Capítulo 7 – Escolha Principal.
Seria mais fácil simplesmente morrer.
Não era a primeira vez que Mary sentia isso.
Depois de perder três de seus companheiros originais de uma só vez, por um bom tempo, um longo tempo, dia após dia, ela quis morrer. Para ser mais preciso, tinha sido dominada por sentimentos de arrependimento, culpa e perda, e não conseguia pensar em nada além da morte que pudesse libertá-la disso.
Ela chegou a considerar acabar com a própria vida, mas sentia que isso seria errado. Seus companheiros basicamente tinham se sacrificado para que ela sobrevivesse. Era graças a eles que ela estava viva, então como poderia morrer? A menos que sofresse muito, muito mais, tudo isso seria uma mentira. Aquilo era o castigo que merecia.
Era assim que se sentia, então, mesmo quando as coisas ficavam tão difíceis que parecia mais fácil morrer, ela nunca se deixou abater. Não poderia permitir-se fazer isso.
Mas desta vez era diferente. Talvez, realmente fosse melhor morrer. Na verdade, ela questionava por que tinha que viver.
Afinal, dali em diante, eles fariam coisas horríveis, repulsivas, que ela nem sequer queria imaginar. Não queria imaginá-las, mas ainda assim os pensamentos cruzavam sua mente. O que os orcs fariam com ela? E aquele goblin também a humilharia?
Não.
Não estou brincando.
Eu vou morrer.
Isso mesmo. Vou morder a língua e morrer.
Ah, mas morrer talvez não impedisse que eles profanassem seu corpo sem vida. Mas o que importava o que acontecesse depois que estivesse morta? Ainda assim, a ideia era difícil de suportar.
Não. Não. Não. Não.
— Mary.
— …Hã? — Mary ergueu o rosto e olhou para o lado.
Ranta parecia exausto, suando profusamente. Era como se a sombra da morte estivesse sobre ele.
Mesmo assim, ela pensou: Você não tem noção de como é pior pra mim. Eles só vão te matar.
Ela passaria por mais do que isso. Eles a atormentariam o quanto quisessem, torturando seu corpo e sua alma, e depois a matariam de alguma forma brutal quando tivessem terminado com ela. Esse era o destino que esperava por Mary.
Ela queria gritar o mais alto que pudesse, Você acha que consegue entender o que eu estou sentindo agora?!
É claro que isso seria descontar na pessoa errada.
Mary tentou desesperadamente controlar sua respiração. — …O quê?
— Não… É que eu chamei seu nome várias vezes, mas você não respondeu…
— Várias vezes?
— Você não me ouviu?
— Isso é… — Mary balançou a cabeça e piscou. Sim, várias vezes. — …não é verdade. Eu ouvi. Mas mesmo que eu tivesse respondido, não mudaria nada.
— Você não precisa falar assim — reclamou Ranta. — Eu estava preocupado com você.
— Não precisa.
— Não tente bancar a durona. É estranho você me dizer pra não me preocupar enquanto está com essa cara.
— Eu estou perfeitamente—
Sua visão embaçou, pegando-a de surpresa.
Lágrimas. Estava prestes a chorar.
— Eu estou bem. — Mary fechou os olhos com força. — Estou bem.
— Ah, é?
— É.
— Você realmente não é nada fofa.
— Você acertou em cheio.
— Sério, seu rosto é a única coisa que você tem de bom. Sua personalidade é terrível.
— Você é a última pessoa de quem eu quero ouvir isso.
— Não, não, não. Mesmo o grande Ranta-sama não chega aos seus pés — respondeu Ranta. — Eu jamais poderia me comparar com seu nível de rancor. Essa teimosia sua poderia acabar com um amor que durasse cem anos. Você dominou a arte de afastar os outros.
— Se afaste o quanto quiser. Pra mim seria conveniente.
Ranta estalou a língua. Não parou por aí; fez isso uma segunda e terceira vez. Era incrivelmente irritante.
Mas, graças a isso, o medo estava um pouco mais distante. Logo ele voltaria a subir à tona e a consumiria, mas por ora ela conseguia pensar com mais clareza do que antes. Esse era o quão fracas as pessoas podiam ficar por causa do medo. Se, agora, lhe oferecessem uma condição menos terrível do que suas piores imaginações, ela cederia facilmente. Mary não tinha confiança de que conseguiria se agarrar ao próprio orgulho.
Era por isso que esperava morrer antes de cair em desespero absoluto. Seria mais fácil.
Ou talvez, mesmo que caísse ao nível mais baixo, ainda devesse se apegar à vida?
Qualquer que fosse a escolha, provavelmente nunca mais veria nenhum dos seus companheiros além de Ranta.
