Capítulo 12 – Kinuko-sama. (Parte 2)
— Darung…gar? — Haruhiro perguntou enquanto olhava para as outras tábuas de pedra e barro.
— É como aqueles que vivem aqui chamam este lugar.
— O Deus da Luz, Lumiaris, e o Deus das Trevas, Skullhell, lutaram aqui em Darunggar… — disse Shihoru cautelosamente. — Há muito tempo, o povo de Darunggar se aliou a Lumiaris ou a Skullhell, e eles lutaram… É isso?
— Quem ganhou… será? — Kuzaku esfregou o hexagrama esculpido em sua própria armadura.
— Ei, cara. — Ranta bufou. — Olha como tá escuro aqui. Obviamente, o meu amado Senhor Skullhell venceu, certo?
— Mas magia de luz também funciona aqui, não? — Mary rebateu imediatamente. — Se Lumiaris perdeu, não é estranho que seu poder ainda alcance aqui?
— Você pode dizer isso, mas vale para a minha magia das trevas também, sabia? Bom, ambas parecem ser menos que metade tão eficazes quanto o normal, de qualquer forma.
— Então. — Yume olhava para outra tábua de pedra. — Deve ter sido um empate, não?
— Então, agora eles foram para Grimgar? — Haruhiro inclinou a cabeça para o lado. — …Como se chamaria um grupo de deuses, afinal? Uma banda? Não. Um aglomerado? Não. Uma party? Também não. Talvez um panteão…?
— O curso da batalha permanece desconhecido. — O Sr. Unjo colocou sua mochila no ombro. — O sábio das mãos com olhos, Oubu, diz que ele não sabe. Ele está investigando isso. De qualquer forma, Lumiaris e Skullhell deixaram Darunggar. Darunggar é um mundo sem deuses.
— Eles se foram… — Haruhiro puxou um pouco o cabelo na nuca. — Espere, por onde eles saíram?
Shihoru engoliu em seco. — Há… um caminho, em algum lugar? Sem um caminho de Darunggar para Grimgar, eles não poderiam ter saído… certo?
— Isso significa uma coisa! — Ranta gritou. — A gente pode voltar pra casa, não é?!
Kuzaku olhou de relance para o Sr. Unjo. — Se pudéssemos voltar, ele já não teria feito isso?
— Ah, sim. — Yume soltou um suspiro profundo. — Com o Konjo-san ainda estando aqui, isso deve ser verdade, né…?
— Você quis dizer Unjo-san, certo? — corrigiu Haruhiro, voltando a se concentrar.
Na verdade, ele não estava tão chocado assim. Ele vinha pensando, Quero voltar para casa. Seria bom se conseguíssemos, mas ultimamente havia começado a sentir, Bem, se não pudermos voltar, tudo bem também.
Se não conseguissem encontrar nenhuma pista de como voltar depois de cem, duzentos dias aqui, teriam que começar a agir como se fossem viver ali para sempre. Teriam que criar raízes em Darunggar. Por exemplo, começar uma família? Claro, isso seria algo que naturalmente começariam a considerar. Provavelmente era uma questão importante. Haruhiro não poderia se eximir disso dizendo, Eu sou o líder. Se fosse o caso, como líder, ele teria que tomar a iniciativa.
Não havia garantia de que ele não acabaria se confessando.
Não, isso não é provável, né? Não posso, certo? Ou melhor, o que é uma confissão? O que eu vou confessar? Para quem? Eu nem sei o que quero dizer.
Enquanto Haruhiro fazia essas perguntas sem sentido para si mesmo, o Sr. Unjo saiu da loja do sábio Oubu, que definitivamente não era uma loja comum. Ele poderia ter dito algo antes, mas sendo o Sr. Unjo, era difícil culpá-lo, Haruhiro supôs.
Haruhiro e os outros saíram da loja também, e viram o Sr. Unjo se dirigindo a outra construção. Era o maior prédio da Vila do Poço, feito de pedras empilhadas, com janelas de vidro. Pela experiência de Haruhiro, sempre havia luz vazando das janelas de vidro. Alguém tinha que morar lá. Ou assim ele sempre supôs, mas nunca havia visto quem morava lá.
O Sr. Unjo tinha entrado naquele prédio da última vez também. Haruhiro se lembrava disso. Ele nunca tinha visto mais ninguém entrando ou saindo.
