Amor é destino

destino é morte

Mesmo um cavaleiro que serve a uma donzela        

um dia cairá nas garras da morte

Até mesmo o príncipe amigável a um Drake Celestial         

deve deixar a mulher de suas fantasias para trás

O mercenário que amava uma clériga         

cairá na batalha perseguindo seu sonho

E o rei que amava a donzela do santuário   

controla tudo, exceto a hora de sua separação

O fim da vida 

não é o último capítulo de uma saga heroica

Então, a aventura chamada vida

continuará até o fim

Amizade e amor

vida e morte

Dessas coisas 

não podemos escapar

Portanto, o que temos

a temer

Amor é destino

e nosso destino é a morte

 

 

 Capítulo 01 – Um Comunicado Para Ela

— Acho que é hora de casar — disse Alta Elfa Arqueira, como se isso pouco importasse para ela. Suas orelhas compridas saltavam enquanto falava.

A luz do sol entrando pela janela trazia consigo o opressivo calor da tarde.

Era verão.

Este não era um clima tendencioso a aventuras nos padrões de ninguém. Se não houvesse necessidade urgente de ganhar dinheiro suficiente para comer, ninguém sairia de bom grado nesse calor escaldante.

Ficar na taverna, entretanto, não era muito melhor. Várias dezenas de pessoas continuavam usando seus equipamentos, algo que se sentiam compelidos a fazer graças à posição de aventureiros. O calor coletivo do grupo era sufocante, quente o suficiente para se preferir a luz do sol.

A umidade persistente deixava as bebidas mornas; as pessoas tomavam goles pequenos para fazê-las durar. Ninguém em sã consciência tinha interesse em se mover.

Foi então que uma aventureira apareceu, suor escorrendo por sua testa e uma bolsa de lado.

— Olá a todos! Entrega Postal!

Isso não era incomum. A entrega de cartas urgentes era uma forma comum de emprego para aventureiros. De seu lugar na recepção, Garota da Guilda sinalizou para vários dos presentes na taverna, que apareceram correndo.

Cada carta seguia com suas próprias notícias.

— Ugh! Estão cobrando… Me dá um tempo!

— Isso é porque você se endividou enquanto comprava seu equipamento, idiota.

— Hah! Minha irmãzinha teve uma criança! Terei que ir vê-la depois da próxima aventura.

— Whoa, calma lá! Você sabe que dizer essas coisas é morte certa, não é?

— Huh, uma convocação pessoal da capital. Incrível. Isso é um bom sinal.

— Então, outro… encontro. Uma viagem. Já… faz um tempo.

Exigências de pagamento, cartas de casa, missões urgentes e assim por diante. Talvez tivesse sido o calor que fez com que todos ignorassem as palavras de Alta Elfa Arqueira, em meio a toda a conversa e troca de informações.

Um pedaço de papel é às vezes chamado de folha, mas a carta que Alta Elfa Arqueira recebeu estava literalmente escrita em uma folha. Estava cheia de uma bela e fluida caligrafia na língua dos elfos; Ela examinou tudo e balançou a cabeça para si mesma.

— Acho que é hora de casar — disse, como se isso pouco importasse. Suas orelhas compridas tremiam enquanto falava.

— …

Houve um momento de silêncio enquanto todos os presentes olhavam uns para os outros, tentando compreender o que tinham acabado de escutar.

A conversa na Guilda dos Aventureiros explodiu com a força de uma bomba.

Anão Xamã cuspiu seu vinho; Lagarto Sacerdote mostrou a língua e sibilou um “Oh-ho!”.

— Como é? — perguntou Garota da Guilda, enquanto os olhos de Inspetora, ao seu lado, brilhavam.

— Hora de quê?! — Cavaleira exigiu saber, levantando-se.

— Ei — disse Guerreiro de Armadura Pesada, um olhar de resignação em seu rosto enquanto puxava a manga dela.

Guerreiro Novato e Clériga Aprendiz fingiram não prestar atenção, mas era óbvio que estavam escutando.

— Q-Que… — repetia Sacerdotisa, sua mão na boca e seu rosto ficando vermelho… e seus olhos brilhando.

No meio de toda essa comoção, duas perguntas puderam ser ouvidas:

— É mesmo? — falou Matador de Goblins com sua indiferença usual. — Com quem?

— Um primo mais velho — respondeu Alta Elfa Arqueira, ainda completamente calma. Ela acenou com a mão e sorriu. — Mas que choque. Nunca imaginaria que seria com alguém tão puritano quanto ele!

— Hmm — disse Matador de Goblins, balançando a cabeça. — Então…

— Parabéns! — Sacerdotisa, sua voz cheia de emoção e seu rosto tomado por um sorriso, inclinou-se para Alta Elfa Arqueira. Ela agarrou as mãos da elfa, falando do fundo do coração. — Hm, os elfos têm cerimônias de casamento iguais às nossas? Se estiver tudo bem…

— Claro! E é para alguém da família do chefe, então será uma das grandes. De qualquer forma, vamos todos!

— Sheesh — disse Anão Xamã, lançando um olhar de soslaio para as garotas tagarelas. Ele finalmente terminou de limpar o vinho que cuspiu, torceu a barba e se serviu de mais um pouco. — E eu aqui pensei que o crepúsculo dos elfos chegava cedo, e ela é a filha do chefe.

— Ha! Ha! Ha! Ha! — Lagarto Sacerdote bateu com o rabo no chão de pedra. — Assim, o mais velho sempre pensa no mais jovem.

— Bah! Tenho certeza de que sou mais jovem do que ela.

Então… casar aos dois mil anos era considerado cedo ou tarde para os elfos?

Ignorando a expressão perplexa do anão, Lagarto Sacerdote deu uma mordida pesarosa em seu queijo.

— Suponho que isso seja o mesmo que se despedir de nossa senhora patrulheira. Ah, que dia solitário que será…

— …? Por que se despediria de mim?

— Mm. Você não ficará bem ocupada?

— Não aparecerão crianças por pelo menos mais duzentos ou trezentos anos. — Quem engravida logo nas primeiras décadas? Alta Elfa Arqueira parecia um pouco carrancuda.

— Que gracioso, os elfos medem o tempo de forma grandiosa, não é? — murmurou Lagarto Sacerdote quando a ouviu falar de extensões quase além de sua imaginação.

— Bem, somos praticamente imortais. O quê, os homens-lagarto não são?

— Chefes, na verdade, podem botar um único ovo, mas, para nós, o padrão é nascer, reproduzir, viver, matar e morrer.

— O ciclo é importante, não é? — Gira, gira. Alta Elfa Arqueira desenhou um círculo no ar com um dedo fino. A respeito disso, elfos e lagartos, que obedeciam estritamente à natureza, tinham algo em comum. Um pode amar a batalha e o outro não, e um pode ser imortal e o outro mortal, mas a vida e a morte chegavam para eles da mesma forma.

— Huh… — Sacerdotisa fez um barulho, aparentemente ainda um pouco confusa. As almas subiam para o céu, onde residiam os deuses e onde recebiam muitos confortos. De vez em quando, a alma poderia retornar ao tabuleiro, mas isso escapava um pouco do ciclo da natureza. — Mas — perguntou, inclinando a cabeça —, os maridos elfos normalmente deixariam suas esposas irem por toda parte e fazerem coisas perigosas depois de se casarem?

— Nem! De forma alguma que meu primo permitiria isso. — Alta Elfa Arqueira riu e balançou a mão. — Ele se apaixonou à primeira vista, tenho certeza. Mesmo sendo tão sério e teimoso… Na verdade, talvez seja exatamente por esse motivo.

— Er… Como é? — Sacerdotisa levou um dedo ao lábio. — Hmm. — Algo nessa conversa não fazia sentido.

Parece um pouco… estranho. Como se falássemos de coisas diferentes.

— Então — disse Matador de Goblins, voltando tão repentinamente ao assunto que Alta Elfa Arqueira começou a piscar. — Quem vai casar?

— Ah, minha irmã mais velha.

— Poderia ter dito isso mais cedo, sua Bigorna! — Anão Xamã deu-lhe uma bofetada de repreensão nas costas.

— Quê?! — Alta Elfa Arqueira passou de confusa a irritada, suas orelhas caídas para trás. Lágrimas vazavam de seus olhos. — O que você pensa que está fazendo?!

— O que é isso? É a primeira vez que ouço falar de uma bigorna que não suporta ser batida!

