos atuais com mentalidades entupidas estavam isolados e estagnados nas suas vidas. Devo dizer que após eu renascer o meu limitador cerebral foi liberado.
“Magia sem atributo? Não pode haver tal coisa!”, foi o que pensou um dos homens conservadores.
“Magia sem atributo? Em um mundo onde a magia existe, pode haver tal coisa.”
Cheguei a um certo nível de flexibilidade acerca de certos assuntos. Até para aquela rigorosa mestra, o meu ponto de vista diferia dos magos neste mundo por muito.
Entretanto, o que prestei atenção ao olhar para Rene não foram os poderes mágicos dela, mas os seus olhos. A sua magia não elemental era apenas uma parte do seu poder ao todo. A coisa séria são os seus “olhos”.
“Aqueles olhos… Acho que os vi em algum lugar.”
A minha mestra tinha todos os tipos de livros antigos que eu não podia encontrar agora, e os típicos eram sobre monstros e demônios de mais de centenas de anos.
Não havia monstros, exceto por um número muito pequeno de criptídeos agora. Dizia-se que no passado, o continente estava repleto deles e até demônios que os controlavam.
Pensei nos olhos dela. Os seus olhos estavam azuis pálidos, no entanto, enquanto conversávamos, notei que mudaram de modo sutil.
Entre o profundo azul das suas íris, uma luz branca brilhava como as estrelas, se assemelhando ao céu noturno da Via Láctea. Não havia como eu não conhecer aqueles olhos peculiares.
“Um olho que distingue o bem e o mal: o Julgamento. A menos que eu esteja enganado, ela é portadora dele.”
O Julgamento era um olho que distinguia o bem e o mal nos outros e mostrava com clareza se havia hostilidade ou não. Um poder misterioso que não podia ser chamado de magia, mas que estava, no sentido literal, perto de ser um milagre.
A grande coisa sobre ele era que revelava a aparência de “demônios” escondidos sob a pele humana.
“Agora, esses demônios são tratados apenas como lendas.”
Para as pessoas atuais, os demônios eram somente uma galera ruim e vermelha de chifres que aparecia em contos de fadas; um produto de mentiras para assustar as crianças. Olhando para os livros antigos, pareciam existir.
“Em um mundo onde magia existe, deve haver demônios. Eu também morri e voltei à vida, não tem algo assim? “
Eu vi com os próprios olhos que o Julgamento que apenas existia em registros é real. Em outras palavras, a sua existência.
Outra característica dele era que, se aparecesse, um grande evento ocorreria, não importando o período no tempo. Felizmente, o Julgamento de Rene não estava despertado, e ela nem aparentava saber que o continha.
Mas um dia ela vai perceber.
“Afinal, isso também é um relacionamento?’”
Não é de admirar que o livro que ela escreveu acabou com René.
— Dói um pouco.
Parece que ela não se lembra, mas um dia irá.
E imaginar que eu acharia o dono do Julgamento e enfrentaria um relacionamento do passado desta forma.
“Estar envolvido nesse tipo de coisa em Sören…”
Suspirei e me levantei do meu assento.
Achei que se ela usasse o Julgamento sem problemas, conseguiria descobrir todos os membros da sociedade secreta que estão escondidos em Sören. Em particular, a coisa mais ameaçadora para mim agora era a Primeira Ordem, ainda difícil de identificar.
“Eles estão tão vigilantes quanto possível, mas deve haver algo que eu possa encontrar.”
Enquanto eu não soubesse onde estava a Primeira Ordem e o que faziam, não tinha escolha além de ser o mais cuidadoso possível. Entretanto, se o Julgamento de Rene funcionasse bem, talvez fosse de grande ajuda para mim. Aidan, os seus amigos e ela. Se eu usasse o poder daquelas crianças, era possível que…
Depois de pôr o casaco e abrir a porta para sair do escritório, ouvi um rangido do lado de fora e tive que parar.
— Ai.
Uma garota de cabelos azuis estava sentada no chão com as mãos na cabeça, a apoiando. Olhando para ela, falei com uma voz fria, contrária ao meu coração desnorteado.
— O que está acontecendo aqui, Flora Lumos?