Yume. Shihoru. Finalmente conseguimos nos tornar amigas.
Kuzaku, sinto muito pelo que fiz com você.
Haruhiro. Haru…
Me salve.
Essa era a única coisa que ela não podia dizer. Na verdade, nem pensar nisso ela podia. Já se sentia fraca, e aquilo só a tornaria ainda mais frágil.
Ela não queria que Ranta visse isso. Quando fizessem o que quer que estivessem planejando, ela não queria que Ranta—não queria que um de seus companheiros visse. No entanto, essa não era uma escolha que Mary poderia fazer. Para que ela experimentasse a humilhação mais amarga, eles poderiam profaná-la bem na frente de Ranta. Ela precisava estar preparada para isso.
Teria que aguentar sem chorar ou gritar. Apenas suportar. Precisaria fazer com que pensassem que atormentá-la mais seria entediante. Essa era a única forma de resistência que Mary tinha. Se era só isso, era o que ela faria.
Não trema. Não olhe para baixo. Mantenha o queixo erguido.
Havia um goblin acariciando um grande lobo negro perto da entrada da caverna. Não conseguia ver aquele homem de meia-idade. Havia vários orcs circulando por ali. Mortos-vivos também. Um bando de lobos negros. Várias criaturas semelhantes a gatos.
Névoa.
Ela gravou tudo aquilo em suas retinas.
Mary morreria ali. Provavelmente da pior maneira imaginável. Mas não amaldiçoaria o fato de ter vivido, nem rejeitaria sua vida. Acontecesse o que acontecesse, essa era a única coisa que não faria.
— Ranta.
— …Huh?
— Obrigada — disse ela. — Por se preocupar.
— Sua idi… N-Não fala assim, garota. Eu não estou…
— “Garota”? — ela perguntou, arqueando uma sobrancelha.
— D-Desculpa, Mary-san…
Era tão bobo que ela sorriu, ainda que só um pouco.
Honestamente, gostaria de poder agradecer a todos os outros companheiros também. Queria agradecer a todos de verdade, com suas próprias palavras. Dizer a eles que eram importantes para ela, e que os amava. Mas esse desejo não iria se concretizar. Então, pelo menos, ela agradeceria a Ranta.
Sinceramente, Ranta mais a tinha irritado do que qualquer outra coisa. Nunca conseguiria gostar dele como pessoa, mas ele não era de todo ruim, entendia que ele tinha algumas qualidades também. Mesmo que não gostasse dele, ele era um companheiro insubstituível.
Mary falou: — Tenho um favor a pedir.
— Ah? Claro. …O-Q-Qual?
— Não importa o que aconteça, não tenha pena de mim. Quero me manter forte, mas posso fracassar. Se isso acontecer, você pode zombar de mim, mas, seja como for, não sinta pena de mim.
— Entendido — Ranta respondeu instantaneamente. — Juro pelo Lorde Skullhell. Não vou ter pena dos meus companheiros. Aconteça o que acontecer, certo? …Mary.
— O quê?
— Não desista. Porque eu não vou desistir. Enquanto ainda estivermos vivos, não perdemos.
— Certo. — Mary não conseguia pensar da mesma forma que Ranta. Contudo, achava importante respeitar a determinação dele. Queria respeitá-la.
Esperava que Ranta de alguma forma sobrevivesse. Conhecendo Ranta, ele não se importaria com aparências, e provavelmente imploraria por sua vida ou faria o que fosse necessário para continuar vivo.
Ela se sentou ereta. Estufou o peito. As cordas apertavam sua pele, dolorosamente. Mas isso não era nada demais. Nem exigia perseverança para suportar. Ela afastou da mente as coisas horríveis que havia imaginado. Quando tentava pensar em coisas boas, sentia vontade de chorar.
Não, pensou. Quero ficar com todos por mais um tempo. Isso não pode ser o fim. Eu não quero isso.
Mas quando se lembrou de que alguém como ela havia sido permitido conhecer companheiros tão maravilhosos, e tinha passado bons e maus momentos com eles, reconsiderou. Percebeu que deveria ser grata pelo que teve.
Sua vida não tinha sido em vão. Ela tinha sido abençoada. Mesmo que terminasse de uma forma horrível, isso não tornava o tempo que passou com seus companheiros inútil.
No momento em que todos os lobos e criaturas semelhantes a gatos voltaram seus olhares para a mesma direção de uma só vez, Mary sentiu que a hora finalmente havia chegado.
O que tinha acontecido? O que estava prestes a acontecer? Mary não sabia, mas sabia que não era algo comum. Isso era a única coisa que sabia.
