Volume Único
Capítulo 3: Bitch of the battlefield
{1} Um sol brilhante traçava sombras nítidas no chão. O ar estava tão limpo que você poderia levar um tiro de um sniper a quilômetros de distância. Acima do campo, a bandeira da 17ª Companhia estalava em uma brisa úmida soprando do Pacífico ao sul.
A brisa marítima continha um perfume que serpenteava pelo seu nariz e fazia cócegas em sua língua no caminho até a garganta. Rita franziu a testa. Não era o fedor de um Mimic. Parecia mais com a aparente fragrância de peixe que você sente nessas tigelas de molho nước mắm¹.
A tensão em tempo de guerra e a constante ameaça da morte, o Extremo Oriente realmente não era tão ruim. O litoral, tão difícil de defender, oferecia belo pôr-do-sol. O ar e água estavam impecáveis. Se Rita, que tinha cerca de um décimo do refinamento e cultura de um indivíduo comum pensava que aqui era maravilhoso, um verdadeiro turista poderia ter considerado um paraíso. Se havia um defeito aqui, era a umidade saturada.
O clima daquela noite seria perfeito para um ataque aéreo. Uma vez que o sol se pusesse, os bombardeiros carregados com munições guiadas por GPS levariam aos céus enxames que explodiriam a ilha e a trariam uma paisagem lunática e sem vida antes do ataque terrestre da manhã seguinte. O belo recife de coral e a flora e fauna nativa, compartilhariam o mesmo destino que o inimigo, se tudo fosse conforme o plano.
“Belo dia, não acha, Major Vrataski?” Uma antiga câmera pendia do pescoço grosso do homem, um tronco de sequoia em comparação com o galho fino que era o pescoço da piloto de Jacket. Rita casualmente o ignorou.
“Dias como hoje podem fazer até mesmo um avião de aço e parecer um da Vinci.”
Rita suspirou. “Você está tirando uma boa fotografia agora?”
“Dificilmente é assim que se deve falar com o único fotojornalista incorporado na expedição no Japão. Estou muito orgulhoso do papel que desempenho transmitindo ao público as verdades dessa guerra. Na verdade, 90% da verdade é a iluminação.”
“Conversa mole, eles devem te amar no PR². Quantas línguas você acha que tem?”
“Só a que o Senhor julgou oportuno conceder aos americanos, embora eu ouça que os russos e os cretenses têm duas.”
“Bem, ouvi dizer que tem um deus japonês que arranca a língua de mentirosos, não faça nada para colocar a sua em risco.”
“Vira essa boca para lá.”
O canto do campo de treinamento em que Rita e o fotógrafo estavam em pé recebeu uma rajada de vento marítimo com força total. No meio do campo gigante, 146 homens da 17ª Companhia da 301ª Divisão de Infantaria Armada japonesa estavam parados em linhas ordenadas ao longo do chão. Era um tipo de treinamento chamado prancha isométrica. Rita não tinha visto isso antes.
O resto do esquadrão de Rita estava a uma curta distância, com seus grossos braços erguidos diante deles. Estavam ocupados fazendo o que os soldados faziam melhor, estavam zombando dos menos afortunados que eles. Talvez seja assim que praticam a reverência? Ei, samurai! Tente pegar uma espada depois de uma hora fazendo isso!
Nenhum dos companheiros de Rita se aproximava dela dentro de trinta horas antes de um ataque. Era uma regra tácita. As únicas pessoas que se atreviam a se aproximar dela era uma engenheira nativo americana que dificilmente podia ver em linha reta e o fotógrafo, Ralph Murdoch.
“Eles não se movem?” Rita parecia duvidar.
“Não, eles apenas mantêm essa posição.”
“Eu não sei se chamaria isso de treinar samurais. Parece mais yoga se me perguntassem.”
“É estranho encontrar semelhanças entre o misticismo e a tradição japonesa?”
“Noventa e oito!”
“Noventa e oito!”
“Noventa e nove!”
“Noventa e nove!”
Olhando para o chão como fazendeiros observando o arroz crescer, os soldados latiam acompanhando o sargento. Os gritos dos 146 homens ecoaram no crânio de Rita. Uma enxaqueca familiar enviou lapsos de dor pela cabeça. Essa era das ruins.
“Outra dor de cabeça?”
“Não é da sua conta.”
“Eu não vejo como um pelotão de médicos não pode encontrar uma cura para uma dor de cabeça.”
“Nem eu. Por que você não tenta descobrir?” Ela murmurou.
“Eles mantêm esses caras em rédea curta, nem consigo uma entrevista.”
Murdoch levantou a câmera. Não estava claro o que ele pretendia fazer com as imagens do espetáculo que se desenrolava em perfeita quietude diante dele. Talvez vendê-los para um tabloide com nada melhor para imprimir.
“Eu não tenho certeza que é de muito bom gosto.” Rita não conhecia um único soldado ali, mas não precisava saber que gostaria mais do que de Murdoch.
“Fotos não tem bom ou mal gosto. Se a imagem de um cadáver aparecesse ao clicar em um link qualquer na internet, isso poderia ser motivo para uma ação judicial. Mas se a mesma imagem aparecesse no New York Times, era possível ganhar o Prêmio Pulitzer³.”
“Isso é diferente.”
“É mesmo?”
“Foi você quem invadiu o centro de processamento de dados, se não fosse por seu deslize, esses homens não estariam aqui sendo punidos, e você não estaria aqui tirando fotos deles. Isso o qualifica como desagradável.”
“Não tão rápido, eu fui acusado injustamente.” O som do flash da câmera se tornou mais frequente, mascarando a conversa.
“A segurança aqui é desleixada em comparação com o comando central. Não sei o que você quer indo aqui nessa zona rural, mas não prejudique mais ninguém fazendo isso.”
“Então você está na minha cola.” Ele disse.
“Eu só odeio ver a censura te cortar quando você encontrar algo grande.”
“O governo pode nos dizer as verdades que quiser, mas há verdades e verdades”, disse Murdoch. “Depende do povo decidir qual é qual, mesmo que seja algo que o governo não queira informar.”
“Como é egoísta.”
“Nomeie um bom jornalista que não é. Você tem que ser para conseguir uma história.”
“Conhece algum Sonhador?”
“Eu não estou interessado em religiões.”
“Você sabia que o Mimics se moveram quase exatamente ao mesmo tempo que a grande operação na Flórida?”
Os Sonhadores eram um grupo pacifista civil, é claro. O surgimento dos Mimics teve um tremendo impacto nos ecossistemas marinhos. Organizações que protegiam golfinhos, baleias e outros mamíferos marinhos morreram. Os Sonhadores seguiram daí.
Eles acreditavam que os Mimics eram inteligentes e insistiam que era o fracasso da humanidade em se comunicar com eles o que gerou essa guerra. Eles raciocinaram que se Mimics poderiam evoluir tão rapidamente em armas tão potentes, com paciência, eles poderiam desenvolver os meios para se comunicar também. Os Sonhadores começaram a receber membros de um público cansado da guerra que acreditavam que a humanidade nunca poderia triunfar sobre eles, nos últimos dois a três anos, o tamanho do movimento havia aumentado.
“Entrevistei alguns antes de vir para o Japão”, continuou Murdoch.
“Parece trabalho duro.”
“Todos eles sonham com o mesmo dia. Nesse sonho, a humanidade perde para os Mimics, eles acham que é uma espécie de mensagem que estão tentando nos enviar, não que você precisasse que eu lhe dissesse isso.”
Murdoch lambeu os lábios. Sua língua era muito pequena para seu corpo, dando a impressão distinta de um molusco. “Eu fiz um pouco de investigação e verifiquei se havia concentrações particularmente altas desses sonhos nos dias que antecedem grandes ataques pelos Estados Unidos.” Nos últimos anos, mais e mais pessoas têm tido o sonho. Algumas dessas pessoas estão até mesmo nas forças armadas.”
“Você acredita nisso? Escute-os por muito tempo e vai acabar pesando que os macacos eram pequenos Einsteins.”
“Círculos acadêmicos já estão discutindo a possibilidade da inteligência dos Mimics e, talvez, não é exagerado pensar que eles tentarão se comunicar.”
“Não é bom assumir que tudo o que você não entende é uma mensagem”, disse Rita. Ela suspirou. “Continue assim, e a próxima coisa que vai me dizer é que encontrou sinais de inteligência em nosso governo, e nós dois sabemos que isso nunca vai acontecer.”
“Muito engraçado, mas há uma ciência aqui que você não pode ignorar: cada passo acima da escada evolutiva — de um organismo unicelular para um animal de sangue frio, para um animal de sangue quente — tem visto um aumento de dez vezes no consumo de energia”. Ralph lambeu os lábios novamente. “Se olhar para a quantidade de energia que um ser humano na sociedade moderna consome, é dez vezes maior do que a de um animal de sangue quente de tamanho semelhante, mas Mimics, que são supostamente um animal de sangue frio, consomem a mesma quantidade De energia como seres humanos. “
“Isso significa que eles são mais altos do que nós na escada? Isso é uma teoria, você deveria ter publicado.”