— Você é o pior! — Nesse ponto, ela havia abandonado qualquer coisa que parecesse a dignidade normalmente associada a um Alto Elfo. — É por isso que odeio anões! Seu… Seu barril de cerveja!

— Achei que já tivesse lhe dito… o nome disso é encorpado, e apreciamos isso!

E, de fato, apreciavam. Sacerdotisa já estava acostumada com essas brigas repentinas. Ela segurou sua caneca com ambas as mãos, tomando pequenos goles de sua água com limão, que já era uma bebida quase morna.

— Se seremos convidados… teremos que levar um presente ou algo assim.

— É mesmo? — Matador de Goblins balançou a cabeça. Ele cruzou os braços e ficou em silêncio por um momento, depois grunhiu e, finalmente, com alguma dificuldade, disse: — Acho que…

— Não — disse Sacerdotisa, embora estivesse sorrindo. Ela estava apontando um dedo em direção ao Matador de Goblins, que engoliu em seco e conteve o que estava prestes a dizer. — Fomos convidados para uma celebração maravilhosa. Você não pode ficar sem ir.

— Isso… — Matador de Goblins parou por um momento. — Pode ser, mas…

— Podemos pedir à recepcionista para garantir que outras pessoas cuidem do goblincídio.

— Hrk…

Era como Proteção, um milagre que se tornou uma de suas especialidades. O sorriso dela defletiu todo e qualquer ataque.

Matador de Goblins não foi capaz de fazer mais sons; Lagarto Sacerdote revirou os olhos.

Parece que a milady recepcionista e a garota fazendeira a ensinaram bem.

— Heh heh heh. Bem, talvez o mestre lançador de feitiços e eu possamos encontrar um presente apropriado. — Ele fez um gesto solene e de aparência importante, em seguida juntou as palmas das mãos de forma estranha. — Mas, minha querida clériga — acrescentou —, parece que você se tornou bastante assertiva!

— Claro que me tornei! — Sacerdotisa estufou seu pouco peito para parecer o mais forte que pudesse. — Afinal, aprendi com Matador de Goblins!

***

Pois bem.

Os membros da equipe da Guilda costumavam manter a calma e compostura o tempo todo.

Afinal, eram os homens e mulheres da Guilda os primeiros a fornecer informações para quem embarca em aventuras. Quando alguém em crise chega para emitir uma missão, são o primeiro rosto que essa pessoa vê.

Seria impróprio que um membro da equipe parecesse apressado ou desinteressado. Em vez disso, suas roupas deviam estar desamassadas, camisa ou blusa engomada e a maquiagem adequada.

Pescar e bocejar eram, obviamente, atos inaceitáveis. No momento em que alguém se torna servo civil, assume a responsabilidade de representar o país.

— Mas, é aquilo, calor é calor… — Ah ha ha ha.

Com uma risada, Garota da Guilda serviu Matador de Goblins e os outros com xícaras de chá preto frio. Havia uma, duas, três, quatro xícaras na mesa, todas sobre a pequena parte do balcão da recepção. Alta Elfa Arqueira e Sacerdotisa colocaram Matador de Goblins entre elas. Garota da Guilda, por fim, colocou uma xícara diante de si, levando a mão à bochecha e soltando um suspiro.

— Um casamento… Que maravilha.

— Sim, estou entusiasmada — disse Alta Elfa Arqueira, balançando a cabeça com um olhar sério e astuto. — Ainda bem que minha irmã não estava velha demais para se casar.

— Quantos anos ela tem?

— Hmm… — A arqueira contou nos dedos, balançando um pouco a cabeça. — Acho que mais ou menos uns oito mil.

Garota da Guilda, pensando que “mais ou menos” poderia representar mais três zeros, sorriu amarelo.

— Ouvir elfos faz percebermos a bobeira que é se preocupar com a idade.

Outro suspiro. Ela não iria a lugar algum ao ficar retoricamente cavando a própria cova.

Sacerdotisa acompanhou com vários “Ahems” e “Hms”. A garota tinha acabado de fazer dezesseis anos e não parecia saber como se dirigir à mulher mais velha, embora ela mesma fosse uma clériga. Sacerdotisa, aliás, não achava que a aparência de Garota da Guilda lhe desse qualquer motivo para se preocupar com a idade.

— Mesmo sendo tão bonita quanto você… Você realmente precisa se preocupar com isso?

— Hee hee. Bem, muito obrigada — Garota da Guilda sorriu diante da pergunta educada que Sacerdotisa finalmente fez.

Alta Elfa Arqueira deu um aceno jovial com a mão e esvaziou a xícara com um único gole.

— Isso mesmo. Quando se trata de idade, você não pode comparar um dragão a um elefante, ou um elefante a um rato. Isso simplesmente não funciona.

— Elefante. — Inesperadamente, o capacete de Matador de Goblins se inclinou em confusão. — O que é isso?

— Não sabe o que são elefantes…? — As orelhas de Alta Elfa Arqueira se agitaram, satisfeita por ter a chance de ensinar o guerreiro. Ela abriu os braços enquanto descrevia a misteriosa criatura. — Ele tem penas que parecem com pilares, uma cauda igual uma corda, orelhas feito leques, um corpo grande igual uma muralha, presas parecidas com lanças, costas iguais a um tronco e um nariz tipo uma videira. Além disso, é enorme.

— Uma fera…?

— Ah, e é cinza.

— Não entendi direito — disse Matador de Goblins com um grunhido, em seguida, engoliu o seu chá.

Garota da Guilda os observou feliz, depois, soltou uma risadinha.

— Algum dia, talvez eu possa te mostrar um Elefante no Livro de Monstros. Agora… — Seus olhar correu ao redor da mesa, e ela folheou alguns papéis. — Você queria que eu atribuísse essas missões de goblins, certo?

— Uhum. Gostaríamos de levar nosso amigo Matador de Goblins junto — disse Sacerdotisa calmamente. Seu sorriso, como um botão de flor, sequer vacilou.

— Pessoalmente, não quero abrir mão disso. — Matador de Goblins colocou sua xícara vazia na bancada com um estalo. — Simplesmente não quero deixar os goblins à vontade.

— Sim, sim, claro que não — disse Garota da Guilda com um sorriso suave. Ele continuava tão desapaixonado e decidido quanto sempre. Algumas pessoas o consideravam apenas obsessivo, enquanto outras o consideravam confiável e seguro. Garota da Guilda, desnecessário dizer, estava no segundo grupo.

— Do início da primavera ao verão, é quando os goblins estão mais fortes. Isso talvez seja por estarem com raiva.

— Existe alguma época em que os goblins não são assustadores? — perguntou Alta Elfa Arqueira.

— Hrm… — Matador de Goblins cruzou os braços e grunhiu.

Garota da Guilda ouviu os dois com algum prazer.

— Mesmo assim — disse ela baixinho —, não tem tanto goblincídio no verão, não é?

— Isso é verdade? — perguntou Sacerdotisa em tom de evidente surpresa.

— Sim — disse Garota da Guilda. As missões ao menos não são tantas. Então, em vez de explicar melhor, ela folheou seus papéis sem qualquer motivo em particular. Seria rude falar de coisas tão desfavoráveis logo após alguém receber um convite de casamento.

Verão: para os goblins, a melhor parte desta estação é que não era outono. As plantações nos campos ainda estavam pequenas e, claro, a colheita estava muito distante. Por mais que os goblins quisessem comida, simplesmente não havia muito a se ganhar ao atacar aldeias. Em vez disso, mudavam o foco para os viajantes, pastores errantes e curandeiros itinerantes enquanto estavam na época mais quente do ano.

O que o verão significa para os goblins? A primavera era boa e farta, mas no verão as chuvas ficavam mais pesadas e a maldita luz do sol se tornava ainda mais intensa. Viver em um buraco tornava-se bastante desagradável. Certo, ninguém imaginava que os goblins se preocupassem tanto com a situação de vida, mas eles estavam sempre com raiva de alguma coisa. E mais motivos para ficar com raiva, claro, indicavam uma maior incidência de atos violentos.

Ai do viajante na estrada que fosse atacado pelos goblins no verão. Eles não tinham sabedoria para fazer armazenamento de comida, mas, mesmo se tivessem, ela logo estragaria. Depois de se empanturrarem e zombar da vítima, comeriam tudo o que pudessem tomar da infeliz alma, sem pensar no futuro.

