Capítulo 3 – O que é bravura? (Parte 2)

Como alguém pode ser tão desagradável?

Essa tinha sido sua primeira impressão dele. E o mais impressionante sobre Ranta era que ele nunca mudava.

Claro, havia momentos em que Ranta dizia algo que era bom—para os padrões de Ranta—ou se comportava de forma fofa ou até legal—de novo, para os padrões dele. Às vezes, ele até era confiável. Mas isso era raro, e nunca durava mais que alguns instantes. Ele não conseguia sustentar por muito tempo.

Ainda assim, ele era um companheiro. Mesmo sendo um que ela odiava. Ranta havia ensinado a ela, repetidas vezes, o que era odiar alguém.

Ela o detestava. Mas, apesar de todas as reclamações, eles estavam juntos nessa party desde o início. Ele era um companheiro valioso.

Sem dúvida, ela o odiava. Mas ele era um amigo.

Não, não era isso. Em vez de amigo, havia uma palavra mais apropriada.

Família.

Sim. Para Yume, a party era como sua família. E Ranta também fazia parte dela.

— Yume… Shihoru, a Yume, ela…

— Hm-hm… — murmurou Shihoru. — O quê?

— A gente era uma família. Yume, e todo mundo… A party inteira era como uma família pra Yume.

Yume abriu os olhos. Limpou as lágrimas com uma das mãos. Mas, por mais que limpasse, as lágrimas, assim como a chuva, insistiam em cair. Mesmo assim, ela continuou limpando. Afinal, não podia manter os olhos fechados para sempre.

— No começo, tinha o Haru-kun, a Shihoru, o Moguzo, e tinha o Manato, e o Ranta, né. E tinha a Yume também. Aí a gente perdeu o Manato, e a Mary entrou pra família. Depois, o Moguzo acabou daquele jeito, e o Kuzakkun entrou… Pra Yume, todo mundo era parte da família. Antes de vir pra Grimgar, provavelmente, a Yume devia ter uma mãe e um pai. Se não tivesse, a Yume nem teria nascido, né? Mas a Yume, ela não lembra deles, sabe? É o mesmo pra você também, né, Shihoru? É o mesmo pra todos nós. Por isso que somos todos família. Amor, ódio, temos todo tipo de sentimento uns pelos outros, mas família é família. Certo?

— …Sim, eu acho que sim — concordou Shihoru. — Uma família. É isso que somos.

— Mas a Yume tá pensando que, mesmo numa família, tem momentos em que as pessoas seguem caminhos diferentes. A Yume talvez nunca mais veja o pai e a mãe dela. Mas, como não lembra deles, não sente tanta tristeza por isso. Só um pouquinho de solidão… Mas ainda assim. Ainda assim…

— Yume… — Shihoru abraçou Yume com força, encostando suas cabeças uma na outra. — Eu não sei o que dizer, mas eu…

— Coisas assim… — Yume respirou fundo, deliberadamente. — Não dá pra prever quando vão acontecer… Nem o Ranta podia prever. Pensar que talvez a gente nunca mais se encontre… É, a Yume não quer isso.

— Yume… — Shihoru esfregava as costas de Yume com firmeza. — Ainda não sabemos o que aconteceu… ou como tudo terminou. Não exatamente. Certo?

— …É.

— Então, quando só temos uma ideia vaga dos fatos… é melhor não deixar que isso influencie muito o que pensamos ou sentimos.

— Antes de mais nada… Bom, a gente precisa encontrar o Haru-kun, né? — perguntou Yume.

— Isso mesmo. Vamos fazer uma coisa de cada vez.

— Uma coisa de cada vez, hã?! — Yume assentiu, pressionando o dedo indicador nos lábios.

Alguém estava vindo. Não, não alguém—era… uma fera.

O lobo negro gigante. Havia um goblin montado em suas costas. Yume lembrou que seu nome era Onsa. O domador de feras goblin.

E não era só o grande lobo negro que ele montava—vários outros lobos negros o seguiam.