“Eu lembro de ter ouvido dizer que teve sonhos.”
“Claro que tenho sonhos, sonhos comuns.”
Para Rita, procurar significado nos sonhos era uma perda de tempo. Um pesadelo era um pesadelo. E os ciclos de tempo em que ela tropeçou no curso da guerra, bem, eles eram algo completamente diferente. “Temos um ataque amanhã. Alguma das pessoas que você entrevistou receberam uma mensagem?”
“Certamente. Liguei para a L.A. esta manhã para confirmar: os três tiveram o sonho.”
“Agora eu sei que não é verdade, isso é impossível.”
“Como você saberia?”
“Esta é apenas a primeira vez de hoje.”
“Que vez? Como pode um dia ter uma primeira vez ou uma segunda vez?”
“Só espero que você nunca descubra.”
Murdoch encolheu os ombros. Rita voltou seu olhar para os homens azarados no campo.
Pilotos de Jackets não fazem muito uso de músculos. A resistência era o essencial, não força. Para construir sua resistência, a equipe de Rita praticava uma técnica do kung-fu, conhecida como ma bu. Ma bu consistia de espalhar as pernas como se estivesse a cavalo e manter a posição por um longo período de tempo. Além de fortalecer o músculo da perna, era uma maneira extremamente eficaz para melhorar o equilíbrio.
Rita não tinha certeza de qual benefício, se havia algum, a prancha isométrica traria. Parecia mais punição, pura e simples. Os soldados japoneses, empacotados como sardinhas em lata, permaneceram congelados naquela posição. Para eles, isto provavelmente estavam entre uma das piores experiências de suas vidas. Mesmo assim, Rita sentia inveja dessa simples lembrança. Rita não tinha compartilhado esse tipo de experiência descartável com alguém há muito tempo.
O vento sufocante puxou seus cabelos avermelhados. Sua franja, que há muito não cortava, fez sua coceira em sua testa.
Este era o mundo do início do loop. O que aconteceu aqui só Rita se lembraria. O suor dos soldados japoneses, os gritos e as zombarias das Forças Especiais dos EUA — tudo desapareceria sem deixar vestígios.
Talvez tivesse sido melhor não pensar nisso, mas vendo esses soldados treinando no dia anterior a um ataque, camisas suadas que se colavam à pele no ar úmido, sentiu pena deles. De certa forma, isso era culpa dela por trazer Murdoch junto.
Rita decidiu encontrar uma maneira de encurtar o TFM e pôr fim a este exercício aparentemente inútil. E se instigasse um espírito de luta samurai? Eles ainda se molhariam da primeira vez que se deparassem com um assalto de um Mimic. Ela queria parar aquilo, mesmo que fosse um gesto sentimental que ninguém jamais apreciaria.
Examinando o campo de treinamento, Rita encontrou um par de olhos desafiadores olhando diretamente para ela. Ela estava acostumada a ser olhada com temor, admiração, até medo, mas ela nunca tinha visto isso: um olhar cheio de um ódio tão desenfreado de um completo estranho. Se uma pessoa pudesse disparar lasers de seus olhos, Rita teria sido cozida mais rápida que um peru de Ação de Graças.
Ela só tinha encontrado um outro homem cujos olhos se aproximavam da mesma intensidade. Os profundos olhos azuis de Arthur Hendricks não tinham medo. Rita o havia matado, e agora aqueles olhos azuis estavam enterrados profundamente na terra fria.
A julgar por seus músculos, o soldado olhando para ela era um novato não muito tempo fora do acampamento. Nada como Hendricks. Ele era americano, tenente e comandante do esquadrão das Forças Especiais dos EUA.
A cor dos olhos deste soldado era diferente. Seu cabelo, também. Seu rosto e seu corpo não chegavam nem perto. Ainda assim, havia algo sobre esse soldado asiático que Rita Vrataski gostava.
{2} Rita muitas vezes se perguntava como seria o mundo se houvesse uma máquina que pudesse medir definitivamente o potencial de uma pessoa.
Se o DNA determina a altura de uma pessoa ou a forma de seu rosto, por que não suas características menos óbvias? Nossos pais e mães, avôs e avós — em última análise, cada indivíduo é produto do sangue que fluiu nas veias daqueles que vieram antes. Uma máquina poderia ler essa informação e atribuir um valor a ela, tão simples quanto medir altura ou peso.
E se alguém que tivesse o potencial de descobrir uma fórmula para desvendar os mistérios do universo, mas se tornar um escritor de livros de ficção? E se alguém que tivesse o potencial de criar iguarias gastronômicas inigualáveis se focar em engenharia civil? Existe aquilo que desejamos fazer e o que podemos fazer. Quando essas duas coisas não coincidem, que caminho devemos buscar para encontrar a felicidade?
Quando Rita era jovem, ela tinha um dom para duas coisas: arremessar ferraduras e fingir chorar. A ideia de que seu DNA continha o potencial de se tornar uma grande guerreira não poderia estar mais longe de sua mente.
Antes de perder seus pais aos quinze anos, era uma garota comum que não gostava de seu cabelo cor de cenoura. Ela não era particularmente boa em esportes, e suas notas na escola secundária eram medianas. Sua aversão aos pimentões e ao aipo não a destacavam. Apenas sua capacidade de fingir chorar era verdadeiramente excepcional. Ela não conseguia enganar a mãe, cujos olhos de águia enxergavam através de cada estratagema, mas com qualquer outra pessoa ela os tinha na palma da mão depois de alguns segundos de lágrimas. A única outra característica distintiva de Rita eram os cabelos vermelhos que herdara de sua avó. Todo o resto era exatamente como qualquer um dos trezentos milhões de americanos.
Sua família morava em Pittsfield, uma pequena cidade a leste do rio Mississipi. Não a Pittsfield na Flórida, não a Pittsfield em Massachusetts, mas a Pittsfield em Illinois. Seu pai era o filho mais novo de uma família de artistas marciais — principalmente jiu-jitsu. Mas Rita não queria ir a uma academia militar ou praticar esportes. Ela queria ficar em casa e criar porcos.
Com exceção dos jovens que se inscreveram na UDF, a vida para o povo de Pittsfield era pacífica. Era um lugar fácil para esquecer que a humanidade estava no meio de uma guerra contra um estranho e terrível inimigo.
Rita não se importava de morar em uma pequena cidade e nunca ver ninguém além das mesmas quatro mil pessoas. Ouvir os guinchos dos porcos dia após dia pode ser um pouco cansativo, mas o ar era limpo e o céu vasto. Ela tinha um esconderijo secreto onde poderia sonhar acordada e procurar trevos de quatro folhas.
Um velho comerciante aposentado tinha uma pequena loja na cidade. Ele vendia tudo, de alimentos até pequenas cruzes de prata que deveriam manter o Mimics afastados. Ele vendia todos os tipos de grãos de café que você não poderia encontrar em nenhum outro lugar.
Os ataques Mimic tinham transformado a maior parte da terra cultivável de países em desenvolvimento em deserto, café natural, chá e tabaco viraram luxo e extremamente difíceis de encontrar. Eles foram substituídos semelhantes artificiais que não chegavam perto de ser a mesma coisa.
A cidade de Rita era uma das muitas tentativas de fornecer os produtos e animais necessários para uma nação faminta e seu exército.
As primeiras vítimas dos ataques Mimics também eram as mais vulneráveis: as regiões mais pobres da África e da América do Sul. Os arquipélagos do Sudeste Asiático. Países que não tinham meios para se defender apenas observavam como o deserto devorava suas terras. As pessoas abandonaram o cultivo de culturas comerciais — o café, o chá, o tabaco e as especiarias cobiçadas em nações mais ricas — e começaram a cultivar alimentos básicos, feijão e sorgo, tudo para evitar a fome. As nações desenvolvidas geralmente eram capazes de parar o avanço dos Mimics no litoral, mas grande parte do produto que tomavam como certo desapareceu do mercado durante a noite.
O pai de Rita, que cresceu em um mundo onde até mesmo os Midwesterners⁴ podiam comer sushi fresco todos os dias, era um viciado em café, sem exageros. Ele não fumava nem bebia — o café era seu vício. Muitas vezes, ele tomava Rita pela mão e saia com ela para a loja do velho quando a mãe de Rita não estava olhando.
O velho tinha pele bronzeada e barba branca espessa.
Quando ele não estava contando histórias estava mastigando a ponta do cachimbo. Passava os dias rodeado de produtos exóticos de países de onde a maioria das pessoas nunca ouvira falar. Havia pequenos animais trabalhados em prata. Bonecas grotescas. Totens esculpidos com os rostos de pássaros ou animais estranhos. O ar da loja era uma mistura inebriante da fumaça do velho, especiarias incontáveis, todos os grãos de café natural e ainda uma pitada do solo rico em que cresceram.