O goblin se levantou. O grande lobo negro, por outro lado, se deitou. Os outros lobos negros imitaram o grande. As criaturas semelhantes a gatos arregalaram os olhos, respirando superficialmente pelo nariz. Pareciam tensos. Os orcs e mortos-vivos abriram as pernas, colocaram as mãos nos quadris e se inclinaram um pouco, abaixando as cabeças.
O homem de meia-idade apareceu vindo além da névoa. Estava trazendo alguém com ele. Duas pessoas, na verdade.
Era difícil vê-los, mas um era bem grande. Aquela figura tinha um corpo massivo. Era um orc? Mesmo que fosse, era grande demais. Seria um gigante ou algo assim?
A outra pessoa era humana, ou talvez um morto-vivo. Essa figura não era muito mais alta ou baixa que o homem de meia-idade, então provavelmente não era um orc.
No tempo em que eles se aproximaram, até que pudesse distinguir como eram, Mary jamais teria imaginado que ambos eram orcs. Um deles tinha facilmente dois metros e meio de altura, enquanto o outro media talvez apenas um metro e oitenta. Pelo fato de um ser tão grande, o outro parecia quase delicado em comparação.
Parecia que os orcs tinham o costume de tingir os pelos do corpo em cores vibrantes. Contudo, esses dois eram diferentes. Ambos tinham cabelos ondulados, negros a ponto de serem brilhantes.
O orc menor provavelmente era o mais velho dos dois. Não era que ele parecesse velho; apenas exalava uma aura de tranquilidade.
É aquele orc, pensou Mary.
O que os lobos negros, os orcs e os mortos-vivos respeitavam não era o grandalhão. Ela nunca tinha visto um orc como aquele menor antes. Sua pele tinha um tom acinzentado, e seus olhos eram de um laranja penetrante, ambos bastante distintivos, mas o mais notável era sua roupa.
Era um tecido azul-escuro com um padrão de flores prateadas espalhadas. Como seria chamado? Era um quimono? Fosse o que fosse, era muito bem-feito. Era uma vestimenta com mangas que abria na frente, indo até pouco abaixo dos joelhos e amarrada com um cinto fino. Em vez de sapatos, ele usava algo parecido com sandálias. O objeto longo que ele carregava no cinto parecia uma arma, mas você só perceberia se prestasse bastante atenção. As feras e os orcs claramente o temiam e o respeitavam. Ainda assim, ele não tinha um ar particularmente imponente ou opressor. Era calmo e silencioso, e, ao mesmo tempo, embora fosse pequeno para um orc, era grande. Sua presença tinha um sentido de grandeza. Ou talvez de profundidade. Essa também parecia uma forma apropriada de descrevê-lo.
Olhando para eles novamente, o orc enorme parecia estar tentando imitar o menor. Era evidente que admirava o orc pequeno, e não podia evitar emular sua vestimenta e modos.
Aquele orc menor era o chefe. Nesse grupo composto de orcs, mortos-vivos, goblins, bestas e até humanos, ele era a figura central, o que os havia reunido.
No instante seguinte, Mary percebeu que o homem de meia-idade e os dois orcs estavam bem próximos dela e de Ranta.
Então, um som repentino de asas batendo a surpreendeu. Algo desceu dos céus envoltos em névoa.
Um pássaro. Não um pequeno. Uma ave de rapina. Uma águia, talvez?
Uma pena preta caiu das fortes asas que batiam e pousou no chão em frente aos joelhos de Mary.
A grande águia negra pousou no ombro do orc pequeno. Embora fosse pequeno para um orc, ele tinha ombros largos o suficiente para que uma ave tão grande pudesse usá-los como poleiro. Seu peito era espesso, e seus braços e pescoço eram robustos. Ainda assim, ele transmitia uma impressão mais ágil do que poderosa.
— Jumbo. — O homem de meia-idade fez um gesto com o queixo em direção a Mary e Ranta, então disse algo incompreensível. Provavelmente era na língua orc.
O orc pequeno assentiu. Seus olhos laranja estavam fixos em Mary. Suas pupilas pareciam brilhar. Talvez não fosse o momento ou lugar para tais pensamentos, mas Mary achou-os bonitos. O branco de seus olhos era tão claro quanto o de um bebê.
Ela entendia, racionalmente, que os orcs eram uma raça inteligente, em nada inferior aos humanos. No entanto, teve que reconhecer que tinha preconceitos contra eles, os vendo como selvagens e assustadores. Foi por isso que Mary ficou tão surpresa.
Ela não conseguia encontrar uma expressão apropriada para isso, mas, se fosse usar a palavra mais próxima que conseguia pensar, aquele orc parecia nobre. Ele tinha uma graça, um refinamento. Dito isso, ainda era cedo para começar a ter esperanças de que ele não faria nada brutal. Isso seria apenas otimismo sem fundamento.
