Capítulo 35: Calmo e Normal

À medida que o tumultuoso oceano começava a se acalmar em suaves e delicadas ondulações, Alice permanecia no convés, cativada pelo súbito silêncio. Um tentáculo cortado, pertencente a uma criatura marinha imensamente poderosa, caiu com estrondo sobre as tábuas de madeira. Enormes pedaços de carne ainda viva rolaram pelo convés, até pararem aos pés do capitão, com sua vitalidade rapidamente se esvaindo.

Sob o navio, nas profundezas do oceano, a enorme criatura parecia mergulhar ainda mais fundo, recuando rapidamente e deixando para trás seu membro decepado em uma fuga apressada.

O mar logo retornou a um estado de tranquilidade. A opressiva nuvem escura que pairava sobre eles dissipou-se por completo, revelando uma vasta extensão de céu azul límpido. Alice percebeu que o que havia interpretado como uma nuvem era, na verdade, uma sombra — uma silhueta ameaçadora projetada pela gigantesca criatura escondida sob a superfície do oceano.

O som de chamas crepitando trouxe Alice de volta ao presente. Ela se virou e viu o capitão, que exibia um sorriso largo após os eventos perturbadores. Ele notou Alice e fez um gesto para que ela se aproximasse.

Ao se aproximar, Alice viu que o que o capitão chamava de “grande peixe” era, na verdade, uma criatura enorme e estranha deitada aos seus pés. Com um entusiasmo jovial, ele exclamou:

“Olhe, consegui pegar um peixe bem grande!”

“U… um peixe grande?” Alice gaguejou, surpresa. Ela encarou a grotesca massa de carne, notando os olhos espalhados de forma desordenada, fixos no céu, e os dentes afiados como metal, que brilhavam de maneira ameaçadora. Quando um dos olhos piscou e se fechou rapidamente, um calafrio percorreu sua espinha.

“Sim, é um grande peixe”, Duncan reiterou com um tom alegre, aparentemente alheio à visão aterrorizante.

“Foi uma luta e tanto para puxar esse grandalhão.”

Alice, embora fosse apenas uma boneca, ficou momentaneamente sem palavras, seus olhos pintados se arregalando em descrença. Ela examinou o ‘peixe’: uma criatura massiva com pele preta irregular, adornada com estranhos padrões cinza-esbranquiçados em suas barbatanas. Espinhos semelhantes a ossos saíam de sua cabeça, e olhos sem vida retribuíam seu olhar. Espalhados pelo convés, estavam mais ‘peixinhos’, cada um tão aterrorizante quanto o outro.

 

Dominada por uma onda de dúvida, o olhar de Alice varreu a cena grotesca. As criaturas que, momentos antes, não eram ‘peixes’, de alguma forma haviam se transformado em peixes reais. Com sua compreensão limitada, Alice foi levada a questionar ainda mais sua própria existência.

Notando a expressão confusa de Alice, Duncan arqueou uma sobrancelha, a preocupação tingindo seu tom de voz:

“O que foi? Algo está te incomodando?”

“Eu…” Alice começou, sua voz tremendo de nervosismo. Quando estava prestes a expressar seu desconforto com a situação, lembrou-se das regras impostas pelo Cabeça de Bode.

A bordo do Desaparecido, a autoridade do Capitão Duncan era absoluta, e suas declarações eram incontestáveis. Quando a realidade parecia contrariar suas palavras, suas afirmações moldavam a percepção da tripulação sobre os eventos1.

Visivelmente abalada e ansiosa para mudar de assunto, Alice respondeu rapidamente:

“Não há nada errado!” E, com pressa, acrescentou: “Aquela tempestade que acabamos de enfrentar, Capitão… foi bastante assustadora, não foi?”

Duncan olhou para Alice com uma leve surpresa. “Tempestade? Você quer dizer aquelas ondas?” Ele a observou com um toque de diversão gentil. “Sim, as ondas eram fortes, mas dificilmente poderiam ser chamadas de tempestade. Acho que você ainda não enfrentou uma tempestade de verdade.”

“Você está absolutamente certo”, respondeu Alice nervosamente.

Para Alice e o restante da tripulação, se o Capitão Duncan descrevia a intensa tempestade como apenas “ondas”, então eram apenas “ondas”. Da mesma forma, se ele insistia que o que havia pescado era um “peixe”, então, indiscutivelmente, era um peixe.

 

Notando o desconforto de Alice, Duncan perguntou preocupado:

“Você parece um pouco tensa. Está tudo bem? Será que é enjoo do mar?”

“Estou bem, é só que o navio balançou muito violentamente há pouco…” Alice respondeu, desviando a conversa para outro tópico. “O que você pretende fazer com esses… ‘peixes’?”

“Você realmente precisa perguntar?” Duncan respondeu com um sorriso amplo.

“Vamos comer, é claro!”

A expressão de Alice transformou-se em horror.

“Comer…?”

“Por que não? Já reparou como nosso suprimento de comida está sem graça?” O humor de Duncan estava leve enquanto ele detalhava seus planos culinários: “Vou dissecar os maiores para ensopados e grelhados, e vou salgar e secar os menores para fazer carne seca de peixe…”

Apesar de seu tom animado, a expressão de Duncan revelava uma leve dúvida. Suas habilidades culinárias eram bastante básicas, e ele não tinha nenhuma experiência real em preparar ou preservar as enormes criaturas marinhas que agora jaziam no convés.

Ainda assim, como poderia aprender se não tentando? Sua principal preocupação era garantir que não envenenasse acidentalmente a tripulação. Apesar de seus planos elaborados para o peixe, Duncan sabiamente mantinha uma certa cautela sobre sua comestibilidade.