“Esses feijões são do Chile, aqui são do Malawi, na África, e eles viajaram até a estrada da Seda do Vietnã para a Europa”, contava para Rita. Os feijões pareciam todos iguais, mas ela apontava e o velho despejava seu conhecimento.
“Tem algum tanzaniano hoje?” Seu pai era bem versado em café.
“O que, você já terminou o último lote?”
“Agora você está começando a falar como minha esposa, o que posso fazer? Eles são meus favoritos.”
“Que tal estes — dos bons. Café Premium de Kona, plantado no Havaí. É raro encontrar destes mesmo em Nova York ou Washington. Sinta esse aroma!”
As rugas na cabeça do velho se aprofundaram enquanto sorria. O pai de Rita cruzou os braços, claramente impressionado. Ele estava gostando. O balcão era ligeiramente mais alto que a cabeça de Rita, então ela teve que ficar na ponta dos pés para dar uma boa olhada.
“Eles chegaram ao Havaí, eu vi na TV.”
“Você está certamente bem informada, moça.”
“Fique esperto, as crianças veem bem mais notícias do que os adultos, tudo o que a gente se importa é basebol e futebol.”
“Você está certo.” O velho acariciou sua testa. “Sim, este é o último, o último café de Kona na face da terra. Quando acabar, adeus.”
“Onde conseguiu algo assim?”
“Isso, minha querida, é um segredo.”
O saco estava cheio de feijões de cor creme. Eles eram um pouco mais redondos do que a maioria dos grãos de café, mas pareciam comuns em todos os outros aspectos.
Rita pegou um dos grãos e o inspecionou. O espécime era fresco e agradável ao toque. Ela imaginou o feijão tomando o sol de um céu azul que se estendia até o horizonte. Seu pai lhe contou sobre o céu nas ilhas. Rita não se importava que o céu em Pittsfield fosse um azul fino e aguado, mas queria ver pelo menos uma vez o céu que banhava aqueles feijões com o calor do sol.
“Você gosta de café, moça?”
“Não, não é doce. Prefiro o chocolate.”
“Que pena.”
“Mas cheiram bem, e estes definitivamente cheiram melhor”, disse Rita.
“Ah, então ainda há esperança para você. O que me diz, quer assumir a minha loja quando eu me aposentar?”
O pai de Rita, que até então não tinha levantado os olhos dos grãos de café, interrompeu. “Não coloque nenhuma ideia na cabeça dela, precisamos de alguém para continuar na fazenda, e ela é tudo que temos.”
“Então, talvez ela possa encontrar um garoto ou uma garota capaz para cuidar da minha loja, hein?”
“Não sei, vou pensar nisso.” Respondeu Rita com indiferença.
Seu pai colocou a sacola de café que estava admirando e se ajoelhou para olhar Rita nos olhos.
“Eu pensei que você queria ajudar na fazenda.”
O velho interveio apressadamente: “Deixe a criança se decidir, ainda é um país livre.”
Uma luz brilhou nos olhos da jovem Rita. “Isso mesmo pai, eu tenho que escolher, certo? Desde que não me façam entrar no exército.”
“Não gosta do exército, hein? A UDF não é tão ruim, sabia?”
O pai de Rita franziu o cenho. “Você está falando com a minha filha.”
“Mas qualquer um pode se alistar uma vez que completem dezoito. Todos nós temos o direito de defender nosso país, filho e filha igualmente. É uma oportunidade.”
“Não tenho certeza se quero minha filha nas forças armadas.”
“Mas eu já nem quero me juntar ao exército, pai.”
“Oh, por que não?” Um olhar de genuína curiosidade cruzou o rosto do velho.
“Você não pode comer Mimics, eu li em um livro que não se deve matar animais que não pode comer. Nossos professores e nosso pastor, todos dizem isso.”
“Você vai ser bem cabeça dura quando crescer, não é?”
“Eu só quero ser como todo mundo.”
O pai de Rita e o velho olharam um para o outro e deram uma risada. Rita não entendia o que era tão engraçado.
Quatro anos mais tarde, os Mimics atacariam Pittsfield. O ataque ocorreu no meio de um inverno absurdamente duro. Neve caia mais rápido do que dava para remover. A cidade estava paralisada.
Ninguém sabia isso na época, mas os Mimics enviam algo parecido com batedores antes de um ataque, um grupo pequeno e rápido que tem como objetivo avançar o máximo possível e retornar com informações. Naquele mês de janeiro, três Mimics passaram pela quarentena da UDF e subiram o rio Mississippi sem serem detectados.
Se os habitantes da cidade não tinham notado algo suspeito se movendo nas sombras, dificilmente a parte agrícola de Pittsfield perceberia. Como esperado, foi um massacre.
A guarda do estado foi imobilizada pela neve. Levaria horas antes que um pelotão da UDF pudesse ir de helicóptero. Até então, metade dos prédios da cidade haviam queimado e um em cada três dos quinze mil habitantes da cidade estava morto. O prefeito, o pastor e o velho da loja estavam entre os mortos.
Homens que escolheram cultivar milho em vez de se juntar ao exército morreram lutando para defender suas famílias. As armas pequenas não eram úteis contra Mimics. Balas só ricocheteavam em seus corpos. Dardos mimics rasgavam as paredes de casas de madeira, até mesmo tijolo, com facilidade.
No fim das contas, um grupo de habitantes da cidade derrotaram os três Mimics com as mãos. Eles esperaram até que os Mimics estivessem prestes a disparar antes de agir, derrubaram as criaturas com os dardos uns dos outros. Mataram dois deles desta maneira e expulsaram o terceiro.
Morrendo, a mãe de Rita abrigou sua filha em seus braços. Rita observava na neve enquanto seu pai lutava e era morto. Fumaça espiralada para cima das chamas. Cinzas se espalhavam na noite. O céu brilhava em vermelho.
De baixo do corpo de sua mãe, já começando a esfriar, Rita pensou. Sua mãe, uma devota cristã, lhe dissera que fingir chorar era uma mentira e que se mentisse, quando Deus julgasse sua alma, ela não seria aceita no Céu. Quando sua mãe disse a Rita que se Mimics não mentissem poderiam entrar no céu, a menina ficou irritada. Mimics não eram da Terra. Eles não tinham alma, certo? Se tivessem, e eles realmente fossem para o Céu, Rita se perguntou se as pessoas e os Mimics lutariam lá em cima. Talvez seus pais quisessem isso.
O governo mandou Rita morar com alguns parentes distantes. Ela roubou o passaporte de um refugiado três anos mais velho do que ela, que morava em um apartamento vizinho caindo aos pedaços e se dirigiu para o ponto de recrutamento da UDF.
Em todo o país, as pessoas estavam ficando cansadas da guerra. A UDF precisava de todos os soldados que conseguissem para as linhas de frente.
Desde que o requerente não tivesse cometido um crime particularmente hediondo, o exército não expulsaria ninguém. Legalmente, Rita não tinha idade suficiente para se alistar, mas o oficial de recrutamento nem sequer olhou para o seu passaporte roubado antes de lhe entregar um contrato.
O exército concedia às pessoas um último dia para desistirem do alistamento se tivessem dúvidas. Rita, cujo sobrenome era agora Vrataski, passou seu último dia em um banco duro do lado de fora do escritório da UDF.
Rita não tinha segundas intenções. Ela só queria uma coisa: matar cada Mimic que invadiu seu planeta. Ela sabia que conseguiria. Ela era filha de seu pai.
{3} Na próxima noite clara, olhe para cima na direção da constelação que a humanidade chama de Câncer. Entre as pinças da garra direita daquele caranguejo gigante no céu está uma estrela fraca. Não importa o quanto encare, você não vai vê-la a olho nu. Ela só pode ser vista através de um telescópio. Mesmo se pudesse viajar à velocidade da luz, rápido o suficiente para circundar a terra sete vezes e meia em um único segundo, levaria mais de quarenta anos para alcançar aquela estrela. Os sinais da Terra dispersam-se na sua jornada através do vasto abismo entre os dois.
Em um planeta girando em torno desta estrela, a vida floresceu em maior número e diversidade do que na Terra. Civilizações mais avançadas do que a nossa prosperaram e criaturas com inteligência muito superior à do Homo sapiens dominaram. Neste conto fantasioso, vamos chamá-los de pessoas.
Um dia, uma pessoa neste planeta inventou um dispositivo chamado bomba ecoforming. O dispositivo poderia ser fixado na ponta de uma espaçonave. Esta nave, muito mais simples do que qualquer nave semelhante carregada de vida e dos meios para apoiá-la, poderia atravessar o vazio do espaço com relativa facilidade. Ao chegar ao seu destino, a carga útil do navio detonaria, espalhando nanorobôs sobre a superfície do planeta.