— Meu nome é… — Mesmo que a boca do orc estivesse se movendo, era difícil para ela acreditar que aquela era sua voz. Claro que era. Ele estava falando em palavras humanas, e com uma fluência surpreendente na língua. Além disso, sua voz era baixa e suave, ainda que um pouco rouca, e muito agradável de se ouvir. — …Jumbo. Primeiro, deixe-me perguntar: quais são seus nomes?
— Huh…? — Ranta olhou para Mary, depois para Jumbo, inclinou a cabeça de lado em confusão e então olhou para o homem de meia-idade. Quando o homem deu de ombros, Ranta finalmente aceitou a realidade. — …R-R-R-R-Ranta. Não, quer dizer, meu nome é Ranta.
— E você? — Jumbo perguntou, olhando para Mary.
Mary respirou fundo. Seu corpo inteiro estava dormente. Ela precisava se recompor.
— Sou Mary.
— Ranta. Mary. Parece que vocês dois não são da vila.
— …O que é essa vila, afinal? — perguntou Mary.
— Eiiii, Mary, não fale mais do que o necessário… — Ranta balançou a cabeça, irritado. — É isso mesmo! Nós nem sabemos de que vila você está falando. Não temos a menor ideia do que seja, então pode ter certeza que não somos de lá! E daí?!
— Soldados voluntários de Arabakia, então? — perguntou Jumbo. — Ou cidadãos de Vele?
Vele provavelmente se referia à cidade livre de Vele. Havia comércio entre Altana e Vele. Porém, embora Vele fosse uma cidade-estado humana, eles também mantinham comércio com orcs e mortos-vivos. Poderia-se dizer que eram neutros.
Se dissessem que eram cidadãos de Vele, Jumbo poderia liberar Mary e Ranta. Se acreditasse neles, claro. Se não desconfiasse da mentira.
— Somos soldados voluntários. — Mary lançou um olhar firme a Jumbo. — E o que tem isso?
Ranta já havia dito ao homem de meia-idade que eram soldados voluntários. Era difícil imaginar que esse detalhe não tivesse sido passado para Jumbo. Ele devia saber. Se estava fazendo uma pergunta da qual já sabia a resposta, parecia uma armadilha. Se usava truques tão banais, talvez fosse mais superficial do que ela imaginava.
Ou talvez não.
— Takasagi. — Jumbo olhou para Mary novamente enquanto perguntava. — Isso é verdade?
— É — respondeu o homem de meia-idade chamado Takasagi. — Onsa encontrou os distintivos do Esquadrão de Soldados Voluntários deles. Não vejo motivo para estarem carregando falsos. Não há dúvidas quanto a isso. Só não dá para saber que ligação têm com a vila. Os caras que estão nos atacando também são soldados voluntários, então continuam suspeitos.
— …Suspeitos, é? Isso me magoa. — Ranta soltou um riso sarcástico. Se suas mãos não estivessem amarradas nas costas, ele provavelmente teria cruzado os braços de forma arrogante. — O quê?! Tá achando que somos espiões, ou algo assim? Deixa eu te falar, eu não faria nada tão patético. Se quisesse derrubar vocês, faria isso em uma luta direta!
— Luta direta, hein… — Takasagi deu um sorriso enquanto o cachimbo que segurava entre os lábios tremia. — Você não é bom o suficiente. Não só você não conseguiria derrubar nosso chefe, como eu duvido que conseguiria me vencer.
— Ei, não me subestime, velho! — As veias de Ranta pulsavam, suas sobrancelhas estavam erguidas e seu rosto todo distorcido. Será que ele achava que estava intimidando? Que idiota.
Ele estava respirando pesadamente pelo nariz. O que esse idiota estava pensando, se exaltando tanto? Será que ele não estava pensando em nada? Normalmente, isso seria impossível, mas, com esse cara, talvez fosse o caso. Ele era tão idiota assim.
— Sou um astro dos soldados voluntários! — gritou Ranta. — Sou a supernova de talento chamada Ultra Idaten! Idaten…?! Bom, tanto faz. De qualquer forma, quando falam do espadachim especial conhecido como o Deus da Destruição de Outra Dimensão, estão falando de mim, Ranta-sama! Como se eu fosse perder para um velhote! Antes de falar, tente avaliar melhor seus oponentes, camarada!
— Pare com isso — disse Mary urgentemente. — Você está—
— Cala a boca! Agora você não fala! — Ranta gritou com Mary, elevando ainda mais a voz. — Vocês acham que são grandes coisa só porque conseguiram nos capturar com um bando de gente! Covardes, que não conseguem enfrentar uma luta um contra um! Quem vocês pensam que estão enganando com esse “duvido que você consiga me vencer”? Diga isso depois de termos lutado de verdade! Se é só pra ficar falando sem termos lutado, qualquer um pode fazer isso! Se você está tão confiante, então enfrente-me!