Homem ou mulher, no final, nem mesmo os ossos sobrariam.

Infelizmente, é uma história muito comum.

Viajantes perdendo as vidas na estrada, é claro, dificilmente seria um fenômeno exclusivo do verão. Os goblins e os Que-Não-Rezam não eram de forma alguma os únicos que sentiam fome. Bandidos, salteadores e mercenários retornando para a incursão – entre outros – estavam todos por aí.

A questão é que todos os cantos do mundo transbordavam perigo. Alguns interpretavam isso como motivo para criticar o rei ou a administração do país, mas essas pessoas simplesmente não conheciam a história. Em todo o tempo e na memória, nunca houve uma época sem elementos de perigo.

Da mesma forma, os recursos foram sempre limitados. Pelo que Garota da Guilda sabia, o atual rei estava fazendo um trabalho perfeitamente decente… Ou, ao menos, assim pensava. Ele não começou guerras desnecessárias, assim como enfrentou os seguidores dos Deus das Trevas para manter o país seguro.

Agora, ao menos nisso, temos paz.

Mesmo que a definição de paz fosse apenas a calmaria antes da tempestade.

Mas, talvez se repetindo, os recursos eram limitados e o perigo estava sempre presente. A Guilda não necessariamente receberia uma missão só porque algum viajante havia desaparecido. Por um lado, se ninguém soubesse que a pessoa havia desaparecido, nada seria feito. Era uma situação triste e uma falha da Guilda dos Aventureiros. Os aventureiros cuidavam desse tipo de problema, mas apenas quando o parente de um viajante emitisse uma missão…

Ou quando os aventureiros mesmo têm um coração muito bom…

— Mas ainda existem goblins por aí — disse Matador de Goblins, sem dar atenção ao que acontecia dentro da cabeça de Garota da Guilda. — Isso não vai mudar.

— Mas — disse Sacerdotisa, astutamente fingindo fazer uma pergunta enquanto na verdade o cortava —, você não pode derrotar todos sozinho, pode? E também, não precisa, certo?

— …

Matador de Goblins ficou calado. Depois de tantos anos com ele, Garota da Guilda sabia que era assim que ele agia ao se ver encurralado.

Ele, de certa forma, não é alguém difícil de entender.

Uma risadinha involuntária escapou dos lábios dela, e o capacete de aço de Matador de Goblins se virou em sua direção. Ela acenou com a mão como se quisesse dizer: Nada, não é nada.

— Sinceramente — disse —, não é bom te incomodar com cada missão de goblincídio que aparece, Senhor Matador de Goblins.

— Bem, aí está — disse Sacerdotisa com uma tosse doce, mas aguda. — Você pode cuidar disso por nós?

— Ah, claro. Sei que este homem nunca tiraria férias se não o obrigássemos.

— Isso também serve para você.

Alguém deu uma batida inesperada na cabeça de Garota da Guilda, provocando um pequeno ai! Era sua companheira de assento e colega, Inspetora, de pé atrás dela com um maço de documentos em mãos.

Inspetora suspirou como se para sugerir que isso servia bem para Garota da Guilda, e continuou suavemente batendo seus documentos contra o ombro da mulher.

— Quanto tempo faz mesmo desde a última vez que você tirou um dia de folga?

Garota da Guilda agarrou a cabeça e protestou em vão:

— E-eu tiro…

Inspetora soltou outro suspiro exasperado.

— Então você também vai ao casamento, certo? É para isso que essas crianças estão aqui, não é? Para te convidar?

Antes que Garota da Guilda tivesse a chance de responder, Alta Elfa Erqueira estava inclinada sobre a mesa.

— É claro! — disse ela, balançando a cabeça com vigor. Sem qualquer necessidade de fingir, acrescentou: — Afinal, somos amigas!

Vendo essa demonstração de genuíno entusiasmo, Garota da Guilda respondeu com uma expressão ambígua e coçou a bochecha. Em seguida, seus dedos brincaram pelo cabelo, girando suas tranças. Sim, ela sabia que isso não era muito educado.

— Er… Bem, eu com certeza aprecio esse sentimento, mas…

Não, pare. Se eu recusar este convite…

Como poderia explicar para Alta Elfa Arqueira, ou mesmo para Sacerdotisa ou Matador de Goblins? Ela deu uma olhada no capacete dele, embora, como sempre, aquilo escondesse sua expressão.

— Tire alguns dias de folga, e já!

— Yipe! — Outro golpe de documentos.

Enquanto Garota da Guilda ficava sentada, gemendo baixinho, Inspetora mostrou seu melhor sorriso e disse:

— Agora, Senhor, uh… Matador de Goblins.

— Pois não?

Garota da Guilda soltou um guinchinho, mas Inspetora a ignorou, tomando os papéis das mãos dela. Eram, é claro, várias missões de goblincídio por perto.

— Será melhor para nós dois se tirarmos um pouco desse trabalho da lista — disse Inspetora, enrolando os papéis como se fossem um pergaminho e entregando todos a Matador de Goblins. — Você talvez pudesse ajudar minha amiga a relaxar ao cuidar de dois ou três ninhos de goblins.

— Naturalmente.

Não houve qualquer discussão, nenhuma hesitação enquanto Matador de Goblins pegava os papéis da missão com um movimento decisivo. Silenciosamente, os desenrolou e considerou as descrições. Sequer olhou para a linha de recompensas. O que queria era informação, conhecimento sobre a força de batalha dos goblins.

Depois de um bom tempo, perguntou suavemente:

— Está tudo bem?

Alta Elfa Arqueira estava franzindo a testa com todas as suas forças, suas longas orelhas para trás e contra a cabeça, mas disse:

— Eu não posso falar pelo anão… Mas quanto a mim, não vou dizer não.

— Tem certeza? De qualquer forma, não me importo muito.

— Com licença, Matador de Goblins, senhor — disse Sacerdotisa, franzindo suas sobrancelhas bem delineadas. Ela levantou um dedo indicador pálido e, em um tom que sugeria que já discutiram isso mais de uma vez, disse: — Quando não temos escolha, isso não conta como uma discussão, lembra?

— Hrr… gyaaaaaahhhhhh!

O grito de mulher, como o cacarejar de uma galinha tendo o pescoço torcido, correu por toda a capela crepuscular.

Por mais que tentassem se aproximar, havia um limite físico para quantos goblins uma pessoa poderia acomodar de cada vez. Sim, os goblins eram pequenos, mas mesmo contando com os dois braços, sua boca e talvez seu cabelo, havia espaço para apenas cinco ou seis de cada vez.

Entretanto, havia facilmente mais de uma dúzia de monstros ao redor da mulher que naquele momento estava atada ao altar. A violação de sua castidade já foi horrível o suficiente, mas esta vítima estava sujeita a todos os desejos mais cruéis deles de uma só vez, uma posição verdadeiramente lamentável.

A mulher, cujo grito agonizante soou pelo salão de adoração, estava agora vestida com nada além de trapos que um dia foram uma roupa de viagem. Seus membros, que só podiam ser vistos através da pressão dos corpos dos goblins, eram bronzeados e bem musculosos.

Ela era uma viajante que se hospedou neste convento, em uma pequena biblioteca dedicada ao Deus do Conhecimento.

Agora não havia como saber para onde pretendia ir ou por que havia permanecido naquele lugar. Os textos, joias de sabedoria ali armazenadas, não estavam mais em condições de serem lidos. Todo o conhecimento reunido pelas donzelas – que deixaram suas casas e se trancaram neste lugar por uma série de razões – foi pisoteado. Os goblins pegaram esses preciosos registros de conhecimento e os destruíram, contaminaram e, em alguns casos, até mesmo incendiaram.

A biblioteca saqueada continha agora apenas as freiras, seus espíritos quebrados por predações inimagináveis. A viajante viu o que os goblins fizeram com elas e, ainda assim, escolheu lutar – uma boa e forte presa para os diabinhos.

Ela tinha lutado para proteger as freiras ou para abrir um caminho para a sua própria fuga? Os goblins presumiram que devia ser a segunda opção. A leitura mais honrosa, porém, era que a viajante empunhou sua espada com bravura, sem se preocupar consigo mesma.

Pelo menos até os goblins a derrubarem, baterem nela sem qualquer piedade e quebrarem seu braço.

Passaram-se vários dias desde então, e os goblins restantes ainda estavam ocupados em se vingar por aqueles que ela matou. Deixaram a viajante por último, para que pudessem desfrutar do seu terror crescente enquanto ela testemunhava o destino que eles deram às freiras.