O Sr. Unjo abriu a porta, lançando um olhar para Haruhiro e os outros. Me sigam, parecia estar dizendo. Interpretando dessa forma, Haruhiro e os outros seguiram o Sr. Unjo para dentro do prédio.
Haruhiro sentiu um arrepio. Era uma sensação muito estranha.
Que lugar é esse?, perguntou-se Haruhiro.
O mundo chamado Darunggar. Vila do Poço. Não parecia nenhum dos dois. Este lugar era diferente.
Ao contrário dos outros prédios da Vila do Poço, este tinha um chão apropriado, e havia um tapete estendido. Havia prateleiras. Havia uma única mesa. Havia cinco cadeiras. Parecia haver outro cômodo nos fundos. Em ambos os lados da janela de vidro, havia cortinas. Havia castiçais espalhados por aqui e ali. Todos eles estavam acesos. Quatro das cadeiras estavam dispostas ao redor da mesa. Havia apenas uma no centro da sala.
Lá, no meio de tudo, ela estava sentada.
Ela era humana. Vestindo um vestido vermelho. Com meias brancas, sapatos pretos, uma fita vermelha, cabelo loiro e olhos azuis. Ela parecia uma garota jovem, com pele pálida.
Foi o que ele pensou à primeira vista. Mas logo percebeu que não era esse o caso.
— …Uma boneca? — Haruhiro piscou e olhou novamente.
Por que ele havia pensado que ela era humana? Ela era bem-feita, mas claramente antiga, e sua pele estava rachada aqui e ali. Seus olhos estavam bem abertos. Mas seu cabelo parecia ter sido penteado, e, embora as cores de sua roupa estivessem um pouco desbotadas, ela não estava rasgada ou desgastada em lugar nenhum.
— Espera aí… — Ranta ficou sem palavras.
Não era apenas aquela boneca e os móveis. Esta sala estava transbordando de coisas únicas e diferentes. Nas prateleiras, sobre a mesa e até mesmo no chão. O que mais chamava atenção, porém, era que, embora não fossem exatamente todas…
Isto, e aquilo, e isto, e aquilo, tudo é familiar.
O objeto parecido com uma moldura encostado na parede. A coisa redonda sobre a mesa. O objeto grosso e retangular. O que tinha dois objetos em forma de disco conectados por uma espécie de faixa. O objeto fino e retangular que parecia caber na mão dele. O objeto em forma de placa com muitos botões. O objeto com vidro na frente, que era um retângulo com cantos arredondados.
Eu já vi isso. Provavelmente. Muito provavelmente.
Ele sabia que devia ter visto. E, no entanto, sua confiança começou a vacilar. Ela se dissipou rapidamente. Eu já vi isso antes? Sério? Como posso dizer isso com certeza?
Ele nem sabia. Não conseguia lembrar os nomes deles, ou quando e onde os tinha visto. Não conseguia se lembrar, mas… Como podia afirmar que já os tinha visto antes? Que evidência ele tinha?
Ainda assim, havia coisas ali que ele conseguia identificar com firmeza. Havia alguns óculos. Um tinha armação preta, outro era de metal. Outro ainda tinha armação de casco de tartaruga. As lentes estavam quebradas ou faltando em alguns casos, mas eram claramente óculos.
As prateleiras também tinham livros. No entanto, não eram como os livros que ele havia visto em Grimgar. Eram mais finos e muitos eram pequenos. Havia também latas e recipientes transparentes. Mas, embora fossem transparentes, não pareciam ser de vidro.
O Sr. Unjo colocou sua mochila no chão e tirou algo de dentro dela. Era branco, um pequeno objeto em forma de bola. Quando o Sr. Unjo o colocou sobre a mesa, fez um som seco.
A bola não rolou. Parecia que sua superfície era irregular.
— O que… O que é isso? — perguntou Kuzaku. — Eu conheço isso… ou sinto que deveria conhecer, mas o que é?
— Quem sabe? — Sr. Unjo olhou lentamente ao redor da sala. Talvez estivesse verificando o quanto as velas tinham queimado. — Eu não sei. Não eu. Mas são diferentes, isso eu posso dizer. As coisas nesta sala são diferentes.
— …Diferentes. — Shihoru balançou a cabeça. — Eu sinto o mesmo. São diferentes.
Mary pressionou uma mão contra o peito.
— Você juntou tudo isso?
— Não — respondeu imediatamente o Sr. Unjo. — Quando cheguei aqui pela primeira vez, esta sala já existia.