— Ele tem um ponto. — Jumbo assentiu sem mudar a expressão. — Takasagi. Foi você quem disse que poderia vencê-lo. Enfrente-o.
— Vixe, isso me ensina a fechar essa boca grande, né… — Takasagi virou-se e olhou para a caverna. — Onsa, pode pedir para os nyaas soltarem as cordas dele?
Quando Onsa, o goblin, franziu os lábios e assobiou, as criaturas felinas rodearam Ranta e desfizeram as cordas rapidamente.
Essas criaturas, eram chamadas de nyaas? Não era um nome muito criativo, mas era fofo. Elas pareciam se esforçar tanto enquanto mexiam suas mãozinhas, e isso—Não, não. Não era hora de ficar admirando a fofura dos nyaas.
— Muito bem! — Ranta ficou de pé, torcendo o pescoço de um lado para o outro, e esticou braços e pernas. — Não deixem minhas habilidades hiper-incríveis derrubarem vocês. A propósito, vocês não lutariam com armas enquanto eu estou desarmado, né? Se quiserem resolver isso com os punhos, por mim tudo bem. Também topo essa. Afinal, sou mestre em tudo.
Pouco tempo depois, três nyaas trouxeram a RIPer de Ranta da caverna. Os nyaas se esforçando enquanto corriam carregando a espada eram adoráveis, claro, mas era óbvio que Mary não tinha presença de espírito para realmente apreciar essa fofura. Na verdade, sua boca estava aberta, surpresa.
Em vez de optar por assistir as coisas se desenrolarem, o fluxo dos eventos deixara Mary para trás. Ela culpava Ranta. Ranta era um idiota. Tudo era culpa do estúpido Ranta.
Os lobos negros e os nyaas, os orcs, os mortos-vivos, Jumbo e o grande orc se moviam, abrindo espaço para o duelo. Mary só podia ficar ali, sentada em silêncio.
Talvez esse fosse o plano de Ranta. De qualquer forma, Ranta estava livre agora. Ele até pegou sua arma de volta. Isso significava que talvez não fosse impossível escapar…?
Quando Ranta lançou um olhar na direção de Mary, ela quase quis pensar “Eu sabia”—mas foi só isso, um único olhar, e então Ranta se voltou para Takasagi, sacando RIPer da bainha e a largando ali mesmo. Ela ficou envergonhada por, mesmo que por um instante, ter começado a pensar “Eu sabia”.
— Certo! — Ranta deu um tapa no próprio rosto com a mão esquerda. — Estou pronto! Venha com tudo, velho Takasagi!
— Não sei dizer se você está falando sério ou apenas desesperado. — Takasagi mordiscou o cachimbo, sacando lentamente a katana das costas com a mão direita. — Se quiser, deixo você fazer o primeiro movimento.
— Tem certeza? — perguntou Ranta. — Não quero que se arrependa depois.
— Não hesite em aceitar. Provavelmente vivi o dobro de tempo que você. Se quiser, dou ainda mais vantagem pra você.
— A sabedoria da idade, é isso? — Ranta abaixou um pouco os quadris, preparando a espada. — Bom, aceito de bom grado o direito de atacar primeiro. Não caia no primeiro golpe. Não tenho muitas chances de fazer isso, então me divirta.
— Você fala bem.
— Vou mostrar que não é só papo logo, logo.
Será que…? Parecia ser a única possibilidade, mas será que Ranta achava que poderia vencer Takasagi? Que poderia ganhar o duelo e, ao vencer, arrancar algum tipo de compromisso deles?
Takasagi tinha um ferimento no olho esquerdo ou algum outro problema, e aparentemente era cego daquele lado. Além disso, provavelmente não estava escondendo o braço direito. Ele tinha um olho e um braço. Era de meia-idade, também, então Ranta provavelmente achava que podia enfrentá-lo. Se Ranta estava pensando nisso—e conhecendo Ranta, provavelmente estava, o que a preocupava—era leviano da parte dele.
Takasagi levantou a katana lentamente, apontando a ponta para Ranta. No momento em que fez isso, Ranta parou completamente de se mover. Provavelmente não conseguia se mover. O ar úmido de repente começou a parecer gelado.
Os olhos de Mary se fixaram na espada de Takasagi, incapazes de focar em qualquer outra coisa. Se Ranta estivesse no mesmo estado que Mary, tudo já estava decidido. A batalha estava resolvida. Ele não tinha como vencer.
— Não vou me deixar hipnotizar — murmurou Ranta para si mesmo.