Eles nunca pensaram que ela poderia tentar escapar. Ou melhor, presumiram que não havia nenhuma maneira de que ela pudesse fazer isso.

Goblins costumam demonstrar excesso de confiança, apesar da ausência de motivos. Nunca imaginariam que qualquer coisa que tentassem pudesse falhar. E mesmo com a chance de que algo acontecesse…

— GOORRIRRROG!!

— Urgh! Aggh… gah… s-seus bas… taaaagh!

Sempre seria porque algum idiota igual ela resolveu ficar no meio do caminho.

Os goblins acreditavam cegamente que todas nesta pequena biblioteca eram completas e absolutas idiotas. Mantinham esta sala cheia de documentos sem sentido e chatos, e havia tão pouca comida. Os humanos, riam os goblins, faziam tanta coisa sem sentido.

E eles, é claro, jamais poderiam entender o significado dos volumes mantidos nesta biblioteca. Ficava perto de uma estrada, localizada em uma floresta, onde foi construída com a convicção de que, embora o conhecimento e sabedoria tivessem nascido do mundo profano, era importante evitar acabarem manchados por esse mesmo mundo.

Só porque era uma biblioteca pequena, não significava que carecia de quaisquer defesas contra monstros ou bandidos. Tinha muros de pedra e, às vezes, aventureiros viajantes ou mercenários se hospedavam lá. Mas a prolongada exposição aos elementos pode desgastar um muro. E havia ocasiões em que nenhum visitante armado se hospedasse ali.

Foi por isso que os goblins alvejaram o local? Foi por isso que foram atacadas pelos goblins?

Poderiam perguntar isso, mas o Deus do Conhecimento dificilmente levaria alguém a uma resposta.

Goblins eram como um desastre natural; surgiam de lugar nenhum. Eles, neste momento, tinham simplesmente aparecido.

— Hrrraaaaghhhh!

A biblioteca era agora um antro de devassidão. E em um um canto do salão de adoração ao Deus do Conhecimento, um único goblin apoiou o queixo entre as mãos, apreciando o som dos gritos da mulher aos seus ouvidos.

Depois de se divertirem com ela, a manteriam viva para gerar seus filhotes ou a matariam e devorariam?

Ela, muito provavelmente, viraria comida, pensou o goblin. Os jovens precisariam de algo para comer e, de qualquer forma, seria chato se não a matassem. Insatisfatório.

— Gyaaaaaaahhhh!

Um grito agudo. Algum goblin impaciente devia ter passado a machadinha pelo braço quebrado dela ou algo do tipo.

— GROB! GOOROORB!!

— GOORROB!

Alguém reclamou por causa disso, respondeu, e seus cacarejos cruéis contra a mulher derrotada preencheram a capela.

Isso não podia acontecer. Existiam várias formas de desfrutar de uma mulher morta, mas este era o único momento para aproveitar os prazeres de uma delas viva.

O goblin lambeu os beiços, seu cérebro minúsculo estalando. Talvez pudesse encontrar uma boa oportunidade para cortar a fila, para ter uma chance de desfrutar da mulher enquanto ela ainda estava viva. Essa era a sua única preocupação; não tinha qualquer interesse nos outros goblins que iria atacar, muito menos na própria jovem.

Goblins tinham senso de solidariedade e se reconheciam como companheiros, mas a maior lealdade que tinham era sempre a eles mesmos. Como poderiam ganhar, ter prazer, alcançar a melhor posição, matar pessoas más – ou ao menos quem não gostavam?

A morte dos outros goblins era uma desculpa perfeita para desfrutar da infeliz vítima até que a matassem.

— GROOROB!

— GRO! GOORB!!

O goblin escolheu um dos outros quase ao acaso e o acertou.

Fiquei o tempo todo de guarda! Vocês também precisam cuidar um pouco da defesa! Não é justo que os goblins que não ficaram de guarda sejam os únicos se divertindo, seus desgraçados gananciosos.

O goblin apresentou seu caso (no qual destacou apenas os detalhes convenientes) e deu um empurrão no ombro de outra criatura burra.

— Er… ergaahh! V-Vocês estão… me… matando…!

— GROB! GOOROBB!

Estes eram monstros que não se importavam com os outros goblins ou com a forma como a lamentável mulher tentava resistir. As crueldades com que se divertiam são coisas que não se suportam falar.

E outro ponto importante: absortos em sua diversão, sequer perceberam.

— GRRRRR…

Não perceberam o braço surgindo da escuridão e agarrando o goblin que resmungava sobre a injustiça de tudo isso. O adendo assustadoramente silencioso se enrolou no pescoço do goblin como se fosse uma cobra e apertou com força.

— B…?!

Antes que a criatura pudesse gritar, uma faca cortou sua garganta.

Uma mão cobriu a boca do goblin enquanto ele se engasgava com o próprio sangue, descansando ali por vários segundos até que parasse de respirar.

O cadáver do goblin foi prontamente jogado para trás de um dos bancos, e então o dono do braço acenou em direção às sombras.

O proprietário era um homem, usando uma armadura de couro encardida, um capacete de aço de aparência barata, uma espada de comprimento estranho e um pequeno escudo redondo preso ao braço.

Era Matador de Goblins.

Com seu gesto, Lagarto Sacerdote avançou, seu rabo atrás. Alta Elfa Arqueira o seguiu, depois Sacerdotisa e depois Anão Xamã. Nenhum deles fez som enquanto se moviam: nem um passo, nem um farfalhar de roupas.

A razão pela qual conseguiram realizar tal feito foi graças à garota que rogava com os olhos fechados, suas mãos em torno de um bastão.

— Ó Mãe Terra, abundante em misericórdia, conceda-nos paz para aceitar todas as coisas.

Estavam abrigados no silêncio absoluto concedido pelo milagre de Silêncio de Sacerdotisa.

As vestes dela estavam cobertas por manchas escuras, evidências dos vários goblins com os quais já haviam lidado. As marcas de sangue, porém, não pareciam incomodá-la; apenas se ajoelhou e continuou a orar. Seu coração fiel ajudava a proteger os aventureiros com esta bolha de silêncio.

Alta Elfa Arqueira era o exato oposto; parecia capaz de explodir em lágrimas a qualquer momento.

— Ugghh…

Ela podia ter usado uma cartucheira de perfume, mas, ainda assim, o fedor de excrementos de goblins e dos sucos de suas entranhas agredia seus sentidos aguçados. Ela não conseguia evitar que as coisas nojentas caíssem em sua capa, deixando sua roupa com um cheiro bem desagradável.

Por que os deuses não podem bloquear os cheiros também? Alta Elfa Arqueira ergueu os olhos com ar de censura para a estátua no salão de adoração.

Era uma imagem do sábio que mapeou os movimentos das estrelas.

É claro que não houve resposta para sua pergunta impertinente.

Estou aqui salvando seus seguidores porque, aparentemente, você não pode cuidar disso sozinho. Agradeceria um pouco de gratidão.

Certo, isso talvez estivesse tendendo para o sacrilégio. Suas orelhas se contraíram e ela colocou uma flecha em seu arco.

O grupo de aventureiros havia chegado à capela sem passar por dificuldades desnecessárias. E agora se deparavam com cerca de vinte goblins, todos absortos em sua diversão. Não deixariam essa chance passar.

Os membros do grupo de Matador de Goblins acenaram as cabeças uns para os outros, seguidos por uma série de sinais rápidos.

— …

— …

Anão Xamã foi o primeiro a agir. Ele tomou um gole de vinho de fogo do frasco em seu quadril e cuspiu na mesma hora. A névoa pairou sobre a sala enquanto cantava:

— Beba muito, cante alto, deixe os espíritos guiá-lo! Cante alto, dê um passo e, quando dormir, o verão, que uma jarra de vinho de fogo esteja em seus sonhos para cumprimentá-lo!

Os goblins, afligidos por Estupor, começaram a espreguiçar, e, então, Matador de Goblins entrou em ação. Ele saltou sobre o banco, correndo pelo chão de pedra e enviando sua espada pelos ares. A lâmina viajou silenciosamente pelo ar até que deixou a área de efeito de Silêncio, quando começou a soltar um leve assobio.

Mesmo os goblins, por mais estúpidos que fossem, não deixariam de notar isso.

— GOOROB! GOROOOB!!

— GRRORB!!