— Miau… — Yume pegou o objeto fino e retangular da mesa. Quando o passou pelo dedo, o pó foi removido, e ele era surpreendentemente liso. Yume inclinou a cabeça para o lado, olhando para o objeto de forma estranha. — …Nuuh?
— Os moradores começaram a coleção, então? — Ranta olhou para a boneca, claramente desconfortável. — Ninguém vive nesta casa? Além daquela garota?
O Sr. Unjo fez um gesto com o queixo em direção à boneca.
— Não toquem na Kinuko.
— Kinu…ko… Espera, você quer dizer a boneca?
— Todos a chamam assim.
— Hmm — disse Ranta. — Bem, ela não parece uma Kinuko pra mim. Mais como uma Nancy, se for pra dizer algo.
— Ela não tem cara de Nancy — discordou Shihoru. — Nem de longe.
— E então, do que ela tem cara, hein?! Fala aí, peituda!
— Peit… — Shihoru cobriu o peito com os braços. — …T-Talvez uma Alice? Algo assim…
— Alice, é? Hmm. — Ranta cruzou os braços. — De qualquer forma, Kinuko tá fora de questão.
— Os deuses abandonaram Darunggar. — Unjo levantou sua mochila. — Ela é o substituto deles. Nesta vila, Kinuko é adorada. Dizem que ela veio de outro mundo…
— De fato… — Haruhiro assentiu. — Ela não parece ser deste mundo. Mas, dito isso, se você me perguntasse se ela veio de Grimgar—
— Nem a pau. — Yume ainda mexia no objeto fino e retangular. — Isso é verdade, mas Yume, ela tá com um sentimento misterioso, sabe? É tão nostálgico, de alguma forma. Mesmo que ela não tenha ideia do que isso deveria ser, ela sente como se conhecesse. Estranho…
— Objetos estrangeiros também são adorados — disse Unjo. — Se encontrar algo por aí que pareça um, traga aqui. Ofereça à Kinuko.
— Você quer dizer, tipo… — Ranta, como sempre, era vulgar e sem classe. — De graça?
O Sr. Unjo apenas soltou um grunhido baixo e não respondeu à pergunta.
Haruhiro inclinou a cabeça levemente.
— …Desculpe por ele. Sério.
— Hã? Por que você tá se desculpando, Parupirooo? Você é um idiota, ou algo assim? Sim, você é um idiota, né. — Ranta não mostrava arrependimento. — Olha, acho que funciona assim. Mesmo que não tenha dinheiro envolvido, ele tá dizendo que Kinuko é uma deusa. Talvez possamos esperar algum tipo de bênção? Isso tornaria isso valioso. Sim. Se encontrarmos algo, vamos trazer aqui.
— …Mas ainda assim. — Kuzaku estava agachado em frente ao objeto parecido com uma moldura. — Por que todas essas coisas estão aqui? Ou será que essa é a pergunta certa? O que é isso? Não consigo expressar muito bem, mas não é esquisito?
Haruhiro podia entender o que Kuzaku queria dizer. Ele entendia, mas não conseguia colocar em palavras muito bem. Era frustrante não conseguir expressar em palavras, e ele achava tudo aquilo muito estranho.
Estamos procurando uma maneira de voltar ao nosso mundo original. As palavras de Shima voltaram à sua mente.
Uma maneira de voltar. Para o mundo original deles.
A cabeça de Haruhiro doía. Nas têmporas—não, mais profundo—ele sentia uma dor pesada, mas aguda. Havia algo lá. Ele não conseguia evitar essa sensação. Mas suas mãos não podiam alcançar. Estava dentro de sua cabeça, afinal. Ele não podia enfiar um dedo lá dentro e cutucar. Ah, se ao menos pudesse!
— Unjo-san — disse Haruhiro.
— O quê?
— Unjo-san, você… Você já pensou em querer voltar para o nosso mundo original, ou algo assim?
— “Mundo original”. — O Sr. Unjo repetiu as palavras, e então ficou em silêncio.
— Espera… — Mary olhou para Haruhiro de trás de sua máscara. — Quando você fala do nosso mundo original, você não quer dizer Grimgar?
— …Hã? — Shihoru cobriu a boca. — Não Grimgar, o original…
Yume olhou para o teto.
— …Funya?