No instante seguinte, ele avançou com Leap Out. Com a força de uma erupção, disparou para a esquerda de Takasagi. De lá, usou Hatred. Takasagi desviou com um movimento suave.
Ranta usou Leap Out novamente para ir para o lado direito de Takasagi e, girando a espada em um movimento de oito, usou Slice. Takasagi também desviou facilmente desse golpe.
Ranta lutava de um jeito nada parecido com o usual, quase sem usar a voz enquanto pressionava o ataque. Seus pés nunca paravam; ele continuava se movendo e atacando.
Mary não queria elogiar Ranta, mas a maneira como ele se movia com uma velocidade desconcertante devia ser bem problemática para o oponente. Lutando dessa forma, Ranta parecia ganhar uma força anormal. Além disso, ele não estava apenas se movendo aleatoriamente; estava sempre tentando atacar por um ângulo difícil de bloquear. Era como se ele fosse uma pessoa completamente diferente da que integrava a party quando Mary entrou. Ranta estava tão mais forte agora que era quase irreconhecível. No entanto, sempre havia alguém melhor.
Mesmo para Mary, uma sacerdotisa, isso era óbvio. Pelo menos por ora, não importava o quanto Ranta se esforçasse, ele jamais alcançaria Takasagi.
Ranta podia saltar para a direita e golpear, ou avançar para a esquerda e estocar, e Takasagi sempre estaria de frente para ele, pronto para se esquivar com um ou dois passos. Takasagi conseguia prever tudo. Ele tinha compreendido completamente o estilo de luta nada convencional de Ranta.
Não era exagero dizer que Ranta não estava à altura dele. Ranta, mais do que ninguém, devia estar ciente da diferença em seus poderes. Mesmo assim, ele continuava atacando. Incorrigível, repetia seus ataques sem sentido.
Pare, Mary queria dizer. Mas o que aconteceria se ele parasse?
Não desista, Ranta tinha dito a Mary. Porque eu não vou desistir, ele tinha dito.
Essa era exatamente uma batalha onde, se ele desistisse, tudo estaria acabado. Embora não pudesse vencer de jeito nenhum, ele tinha que continuar lutando para que a luta não terminasse. Era por isso que Ranta estava lutando tão desesperadamente. Até gastar sua última gota de energia, ou até que Takasagi o derrubasse, Ranta não desistiria.
— …Vai com tudo. — Mary forçou as palavras a saírem. — Vai, Ranta! Vai!
— Ohhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh! — Ranta gritou.
Ranta não estava respondendo a Mary. Ele estava focado na batalha e provavelmente nem conseguia ouvir a voz dela. Mas a precisão dos movimentos de Ranta, junto com sua velocidade, aumentaram um nível. Talvez fosse uma ilusão, mas foi assim que pareceu para Mary.
Se ele avançasse uns centímetros a mais em seus golpes, sua espada alcançaria um pouco mais longe. As manobras evasivas de Takasagi também estavam se tornando maiores. Até um momento atrás, ele estava desviando de maneira relaxada, mas agora era um pouco diferente. Ocasionalmente, seus pés se moviam um pouco mais rápido, ficando mais apressados. Ele tinha menos espaço para erros do que antes.
— Esse não é o melhor que você consegue, né?! — Mary gritou. — Você pode dar mais! Não é possível que não consiga!
Isso não era verdade de forma alguma. Ranta já estava dando tudo de si, ultrapassando seus limites. Mesmo sabendo disso, tudo o que ela podia fazer era torcer por ele assim. Isso a fazia odiar o quão cruel ela era. Seu companheiro estava queimando o próprio fogo da vida, então por que ela não conseguia oferecer-lhe palavras mais gentis?
— Desta vez…! — De repente, como se tivesse sido lançado para longe, Ranta recuou vários metros. Era Exhaust. Ele havia colocado uma distância entre eles, mas o que ele pretendia fazer com isso?
Takasagi permaneceu parado, como se esperasse para ver o que ele faria.
— Técnica secreta… — Ranta segurou a RIPer com ambas as mãos, seu corpo inteiro oscilando. — Hachioji Beta Cleansing… Não, esquece, precisa de um nome mais maneiro… Mil Braços de Kannon Bodhisattva… Não, espera, isso também não serve… Fragrância Amarga… Huh? Isso também está errado. Não soa como um ataque especial, uh… Céu Supremo Supremo…?
Mary estava pasma. Que diferença fazia o nome? Nem precisava de um. No fim, Ranta era Ranta. Um idiota. Não importava onde estivesse, um verdadeiro idiota sempre seria um idiota.
Takasagi também estava boquiaberto.
Espere, será que era isso que Ranta estava tentando fazer…?
— Te peguei! — Ranta usou Leap Out para investir contra Takasagi. Ele saltou de fora do alcance de sua lâmina, estocando com toda sua força. Anger. — Toma essa!