Vários dos monstros apontaram e gritaram, mas era tarde demais. O goblin estava empurrando seus quadris, então sentiu algo entrando na parte de trás de sua cabeça e o perfurando até a boca. Será que ao menos entendeu o que aconteceu?

O goblin, com a coluna toda cortada, espumava pela boca, seus olhos dourados e sujos, girando.

— GOOROOROOOB?!

— Um.

Matador de Goblins praticamente se lançou para frente, usando seu escudo para atacar um dos goblins por perto. No mesmo movimento, agarrou uma foice do quadril do primeiro monstro, que se contorcia, usando-a para cortar a garganta do segundo.

— Dois.

Usando seu escudo para impedir que o sangue respingasse, puxou a lâmina e jogou o goblin para baixo, cobrindo a jovem mulher.

— Você está viva, correto?

Ele olhou para a mulher se contorcendo e coberta de sangue que estava embaixo de um cadáver.

Sabia muito bem como os goblins trabalhavam. Se pudessem usar o corpo da mulher como escudo, isso seria mais do que um pouco problemático.

Os movimentos que ele via, entretanto, eram provavelmente de choque pela dor e perda de sangue. Ela ainda estava viva, mas não lhe restava muito tempo. O tempo era, como sempre, essencial.

Os goblins tornaram clara a hostilidade que tinham contra os invasores. Matador de Goblins vigilantemente os observava.

— Depressa!

— Então vamos seguir o nosso caminho.

— C-Certo!

Lagarto Sacerdote pegou Sacerdotisa em seus braços e saiu correndo, suas garras cravando-se no chão de pedra. Ele se inclinou para frente em um ângulo impensável para um humano, mas sua longa cauda lhe permitia manter o equilíbrio.

— GOROOOB! GROBB!

— GGOOORB!

Os goblins, desnecessário dizer, não deixariam que escapassem impunes. Podiam até não ser os mais inteligentes, mas não deixariam essas mulheres escaparem de suas mãos, ainda mais todas de uma só vez. E Lagarto Sacerdote estava literalmente com Sacerdotisa em suas mãos…

— Krrraaahhhhhhaaaa!

— GOOROB?!

Mas, contanto que ele tivesse suas garras, presas e cauda, quem se importaria com suas mãos? Dragões e nagas com certeza não precisavam de armas.

— GROOB?!

— GOBORB?!

Um antigo provérbio dizia para deixar os dragões adormecidos dormindo. Mas o que os goblins sabiam sobre provérbios?

A cauda do Lagarto Sacerdote e as garras de seus pés acertaram um goblin, fazendo-o voar. As feridas não seriam fatais, mas tudo o que precisava no momento era levar Sacerdotisa ao altar.

— Devo ficar na vanguarda? — perguntou.

— Sim, por favor.

No meio dessa breve conversa, Matador de Goblins largou a foice, que estava alojada no crânio de um goblin.

— GROBBB…?!

Quando sua vítima desabou, agarrou o porrete grosseiro na mão da criatura. Seria o suficiente; no momento não precisava ser exigente.

— Pois bem, milady Sacerdotisa. Deixo com você.

— Claro. Boa sorte!

Lagarto Sacerdote a colocou gentilmente no chão, usando a cauda para manter os goblins afastados, então fez um estranho gesto de juntar as mãos.

— Ó falciformes asas de Velociraptor, rasgue e dilacere, voe e cace!

A presa entre suas mãos cresceu e uma Garrespada apareceu diante de seus olhos, e Lagarto Sacerdote atacou o inimigo, uivando.

— Krrraaaaaaahaaaaahhhhaaaa!

— GOORBGG?!?!

Ele era um clérigo, sim, mas também um guerreiro, do tipo que pode ser chamado de sacerdote-guerreiro. Se tivesse nascido em outra raça, poderia ter sido um excelente cavaleiro.

Em contraste com Matador de Goblins, que dava golpes rápidos e precisos em pontos vitais, Lagarto Sacerdote era um turbilhão de pura violência. A capela, já suja do sangue das freiras e imundície dos goblins, estava agora ainda mais suja com o sangue dos diabinhos.

— Certo…!

Sacerdotisa, por sua vez, ainda agarrava seu cajado. Ela balançou a cabeça energicamente e encarou seu próprio campo de batalha.

A respiração da jovem estava irregular; Sacerdotisa ajoelhou-se ao seu lado, sem se importar com o sangue e sujeira que a tocaram no processo. A cena estava além de terrível, mas ela engoliu o nojo, junto com o que quer que tivesse voltado de seu estômago.

Não importa quantas vezes eu veja essas coisas, não consigo me acostumar. Mas…

Nunca deveria se acostumar com isso, pensou vigorosamente. E cada vez que repetia isso para si mesmo, sua fé ficava mais forte.

— Ó Mãe Terra, abundante em misericórdia, coloque tua venerável mão sobre as feridas desta criança.

Ela agarrou seu cajado enquanto implorava, dedicando seu coração à Mãe Terra no céu.

Por favor, tenha a gentileza de curar as feridas desta pessoa. Salve sua vida. Salve-a.

E então, por fim, teve a chance de voltar a lançar Cura Menor.

E a magnânima Mãe Terra respondeu à oração sincera de sua querida seguidora. Uma luz pálida brilhou, saltando em direção aos ferimentos da jovem, começando a estancar o fluxo de sangue.

O milagre não restauraria, é claro, a vitalidade perdida. Mesmo um milagre divino não poderia facilmente desfazer as feridas do corpo e da mente.

Mas ela também não morreria de imediato.

— Matador de Goblins, senhor, terminamos aqui…!

— Bom. — Sem parar, Matador de Goblins enfiou a mão na bolsa de itens em seu quadril, tirou um ovo e jogou nos goblins.

— GOOROOROB?!

— GOOOROBOROOB?!?!

Uma fumaça desagradável surgiu, provocando um coro de gritos. Vários daqueles goblins que estavam se aproveitando da tortura da mulher agora se debatiam de dor, seus olhinhos cheios de lágrimas. O ovo era uma casca cheia de gás lacrimogêneo caseiro de Matador de Goblins. Ele não tinha sido capaz de usá-lo antes por medo de que o gás pudesse afetar a garota refém, mas isso não era mais motivo para preocupação.

— Oito… Nove!

Então jogou seu porrete em um goblin e derrubou outro com uma espada enferrujada que roubou. Cortou a garganta da criatura, não se importando com a possibilidade de destruir a arma no processo. Houve um assobio da traqueia do monstro, junto com um jato de sangue, e então os goblins desabaram um sobre o outro.

— GBBB…!

— GORBG! GGOOBBG!

Metade do número deles foi eliminada no espaço de um momento, e os monstros agora estavam com medo. Por mais assustados que estivessem, odiavam deixar a presa duramente conquistada escapar. Sem mencionar a parte feia de suas mentes que ansiava por adicionar a nova jovem e a elfa à coleção.

Entretanto, seria difícil passar pelo guerreiro humano e pelo monge lagarto.

Então…

— GROOB!

— GORB!

Na mesma hora, vários dos goblins largaram suas armas e dispararam às cegas. Estavam tentando fazer uma formação, fugir, ou…? Não.

— Eles estão indo para os escudos! — Matador de Goblins avaliou a situação em um instante e deu ordens.

As criaturas em fuga estavam se dirigindo para as coberturas jogadas no chão. Iriam usar as mulheres que capturaram para gerar suas crianças. As usariam como escudos de carne.

— Odeio isso que os goblins fazem. Se pensam que vou ficar parada… Hah!

As criaturas de repente encontraram flechas projetando-se de seus quadris. Da sombra dos bancos, Alta Elfa Arqueira disparou uma impiedosa saraivada de flechas.

— GROB! GROOORB?!

— GOOROB?!

Três disparos sem qualquer pausa. Três goblins ao chão, gritando.

Mirar na cabeça era fácil, mas sempre existia a possibilidade de uma trapalhada. No momento, o mais importante era imobilizar os monstros; poderiam cuidar deles depois.

Alta Elfa Arqueira levou apenas um instante para mirar, então plantou um projétil de ponta-broto no globo ocular de um goblin.

— Orcbolg! Cuidei de tudo por aqui!

— Bem, então devo pegar as escadas?

O trabalho de Anão Xamã como lançador de feitiços estava terminado, o que restava era o trabalho físico. Com surpreendente agilidade para uma estrutura tão grande, saltou em direção à escada. Sacou o machado quase mais rápido do que os olhos poderiam ver e assumiu uma postura de combate; estava óbvio que não era um amador.