Imediatamente após a chegada, os nanorobôs começariam a remodelar o mundo, transformando qualquer ambiente hostil em um adequado para colonização pelas pessoas que os fizeram. O processo real é muito mais complicado, mas os detalhes não são importantes. A nave espacial que transportava colonos para o novo mundo chegaria depois que os nanorobôs já tivessem completado a transformação.
Os estudiosos entre essas pessoas questionaram se era ético destruir o ambiente existente de um planeta sem primeiro examiná-lo. Afinal, uma vez feito, o processo não pode ser desfeito. Parecia razoável concluir que um planeta tão prontamente adaptado para sustentar a vida de seu próprio mundo também poderia acolher a vida indígena, talvez até mesmo a vida inteligente. Eles se perguntavam se era certo roubar um mundo dos seus habitantes nativos.
Os criadores do dispositivo argumentaram que sua civilização foi construída sobre avanços que não podiam ser desfeitos. Para expandir seu território, eles nunca haviam evitado sacrificar vidas no passado. Florestas tinham sido limpas, pântanos drenados, barragens construídas. Havia inúmeros exemplos de pessoas destruindo habitats e extinguindo espécies em benefício próprio. Se eles fizeram isso em seu próprio planeta, por que algum mundo desconhecido no vazio do espaço seria tratado de maneira diferente?
Os eruditos insistiram que o ecoforming de um planeta que pudesse abrigar a vida inteligente requeria a supervisão direta. Seus protestos foram registrados, considerados e, finalmente, ignorados.
Havia preocupações maiores do que a preservação de qualquer vida. As pessoas se tornaram muito numerosas para seu próprio planeta, por isso precisavam de outro para sustentar sua crescente população. A estrela-mãe do mundo escolhido não poderia estar a uma distância muito grande, nem seria suficiente uma estrela binária. O próprio planeta teria que manter uma órbita em torno de uma estrela da Classe G a uma distância suficiente para que a água existisse na forma líquida. O sistema de uma estrela que atendia a esses critérios era a estrela que chamamos de sol. Eles não se preocuparam por muito tempo que esta estrela poderia ser a única neste canto da Via Láctea que era lar de vida inteligente como a sua. Nenhuma tentativa foi feita para se comunicar. O planeta estava a mais de quarenta anos à velocidade da luz, e não havia tempo para esperar oitenta anos para a chance de uma resposta.
A nave construída naquele planeta distante finalmente atingiu a Terra. Não trouxe consigo nenhum membro de sua espécie. Sem armas de invasão. Era basicamente nada mais do que uma máquina de construção.
Quando foi detectado, o artefato interestelar chamou a atenção do mundo. Todas as tentativas da Terra de entrar em contato ficaram sem resposta. Então, a nave se dividiu em oito peças. Quatro delas afundaram no oceano, enquanto três caíram em terra. A última continuou em órbita. As peças que caíram no Norte da África e Austrália foram entregues à OTAN. Rússia e China lutaram pela peça que caiu na Ásia, mas a China saiu na frente. Depois de muita discussão entre as nações, a nave-mãe em órbita foi reduzida a um pequeno pedaço de lixo espacial por uma onda de mísseis.
As máquinas de que caíram no fundo do oceano começaram a executar suas instruções calma e metodicamente. Os nanorobôs penetraram nos endoesqueletos rígidos da estrela do mar e começaram a se multiplicar em simbiose com seus hospedeiros.
As criaturas resultantes se alimentavam do solo. Eles comeram o mundo e cagaram veneno. O que passava por seus corpos era tóxico para a vida na Terra, mas adequado para as pessoas que os enviaram. Lentamente, a terra onde as criaturas alimentadas morriam e se tornava deserto. Os mares onde se espalharam se tornaram um verde leitoso.
Inicialmente, pensava-se que as criaturas eram o resultado de mutações causadas por escoamento químico, ou talvez alguma forma de vida pré-histórica liberada pela atividade tectônica. Alguns cientistas insistiram que era uma espécie de salamandra evoluída, embora não tivessem nenhuma evidência para apoiar sua conclusão. Eventualmente, essas novas criaturas formaram grupos e começaram a se aventurar fora da água. Elas continuaram seu trabalho para remodelar a terra sem respeito pela sociedade do homem.
Quando apareceram pela primeira vez na terra, os invasores não eram armas de guerra. Eles eram lentos, e um grupo de homens armados poderia facilmente derrota-los. Mas, como baratas que desenvolvem resistência aos pesticidas, as criaturas alienígenas evoluíram. As máquinas que os criaram concluíram que, para cumprir seu objetivo, teriam que remover os obstáculos que se interpunham em seu caminho.
A guerra tomou o mundo. O dano foi rápido e maciço. Em resposta, uma Força de Defesa Unificada mundial foi estabelecida. A humanidade tinha um nome para o inimigo que trouxe o mundo à beira da ruína. Nós os chamamos Mimics.
{4} Rita Vrataski se juntou às Forças Especiais dos EUA depois da batalha que lhe valeu a Medalha de Valor do Thor. A medalha, que tem semelhança ao tal deus brandindo um martelo, é concedida a qualquer soldado que mata dez ou mais Mimics em uma única batalha. Os Mimics se mostraram como o único inimigo capaz de se defender contra um pelotão de cinquenta soldados armados mandando uma saraivada de balas. Poucas medalhas Thor precisavam ser entregues.
O oficial que pendurou a brilhante medalha no pescoço de Rita a elogiou por se juntar às fileiras de elite daqueles que poderiam afirmar terem derrubado dois punhados de Mimics. Rita foi a primeira soldado na história a receber a honra em sua segunda batalha. Havia alguns que se perguntavam em voz alta, na sua cara, como Rita conseguiu as habilidades necessárias para realizar tal façanha apenas em sua segunda operação de campo. Rita respondia com uma pergunta:
“Cozinhar é perigoso?”
A maioria responderia que não. Qual a diferença entre um fogão e um lançador de chamas de curto alcance? Vários materiais inflamáveis podem estar guardados por baixo da pia da cozinha. Prateleiras forradas com panelas podiam enfraquecer e cair em uma avalanche de ferro e aço. A faca de um açougueiro podia matar tão facilmente quanto uma adaga.
No entanto, poucas pessoas consideravam cozinhar uma profissão perigosa, e na verdade, o perigo real é remoto. Qualquer pessoa que tenha passado algum tempo em uma cozinha está familiarizado com os riscos inerentes e sabem o que pode ser feito com segurança e o que não pode. Nunca jogue água em óleo quente, mantenha a faca afiada longe de sua artéria, não use veneno de rato quando a receita pede queijo parmesão.
Para Rita, a guerra não era diferente.
Os ataques dos Mimics eram simples. Eles lembravam Rita dos porcos que ela havia criado em Pittsfield. Soldados escolhiam um Mimic para atacar, mas Mimics faziam as coisas diferente. Como uma vassoura varrendo a poeira do chão, Mimics atacavam grupos inteiros de soldados ao mesmo tempo. Contanto que soubesse como evitar a vassoura, não importa quantas vezes o Mimics atacasse, você não seria varrido. O segredo para lutar contra os Mimics não era evitar o perigo, era correr ao lado dele.
Experimente na próxima vez. É fácil.
Isso geralmente era o suficiente para fazê-los deixá-la sozinha. Eles encolhiam os ombros e saíam, aturdidos.
Rita, que acabava de completar dezesseis anos, não entendia por que ela era tão talentosa na batalha. Ela teria sido mais feliz se fosse boa em assar tortas de carne, ou saber exatamente quando uma porca iria parir, mas aparentemente Deus tinha senso de humor. Ele deve ter notado que ela cochilava durante os sermões todos os domingos que seus pais a levaram para a igreja.
Forças Especiais era um lugar para individualistas, para pessoas com problemas de autoridade. Todos na equipe eram supostamente assassinos que tiveram que escolher entre o exército e o laço. Eles eram rapazes que atirariam em uma pessoa ao falar com ela, eles não diferenciavam amigos de inimigos quando disparavam rodadas de 20mm. Era uma tarefa árdua, e eles estavam sempre procurando corpos frescos para preencherem os buracos deixados por todos os KIAs.
Na verdade, a unidade de Rita acabou por ser um pelotão cheio de veteranos endurecidos pela batalha. Se derretesse todas as medalhas ganhas naquele esquadrão, poderia fazer um haltere de classe olímpica.
O esquadrão estava cheio de fodões que foram e voltaram do Inferno tantas vezes que já estavam em acordo com o Diabo. Quando a merda começava, eles contavam piadas. Não o tipo de piada que diria a sua mãe durante o jantar. Contrariamente à sua reputação, no entanto, havia alguns bons rapazes no bando. Rita se aproximou imediatamente de seus novos companheiros.