As pernas de Takasagi estavam rígidas. Ele não podia desviar.
Talvez essa fosse a hora.
Pela primeira vez, Takasagi usou sua katana e—
— Ungh! — Ele simplesmente afastou a espada de Ranta.
— Gwuh?! — Só com o desvio de sua espada, Ranta perdeu o equilíbrio.
Takasagi finalmente passou para o ataque. Ou melhor, resolveu tudo com um único golpe. Se é que aquilo podia ser chamado de golpe.
Takasagi usou a katana como se fosse um braço seu, enlaçando a espada de Ranta. RIPer girou enquanto voava cerca de cinco metros antes de cair no chão.
— Você tem garra. — Takasagi pressionou a ponta de sua espada contra a testa de Ranta. — Mas é só isso que você tem. Bom, daqui a dez anos, eu terei enfraquecido com a idade, então talvez você ganhasse naquela época. Por enquanto, simplesmente não vai rolar.
Estava acabado.
Tudo estava acabado.
Tão facilmente.
Mary sorriu de lado, com toda sua força a deixando. Muito típico de Ranta. Mas, bem, para o Ranta, ele tinha feito o melhor que provavelmente poderia.
Isso era certo. Ele tinha se saído bem. Mary não fizera nada; não fora capaz de fazer nada; então não estava em posição de reclamar.
— Você acha que isso acabou? — Ranta disse com a voz trêmula, e isso a tocou um pouco.
Ainda não. Mesmo agora, Ranta não tinha desistido. Ele era um idiota.
Um idiota, mas incrível. Ele era incrível. Como sua companheira, Mary sentia orgulho, ainda que só um pouco. Os cantos de seus olhos começaram a esquentar.
Se Ranta não tivesse se jogado ao chão e pedido perdão na velocidade da luz, ela talvez tivesse deixado algumas lágrimas escaparem.
Mary sentiu que seus olhos iam saltar do crânio. Nunca havia experimentado um choque tão absurdo antes.
— …Hã…? — Takasagi perguntou.
— Você me pegou! Por favor, me aceite como seu discípulo! Eu vou carregar suas sandálias, lavar suas sandálias, polir suas sandálias, o que você quiser, por favor! Você gosta de homens fortes?! Eu adooooooro! Eu quero ser forte! Sério, sério, quero mesmo! Estive procurando um caminho, dá pra dizer, sempre buscando, e finalmente encontrei o que preciso! Você, Takasagi-sensei! Eu encontrei você! Digo, você é forte demais, e eu me senti ainda mais impotente do que imaginava diante de você, acabei me apaixonando! Por favor, me aceite como seu discípulo! Posso começar como seu subordinado, se precisar! Estou implorando! Por favoooor!
— Escuta, eu não estou aceitando discípulos… — Takasagi franziu o cenho, descansando a lateral da katana no ombro esquerdo com um suspiro. — Além disso, você não entende? Nós não servimos a nenhum rei. Mas, ainda assim, pessoas de Arabakia ainda são nossos inimigos. Não tem como nos darmos bem. Você sabe o que isso significa? Vamos supor por um momento que eu faça de você meu discípulo. Isso nunca vai acontecer, mas, se eu fizesse, você estaria traindo Arabakia.
— Isso não é problema!
— …Hã?
— Sensei, Mestre, eu acho que você está confundindo as coisas aqui, então vou te contar, tá? Eu só me tornei um soldado voluntário porque as coisas acabaram acontecendo assim. Não é como se eu tivesse jurado corpo e alma ao Reino de Arabakia. Nunca me senti inclinado a isso. Eu só acabei aqui em Grimgar, sem um tostão, e eles disseram que cobririam minhas despesas pessoais por um tempo se eu me tornasse um soldado voluntário em treinamento, e eu não parecia ter outra opção na época, então aceitei. Bem, de certa forma, dá pra dizer que me enganaram, né? Foi assim que virei soldado voluntário!
— Eu mesmo fui soldado voluntário, então entendo de onde você está vindo — disse Takasagi.
— Uau! Você é um ex-soldado voluntário, Sensei? Mestre?
— Eu não sou seu sensei nem mestre, sabe…
— Como você acabou trabalhando para o Comandante Jumbo, então? — Ranta perguntou animado. — Eu adoraria ouvir sobre isso também.
— É uma longa história… — Takasagi estalou a língua levemente. — Você é bem esperto, sabia? Quase me pegou agora há pouco.