— GOOROOB!

— GRRRRORB!

Era nesse ponto que o avanço dos goblins iria parar.

As criaturas tinham originalmente entrado por uma fenda no insignificante muro defensivo, mas agora estavam cercados. Assim como muitos aventureiros novatos, eles nunca imaginaram que isso pudesse acontecer. Acreditavam que cabia a eles matar, e não ser mortos. Isso era absoluto; entretanto, ali estavam eles na situação oposta.

Matador de Goblins entendia isso muito bem. Ele mesmo já tinha sido assim.

— Quatorze… Quinze!

— Krrraahhhh!

Ele esmagou a cabeça de uma criatura com seu porrete, depois, agarrou uma lança de mão e apunhalou outra delas na garganta.

Lagarto Sacerdote atacou com as garras, presas e cauda, transformando os goblins em chumaços de sangue.

Este era um grupo com quatro aventureiros Prata e uma aventureira Aço.

Mais importante, um desses aventureiros era Matador de Goblins.

Nunca houve qualquer dúvida de que ele iria derrotar vinte e tantos goblins enfurnados em um prédio de igreja. Para ele, a questão sempre foi como fazer isso rapidamente, como matar com precisão e como resgatar qualquer refém.

— Vinte e três, é?

A batalha terminou após algum tempo. O sol estava se pondo e a biblioteca submergiu na escuridão. A única luz saía de lanternas que tremeluziam aqui e ali.

Matador de Goblins fez seu trabalho com indiferença, mesmo sob a pálida iluminação: foi de um cadáver de goblin para o próximo, apunhalando cada um deles com sua arma, tudo para ter certeza de que estavam mortos, em seguida, empilhou-os em um canto da capela.

O salão de adoração, agora cheirando a sangue, podridão e excrementos, manchado de um vermelho horrível, não possuía qualquer sinal de sua passada pureza sagrada. Fosse ou não o objetivo dos goblins, haviam conseguido profanar todo o lugar.

Pouco mais de vinte freiras trabalhavam na biblioteca. Quase metade delas continuava viva. O resto permanecia apenas como carne e ossos em uma panela de ensopado.

Lagarto Sacerdote estava no processo de levar cada uma das freiras para o andar de cima da capela, até o armazém do porão.

— Mantenha as forças. Quando amanhecer, podemos levá-la a algum lugar menos perturbador.

— Obrigada… De verdade…

— Não se preocupe. Podemos reverenciar diferentes divindades, mas os macacos vieram dos lagartos, no final das contas. Isso nos torna primos.

— Heh heh… Vocês, homens-lagarto… dizem as… coisas mais estranhas…

As mulheres riram entre si. Estavam embrulhadas em um pano, embora nada pudesse esconder o quão imundas e emaciadas estavam. Uma olhada nas bandagens enroladas em seus tornozelos deixava claro que não iriam para lugar nenhum.

Sacerdotisa se viu mordendo o lábio. Se havia alguma dor que ela não conhecia, era a de uma adaga enferrujada cortando seu tendão de Aquiles.

— Está tudo bem… — disse. — Vamos levar vocês para a cidade em breve.

— O… bri… ga… da…

— Não tente falar. Agora, você só precisa descansar.

Sacerdotisa movia-se cuidadosamente entre os bancos, administrando os primeiros socorros às freiras e à viajante.

Todas evitavam perguntar o que seria delas.

Há um bom número delas, meditou Matador de Goblins. Tantas que mantiveram a sanidade, não se suicidaram, nem foram usadas e depois assassinadas. Podem ser consideradas sortudas.

Graças à viajante, que sem dúvidas se preparou para lutar até a morte, uma das freiras foi poupada desse horror. Ela havia sido enviada a outro templo com uma mensagem e, ao voltar, descobriu o que estava acontecendo. Então voltou a seguir a estrada para registrar uma missão na Guilda dos Aventureiros, mas levou vários dias para que alguns deles fossem despachados.

Foi graças à viajante que Matador de Goblins e seu grupo chegou. As horas que ela comprou com seu sangue deu a eles o tempo necessário para chegar.

Se ela tivesse decidido abandonar o templo, ou jogar a arma ao chão após uma simples resistência simbólica, a freira jamais teria sido capaz de escapar, e a situação provavelmente não seria descoberta antes de as coisas ficarem muito piores.

— Vinte e três, então… — murmurou ele, como se quase não acreditasse, então jogou sua lança ensanguentada de lado. Ela rolou ruidosamente até um canto da capela onde havia uma panela com o que restava da comida. No lugar da lança, pegou uma conveniente espada de um cadáver de goblin, colocando-a na bainha em seu quadril.

Foi só depois de fazer tudo isso que Matador de Goblins se sentou em um dos bancos.

— Se não fosse pelos livros e pelas reféns, atear fogo no local seria mais rápido. — Ele suspirou profundamente.

— Hmph… Que coisa a se dizer — repreendeu Sacerdotisa, dando tapinhas nele. Ele olhou para ela sem mover o capacete.

A garota devia ter terminado de prestar os primeiros socorros. Suas bochechas salpicadas de sangue suavizaram, e ela então conseguiu revelar um sorriso pleno. Estava tentando não mostrar o que devia ser um cansaço considerável por ter usado dois milagres.

— Você quer que ela fique com raiva de você de novo? Sem fogo!, ela vai dizer. — Sacerdotisa levou seus dois dedos indicadores acima da cabeça e os sacudiu para cima e para baixo.

Estava tentando brincar – talvez se obrigando a isso. Matador de Goblins não sabia se era uma coisa ou outra. As sombras lançadas pela fraca luz das velas, combinadas com a viseira de seu capacete, impediram-no de ler as sutilezas da expressão dela.

Por fim, ele simplesmente disse: “De fato”, e então fechou os olhos.

Não pretendia descansar por muito tempo, é claro. Ele estabilizou a respiração, relaxou a consciência por um instante, e então voltou a se concentrar.

Afinal, ainda havia goblins por aí. Talvez não onde estava, mas em algum lugar. Não havia nenhum lugar onde poderia baixar a guarda.

— Mas isso deu algum trabalho…

— Bem, isso… — Sacerdotisa piscou os olhos aqui e ali enquanto tentava escolher suas palavras. — Às vezes acontece, eu acho…

— Entendo…

— Mesmo os deuses não são todo-poderosos.

Então, quase hesitante, ela se sentou ao lado de Matador de Goblins. Ficou perto o suficiente para que ele pudesse sentir o calor do corpo dela, caso não estivesse usando sua armadura. Matador de Goblins arregalou um pouco os olhos ao som fraco de respiração que pôde perceber além de seu capacete de metal.

— Como está a garota viajante? — perguntou.

— Dormiu, finalmente… Ela está bem por agora. Mas não tem sangue o suficiente.

— Amanhã, então.

Sacerdotisa imediatamente entendeu o que Matador de Goblins quis dizer com essa breve resposta.

Eles agiriam no dia seguinte. Em outras palavras, passariam a noite onde estavam. Com certeza não poderiam pedir às mulheres resgatadas que andassem. Precisariam de uma carruagem ou algum tipo de carroça. Além disso, mover tantas pessoas à noite seria perigoso. Ainda mais sem um plano.

— Enquanto isso, certifique-se de descansar um pouco.

— Certo… — Sacerdotisa acenou com a cabeça e fechou os olhos. Ela não tinha a menor ideia sobre poder mesmo dormir, mas só fechar os olhos já era o suficiente para relaxar um pouco. Matador de Goblins estava disposto a assumir um pouco do peso nos ombros dela.

— Mas… — Ela ouviu os passos de Lagarto Sacerdote suavemente se aproximando. Ele olhou em volta sombriamente, então continuou em voz baixa: — Sinto que os diabinhos têm estado… bem mais inteligentes ultimamente.

— Acha mesmo?

— É só uma sensação, mas… — Ele então rapidamente continuou, com a excitação especial que os homens-lagarto pareciam ter pelas questões de batalha: — Desde o goblin paladino, tenho notado isso.

— Concordo — disse Matador de Goblins com um aceno de cabeça. — Será que ficaram mais inteligentes…?

Embora, acrescentou, tenha trabalhado para matá-los precisamente para que não aprendessem as coisas.

Ou será que meus inimigos até agora eram apenas fantoches?