Um primeiro tenente chamado Arthur Hendricks mantinha o pelotão unido. Tinha cabelos loiros reluzentes, olhos azuis penetrantes e uma bela esposa tão delicada que você tinha que ter cuidado para não a quebrar quando desse um abraço. Não importa quão pequena a operação, Hendricks sempre ligava para ela, por isso era constantemente ridicularizado pelo resto da equipe.
Em um esquadrão onde todos, homens e mulheres, usavam uma linguagem que faria uma freira ter um ataque cardíaco, Hendricks era o único homem que nunca proferiu um xingamento. A princípio, ele tratou Rita como uma irmãzinha. Ela nunca iria admitir, mas ela gostava.
Rita estava na equipe há cerca de meio ano quando ficou presa no loop de tempo que ditou o ritmo de sua vida desde então. A batalha que transformaria Rita Vrataski na Valquíria foi uma operação especial, mesmo para padrões das Forças Especiais dos EUA. O presidente queria a reeleição e precisava entregar uma vitória militar para garantir a sua própria.
Sob as objeções de seus generais e da mídia, ele comandou tudo na operação, cada tanque, cada helicóptero de ataque que poderia permanecer no ar e mais de dez mil pelotões de soldados Jacket. Seu objetivo: recuperar o controle da península da Flórida. Era a batalha mais perigosa, mais imprudente e, de longe, a mais dura que Rita jamais viu.
As Forças Especiais tinham muitas palavras de quatro letras no vocabulário, mas o medo não era uma delas. Mesmo assim, era necessário mais de um esquadrão para vencer uma guerra sem esperança contra um inimigo superior. Um Jacket concedia força sobre-humana, mas isso não transformava as pessoas em super-heróis. Durante a Segunda Guerra Mundial, Erich Hartmann havia derrubado 352 aviões na Frente Russa, mas a Alemanha ainda perdeu a guerra. Se os cabeças do exército elaborassem planos que exigissem o impossível, a missão falharia, simples assim.
Após a batalha, Jackets abandonados estavam espalhados pela península da Flórida, suas cascas quebradas servindo como caixões para os cadáveres.
Rita Vrataski de alguma forma conseguiu o fio que serpenteava entre a vida e a morte. Ela tinha retorcido seu pile driver antes de perdê-lo completamente. Estava com pouca munição. Ela apertava seu rifle de 20mm tão forte que poderia muito bem ter se fundido com sua mão. Lutando contra o desejo de vomitar, ela tirou as baterias dos corpos de seus amigos caídos. Ela descansava seu rifle em seus braços.
“Você parece que está tendo um dia ruim.”
Era Hendricks. Ele se sentou ao lado de Rita que estava agachada em um buraco no chão e olhava para o céu como se estivesse tentando desvendar a forma das nuvens. Bem na frente deles, um dardo, zunindo, se lançou do chão. Uma espessa fumaça negra saía da cratera. Imagens de Pittsfield queimando contra um céu vermelho permearam os pensamentos de Rita.
Hendricks sabia que tinha que trazer Rita de volta onde quer que estivesse. “Minha mãe uma vez me disse que em partes da China, eles misturam sangue animal com seu chá.”
Rita não podia falar. Sua garganta estava seca e duvidava se conseguiria engolir.
Hendricks continuou. “Os nômades podem montar cavalos. Homens, mulheres e até mesmo crianças. Na Idade Média, foi a mobilidade que lhes permitiu conquistar a maior parte da Eurásia, nem mesmo a Europa foi poupada. Um país após outro — estrangeiros selvagens que bebiam sangue em xícaras de chá — se aproximavam cada vez mais, isso lhes dava pesadelos… Algumas pessoas pensam que na verdade aqueles nômades chineses que deram origem às lendas sobre vampiros da Europa Oriental.”
“…tenente?”
“Minha pequena história te aborrece?”
“Estou bem, tenente, desculpe, não vai acontecer de novo.”
“Ei, todos nós precisamos de uma pausa às vezes, especialmente em uma maratona como esta, só mais um pouco e será hora de entrar nos chuveiros.” Ele terminou de falar e foi para o próximo soldado. Rita voltou para a briga.
E então ela viu. Um Mimic que se destacava do resto. Não parecia diferente dos outros — outra rã inchada em um mar de anfíbios encharcados. Mas havia algo sobre este que o distinguia. Talvez passar tanto tempo em próxima da morte tivesse aguçado sentidos que ela não sabia que tinha, revelando segredos que se escondiam da visão normal.
Quando ela matou o Mimic, o loop começou.
Havia sempre um Mimic no centro da rede, uma espécie de rainha. Sua aparência exterior era a mesma das outras. Assim como todos os porcos pareciam semelhantes a alguém que não estava no ramo de criação de porcos, a diferença entre os Mimic era uma que só Rita podia ver. De alguma forma, enquanto ela lutava e matava inúmeros Mimics, ela começou a distingui-los. Era algo sublime, que misturava com instinto. Não poderia explicar a diferença mesmo se tentasse.
O lugar mais fácil para esconder uma árvore era na floresta.
O lugar mais fácil para esconder um oficial era entre os subordinados.
O Mimic no coração de cada grupo estava escondido à vista. Pense nisso como o servidor da rede.
Quando você mata o servidor, a rede Mimic emite um tipo específico de sinal. Os cientistas a identificariam mais tarde como um pulso de tachyon, ou alguma outra partícula que pudesse viajar através do tempo, mas Rita realmente não entendeu nada disso. A parte importante era que o sinal emitido por Mimics que tinham perdido seu servidor viajava no tempo para adverti-los do perigo iminente que enfrentavam.
O perigo aparecia na lembrança dos Mimics como um presságio, uma janela para o futuro. Os Mímicos que recebiam essa visão poderiam modificar suas ações para se afastar do perigo. Esta era apenas uma das muitas tecnologias descobertas por essa raça avançada de uma estrela distante. O processo, construído no design de cada máquina serviu como um sistema de advertência para evitar algum acidente de perturbar o plano transformação da terra.
Mas os Mimics não eram os únicos que poderiam se beneficiar desses sinais. Mate um servidor Mimic enquanto está em contato elétrico com ele e o ser humano receberia o mesmo dom de previsão significou para a rede. O sinal tachyon enviado para o passado não distingue entre Mimic e humano, e quando chegava, os seres humanos percebiam o presságio como um sonho, preciso em cada detalhe.
Para realmente derrotar uma força de ataque Mimic, você tem que primeiro destruir sua rede e todos os backups que ele contém, em seguida, destruir o servidor Mimic. Caso contrário, não importa quantas estratégias diferentes você tente, o Mimics sempre desenvolverá uma contra estratégia que garanta a sua sobrevivência.
- Destrua o roteador.
- Massacre cada Mimic sendo usado como backup para a rede.
- Uma vez eliminada a possibilidade de transmissões para o passado, destrua o servidor.
Três passos simples para escapar para o futuro. Rita levou 211 loops para perceber.
Ninguém para quem Rita contou acreditou nela. O exército estava acostumado a lidar com fatos concretos. Ninguém estava interessado em histórias estranhas envolvendo loops temporais. Quando Rita finalmente saiu do loop e chegou ao futuro, ela descobriu que Arthur Hendricks estava morto. Ele foi um dos vinte e oito mil mortos na batalha.
Nos dois dias que Rita passou em um loop interminável de lutas, ela conseguiu pesquisar a história da guerra, vasculhar as fontes, obter informações sobre os Mimics, alistar uma engenheira para fazer um machado de batalha para ela. Tinha conseguido quebrar o loop, mudar seu próprio futuro, contudo o nome de Hendricks terminou com as letras KIA impressas ao lado.
Rita finalmente entendeu. Isso era a guerra de fato. Todo soldado que morre em batalha era apenas mais um no cálculo de vítimas estimadas. Suas dificuldades, alegrias e medos nunca entraram na equação. Alguns viveriam, outros morreriam. Tudo dependia do deus imparcial da morte chamado probabilidade. Com o benefício de sua experiência no loop temporal, Rita seria capaz de salvar algumas pessoas no futuro. Mas sempre haveria aqueles que ela não poderia salvar. Pessoas com pais, mães, amigos, talvez até irmãos, irmãs, esposas, maridos, filhos. Se ela pudesse repetir o loop outra vez, talvez pudesse encontrar uma maneira de salvar Hendricks — mas a que custo? Rita Vrataski estava sozinha no ciclo do tempo, e para que ela conseguisse escapar, alguém teria que morrer.
Hendricks fez um último telefonema antes daquela batalha. Ele soube que tinha acabado de se tornar pai, e ficou chateado porque a foto do garoto, que ele havia impresso e gravado dentro de seu Jacket, ficou suja. Ele queria ir para casa, mas colocou a missão em primeiro lugar. Rita já ouvira a conversa telefônica 212 vezes. Ela sabia de cor.