— Original… — Kuzaku estava pensativo. — Nosso original…
— Ei, ei, ei. O que você quer dizer com original? — Ranta tentou rir, mas parou. — …O quê? A gente veio de algum outro mundo antes de Grimgar… É isso?
— Se não viemos, de onde viemos então? — Mary perguntou, tanto para si mesma quanto para os outros. — Eu não me lembro de nada antes disso, mas… tínhamos que estar em algum lugar, isso é certo. Não tem como termos nascido assim, do nada.
— De onde viemos mesmo? — A voz de Shihoru tremia um pouco. — Quando digo de onde viemos, quero dizer… nas minhas memórias, eu me lembro… Eu perguntei a Haruhiro-kun: Onde estamos?
— …Huh, — a garota atrás dele perguntou timidamente, — onde você acha que estamos?
— Olha, perguntar pra mim não vai ajudar — Haruhiro tinha quase certeza de que havia respondido assim.
— …Certo, claro. Hm, a-alguém sabe? Onde estamos? — Shihoru, Haruhiro se lembrou. Isso mesmo. Aquela era Shihoru. Mas onde estávamos?
— A gente tava olhando pro Sra. Lua — Yume bateu as mãos. — Ela tava toda vermelha. Isso foi bem surpreendente.
— Ahhh — disse a de tranças, parecendo notar também. Ela piscou repetidamente e então deu uma risadinha. — A Sra. Lua tá vermelha. Isso é muito bonito.
Yume. Aquela tinha sido Yume. Ele conseguia se lembrar. Certo. Naquele momento, eles tinham notado a lua. Ela estava de um vermelho rubi, entre uma lua crescente e uma meia-lua.
Por que tá vermelha? Ele pensou. Uma lua vermelha parecia estranha.
Onde eles estavam?
— …A colina? — murmurou Haruhiro.
Eles estavam no topo da colina ao lado de Altana. Havia fileiras de túmulos; é lá que Manato e Moguzo estão enterrados. Eles estão lá… e Choco também.
Choco. Companheira de Kuzaku. Uma ladra. Uma das soldados voluntárias novatas. Ela tinha morrido na batalha na Fortaleza de Observação Deadhead.
…Era só isso? Ele não sabia. Algo o incomodava. Como se tivesse esquecido de algo…?
Olhos grandes. Com olheiras. Lábios carnudos. Uma garota com um corte de cabelo chanel.
Choco.
Companheira de Kuzaku…
— Nós estávamos lá na colina. — Haruhiro olhou para seus companheiros. — …É isso, não é? Pelo menos, Shihoru, Yume, Ranta… e Manato e Moguzo estavam lá também. Kikkawa. Renji. Ron. Sassa. Adachi. A Chibi-chan também. Eles estavam lá. Vimos a lua vermelha. Kuzaku, Mary, como foi pra vocês?
— A colina… — Mary murmurou distraída. — …Eu me lembro. Vaguemente, mas me lembro. Acho que minha primeira memória deve ser da colina ao lado de Altana.
— Eu também, acho — Kuzaku assentiu. — É meio que uma… sim, eu estava lá. Com eles. Não sei sobre o que conversamos, mas…
— Que coincidência. — Até o Sr. Unjo entrou na conversa, sorrindo levemente. — Eu também me lembro de ver a lua vermelha naquela colina. “A lua está vermelha”, pensei. “Que assustador”…
— …Isso não é estranho? — Haruhiro puxou uma das cadeiras ao redor da mesa e sentou-se. — Que tenhamos aparecido naquela colina, quero dizer. É estranho. Muito estranho. Não importa de onde viemos antes de chegar a Grimgar, se eu pensar direito. Havia tipo um túnel. Algo assim por onde devemos ter passado, certo? E então, aparecemos… na colina.
— Havia uma torre. — O Sr. Unjo tirou repentinamente seu chapéu trançado. Seu cabelo curto estava parcialmente branco. Embora a parte inferior de seu rosto estivesse coberta pelo cachecol, tudo da testa para cima estava exposto. Ele tinha uma testa pronunciada e parecia um homem na casa dos quarenta ou cinquenta anos. Colocando o chapéu sobre a mesa, o Sr. Unjo também se sentou. — Se minha memória estiver correta, era a “Torre Proibida”.
— A torre sem entrada ou saída… — O corpo inteiro de Shihoru estava tremendo agora. — Eu nunca soube para que ela servia… Achava aquilo estranho. Durante todo aquele tempo…
— Será que — Ranta sentou-se no chão. — talvez a gente tenha saído dessa torre, vocês não acham?
