Capítulo 418
Aquilo (3)
O fedor dos mortos impregnava o ar.
Não era de forma alguma um exagero. Alphiero pausou silenciosamente enquanto espiava para dentro do quarto.
Frascos vazios de poções estavam espalhados pelo chão, entre eles alguns estilhaçados em pedaços. Ataduras escuras e manchadas de sangue estavam espalhadas aqui e ali também.
Era possível ouvir uma respiração suave e rítmica.
Lá estava Amelia Merwin em uma posição semi-reclinada.
Ela não estava em uma cama, mas sim em um móvel que lembrava uma banheira. Dentro dela havia várias poções, líquidos não identificáveis e o próprio sangue de Amelia. Os tubos conectados a ela sugeriam que o líquido dentro da banheira estava substituindo seus fluidos corporais.
— Parece que você até misturou narcóticos. — Alphiero comentou ao entrar na sala cheia do cheiro de decomposição. Lembrava um lixão.
Croc.
Ele inadvertidamente pisou em um frasco de poção e o quebrou.
— Apenas coisas vis o suficiente para até intoxicar um demônio. Mas parece que não são muito eficazes. — Ele comentou.
Shhh… shhh…
Havia até uma máscara de oxigênio cobrindo seu nariz e boca. Amelia Merwin olhava silenciosamente para Alphiero. Seus olhos estavam nublados… Ela estava longe? Ou sua mente estava apenas confusa pelos efeitos da droga? Certamente não. Alphiero balançou a cabeça enquanto se aproximava dela.
— Nenhuma droga pode realmente aliviar a dor que destroça a existência de alguém, Amelia Merwin. Pelo que vejo, você está se entregando a um esforço fútil. Mudar todos os seus fluidos, cortar todos os seus nervos, até mesmo erodir sua consciência… nada disso mudará quem você realmente é. — Disse Alphiero.
— Por que você está aqui? — Perguntou Amelia.
A pergunta não veio dos lábios de Amelia, mas sim de um tubo saindo da banheira.
— Primeiro, leve meu conselho a sério. Estou realmente preocupado com sua ruína. — Respondeu Alphiero.
— Bobagem. — Retrucou Amelia.
— Enquanto você estiver aqui, e enquanto estiver vinculada a um contrato com o Rei Demônio do Encarceramento, Ravesta sempre resistirá à sua existência. Você tem apenas duas escolhas. Uma é deixar Ravesta. A outra é romper seu contrato com o Rei Demônio do Encarceramento e formar um novo com o Rei Demônio da Destruição. — Sugeriu Alphiero.
Nenhuma resposta veio do tubo. Isso aconteceu por um motivo simples: ele traduzia os pensamentos de Amelia em som, e, como tal, não podia reproduzir seu escárnio.
No entanto, Alphiero não poderia saber disso. Como tal, ele continuou:
— Você sabe tão bem quanto eu que alguém pode formar instantaneamente um contrato descendo ao templo. Mesmo que você fizesse um contrato diretamente com o Rei Demônio do Encarceramento, ele não poderia preceder um contrato com o Rei Demônio da Destruição. Seu relacionamento com o Rei Demônio do Encarceramento naturalmente chegará ao fim…
— Você me deixou entrar em Ravesta porque teme o Rei Demônio do Encarceramento. Pare de fingir que tem qualquer autoridade aqui. — Veio a resposta de Amelia.
— Você está desconsiderando minha boa vontade. — Comentou Alphiero.
— Sei muito bem que suas palavras não são por boa vontade. Sei que você ainda me despreza. Preferiria que eu partisse e perecesse, não é? Ou talvez você aproveitasse para me ver sucumbir à dor e ao medo, implorando ao Rei Demônio da Destruição? — Sua voz era cortante, mas a forma de Amelia na banheira permaneceu inerte.
O líquido da banheira fluía pelos tubos junto com um som borbulhante.
— Não tenho intenção de soltar nada do meu alcance. Se precisar suportar, então vou suportar o quanto for necessário. — Disse Amelia.
Com um rangido e gemido, a forma de Amelia começou a se dividir. Os restos fragmentados de seu corpo se dissolveram no fluido.
Alphiero observou silenciosamente a forma de Amelia. O corpo submerso no líquido estava nu; o braço direito permaneceu, mas o braço esquerdo se foi, e não havia nada abaixo de seu torso também.
Ainda assim, ela estava viva. Mesmo que a maioria de seus órgãos estivesse ido, a magia negra sustentava sua forma mal viva. Mesmo enquanto seu corpo continuava a se decompor e apodrecer, Amelia persistia.