Rita recebeu uma medalha por seu distinto serviço na batalha — a Ordem da Valquíria, dada aos soldados que mataram mais de cem Mímicos em uma única batalha. Tinham criado a honra apenas para ela. E porque não? O único soldado em todo o planeta que poderia matar tantos Mimics em uma única batalha era Rita Vrataski.
Quando o presidente cravou a brilhante medalha no peito de Rita, ele a elogiou como um anjo de vingança no campo de batalha e a declarou um tesouro nacional. Ela pagou a medalha com o sangue de seus irmãos e irmãs.
Ela não derramou uma lágrima. Os anjos não choram.
{5} Rita foi redistribuída. O nome Cadela do Campo de Batalha e o temor que inspirava se espalhou através das fileiras. Uma equipe de pesquisa secreta foi criada para estudar o ciclo de tempo. Depois de cutucar, cutucar e sondar Rita, os laboratórios redigiram um relatório alegando que era possível que os laços tivessem alterado o cérebro de Rita, que essa era a causa de suas dores de cabeça e meia dúzia de outras coisas que realmente não responderam nenhuma pergunta. Se isso significava limpar os Mimics da face da terra, ela não se importava se isso partisse seu crânio em dois.
O presidente deu a Rita autoridade para agir com total autonomia no campo de batalha. Ela falava cada vez menos com os outros membros de sua equipe. Tinha um quarto de aluguel em Nova York, onde guardava as medalhas que continuava a receber.
{6} Rita estava na Europa. A guerra continuava.
{7} Norte da África.
Quando Rita ouviu que sua próxima missão seria em algumas ilhas do Extremo Oriente, ficou contente. Os cadáveres asiáticos seriam uma mudança dos habituais negros e brancos da frente ocidental. Claro, não importava a quantidade de peixe cru que eles comiam, o sangue ainda jorrava como a mesma mancha vermelha quando um dardo rasgava um homem e seu Jacket. Depois de um tempo, ela provavelmente também se cansaria de vê-los.
{8} Rita estava familiarizada com a pesca de corvos-marinhos, uma técnica tradicional japonesa. Os pescadores amarram um laço na base do pescoço do corvo-marinho treinado o suficiente para evitar que engula qualquer peixe maior que ele pegar e, em seguida, dão corda suficiente para permitir que o pássaro mergulhe na água. Uma vez que o corvo-marinho pegar um peixe, os pescadores puxam o pássaro de volta e o fazem cuspir sua captura. Rita achava que seu relacionamento com o exército era muito parecido com o relacionamento de um corvo-marinho com o pescador.
Rita estava no exército porque era assim que ela ganhava a vida. Seu trabalho era sair, matar Mimics e trazer seus cadáveres de volta para seus senhores. Em troca, eles lhe forneciam tudo o que ela precisava para viver e cuidavam dos pequenos aborrecimentos da vida sem que ela tivesse que saber que eles estavam lá. Era um relacionamento de ganho mútuo e em sua mente era justo.
Rita não gostava da noção de ser a salvadora da terra, mas se é isso que o exército queria, que assim seja. Em tempos de escuridão, o mundo precisava de uma figura para que as pessoas se recuperassem.
A linha de quarentena do Japão estava à beira do colapso. Se o inimigo conseguisse atravessar Kotoiushi, Mimics invadiriam o complexo industrial na ilha principal. Com as fábricas e tecnologias de ponta do Japão perdidas, haveria uma queda estimada em 30% na eficácia dos Jackets que usavam para travar a guerra. As ramificações seriam sentidas em toda a UDF.
Sem alguém para interromper as transmissões do tachyon, a batalha nunca terminaria. Tecnicamente era possível fazê-los recuar com uma esmagadora exibição de força. Depois de vários loops, os Mimics perceberiam que não podiam vencer, e eles se retirariam com o menor número de baixas possível. Mas isso não era o mesmo que derrotá-los. Eles simplesmente recuariam sob o oceano, fora do alcance da humanidade, e reuniriam suas forças. Uma vez que reunissem uma força insuperável, atacariam de novo, e não haveria nada que os parassem uma segunda vez.
Travar uma guerra contra os Mimics era muito parecido com jogar contra uma criança. Eles tinham decidido que venceriam antes do jogo começar e não desistiriam até que ganhassem. Pouco a pouco, a humanidade perdia terreno.
A duração dos ciclos de tempo Mimic era de aproximadamente trinta horas. Rita repetiu cada ciclo apenas uma vez. A primeira vez em uma batalha ela avaliou as baixas sofridas por seu esquadrão. Da segunda vez, ela ganhava. Naquela primeira passagem, ela podia ver qual era a estratégia e aprender quem morria. Mas as vidas de seus amigos estavam nas mãos impiedosas do destino. Isso não podia ser mudado.
Antes de cada batalha, Rita se isolava para esclarecer seus pensamentos. Um dos privilégios de seu posto era que Rita tinha um quarto privado onde ninguém podia entrar.
A esquadra de Rita entendeu que as trinta horas antes de uma batalha eram um momento especial para ela. O soldado mediano do esquadrão não estava ciente do loop de tempo, mas eles sabiam que Rita tinha suas razões para não querer falar com ninguém no tempo que antecede a batalha. Mantinham distância por respeito. Mesmo que o espaço fosse exatamente o que Rita queria, ainda a fazia se sentir sozinha.
Rita estava admirando as águas cintilantes do Pacífico de sua varanda. A única estrutura em Flower Line mais alta do que a torre de Rita era uma antena de rádio nas proximidades. A torre estava praticamente implorando para ser o primeiro alvo quando os Mimics viessem. Você só poderia rir da audácia de situar o quartel de oficiais em um local tão vulnerável. Este era o problema com os países que ainda não tinham sido invadidos.
O Japão havia conseguido em grande parte escapar aos estragos da guerra. Se a ilha estivesse um pouco mais longe da Ásia, teria virado deserto há muito tempo. Se tivesse mais perto, os Mimics teriam invadido antes de ir para o continente. A paz que o Japão desfrutou era pura sorte.
A área reservada para o quartel dos oficiais era desnecessariamente grande e quase completamente vazia. A vista que proporcionava do oceano era adequada para um hotel cinco estrelas. Em contrapartida, a cama pesada que estava no meio da sala parecia ser uma piada.
Rita apertou um botão. O cristal líquido embutido no vidro resistente à explosão obscureceu a vista. Ela escolheu a sala de recepção dos oficiais para seus aposentos porque era um lugar que os outros membros de seu esquadrão não visitariam. Os sistemas dos seus colegas de esquadrão foram programados para a guerra. Eles não iriam pisar um edifício que fosse um alvo tão ostentoso. Rita não se importava muito com isso.
Para apaziguar seus medos, uma tecnologia japonesa fazia o vidro entrelaçado com fibras de carbono, uma resistência próxima a um Jacket. Se o material era tão bom, Rita se perguntou por que não parecia funcionar tão bem nas linhas de frente. Pelo menos aqui ela estava sozinha. No dia seguinte poderia ter que ver um de seus amigos morrer. Não queria ter que olhar nos olhos deles.
Uma batida suave tirou Rita de seus pensamentos. O vidro na entrada da sala também era embutido com cristal líquido. Estava opaco como o resto.
“Eu não aprecio distrações dentro destas trinta horas. Apenas me deixe em paz.”
Não houve resposta. Sentiu uma estranha presença do outro lado da porta. Parecia um pequeno animal sendo caçado por um bando de lobos, ou uma mulher sendo perseguida por um beco escuro. Só poderia ser Shasta.
Rita apertou o botão. O vidro revelou que uma pequena mulher nativa americana estava na porta. A primeira-tenente Shasta Raylle era mais velha do que Rita e, tecnicamente, sua superior, mas a Valquíria não precisava curvar para ninguém. Ainda assim, Rita achou a polidez de Shasta cativante.
Thud.
Shasta bateu a testa contra o vidro. Ela tinha confundido o vidro, de repente transparente, com uma porta aberta e caminhou diretamente para ele. Ela estava segurando algo na mão que pressionou contra sua cabeça. Ela se agachou no chão, tremendo como uma folha. Era difícil acreditar que o cérebro dessa cabeça pudesse ser tão brilhante. Então, talvez os gênios sejam assim. Algumas pessoas chamavam Rita de gênio militar, e ela não era tão diferente dos outros. A única coisa sobre ela que era especialmente única era a sua capacidade de foco. Os pensamentos de Shasta provavelmente estavam focados no que ela estava segurando na mão, assim como os de Rita estavam na batalha que se aproximava.
Rita abriu parte da porta. Os óculos de Shasta ainda estavam torcidos pelo impacto com o vidro. Ela os ajustou enquanto se levantava. “Sinto muito incomodá-la, mas havia algo que tinha que mostrar para você, eu realmente sinto muito.” Shasta abaixou a cabeça e bateu contra a porta que ainda bloqueava metade da entrada. Desta vez ela atingiu a quina.