— Mesmo sem ter entrada ou saída? — perguntou Mary, duvidosa.
— Hmm… — Ranta bateu na própria cabeça. — Aí está. Esse é o problema. Mas, sabe, é estranho se ninguém pode entrar ou sair. Não faz sentido. Deve haver uma porta secreta em algum lugar, certo?
— Hiyomu provavelmente saberia, não acha? — disse Yume. — Hiyomu, ela nos guiou da colina até o lugar do Bri-chan em Altana, lembra.
— Foi assim pra mim também. — Mary assentiu.
— Sim. — Kuzaku levantou a mão levemente. — Eu também.
— Pra mim — O Sr. Unjo pressionou a testa. — Foi um homem, acho. …”Me chame de Saa”, ele nos disse. Quem é esse tal de Bri-chan?
— Vamos ver — respondeu Haruhiro. — Ele é o chefe do escritório Lua vermelha, do Esquadrão de Soldados Voluntários do Exército da Fronteira de Altana. O nome dele é Britney.
— Britney. — Os olhos do Sr. Unjo se arregalaram. — …Era um homem que agia como uma mulher? Com olhos azul-claros.
— …Você o conhece?
— Eu o conheço. O nome verdadeiro dele é Shibutori.
— Shibutori?! — exclamou Ranta. — O nome do Bri-chan é Shibutori?!
— Shibutori era de uma geração mais jovem — disse o Sr. Unjo. — Comparado a mim. Ele é o chefe do Escritório do Esquadrão de Soldados Voluntários agora?
— Hm, Unjo-san — Haruhiro perguntou hesitante. — Quanto tempo faz que você chegou a Darunggar, mesmo?
— Cinco mil, seiscentas e setenta e seis vezes — disse o Sr. Unjo, com um olhar distante. — Desde que comecei a contar, isto é. Esse é o número de vezes que a noite escura se dissipou e a pálida manhã chegou.
— …Cinco mil seiscentas… — Haruhiro murmurou.
O comprimento de um dia em Darunggar era igual a um dia em Grimgar? Ou seria diferente? Isso não estava claro, mas, se fossem o mesmo, o Sr. Unjo havia passado quinze anos e duzentos e um dias completos ali em Darunggar.
— Antes de agora, você viu outros, hã… humanos como nós? — Haruhiro arriscou perguntar.
— Nenhum. Esta é a primeira vez. Vocês são os primeiros.
— Sério…? — Até Ranta pareceu abalado com isso. — Isso é… Isso é… Sério, isso deve ter sido bem difícil, né?
— Eu me acostumei. — Sr. Unjo abaixou os olhos para a mesa. — …Eu estava acostumado. Eu não podia voltar de qualquer forma. Já tinha desistido há muito tempo. A vida aqui não é tão ruim. O lar de um homem é o seu castelo. As coisas que parecem estranhas se tornam normais. Você aprende o idioma, também. Tenho conhecidos aqui. O idioma de vocês é quase estrangeiro para mim. Esqueci metade dele. Conforme falamos, vou me lembrando. Assim. Mas, de qualquer forma, eu não posso voltar. Vocês devem se preparar para isso também. Aquela colina. A torre proibida. Nada disso importa. A porta secreta. Mesmo que ela exista, vocês não podem encontrá-la. Não podem provar que ela existe. Vivam aqui. Essa é a única opção. Até morrerem, vivam. Não importa onde estejam, é a mesma coisa. Isso é tudo o que existe para nós.
— Não somos só nós. — Shihoru engoliu as palavras, quase sufocando. — Lala e Nono… Um par que era muito mais experiente e habilidoso que nós também veio para Darunggar. Além disso, não viemos diretamente de Grimgar.
— De onde? — O Sr. Unjo bateu o dedo na mesa. — De onde vocês entraram em Darunggar?
Seria difícil para Haruhiro dizer que se lembrava claramente. A distância e a direção que tinham percorrido estavam meio turvas. Mesmo assim, Haruhiro explicou o máximo que podia, mas sem complicar desnecessariamente, a sequência de eventos pela qual haviam viajado do Reino do Crepúsculo até Darunggar, e depois como chegaram à Vila do Poço.
— Subindo o rio… — O Sr. Unjo riu, como se estivesse espantado. — Vocês têm muita sorte. É um milagre que estejam bem.