Ao ver aqueles lobos negros, ela não pôde deixar de pensar no Deus Negro Rigel. Para os caçadores que tinham o Deus Branco Elhit como protetor, os lobos negros eram feras sinistras que deveriam odiar. O Deus Branco Elhit e o Deus Negro Rigel eram, na verdade, irmãos, mas Rigel havia devorado sua mãe, Carmia, logo após nascer, e isso fez com que os irmãos se separassem.

Os parentes de Elhit, os lobos brancos, eram criaturas orgulhosas, formando grupos que consistiam apenas de um casal e seus filhotes. Eles sempre caçavam presas maiores que eles. Mas os parentes de Rigel, os lobos negros, formavam grandes matilhas para perseguir e matar suas presas. Eles atacavam humanos e orcs, comendo as crianças primeiro, e era por isso que eram tão odiados e temidos.

Onsa havia domado aqueles lobos negros.

Era incrível—mas Yume sabia que não era hora de se impressionar. Não eram apenas lobos negros; lobos, em geral, não se submetiam a membros de outra espécie. Eles nunca se aproximavam verdadeiramente de outros seres.

Por isso os caçadores haviam cruzado lobos com cães, criando uma nova raça: os cães-lobos. Os cães-lobos possuíam a lealdade de um cão, combinada à resistência e ferocidade de um lobo.

Em geral, lobos eram mais fortes que cães. E, mesmo entre os lobos, os lobos negros eram anormalmente teimosos, astutos e dotados de sentidos incrivelmente apurados.

Onsa ia encontrá-las. Essa era a suposição mais segura. Mesmo que estivesse chovendo, os lobos negros não deixariam de farejar Yume e Shihoru. Não demoraria até que um dos lobos negros as encontrasse escondidas nos arbustos. Então, ele uivaria e avançaria. Os outros lobos negros o seguiriam. Se isso acontecesse, não haveria esperança. Precisavam agir primeiro. Essa era a única opção.

Yume preparou seu arco e encaixou uma flecha. Shihoru talvez estivesse surpresa, mas permaneceu onde estava, sem dizer uma palavra. Ela estava confiando em Yume.

Por aqui. Mas não muito longe, pensou Yume.

Lobos negros eram espertos, mas não da mesma forma que os humanos. Se notassem uma flecha, olhariam na direção de onde ela veio.

Yume disparou sua flecha.

Como esperava, vários lobos negros soltaram uivos curtos e correram na direção de onde a flecha havia caído. Mesmo sem que Yume dissesse algo, Shihoru já estava se preparando. Juntas, elas pularam para fora dos arbustos e começaram a correr pela encosta.

— Hyahhh! — Onsa soltou um grito agudo.

Aquilo foi rápido. Já haviam sido notadas.

A encosta não era tão íngreme, mas estava cheia de árvores, impedindo que subissem em linha reta. Shihoru, que estava à frente de Yume, parecia exausta.

Olhando para trás, vários lobos negros já estavam a menos de dez metros de distância. Assim, seriam pegas em pouco tempo.

Não eram apenas lobos: muitos carnívoros não mostravam piedade com presas em fuga. Mas, se a presa se virasse para eles e mostrasse que estava preparada para lutar, os predadores se tornavam cautelosos. Predadores eram fundamentalmente prudentes.

Se Yume estivesse sozinha, talvez não fosse impossível escapar. Mas Shihoru estava ali. Deixá-la para os lobos estava fora de questão.

Ela tinha que fazer isso.

Era difícil imaginar que venceria, mas, bem, ao aceitar que não havia outra escolha, as coisas ficavam mais fáceis de suportar.

— Desculpa, Shihoru! Correr não vai adiantar! — gritou.

— …Entendido! — Shihoru se virou, gritando: — Dark!

E abriu a porta.

Yume não era uma maga, então não conseguia ver aquela porta com os próprios olhos. Mas ela sabia que estava lá. A porta tinha, de fato, se aberto. Fios negros surgiram de outro mundo, formando uma espiral que tomou uma forma completamente humana.

Dark, o elemental.

Ele era tão fofinho. Mas o Dark de Shihoru era mais do que apenas isso.

Yume parou e disparou uma flecha. Em seguida, outra. E mais outra. Ela disparava uma após a outra.

Rapid Fire.

Não precisava acertar os lobos negros. Podia acertar as árvores. O importante era dispersar os disparos.