Thud.
“Oww.” Shasta se agachou novamente no chão.
“Não precisa se desculpar, você é sempre bem-vinda, tenente, sem você, quem cuidaria do meu Jacket?”
Shasta se levantou, os olhos úmidos de lágrimas.
“Você me chamou de tenente, me chame de Shasta, por favor.”
“Mas, tenente…”
“Shasta, eu só quero que todos falem comigo como uma pessoa normal.”
“Muito bem, Shasta.”
“Assim é melhor.”
Rita sorriu. “Então… o que você queria me mostrar?”
“Certo,” Shasta disse. “Olhe, você não vai acreditar.”
Shasta abriu a mão. Rita olhou atentamente para o objeto estranho que descansava em sua pequena palma. Apenas ligeiramente maior do que uma bala de 9mm, era intrincada e pintada de vermelho brilhante. Rita tinha ouvido falar de pessoas que pintaram as pontas de suas balas de uma cor separada para distinguir entre os tipos de munição, mas nunca a caixa inteira.
Ela pegou. Tinha a forma de uma pessoa.
Shasta prosseguiu apressada. “Isto deveria ser secreto, certo? Alguém na base me falou sobre eles. Fui até o Tateyama para isso. Ele tomou quase todo meu dinheiro até eu conseguir ganhar.”
“Ganhar?”
“Você coloca dinheiro na máquina, vira o botão, e um desses aparece em uma bolha de plástico.”
“É algum tipo de brinquedo?”
“Oh, não, é um item valioso de colecionador, os raros podem ser trocados por mais de cem dólares.”
“Cem dólares por isso?”
“É.” Shasta assentiu gravemente.
Rita segurou a pequena figura contra as luzes do quarto. Em um exame mais detalhado, era claramente semelhante a um soldado de Jacket. O que estava pintado de vermelho e empunhando um machado de batalha só poderia ser Rita. “Eles fizeram um bom trabalho, acho que os segredos militares não são mais tão secretos assim.”
“Eles usam modeladores profissionais, tudo o que precisam é um vislumbre para fazer algo quase exatamente igual ao original. Os modelos feitos no Japão são os melhores. São leiloados por um monte de dinheiro.”
“Que desperdício de talento.” Rita jogou a figura na mão. As palavras MADE IN CHINA estavam gravadas nos pés. “A China ainda tem tempo para fazer brinquedos? Ouvi dizer que nem conseguem acompanhar a produção de chips Jacket.”
“Eles têm uma força de trabalho muito grande. Lembre-se que o senador que foi forçado a se demitir depois de dizer que a China poderia se dar ao luxo de perder tantas quanto as que existem em todo os Estados Unidos e ainda teriam mais de um bilhão de sobra. Eles realmente perderam milhões de pessoas no sul, mas conseguiram recursos suficientes para segurar a linha.”
“É difícil acreditar que viemos do mesmo planeta.”
“A América está em guerra e ainda temos tempo para fazer filmes horríveis.”
Rita não podia rebater essa.
A UDF existia para proteger um mundo obcecado com a criação de pilhas inúteis de porcaria, pensou Rita. Era incrível como as pessoas poderiam dedicar suas vidas a coisas tão triviais. Não que isso fosse necessariamente algo ruim. Ninguém apreciava esse fato mais do que Rita, cuja única habilidade era matar.
“Eu tenho muito mais.” Shasta puxou um punhado de figuras de seu macacão.
“O que é isso, algum tipo de sapo da região Amazônica?”
“Isso é um Mimic.”
“Complicado demais para a capacidade dos seus modeladores profissionais.”
“É assim que eles se parecem nos filmes, então é assim que eles são no diz respeito ao público, acredite, é o que está no cinema, até a última curva.”
“Que tal este?”
“Você deveria saber, é Rita Vrataski — você.”
A figura era magra, prodigiosamente dotada, e tinha cabelos loiros encaracolados. Era difícil encontrar um único traço que se assemelhasse remotamente a Rita. Ela tinha de fato se encontrado com a atriz que a interpretava nos filmes uma vez. Era difícil dizer que ela não se encaixava no perfil de um soldado de Jacket, já que a própria Rita não se encaixava. Mas a mulher que escolheram para o papel era muito glamourosa quem lutava na linha de frente.
Rita comparou sua figura com a do Mimic. De repente, o modelo do Mimic não era tão estranho.
“Se importa se eu ficar com isso?” Rita pegou a peça da Cadela do Campo de Batalha que não se assemelhava a ela.
“O quê?”
“Você não vai sentir falta de um, certo?”
A reação de Shasta estava entre a de um gato dormindo expulsado de sua cama e a de uma criança de cinco anos cuja tia tinha negado o último pedaço de chocolate.
Rita reconsiderou seu pedido. Pessoas como Shasta, que foram para as universidades superiores, eram relativamente mais fáceis de explodir aleatoriamente se provocadas. “Desculpe, brincadeira, eu não deveria te provocar assim.”
“Não, sou eu quem deve se desculpar”, disse Shasta. “É que é meio, bem, muito raro, quero dizer, eu comprei cada bolha na máquina, e essa foi a única que saiu.”
“Não se preocupe, eu não sonharia em tirar isso de você.”
“Obrigado pela compreensão, sinto muito. Aqui, por que você não pega este? Supostamente também é muito raro.”
“O que é isso?”
“É a engenheira designada para a equipe de Rita no filme, então, basicamente… sou eu.” Uma risada nervosa escapou dos lábios de Shasta.
Era o pior clichê de uma engenheira que Rita já viu. Magra, sardenta, características faciais exageradas. Se houvesse alguém de dez milímetros de altura que nunca teria a chance de beijar alguém do sexo oposto, era isso. É claro que a engenheira real, brilhante, que supostamente era a modelo, provavelmente batia a cabeça em seu próprio armário pelo menos duas vezes por dia, então nunca se sabe.
Shasta olhou para Rita com preocupação em seus olhos. “Não gostou?”
“Não se parece com você.”
“Nem a sua.”
Elas olharam uma para a outra.
“Tudo bem, obrigado, vou ficar com ela, para dar sorte.”
Shasta levantou outra figura quando Ralph Murdoch, com a câmera pendurada em seu pescoço grosso, entrou.
“Bom dia, senhoras.”
Rita ergueu uma sobrancelha com a chegada de seu convidado indesejado. Seu rosto endureceu como aço. A repentina mudança no comportamento de Rita assustou Shasta, que não conseguia decidir se escondia de Rita atrás desse jornalista ou o contrário. Depois de alguns instantes de hesitação, ela optou por se esconder atrás de Rita.
“Como você chegou aqui?” Rita não tentou ocultar seu desprezo.
“Eu sou um membro registrado de sua equipe pessoal. Quem iria me parar?”
“Você é sua própria equipe, nós dois sabemos disso, pode sair agora.”
Rita não se importava muito com esse homem e seus sapatos de corrida. Pessoas como ele e Shasta podiam se encontrar e conversar com total segurança sempre que o humor os deixasse. Suas palavras nunca eram limitadas pelo medo de saber que teria que ver seus amigos morrerem na próxima batalha. Era esse medo, aquela certeza, que mantinha Rita longe de seus companheiros de equipe, a única família que tinha. Nada que esse idiota tivesse que lidar em toda a sua vida.
“Isso seria uma vergonha depois de chegar até aqui”, Murdoch disse. “Aconteceu uma coisa interessante e pensei em compartilhar com você.”
“Envie para o New York Times, eu ficarei feliz em ler sobre isso.”
“Confie em mim, você vai querer ouvir isso.”
“Não estou interessada no que você acha interessante.”
“As tropas japonesas vão ter um TFM, um castigo pela confusão na noite passada.”
“Eu pedi para você sair, nunca estou de bom humor antes da batalha.”
“Você não quer assistir? Eles vão fazer algum tipo de treino estilo samurai.”
“Sua mãe deve ter se desapontado quando o aborto só matou a sua consciência”, disse Rita.
“Tal conversa vinda de uma menina agradável e doce como você.”
“Eu diria isso de novo, mas não vou me incomodar.”
“De novo?”
“Acredite em mim, prefiro não repetir.”
Murdoch levantou uma sobrancelha. “Ok, então você também fala besteiras.”
“Acho que deve ser contagioso.”
“Bem, então eu não tenho consciência e vou direto para o Inferno. Você me disse a mesma coisa na Indonésia quando tirei aquelas fotos do garoto chorando correndo de um bando de Mimics.”
“O inferno é bom demais para você, você apenas pegar a imagem de Satanás e usá-la para atrapalhar o caminho até os céus.”
“Eu vou aceitar isso como um elogio.”