— Com certeza! Eu tenho uma língua de prata! Eu tenho o dom da lábia! Eu falo o tempo todo, então as pessoas sempre dizem que sou irritante! Mas, sabe o quê?! Meu coração é ardente! Minha alma está cheia! Eu quero ser seu discípulo ao máximo, Takasagi-sensei! Eu realmente quero ficar mais forte, de verdade! Do jeito que estou agora—como soldado voluntário, fazendo as mesmas coisas que todos os outros—não posso esperar crescer! Isso acabou de me atingir!
— …O que acabou de te atingir?
— Isso, aí, esse é o ponto! Ou melhor, este lugar é! — Ranta girou, olhando para Jumbo, o grande orc, os goblins, os lobos negros e mais. — Você, um humano, está trabalhando sob o comando do Comandante Jumbo! Você deve ter uma razão muito boa! Mas, mais do que isso, eu sinto algo aqui! Para ser franco, é isso que me atrai! Se eu me tornar um de vocês, talvez eu encontre algo?! Talvez o caminho que eu, em minha busca para me tornar o maior e mais invencível lutador de todos os tempos, preciso seguir esteja aqui o tempo todo?!
— Okay, me diz se eu entendi direito — Takasagi disse. — Deixando de lado a parte de virar meu discípulo, você quer deixar de ser um soldado voluntário e se juntar a Forgan, mesmo que seja como um mero subordinado.
— Uhh, Forgan…?
— Forgo — disse Jumbo, olhando para a grande águia negra em seu ombro. — Esse é o nome do meu estimado amigo. Na língua humana, significa “águia negra”. Suponho que isso faria de Forgan a Tropa da Águia Negra.
— Aí está! — Ranta assentiu, como se Jumbo tivesse dito exatamente o que ele queria ouvir. — É isso! Por favor, me deixe entrar na Forgan, eu imploro! Eu faço a limpeza, lavo as roupas, a comida, as tarefas, qualquer coisa…! Coloquem todo o trabalho que quiserem em cima de mim, porque eu ainda vou continuar subindo! Eu tenho certeza que tenho talento, potencial, coragem, nervos, colhões, o Jones! Faz até a gente se perguntar quem é esse Jones, mas, sério, estou realmente super sério sobre tudo isso!
(NT: Jones é uma gíria que significa ter um forte desejo ou vontade por algo.)
Enquanto Ranta esfregava a cabeça no chão repetidamente e implorava, Mary não conseguia decidir se ele realmente estava super sério sobre isso, se era uma forma de implorar por sua vida, ou se ele estava apenas falando bobagem. Qualquer uma das opções parecia possível, e ela não achava que nenhuma delas era aceitável.
Talvez Mary o tivesse julgado errado. Ranta podia ser um pedaço de lixo ainda maior do que ela jamais imaginara.
Agora ela queria chorar, mas por um motivo diferente de antes.
Como companheira dele, sentia vergonha de Ranta. Sentia-se terrivelmente envergonhada pelo fato de algo que ele fizera ter mexido com seu coração, ainda que minimamente.
— Bem, de qualquer forma, se é isso que você quer… — Takasagi guardou sua katana na bainha. — Eu não sou quem toma essa decisão. É o Jumbo. O Jumbo decide. O resto de nós segue suas ordens. Essa é a regra na Forgan, afinal.
Forgo, a grande águia negra, soltou um grito agudo e levantou voo do ombro de Jumbo.
Jumbo se aproximou. Era como se uma brisa leve o envolvesse. Ele chegou de maneira silenciosa, aproximando-se com calma, até parar em frente a Ranta e, de todas as coisas, se agachar.
— Ranta — disse Jumbo.
— S-Sim — Ranta endireitou as costas, ajoelhando-se formalmente. — Sim, senhor!
— Não gosto de mortes desnecessárias.
— Sim, senhor! Hã? Senhor?!
— Claro, às vezes matamos aqueles que nos enfrentam — disse Jumbo. — Às vezes roubamos também. Machucamos pessoas. Porque alguns entre os nossos companheiros têm uma natureza especial, entende? Há também aqueles que nos difamam, dizendo que a Forgan é cruel e implacável. Não vou negar. No entanto, eu, pessoalmente, não tiro vidas sem necessidade.
— …S-Sim, senhor.
— Se deseja se tornar meu companheiro, eu o aceitarei.
— Sim, senhor. …Hã?! Me aceitará?! Quer dizer… vai me tornar seu camarada?!
— Se é isso que deseja — disse Jumbo. — No momento, Takasagi é o único humano entre meus companheiros, mas ter um segundo não será problema. Isso, também, pode ser interessante.
— Eu… Consegui?!
— Porém — Jumbo acrescentou.
— P-Porém…?
— E aquela mulher? — Jumbo apontou para Mary; ou, melhor, dirigiu seus olhos alaranjados para ela. — Aquela mulher se tornará minha companheira junto com você? É isso o que ela deseja?