 

Considerando prudente testar o peixe antes de servi-lo, ele pensou inicialmente em usar o Cabeça de Bode, a escultura de madeira em sua cabine, mas descartou rapidamente a ideia como impraticável. Seu olhar então se voltou para Alice, a boneca amaldiçoada, mas ela, sem um sistema digestivo, não servia para testar alimentos.

Finalmente, seus olhos pousaram em Ai, a pomba empoleirada em seu ombro. A ave parecia uma escolha pouco convencional, mas era o único ser a bordo com um metabolismo adequado para testar o peixe.

Com sua carga inusitada em mãos, Duncan deixou o convés. A hora do almoço estava se aproximando, e ele estava determinado a adicionar alguma variedade ao menu insosso do Desaparecido.

Alice permaneceu no convés por um momento antes de, cautelosamente, se dirigir aos aposentos do capitão. Ela nunca teve a intenção de consultar o Cabeça de Bode, a escultura falante; suas interações anteriores com esse “primeiro imediato” loquaz haviam fomentado um profundo respeito pela cabine do capitão.

Idealmente, ela preferia nunca entrar nesse espaço reverenciado.

No entanto, os eventos bizarros do dia a levaram a buscar esclarecimentos junto à figura de madeira. Ela ponderou se tais ocorrências estranhas eram comuns no Desaparecido.

Ela não estava infringindo nenhuma regra do navio ao buscar esclarecimentos, raciocinou. Após uma breve hesitação, Alice reuniu coragem para abrir delicadamente a porta da cabine do capitão.

Para sua surpresa, Cabeça de Bode já havia girado sua cabeça em direção à entrada, olhando diretamente para ela como se esperasse sua chegada.

“O que aconteceu lá fora?” Cabeça de Bode perguntou, seu tom notavelmente direto.

Alice sentiu um calafrio ao notar o desvio da figura de sua habitual postura brincalhona. Rapidamente, ela fechou a porta atrás de si, aproximou-se da mesa de navegação e começou a relatar os estranhos acontecimentos do dia em detalhes.

 

Depois de ouvir tudo, Cabeça de Bode permaneceu em um silêncio incomumente longo, quieto por um minuto inteiro. Embora a escultura de madeira não exibisse emoções, Alice instintivamente sentiu que a notícia havia surpreendido a figura mais do que ela esperava.

Um senso de pressentimento tomou conta de Alice. Ela inclinou-se involuntariamente para frente e perguntou:

“Esses incidentes não são normais aqui no Desaparecido? Será que o Capitão Duncan realmente…?”

“O Desaparecido está operando como de costume”, Cabeça de Bode interrompeu bruscamente, quebrando o silêncio com uma resposta pronta, como se estivesse ansioso para dissipar qualquer incerteza. “Entenda que o Desaparecido sempre funciona normalmente, e o grande Capitão Duncan está como sempre foi!”

“Mas… notei sua reação…”

“A situação realmente superou minhas expectativas, mas isso se deve apenas à minha imaginação limitada e entendimento restrito”, Cabeça de Bode respondeu, recuperando sua postura calma. Seu humor parecia se iluminar, e ele falou com vigor renovado, “Certamente, o grande Capitão Duncan deve ser considerado ainda mais sobrenatural e formidável! Não há nada fora do comum, Srta. Alice. Lembre-se, tudo no Desaparecido está como deveria estar. Deixe o capitão seguir seus instintos, e não vamos mais nos prender a esse assunto… A única coisa que você precisa lembrar hoje é esta: ‘A cozinha do Desaparecido agora está totalmente abastecida com peixes, um ingrediente esplêndido’.”

As Seis Regras Fundamentais para a Tribulação do Desaparecido

Regra Nº 01: Capitão Duncan é o governante absoluto do Desaparecido. Mesmo que a realidade pareça contradizer suas declarações, lembre-se de que o julgamento do capitão é supremo, e sua palavra é a lei.

Regra Nº 02: Cada tripulante está restrito às áreas explicitamente permitidas pelo Capitão Duncan. Não se atreva a dar sequer meio passo em regiões declaradas proibidas pelo capitão, pois essas áreas são consideradas inexistentes.

Regra Nº 03: Se você entrar inadvertidamente em uma área proibida e milagrosamente sobreviver por um tempo, deve ficar onde está. Ou espere o Capitão Duncan retornar, ou se prepare para seu fim inevitável. Retiradas não autorizadas são estritamente proibidas, pois você não retornaria ao Desaparecido.

Regra Nº 04: O Desaparecido está sempre no caminho certo. Não questione as decisões de navegação do capitão. Se você perceber que a paisagem ao redor do Desaparecido muda inesperadamente ou encontrar o navio entrando em um plano “mais profundo”, entenda que tudo isso faz parte do plano padrão de navegação.

Regra Nº 05: Pode haver momentos em que o capitão deixe o navio, mas fique tranquilo, ele sempre retornará. Durante a ausência do capitão, o Desaparecido continuará seu curso planejado. No entanto, todos os tripulantes estão estritamente proibidos de se aproximar do leme, na popa. Sem o capitão, o sistema de leme fica ansioso, e as cordas na popa são notórias por estrangular qualquer indivíduo imprudente que exiba comportamento de “usurpação”.

Regra Nº 06: Todos os tripulantes a bordo do Desaparecido devem aderir a essas seis regras fundamentais.

Regra Nº 07: A porta dos aposentos do capitão abre para fora.

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