Capítulo 02: O Capitão do Desaparecido

Esta não era a primeira vez que Zhou Ming atravessava a porta para o “outro lado”.

Desde alguns dias atrás, depois de se encontrar preso em seu quarto por um estranho “fenômeno”, ele vinha passando por essa porta em busca de ajuda, já que era a única saída disponível diante dele.

Ele ainda se lembrava da primeira vez que a porta se abriu. Era o mesmo convés de tábuas de madeira, a mesma transformação em seu corpo, e a coragem que ele reuniu para explorar este “lado” várias vezes em busca de socorro. Mas, por mais que tentasse, nenhuma resposta veio, nem ele conseguia compreender a estranheza deste navio fantasma conectado à “porta”. Apesar disso, ele ao menos adquiriu alguma experiência e uma compreensão preliminar desta embarcação.

Como das vezes anteriores, Zhou Ming usou o menor tempo possível para se livrar da tontura causada pela travessia. Então, verificou as condições de seu corpo e da arma pendurada em sua cintura. Tudo estava exatamente como ele havia deixado na última visita.

“Parece que meu corpo faz uma “troca perfeita” toda vez que passo pela porta… Se ao menos eu pudesse colocar uma câmera deste lado para ver o que acontece. Assim, poderia confirmar se este corpo também muda quando volto. Pena que os objetos dos dois “mundos” não são intercambiáveis…

“Bem, pelo menos eu sei que realmente entrei no nevoeiro e não apenas desmaiei no meu apartamento, como mostra a gravação daquele lado.”

Zhou Ming murmurou, endireitando seus pensamentos. Ele sabia que falar sozinho no convés aberto parecia estranho, mas quem o ridicularizaria ali? Não havia uma alma viva à vista neste navio fantasma, e falar consigo mesmo era sua maneira de provar que ainda estava “vivo”.

Enquanto a brisa salgada soprava pelo convés, balançando seu uniforme azul e preto de material desconhecido, Zhou Ming suspirou suavemente e se virou para encarar a porta novamente.

Colocando a mão na maçaneta, ele a girou e empurrou para revelar o nevoeiro cinza-escuro de onde tinha vindo. Além dele, estava o apartamento familiar em que ele vivia há tanto tempo.

Mas desta vez ele não atravessou. Em vez disso, fechou a porta e a puxou, revelando os aposentos do capitão. Lá dentro, havia uma cabine mal iluminada, com tapeçarias requintadas penduradas nas paredes, uma prateleira cheia de ornamentos e uma grande mesa de mapas no centro, sobre um tapete bordô.

 

Era assim que a “porta” funcionava. Empurrá-la levava de volta ao apartamento, enquanto puxá-la dava acesso ao quarto do capitão – esta última sendo a norma.

Após entrar nos aposentos do capitão, ele olhou habitualmente para a esquerda, onde um espelho de altura humana estava fixado à parede. Lá, refletia-se claramente a aparência atual de “Zhou Ming”.

Era um homem alto, com cabelos pretos e espessos, uma barba curta e majestosa, cavidades oculares profundas e uma expressão que exigia respeito. Apesar de já ter mais de quarenta anos, sua aparência viril confundia sua idade real, fazendo com que fosse facilmente confundido com alguém mais jovem.

Afrouxando o colarinho em volta do pescoço, ele fez uma careta boba para o espelho. Infelizmente, a aparência desse novo eu não combinava com um semblante amigável; ele parecia mais um serial killer psicopata.

Enquanto Zhou Ming fazia essas caretas, um leve som de clique veio da direção da mesa de mapas. Sem surpresa, ele viu a familiar estátua de madeira em forma de cabeça de bode na mesa se virando pouco a pouco para encará-lo – o bloco inanimado parecia ganhar vida naquele momento, e os olhos de obsidiana embutidos no rosto de madeira brilhavam com luz.

As memórias aterrorizantes da primeira vez que viu essa cena estranha passaram novamente por sua mente, mas Zhou Ming apenas curvou o canto da boca em um sorriso. Ele sabia o que estava por vir e, como esperado, uma voz sombria e rouca veio da boca de madeira:

“Nome?”

“Duncan”, respondeu Zhou Ming calmamente. “Duncan Abnomar.”

A voz da cabeça de bode mudou instantaneamente de sombria e rouca para calorosa e amigável:

“Bom dia, Capitão. É bom ver que ainda se lembra de seu nome. Como está se sentindo hoje? Dormiu bem à noite? Espero que tenha tido um bom sonho. Hoje é um ótimo dia para zarpar. O mar está calmo, o vento está certo, a temperatura está fresca e confortável, e não há frotas navais incômodas por perto. Capitão, você conhece uma tripulação barulhenta…”

 

“Você é barulhento o suficiente.” Embora não fosse a primeira vez que Zhou Ming lidava com aquela estranha cabeça de bode, ainda assim sentiu um arrepio percorrer sua espinha no momento. Finalmente, lançando um olhar fulminante para a coisa, ele falou entre dentes cerrados: “Cale-se.”