— É mesmo? Você não tem intenção de soltar nada do seu alcance? — Alphiero riu. Ele continuou com um sorriso: — A ignorância realmente é engraçada. Você já perdeu tanto, e ainda permanece alheia a esse fato enquanto reclama sobre isso.
— O que quer dizer? — Amelia perguntou rapidamente.
Alphiero sentiu um aperto de pena por ela não poder expressar nenhuma emoção enquanto a informava dos eventos acontecendo além de Ravesta.
O Rei Demônio da Fúria havia ressurgido mais uma vez.
Eugene Lionheart havia derrotado o Rei Demônio da Fúria. Sienna da Calamidade havia retornado ao Reino Mágico de Aroth.
Ao mesmo tempo, Melkith El-Hayah da Torre Branca estava atacando indiscriminadamente os masmorras no deserto de Nahama.
O Sultão hesitava em responder agressivamente porque estava cauteloso com o olhar do continente.
— Até agora, as forças que você deixou no deserto—
Alphiero começou.
— Kieeeeeeeeee—!
Antes que Alphiero pudesse terminar, um som semelhante a metal sendo raspado ressoou de dentro do tubo. Um grito surgiu da consciência de Amelia. Era um grito sem voz.
O tubo vibrava com um gemido metálico, e o líquido ondulava enquanto o corpo de Amelia começava a tremer dentro da banheira. O som que emanava era tão agonizante que não poderia ser chamado de grito.
Alphiero ficou surpreso. Mas, em vez de se preocupar com ela, ele começou a aplaudir enquanto a ridicularizava.
— Minha nossa! Imagine ouvir um grito tão cômico vindo de você, Amelia!
No entanto, Amelia não ouviu sua voz. A raiva e a perda que ela sentiu naquele momento eram ainda mais horríveis do que a dor de seu estado quase morto.
Os tubos emitiam seu grito metálico por uma eternidade. Alphiero recuou com os braços cruzados enquanto se deliciava no caos.
— Ped—
Os gemidos metálicos cessaram, mas tremores esporádicos ainda percorriam o corpo de Amelia. Alphiero inclinou a cabeça enquanto travava os olhos com Amelia.
— Um pedido. — Ela sussurrou finalmente.
As bochechas dele tremeram enquanto ele suprimia um sorriso. Lentamente, ele se abaixou e nivelou seu olhar com o de Amelia. Se aqueles olhos nublados podiam ver claramente era discutível, mas Alphiero encarou intensamente enquanto tentava penetrar na alma que ele acreditava estar dentro dela.
— Por que eu deveria atender ao seu pedido? — Ele perguntou.
— Você me concedeu meus pedidos até agora, não é? — Disse Amelia.
— Você realmente pergunta sem saber por que fiz isso? — Alphiero deu uma risada oca ao se levantar de sua posição. Ele olhou para a forma machucada e frágil de Amelia.
Era verdade. Ele tinha atendido aos pedidos de Amelia até agora. Amelia dependia totalmente das informações do mundo exterior que Alphiero lhe trazia. Sem suas perspectivas, ela estaria totalmente isolada em Ravesta, como se tivesse perdido tanto a visão quanto a audição.
Alphiero não tinha afeição por Amelia. Ele a considerava uma vira-lata, meio-sangue, e estava frustrado com seu comportamento egocêntrico e confinado.
Mas ele não a rejeitava — queria discernir as profundezas de suas verdadeiras intenções. O que Amelia realmente desejava? Se ela era o Cajado do Encarceramento, por que ela não buscou refúgio em Babel? Em vez disso, por que ela se escondeu em Ravesta, um lugar que não estava sob a influência do Rei Demônio do Encarceramento?
— Eu sei. — Uma voz ecoou do tubo. — Alphiero, você está curioso sobre meus verdadeiros motivos, não está? Talvez você espere que aqueles que me desejam morta venham para Ravesta.
Não havia falsidade nessas palavras.
Trezentos anos haviam se passado desde a época da guerra. Para os demônios, não era um período extraordinariamente longo. Quantos entre os muitos demônios que viviam desde aquela era não ansiavam pelos dias irrestritos de guerra?
Alphiero ansiava pelos dias de guerra, e ele não era o único. Muitos demônios que moravam em Ravesta como eremitas ansiavam por aquela era passada.
Inicialmente, o Rei Demônio da Destruição não tinha nenhum súdito.
Mas, trezentos anos atrás, depois que o Rei Demônio do Encarceramento declarou guerra de repente, templos misteriosos começaram a aparecer por todo o reino de Helmuth.