Segundo ele, a floresta ao norte da Vila do Poço era habitada pelos yegyorns—que, de acordo com o Sr. Unjo, significava “mariposas da névoa”—uma espécie de mariposa venenosa. Seu veneno era incrivelmente potente e levava apenas um instante para fazer a maioria das criaturas vivas desmaiar de agonia. No entanto, uma criatura parecida com uma doninha, chamada getaguna, era a única exceção. Esses seres tinham resistência ao veneno dos yegyorns, e os yegyorns nem sequer os atacavam.
Os yegyorns atacavam suas presas em enxames e as deixavam inconscientes, momento em que os getagunas corriam para devorar as entranhas. Os yegyorns bebiam o sangue das presas e depois colocavam seus ovos na carne. Com o tempo, os ovos eclodiam. A carne apodrecida fornecia sustento para as larvas, até que finalmente emergiam como mariposas e voavam.
Os yegyorns eram pequenos, do tamanho da ponta do dedo mindinho. Era praticamente impossível evitá-los nas florestas escuras de Darunggar, e, quando você os notava, já teria sido picado.
Na verdade, segundo o Sr. Unjo, a dose de veneno de um deles não era tão perigosa, mas onde havia um, podiam existir centenas mais por perto, então você seria picado muitas vezes em rápida sucessão.
Havia yegyorns no rio ao norte também. Além disso, ao longo do rio, existiam os tobachi—que aparentemente significavam “nojentos” ou “difíceis de lidar”—um grupo de criaturas especializadas em ataques sorrateiros, que se escondiam por toda parte, então era necessário ter cuidado. Havia muitos tipos de tobachi, e o termo era mais um nome coletivo para as criaturas ferozes e carnívoras que viviam ao longo do rio.
Naturalmente, os tobachi também eram frequentemente vítimas dos yegyorns e getagunas.
Além disso, havia criaturas de rosto simiesco chamadas gaugai—provavelmente o que a party chamava de inuzarus—que estavam espalhadas por uma grande área. Eram onívoras, mas sua refeição favorita era o getaguna.
A floresta de mariposas, Adunyeg, ao norte da Vila dos Poço, era incrivelmente perigosa, e pessoas com bom senso não entrariam lá.
Pelo que o Sr. Unjo contou, se eles planejassem cruzar Adunyeg para voltar ao Reino do Crepúsculo, era melhor se prepararem para morrer tentando. Se levasse três dias, dois dias ou apenas um dia, o Sr. Unjo não conseguia imaginar uma viagem pelo Adunyeg sem encontrar yegyorns. E se os encontrassem, seria o fim. Às vezes, um ou dois yegyorns apareciam na Vila do Poço, e, quando isso acontecia, sempre havia pânico, ele disse.
— B-Bom, você não está feliz que a gente não foi descobrir por conta própria? — Ranta engoliu seco. — Não que voltar pro Reino do Crepúsculo fosse fazer algum bem pra gente. Aquele lugar era perigosíssimo do seu jeito. Mesmo assim, aposto que Lala e Nono não estão se saindo tão bem, provavelmente. Digo, não consigo imaginar que tiveram a mesma sorte que eu. Devem estar mortos. Eles nos usaram o máximo que puderam e depois nos jogaram fora, então tenho que dizer que mereceram…
— De qualquer forma, eles não vieram pra esta vila, certo? — Kuzaku perguntou.
— Provavelmente não. Mesmo assim, existem outras vilas. Ou cidades, melhor dizendo, do que vilas.
Naturalmente, fazia sentido que houvesse. Seria estranho e antinatural se essa fosse a única vila restante após o confronto entre Lumiaris e Skullhell.
Mas Haruhiro ficou chocado.
— O quê…? — Haruhiro ficou sem palavras. Ele trocou olhares com cada um de seus companheiros.
— Mrr. — Yume pressionou as mãos contra as bochechas. — Então existem cidades…
— O-Onde elas estão?! — Ranta se corrigiu. — O-Onde, diga-me, poderíamos encontrá-las, bom senhor?!
— …Diga-me? — A voz de Shihoru transbordava de desprezo.
— Não me importo de contar para vocês. — O Sr. Unjo colocou seu chapéu trançado de volta. — O motivo pelo qual não podemos voltar para Grimgar. Enquanto explico, posso levá-los para a cidade de Herbesit também. Mas isso só se vocês quiserem.