Não. Descartou a ideia com um aceno de cabeça. Em alguns casos, era possível cortar a cabeça para destruir o corpo, mas isso não era algo simples. Essa não foi uma lição que aprendeu muito bem uma década atrás?

— Precisamos de alguns planos novos.

— Pfah! Os monstrinhos não saberiam o valor de uma gema se ela acertasse os olhos deles. — Anão Xamã apareceu apressado, carregando uma braçada de carga. A poeira copiosa ao seu redor indicava que devia ter passado pelo armazém ou algum lugar do tipo.

Nenhum deles, é claro, se rebaixaria tanto a ponto de roubar daquelas freiras. O objetivo era ter certeza de que estava tudo seguro.

Ao mesmo tempo, Lagarto Sacerdote revirou os olhos com grande interesse.

— Algum dos textos estava seguro? — perguntou.

— Apenas aqueles que não foram para o lixo — respondeu Anão Xamã. Houve um barulho enquanto ele empilhava vários objetos no banco: tábuas de pedra; não, talvez de argila. Esses itens não eram tão convenientes quanto papel, mas eram a prova de que os registros da Era dos Deuses e dos Dias Antigos ainda existiam.

— Duvido que pudessem distinguir alguma coisa — disse Lagarto Sacerdote, escovando a superfície de uma das tábuas suavemente para não arranhá-la com as garras.

A forma das letras parecia bem antiga; nem mesmo Lagarto Sacerdote conseguia lê-las. Os caracteres assiduamente não geométricos formavam padrões que ameaçavam deixar qualquer leitor tonto.

— Em nossa ignorância do que dizem, talvez não sejamos diferentes dos goblins. Mas sejamos gratos por algo ter escapado.

— Teremos que descobrir exatamente o que são assim que tivermos uma chance. Mas isso pode esperar.

— Sim. — Matador de Goblins balançou a cabeça. — Como vão as coisas lá fora?

— Orelhas-Compridas está dando uma olhada. Ela tem uma boa visão noturna e a agilidade de uma patrulheira.

Se sobrou algum, ela encontrará. O anão puxou sua jarra de vinho. Matador de Goblins aceitou e tomou um gole, bebendo vigorosamente pelo visor de seu capacete. Os espíritos queimaram no caminho abaixo, chamando sua atenção para como seu foco estava embotado pelo cansaço.

— Vocês usaram feitiços… Precisam descansar.

— E você também… Mas talvez seja um luxo que não podemos nos dar. Precisamos ter certeza de que temos o suficiente em guarda. — O anão então tomou um gole de vinho antes de passar a jarra para o Lagarto Sacerdote.

— Oh-ho — disse o lagarto, semicerrando os olhos e tomando um enorme gole de vinho. Sua enorme língua deslizou para lamber as gotas em sua mandíbula e ele tossiu uma vez. — Isso faz querer queijo.

— Quando voltarmos — disse Anão Xamã tranquilizando seu companheiro, batendo em seu ombro. — Não podemos nos distrair só porque estamos retornando para casa.

— Verdade, mas acho que por esta noite estamos bem. — A voz clara chegou da direção da porta, que rangeu ao ser aberta. Uma silhueta deslizou para dentro da capela, como um gato abrindo caminho pela estrada à noite. A mulher tremeu de leve, suas orelhas compridas se contraindo, era Alta Elfa Arqueira.

— Fiz uma ronda na área, mas não vi qualquer pegada de goblins fugitivos.

— Tem certeza? — perguntou Matador de Goblins suavemente, ao que ela respondeu:

— Tenho.

Alta Elfa Arqueira franziu a testa e removeu um pouco de sangue seco de sua bochecha.

— Então, no que diz respeito a voltar para casa, se não encontrarmos nenhum goblin pelo caminho, acho que terminamos.

— Entendo. — Matador de Goblins assentiu brevemente, olhando para a pilha de cadáveres no canto da capela.

Vinte goblins estranhos. Eles tinham lidado com vinte goblins e os matado.

Em seguida, havia as mulheres feridas dormindo nos bancos.

É o fim de tudo?

— Entendo… — Ele voltou a acenar com a cabeça e se moveu um pouco. Então gentilmente sacudiu Sacerdotisa, que estava encostada nele. — Acorde. Ela voltou.

— Mm…? Ah. Ah, c-certo. — Sacerdotisa se sentou, assustada. Ela correu a sacudir a cabeça e esfregar os olhos, forçando sua atenção a voltar.

— Certo, então vou limpar. Estamos todos…

As palavras muito sujos nunca chegaram aos seus lábios; as engoliu em seco. Ela agarrou seu bastão e começou a caminhar entre as mulheres dormindo nos bancos, Alta Elfa Arqueira a seguindo. Sacerdotisa emergiu no centro do cômodo e lá se ajoelhou, segurando seu cajado com ambas as mãos. Uma postura de oração.

— Ó Mãe Terra, abundante em misericórdia, por favor, por sua mão reverenciada, purifique-nos de nossa corrupção.

Movida pela devoção de sua preciosa seguidora, uma mão invisível desceu do céu para tocar a pele das garotas. Surgiu uma sensação agradável acompanhada de um toque tão suave quanto o de uma pena.

E eis: diante dos olhos de todos, a sujeira das garotas se reuniu e voou – toda a sujeira, manchas de sangue, as tripas grudadas em suas roupas. Seus rostos pareceram de alguma forma relaxar, transformando-se e revelando expressões de descanso.

— Mm — disse Alta Elfa Arqueira, semicerrando os olhos, assim como faria um gato. Ela abriu bem os braços. — Isso é realmente impressionante. É quase como se tivessem sido lavadas com água. Esse é seu milagre novo?

Ela teria que se desculpar com os deuses pelas suas queixas anteriores.

— Sim — respondeu Sacerdotisa com uma pitada de felicidade. — Quando disse à chefe do templo que fui promovida a Aço, me pediram para realizar a cerimônia.

— Uma espécie de milagre contido, não acha? Eles não tinham nada mais chamativo?

— Eu tinha que escolher o que precisava… — murmurou Sacerdotisa, desviando o olhar.

— Ahh — Alta Elfa Arqueira franziu a testa, compreendendo.

Em geral, era dito que os deuses decidiam que milagre o suplicante receberia, mas um desejo fervoroso às vezes poderia conquistar uma habilidade em particular.

Este era o milagre Purificação. Isso invocava um ato dos deuses para remover a impureza. Isso foi, por assim dizer, tudo o que aconteceu. E usar um tão valioso milagre com algo assim…

Entretanto, ao mesmo tempo, a ideia de ser capaz de limpar suas roupas e corpo uma vez por dia durante a aventura alegrava o coração da garota. Além disso, o milagre também poderia purificar a água ou o ar, até certo ponto, então não faria mal ter algo assim.

Havia também a questão de que medir o valor da intervenção divina apenas em termo do quanto beneficiava o usuário era o pior tipo de sacrilégio existente.

— …

Sacerdotisa levou a mão ao seu pouco peito e respirou fundo. Suas pálpebras tremeram e ela mordeu o lábio.

Já me acostumei, não é?

Depois de toda a conversa sobre casamentos, foram até ali e viram o que os goblins fizeram, em que estado terrível deixaram aquelas jovens. E, embora seu coração doesse, ainda conseguia conversar um pouco. Mesmo que fosse em parte para manifestar.

Isso, um ano antes, seria inimaginável.

— Esse é um bom milagre.

Uma mão pesada facilmente caiu em seu ombro. Ela saltou e ergueu os olhos para se deparar com um capacete de metal encardido. Essas poucas palavras foram o bastante para fazer seu coração disparar.

— Há usos para isso.

E então Sacerdotisa curvou as sobrancelhas, uma expressão ambivalente em seu rosto.

 

 

O carmesim do crepúsculo se espalhou por todos os cantos.

Era o pôr do sol no verão. O vento oeste soprou para levar o calor do dia, espalhando ondas pelo mar de grama no pasto.

— Certo, pessoal, hora de ir para casa!

As vacas, alegremente mastigando a grama, ergueram a cabeça enquanto mugiam. Lenta mas seguramente, começaram a andar, formando um rebanho que ia para o celeiro.

As vacas costumavam ser obedientes assim. Havia pouca necessidade de Vaqueira se envolver muito com elas, mas isso não significava que não tinha trabalho a fazer. Contar o gado era importante, certificando-se de que todos os animais voltariam ao celeiro em segurança. Sim, ele diligentemente verificava as cercas todas as manhãs, mas isso não significava que nunca apareceria algum problema. Raposas e lobos já eram problema o suficiente, mas também era possível perder algum animal no campo.