Não importava sua posição, qualquer demônio poderia fazer um pacto com o Rei Demônio da Destruição se visitasse esses templos e expressasse seu desejo.
Inicialmente, todos os tipos de demônios se apressaram para fazer esses pactos.
No entanto, a maioria não suportava o poder avassalador do Rei Demônio da Destruição e perecia em questão de dias. Após essa fase inicial de ‘teste’, apenas aqueles que já possuíam poder considerável e buscavam ainda mais força fizeram pactos com o Rei Demônio da Destruição.
O motivo de sua sede de poder era simples: sobreviver na era do conflito e se deleitar nas guerras intermináveis.
Alphiero não era diferente.
Ele nunca duvidou que a guerra iria eclodir novamente. Ele acreditava que, assim como trezentos anos atrás, o Rei Demônio da Destruição adormecido se ergueria e causaria estragos. Ele suportava porque estava desesperado. Porque sua crença era firme. Com o Rei Demônio do Encarceramento prometendo paz, sair causando caos pelo mundo exterior era impossível.
Mas — se o inimigo de Amelia Merwin… o Herói desta era, Eugene Lionheart, buscasse Amelia em Ravesta para acabar com sua vida…
— Eu vou te dizer o que você quer saber. — A voz que emanava do tubo permanecia sem emoção. Nem mesmo era a voz original de Amelia. — Eu pretendo travar uma guerra.
Com isso, as intenções de Amelia Merwin foram reveladas enquanto ela falava no tom distante do dispositivo.
— Será diferente de trezentos anos atrás. Estou sonhando com uma guerra que não é travada pelo Rei Demônio da Destruição nem pelo Rei Demônio do Encarceramento. Eu, Amelia Merwin, vou começar uma guerra. — Ela declarou.
— Do que está falando? — Perguntou Alphiero.
— Eu estava preocupada que o Rei Demônio do Encarceramento pudesse interferir. No entanto, isso provou ser desnecessário. O Rei Demônio do Encarceramento é bastante generoso quando se trata da liberdade de seus súditos, embora, naturalmente, ele imponha responsabilidades. — Respondeu Amelia.
Era precisamente por esse motivo que Amelia não podia procurar refúgio em Babel.
Sua relação hostil com Eugene Lionheart e Sienna Merdein era toda devido às suas próprias transgressões. Se Amelia tivesse tentado usar Babel como refúgio, muito menos reconciliar seus relacionamentos, o próprio Rei Demônio do Encarceramento a teria executado no local.
— Eu fiz preparativos. Tentei o Sultão. Prometi terras três vezes mais vastas que seu reino atual, terras férteis, não os desertos áridos. A atração foi grande demais para ele resistir. — Explicou Amelia.
Alphiero disse.
— Fazer guerra nas costas apenas de Nahama—
— Você tem ideia de quantos demônios anseiam pelos dias de guerra? — A voz do tubo interrompeu o comentário de Alphiero.
— O continente atual está em paz. Especialmente Helmuth. Ele prosperou tanto que é impossível sequer lembrar dos vestígios da era de guerra e dos tempos antes dela. Eu nunca vivi naquela época, mas você viveu. — Disse Amelia.
— …… — Um silêncio pairou.
— Mas saiba disso: não importa o quão avançado ou conveniente o mundo se torne, aqueles que vivem em Helmuth ainda são demônios. Enquanto muitos se adaptaram à Helmuth moderna e se transformaram em porcos complacentes, há muitos que não conseguiram. Eles foram lançados em instalações correcionais disfarçadas de campos ou vagam pelas favelas, ou pior, vivem nos esgotos abaixo. — Continuou Amelia.
Nem todos sofreram tal destino. Os demônios mais astutos esconderam sua natureza monstruosa e usaram máscaras adequadas à era da paz.
A elite de Helmuth, os nobres altos, em sua maioria o fizeram. Gavid Lindman e Noir Giabella eram exemplos primordiais.
— Você sabe em que eu pus a maior parte do meu esforço em Nahama? Foi completamente tomar as masmorras do deserto e expandi-las. Como resultado, Nahama agora tem mais magos negros do que Aroth. Na verdade, tornou-se a terra com o maior número de magos negros no continente. — Explicou Amelia.
Todos os magos negros nasciam de contratos com demônios, exceto por casos especiais como Amelia Merwin.
Era raro alguém aspirar a se tornar um mago negro e formar contratos com demônios desde o início. Mais frequentemente, os magos comuns recorriam à magia negra em momentos de desespero por sua falta de talento, quando se deparavam com o muro intransponível da magia, ou quando desejavam poderes além do que a magia normal oferecia.