“Ah, ah, claro, Capitão. O senhor gosta de tranquilidade, e como seu leal primeiro e segundo imediato, chefe de marinheiros, marinheiro normal e explorador, eu sei muito bem disso. Há muitos benefícios em ser quieto, e houve uma vez um campo médico… ou filosófico ou arquitetônico…”

Zhou Ming de repente sentiu uma dor de cabeça surgindo na têmpora, pulsando com o tagarelar incessante: “O que eu quis dizer é, estou te ordenando a ficar quieto!”

A cabeça de bode finalmente se calou assim que a palavra “ordenando” foi dita.

Suspirando aliviado, ele se aproximou da mesa de mapas e se sentou na cadeira – agora ele era o “capitão” deste navio fantasma vazio.

Duncan Abnomar era um nome estranho e um sobrenome ainda mais vulgar. Então, por que ele sabia esse detalhe? Sem ideia. Isso era algo que esse corpo soubera na primeira vez que atravessou. “Aqui”, Duncan estava em uma longa jornada, com a maioria dos detalhes em branco.

Ele teve a sensação distinta de estar envolvido em algum grande plano de navegação, mas sabia quase nada sobre o tal plano ou para onde ele estava indo. Quanto ao verdadeiro dono do navio, o verdadeiro “Duncan Abnomar”, parecia ter morrido há muito, muito tempo.

Então, o que exatamente estava acontecendo com ele? Pense em uma pessoa sendo marcada por uma “impressão”.

Instintos disseram a Zhou Ming que havia um grande problema por trás da identidade do Capitão Duncan, especialmente com a presença dos fenômenos sobrenaturais (a cabeça de bode falante) neste navio. No entanto, ele não tinha muita escolha na questão. Não apenas a cabeça de bode tentaria confirmar sua identidade sempre que ele atravessasse, mas o próprio navio também ocasionalmente fazia o mesmo. Essa medida só poderia ser descrita como insidiosa pelo verdadeiro proprietário…

Não ajudava em nada o fato de a cabeça de bode na mesa de mapas parecer uma espécie de gárgula maligna das histórias antigas.

 

Mas, deixando os pontos negativos de lado, o navio era bastante amigável, se ele suportasse o nome Duncan Abnomar. Não parecia que as coisas ali fossem muito inteligentes, de qualquer forma.

Zhou Ming – talvez agora Duncan – terminou sua breve contemplação pela memória e desdobrou o mapa sobre a mesa de navegação.

Não havia rotas, marcadores ou terra identificáveis no mapa — nem mesmo uma ilha. Na sua superfície áspera e grossa de pergaminho, havia, em vez disso, grandes manchas de massa cinza-branca que estavam constantemente se agitando e ondulando para obscurecer as rotas originais mapeadas no mapa. No entanto, havia uma imagem nela que não se embaralhou — a silhueta de um navio surgindo na densa neblina.

Duncan (Zhou Ming) não tinha muita experiência em navegação usando as técnicas antigas, mas até os idiotas da sociedade moderna saberiam que um mapa “normal” não poderia se parecer com aquilo.

Aparentemente, assim como a cabeça de bode na mesa, o mapa era algum tipo de objeto sobrenatural – era só que Duncan ainda não havia compreendido seu uso.

Parecendo perceber que a atenção do capitão finalmente se concentrou no mapa, a cabeça de bode, que estava quieta há tanto tempo sobre a mesa, se mexeu novamente. Começou a fazer sons de clique como madeira esfregando contra madeira. No começo ainda estava contida, mas logo chegou a um ponto em que se tornou impossível ignorar, vibrando como um brinquedo sexual.

“Tá bom, diga logo.” Duncan temia que essa coisa maldita colocasse fogo na mesa a esse ritmo.

“Sim, Capitão — repito, hoje é um bom dia para zarpar, e o Desaparecido1 está esperando suas ordens como sempre! Vamos levantar as velas?”

  1. O nome do navio é Desaparecido, sendo que em chinês seu nome é 失乡号. Se traduzido literalmente, seria algo como ‘Navio (号) Saudade (失) do Lar/Terra Natal (乡)’. No entanto, em inglês, o título foi traduzido como Vanished, que significa Desaparecido. Por enquanto, mantenho a tradução como Desaparecido, pois a expressão ‘Saudade do Lar’ ficaria um pouco estranha. Caso necessário, posso revisar essa escolha no futuro.⤶

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