E uma vez que as vacas estivessem todas no celeiro, teria que alimentá-las. Animais como vacas e cavalos eram posses preciosas. Mas era impossível prestar suficiente atenção neles.

— Bom, vocês estão todas aqui… — Vaqueira, curvando os dedos enquanto o gado passava, contou até a última e fez um aceno energético com a cabeça.

Já fazia dois dias desde que ele, seu amigo de longa data, partiu em uma aventura.

Era natural que pudesse sair por aí se aventurando por alguns dias. Ele era um aventureiro.

Já aconteceram outras vezes em que ele não voltou para casa. Passavam dias com ela simplesmente esperando.

Eventualmente, poderia chegar o dia em que a espera não acabaria.

Ele era um aventureiro, e isso era natural.

Heh. Não posso seguir por esse caminho, ou nunca voltarei.

— Vamos nos concentrar apenas no trabalho. Trabalho!

Houve outra rajada de vento.

A brisa de verão trouxe consigo uma abundância de aromas: o cheiro da grama fresca, os odores distantes dos vários jantares da cidade, até mesmo o cheiro das vacas.

— Hmm…

E também um cheiro de metal enferrujado. Era um odor com que, para seu desgosto, havia se familiarizado muito nos últimos anos.

Vaqueira parou em meio ao processo de seguir as vacas até o celeiro, girando nos calcanhares. Lá longe, podia ver uma figura chegando da direção da cidade, aproximando-se com passos atrevidos e indiferentes.

Usando um capacete de metal encardido e uma armadura de couro de aparência barata, enquanto uma espada de comprimento estranho balançava em seu quadril e um pequeno escudo redondo descansava em um braço.

Vaqueira semicerrou os olhos. E, então, como sempre, sorriu.

— Bem-vindo de volta. Está cansado?

— Sim — respondeu ele com um aceno de cabeça. — Estou em casa.

Ela foi correndo até ele. Então inspirou e depois expirou. Os movimentos dele pareciam normais. Ela sentiu suas bochechas relaxarem.

— Você não se machucou. Bom, fico feliz.

— Sim. — Ele assiduamente balançou a cabeça e voltou a andar; mas desacelerou um pouco. Vaqueira caminhou ao lado dele.

— Hrm… — O rosto dela estava um pouco contraído. Se ela podia sentir o cheiro dele, será que poderia sentir o cheiro do seu suor? Ela cheirou um pouco a manga, mas não sabia a resposta.

Eh, acho que está meio tarde para isso.

— Ei, o que os aventureiros fazem a respeito da sujeira e esse tipo de coisa?

— Nos trocamos quando podemos. Limpamos nossos corpos. Alguns até mesmo usam feitiços ou milagres.

— Huh!

— Às vezes, o odor corporal pode alertar os goblins da nossa presença. É tolice ir em direção deles contra o vento.

Acho que faz sentido. Vaqueira balançou a cabeça, depois, avançou para o outro lado dele.

— Pois não? — perguntou, mas ela simplesmente dispensou a pergunta e disse:

— Não se preocupe com isso. O que quer para a janta? Ou você já comeu?

— Não.

— Certo, então vou cozinhar para você. Ensopado serve?

— Sim. — O capacete então balançou suavemente para cima e para baixo. A voz suave também parecia mais alegre do que o normal. Só isso já foi o suficiente para deixar Vaqueira feliz por dedicar seu tempo na preparação da refeição.

Olhe para mim. Sou tão fácil.

Bem, ela não se sentia exatamente mal por isso. As coisas estavam bem assim.

— Você deve estar cansado, hein?

— …

Não houve resposta. Ele ainda tinha o péssimo hábito de se calar quando não tinha uma boa resposta.

Vaqueira riu um pouco e se inclinou para frente, como se pudesse ver por dentro do capacete. Do outro lado da viseira de aço, não conseguia ver sua expressão, mas tinha uma boa ideia de qual era.

— Tempos difíceis?

— Não existem trabalhos fáceis…

— É verdade.

Suas sombras se estendiam no crepúsculo de verão.

As vacas estavam de volta ao celeiro. Tudo o que restava era voltar para casa.

Tinham percorrido o caminho para casa juntos tantas vezes, desde que eram pequenos. Quantas vezes isso já tinha acontecido?

Ela não sentia que muita coisa havia mudado desde os velhos tempos, embora a sombra dele agora estivesse um pouco maior que a dela.

— Aliás…

— Hmm? — Ela manteve os olhos em suas silhuetas enquanto respondia. E também mudou um pouco o seu passo, tentando fazer com que suas sombras se sobrepusessem.

Por nenhuma razão em especial. Era apenas algo que ela de repente se lembrou que fazia quando era criança.

— Parece que há um casamento.

— Casamento…?

Ora essa. Ela descobriu que não podia deixar de prestar atenção nele. Ele falou a palavra como se não fosse familiar, como se fosse uma língua desconhecida.

Casamento. Um casamento. Para se juntar a alguém. Para passar suas vidas juntos.

— Um casamento, hein? E você foi convidado? — disse ela calmamente.

— Sim — respondeu ele com sua brevidade usual. — Bom… — E então parou por um momento. — No meu grupo, há uma elfa.

— Ah — disse Vaqueira, semicerrando os olhos. A alegre e otimista garota patrulheira. — Ela.

— A irmã mais velha e o primo, ao que parece.

— Isso é bom.

— Disseram-me para também te convidar.

— Tem certeza…?

— Não cabe a mim decidir.

Hrm, grunhiu Vaqueira.

Ali estava a fazenda. Havia trabalho. Ela poderia realmente deixar tudo para trás por dias a fio?

O verão era uma época agitada. O outono também. O mesmo acontecia com a primavera e o inverno. Durante o ano todo, precisava se preocupar com o clima, com as colheitas e com os animais.

Mas então… Ah, sim, mas então.

Um casamento élfico!

A frase ressoou nas profundezas do seu coração. Ela tinha sonhado com essas coisas quando era pequena, o tempo todo certa de que nunca veria um: as fadas dançando, roupas mais bonitas do que qualquer coisa que já vira e música como nunca tinha ouvido. A noiva e o noivo resplandecentes.

Ela tinha ouvido falar dessas coisas nas histórias de ninar, mas sempre assumiu que não eram nada mais do que isso.

Além do mais, nunca tinha ficado muito tempo longe de sua cidade natal (agora desaparecida) ou da fazenda onde morava atualmente. Parecia um tempo desesperadamente longo desde que tinha imaginado ir a qualquer lugar.

— Imagino… Está tudo bem mesmo? — murmurou ela, como se isso pudesse ser algo genuinamente ruim.

— Vou falar com o seu tio.

— Certo… — A gentileza contundente em seu tom talvez fosse uma resposta aos seus próprios murmúrios vagos.

Só pode ser isso, decidiu ela. Claro que sim. Prefiro assim.

Ela se moveu levemente, de modo que suas sombras passaram a se sobrepor. De modo que apenas as mãos das silhuetas pareciam estar entrelaçadas enquanto as figuras escuras se estendiam sobre o campo avermelhado.

— Um casamento, hein…?

Estavam quase de volta em casa.

Foi uma curta distância para caminharem juntos. O suficiente para compartilhar o que pensavam. Para compartilhar algumas palavras…

— Você já pensou nesse tipo de coisa?

— …

Ele ficou em silêncio por um momento. Seu comportamento de sempre que não sabia o que dizer.

— É complicado.

— Talvez seja — murmurou ela, girando nos calcanhares. Ela começou a andar para trás, suas mãos cruzadas atrás do corpo. — Nesse caso — continuou, olhando para ele —, e… quando éramos pequenos? Você prometeu se casar comigo quando crescêssemos.

— …

Vaqueira ouviu um leve suspiro de dentro do capacete.

— Não me lembro de tal promessa.

— Opa… Viu através de mim, hein?

Ela riu alto, mais uma vez girando enquanto o fazia, e continuou andando.

Suas sombras se separaram. Assim como as mãos delas. Agora… Sim, agora é tarde.

Mas deveríamos ter feito essa promessa.

De alguma forma, o sol do crepúsculo encontrou o caminho para seus olhos, e ela piscou rapidamente.

 

 

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