Um sorriso se espalhou pelos lábios da Valquíria. Era o mesmo sorriso que lhe vinha naquelas horas escuras no campo de batalha, quando pelo menos estava escondido atrás de seu capacete. O corpo de Shasta ficou tenso. Murdoch deu um passo para trás sem sequer perceber.
“Bem”, disse a Cadela do Campo de Batalha, “Estou prestes a entrar no inferno, e até lá não quero ver sua cara de novo.”
{9} Rita acabou indo assistir ao TFM. Shasta não. A única pessoa perto de Rita era aquele condenado do Murdoch. O resto de sua equipe manteve uma distância respeitosa.
Foi quando os olhos de Rita encontraram aquele desafio no campo, aquele olhar que carregava o peso do mundo. Havia algo sobre o garoto que Rita gostava. Ela começou a caminhar em direção a ele.
Caminhou com propósito, cada passo um movimento perfeito projetado para impulsionar um Jacket em campo de batalha com eficiência total. Ela avançou através do campo sem esforço e em silêncio. Para obter 100% de um Jacket, um soldado deve ser capaz de atravessar uma sala cheia de ovos sem rachar nenhum. Isso significava distribuir perfeitamente seu peso corporal a cada passo.
O soldado ainda olhava para Rita. Ela caminhou direto para ele, então fez um giro de noventa graus e se dirigiu para a tenda onde o general de brigada estava sentado. Ela deu a ele uma saudação de regulamento.
O brigadeiro lançou um olhar duvidoso para Rita. Rita era um sargento major por posição, mas também estava no Corpo dos EUA, então seus lugares relativos na hierarquia militar eram um pouco diferentes.
Rita se lembrava desse homem. Ele estava junto ao general que tinha fila para apertar a mão de Rita no início da recepção frívola realizada para dar as boas-vindas às Forças Especiais. Havia muitos oficiais que haviam subido nos ranks sem nunca lutar nas linhas de frente, mas este parecia ter um amor especial por bajular.
Eles falaram brevemente, o general aparentemente perplexo com a postura de Rita e a linguagem corporal bem praticadas. Então Rita voltou ao campo, passando pelas fileiras de homens que pareciam se curvar diante dela. Ela escolheu um lugar ao lado do soldado que a encarava e começou a prancha isométrica. Ela podia sentir o calor de seu corpo irradiando através do ar frio entre eles.
O soldado não se moveu. Rita não se moveu. O sol pairava alto no céu, assando lentamente sua pele. Rita falou em voz baixa, só o soldado ao lado ouviu:
“Tem algo no meu rosto?”
“Não que eu possa ver.”
Além de uma entonação ligeiramente estranha, o Burst do soldado era claro e fácil de entender. Diferente do norte da África. As pessoas das antigas colônias francesas não conseguiam falar Burst para salvar suas vidas.
Burst English, ou simplesmente Burst, foi uma linguagem criada para lidar com o problema da comunicação em um exército composto de soldados de dezenas de países. Tinha um vocabulário reduzido e poucas irregularidades gramaticais. Quando criaram a linguagem, eles deliberadamente tiraram todas os xingamentos do vocabulário oficial, mas não eram possível impedir um monte de soldados de acrescentar “fuck” em suas várias formas.
“Você está me encarando tem um tempo agora.”
“Acho que sim” ele disse.
“Quer alguma coisa de mim?”
“Nada que eu queira discutir desse jeito.”
“Então vamos esperar até que isso termine.”
“Merda Kiriya! Você está escorregando!” gritou o tenente.
Rita, com a expressão desinteressada de alguém que nunca teve necessidade de contato humano durante toda a sua vida, continuou sua prancha isométrica.
Prancha isométrica era muito mais árdua do que parecia. Gotas de suor brotaram ao longo do seu cabelo, passado por suas têmporas, correndo em seus olhos traçando a linha do seu pescoço antes de cair do seu peito. Ter que suportar essa coceira enquanto ela faz seu caminho. Era muito parecido com o que um soldado deveria suportar dentro de um Jacket. Este treinamento de samurai não era é completamente inútil afinal, decidiu Rita.
Quando as coisas ficavam difíceis de suportar, era melhor deixar sua mente vagar. Rita deixou que seus pensamentos se afastassem dos gritos de protesto de seu próprio corpo para os arredores. O general de brigada parecia confuso com o intruso em seus procedimentos. Para ele, alguém que nunca tinha experimentado um momento de conflito armado, talvez este campo de treinamento, com sua suave brisa oceânica, fizesse parte da guerra. Para pessoas que nunca tinham respirado aquela mistura de sangue, poeira e metal queimando que permeava um campo de batalha, era fácil imaginar que o desdobramento era guerra, que a formação era guerra, que escalar alguma escada era guerra. Havia apenas uma pessoa para quem a guerra ocorria naquele dia tranquilo antes da batalha: uma mulher chamada Rita Vrataski e seus loops temporais.
Rita sonhava com frequência que algum dia se depararia com outra pessoa que experimentasse os loops. Ela pensou até em uma frase que eles poderiam usar para se identificar. Uma frase que só Rita sabia. Uma frase que compartilhariam.
Para outra pessoa ser pego em um loop, isso significaria que alguém diferente de Rita tinha destruído um servidor Mimic por acidente. Assim como Rita foi forçada a deixar as pessoas fora do ciclo, essa pessoa também não teria escolha. Ele estaria sozinho.
Ela poderia não ser capaz de viajar através do loop com ele — embora ela também pudesse, e o pensamento a aterrorizou — mas ela poderia lhe dar conselhos de qualquer maneira. Compartilhar a solidão. Dizer como sair do loop, o conhecimento que Rita levou 211 mortes para aprender. Ele lutava com suas dúvidas, como Rita. Ele se tornaria um grande guerreiro.
No fundo de um canto tranquilo no coração de Rita, estava a certeza de que jamais diria a ninguém tais palavras.
O sinal Mimic tachyon era o auge da tecnologia alienígena, uma tecnologia que lhes permitiu conquistar a vastidão do espaço. O aprisionamento de Rita no ciclo do tempo durante a batalha para recapturar a Flórida tinha sido um golpe de sorte absurdo para a humanidade. Se não fosse por essa ocorrência casual, a terra teria sido transformada. Não apenas os seres humanos, mas praticamente todas as espécies do planeta já estariam extintas.
A fama de Rita crescia com cada batalha, e sua solidão com ela. Ela tinha quebrado seu loop, mas sentia como se ela ainda estivesse revivendo o mesmo dia. Sua única esperança era que a vitória da humanidade, o dia em que todos os Mimics se explodissem até a extinção, a livrassem de seu terrível isolamento. Até então, ela continuaria a desempenhar seu papel único no conflito.
Rita não se importava com as batalhas. Ela não tinha que pensar enquanto lutava. Quando subia em seu Jacket vermelho, a tristeza, o riso, a memória que a assombrava mais do que o resto — tudo desaparecia. O campo de batalha, rodopiando com fumaça e pólvora, era o lar de Rita.
O TFM terminou menos de uma hora depois. O general correu para o quartel.
Quando Rita se levantou, o homem ao seu lado cambaleou para seus pés. Ele não era particularmente alto para um soldado de Jacket. Era jovem, mas experiente. Suas roupas pareciam ter acabado de chegar da fábrica, então havia algo estranho em sua aparência. Seus lábios estavam retorcidos em um sorriso de Mona Lisa fazia um bom trabalho em ocultar sua idade.
O número 157 estava rabiscado no dorso da sua mão. Rita não sabia o que significava, mas era estranho. Estranho o suficiente para Rita pensar que ela não o esqueceria por tão cedo. Já tinha ouvido falar de soldados gravando seu tipo sanguíneo na sola de seus pés, mas ela nunca tinha ouvido falar de um soldado que fazia notas de caneta esferográfica no dorso de sua mão.
“Então você queria conversar. O que é?”
“Ah, certo” ele disse.
“E então? Continue, soldado, eu sou paciente, mas tenho uma batalha amanhã e tenho coisas para fazer.”
“Eu, uh, tenho uma resposta para a sua pergunta.” Ele hesitou como um estudante de teatro de escola secundária lendo um roteiro ruim. “Os restaurantes japoneses não cobram pelo chá verde.”
Rita Vrataski, a salvadora da humanidade, a Valquíria, a menina de dezenove anos, deixou cair sua máscara.
A Cadela do Campo de Batalha começou a chorar.
Notas:
1 Molho da culinária vietnamita. É confeccionado com sumo de lima ou limão, vinagre, molho de peixe, açúcar e água.
2 Problem Report: o jornalista é visto como um fofoqueiro e mentiroso dada a natureza da sua profissão e sua posição como acompanhante do exército.
3 Prêmio norte-americano outorgado a pessoas que realizem trabalhos de excelência na área do jornalismo, literatura e composição musical.
4 Nome dado à habitantes da região centro-oeste dos Estados Unidos.