Se a Torre Negra de Aroth era um coletivo verificado de pesquisadores magos negros, a masmorra de magos negros de Nahama era uma escola de magia mais ‘pura’. Eles tratavam o Mestre da Masmorra como seu professor supremo e cultivavam magos negros por meio de um aprendizado.
Quando os magos comuns estudavam na masmorra, eles serviam sob um mestre mago negro por vários anos antes de serem apresentados a um demônio superior para formar um contrato.
— Atrás de cada mago negro, há um demônio. É uma história bem conhecida. Nem todos eles apoiam a guerra que estou instigando, mas disso, tenho certeza: todos esperam pela guerra.
Os magos negros convocados para o deserto tinham patronos demoníacos nas sombras. Esses eram os demônios que tinham sido marginalizados.
Embora ainda mantivessem postos plausíveis nesta era pós-guerra, suas posições em Pandemonium estavam inseguras. Eram demônios que não conseguiram manter seus lugares em Pandemonium ou rejeitaram a paz proclamada pelo Rei Demônio do Encarceramento e caíram em oposição radical. Eram heróis da guerra ofuscados por Noir Giabella e Gavid Lindman.
Além disso, havia jovens demônios que não haviam testemunhado a Era das Guerras. Eles lamentavam não ter nascido durante tempos tão tumultuados e aguardavam o próximo grande conflito.
— Mesmo se você fizer guerra através de Nahama, esses demônios não irão ajudá-la. — Disse Alphiero.
— Eu possuo meios para persuadir sua cooperação. — Veio a resposta assegurada.
Eles poderiam se tornar Reis Demônios.
Esta seria a tentação em jogo.
Ela já havia verificado o ritual que Edmund Codreth havia preparado por meio de Vladmir.
Embora Amelia mesma não tivesse intenções de realizar o ritual, ela sabia que a perspectiva de sentar-se no trono de um Rei Demônio era uma atração sedutora para os demônios que ansiavam por guerra e poder maior.
— O fato de Iris, essa tola, poder se tornar uma Rainha Demônio certamente alegrará os corações dos outros demônios. Ao obter sacrifícios e medo através da guerra e alcançar a ascensão a um Rei Demônio com o ritual que forneço, tenho certeza de que posso reunir inúmeros demônios para minha causa. — Explicou Amelia.
— .….. — Alphiero não disse nada.
— E você? Você, também, deseja a guerra, não é, Alphiero Lasat? Você não gostaria de participar secretamente da minha guerra e ascender a Rei Demônio? Se você desejar e atender ao meu pedido, prometo conceder-lhe isso primeiro, mesmo que signifique oferecer todos os cidadãos da capital de Nahama como sacrifício.
— Não tenho desejo de me tornar um Rei Demônio. — Alphiero recusou, balançando a cabeça. — O que eu… desejo é a guerra. E testemunhar o Rei Demônio da Destruição fazendo sua presença ser sentida no campo de batalha. Estar ao lado dele como seu súdito.
— E meu pedido? — Perguntou Amelia.
— Eu tenho interesse na guerra que você deseja travar. — Disse Alphiero. Avançando mais uma vez,
Alphiero se empoleirou na borda da banheira enquanto travava os olhos com Amelia. — O que você me pediria? — Ele perguntou.
— Eu pretendo enviar meu cão para fora. Não posso sair, sabe. Quero negociar com os demônios através desse cão e usá-lo de várias maneiras… Infelizmente, estou atualmente em um estado tão enfraquecido que nem consigo puxar uma coleira. — Ela respondeu.
— E o seu ponto? — Perguntou Alphiero.
— Você sabe, o cão acorrentado lá fora é uma quimera misturada com sangue de vampiro. Então, eu gostaria que você a deixasse beber um pouco do seu. — Pediu Amelia.
— Você deseja controlar o cão através de mim. — Respondeu Alphiero.
— Ela é uma criatura tão frágil que me preocupo que ela possa perecer se eu a soltar lá fora… mas se ela beber do seu sangue, não ficará tão fraca. — Disse Amelia.
— Eu farei com que um vampiro do clã cuide dela. — Disse Alphiero após algum pensamento.
Alphiero pertencia ao clã Lasat, um clã de vampiros que prosperou durante a era de guerra. Embora todo o clã tivesse se retirado para Ravesta, seus clãs menores ainda estavam ativos em Helmuth.
— Você não vai enviar o outro cão? — Ele perguntou.
— Isso não acabará sendo apenas um cão. — Respondeu Amelia. — Para ser franca, eu não sei o que esperar. Não faço ideia do que está acontecendo com ele.