Quando perceberam que Yume e Shihoru não eram presas tímidas, os lobos negros ficaram cautelosos. E quando as flechas começaram a vir uma após a outra, hesitaram ainda mais.

— Perturbe-os! — ordenou Shihoru.

Dark voou em direção aos lobos negros.

Vwoooooooooluuuuuuuuuuuu!

Que barulho era aquele? Parecia o som característico do Shadow Beat, mas um pouco diferente.

Dark emitia um som estranho enquanto voava entre os lobos negros. Era eficaz. Os lobos negros entraram em total pânico, soltando ganidos lastimosos enquanto fugiam em desordem.

— Dark-kun é incrível! — exclamou Yume.

— Yume, o grandão tá vindo!

— Claro! — Yume respirou fundo, deixando o ar se espalhar por todo o corpo, e então ajustou o foco dos olhos, de perto para longe.

Ela ouviu a voz de seu mestre.

Yume, ouça. Você vai acertar. Acerte… Você vai acertar.

Stop Eye.

Yume podia ver. O lobo negro gigante que Onsa montava, quase como se estivesse bem na frente dela.

O olho direito do lobo negro gigante estava esmagado. Não fazia muito tempo desde que a flecha de Kuro o havia atingido. Ele devia ter outros ferimentos também, mas parecia estar muito bem.

Se tivesse que escolher um alvo; Onsa.

Yume disparou sua flecha.

Era um bom disparo.

Quando um tiro ia acertar, Yume sabia no momento em que soltava a corda do arco.

A flecha de Yume cravou no peito de Onsa. Mas ficou um pouco à direita. Onsa foi empurrado para trás, mas curvou o torso para a frente e se agarrou ao lobo negro gigante.

Nesse ponto, Yume já estava disparando sua segunda flecha. Essa flecha passou de raspão na cabeça do lobo negro gigante e não acertou.

— Yume! — Shihoru apontou seu cajado para frente. — Vou tentar algo!

Tentar o quê?

A resposta ficou clara imediatamente.

— Dark, espalhe-se!

Aos olhos de Yume, parecia que Dark, que estava intimidando os lobos negros com seus sons e movimentos estranhos, de repente explodiu. Ele se espalhou, dispersando-se por todo lado. Como Shihoru tinha ordenado, Dark se espalhou.

A chuva e a névoa branca foram engolidas por uma névoa negra. Além disso, essa névoa negra era muito mais densa que a branca. Os lobos negros, que já estavam confusos, começaram a uivar como se tivessem enlouquecido. Eles estavam, sem dúvida, aterrorizados. À medida que a névoa negra se espalhava, o mesmo acontecia com o terror, que só aumentava.

Essa era uma das fraquezas de um bando. Os membros individuais não podiam evitar serem influenciados pelos outros.

O problema era o lobo negro gigante. O Dark expandido tinha um efeito dramático que ia muito além de um simples véu de fumaça. No entanto, ele não parecia causar ferimentos ou dor. Sendo assim, Yume não achava que funcionaria contra o lobo negro gigante.

Shihoru só podia enviar um Dark de cada vez. Isso significava que ela não podia fazer nada enquanto o Dark difuso estava interferindo com os lobos negros.

Yume tinha que fazer algo. E faria.

Descartando o arco, Yume puxou sua lâmina curva, Wan-chan. Ela não estava com medo.

Muito tempo atrás, Manato tinha dito: Acho que Yume pode ser a mais corajosa de todos nós. Ele também disse: Fico feliz que Yume possa estar lá para ajudar, caso algo aconteça.

Ela nunca havia se considerado corajosa antes, então ficou muito orgulhosa com aquilo. Orgulhosa de poder ajudar seus companheiros. Pelo menos, era assim que Manato via.

Mas ela não conseguiu. Não conseguiu salvar Manato ou Moguzo. Ainda podia contar nos dedos as vezes que realmente tinha ajudado um companheiro. Mas o que Manato disse naquela época, que ela era corajosa, ainda estava gravado em seu coração.

Era estranho, mas mesmo quando as coisas eram tão assustadoras que ela não sabia o que fazer, ela conseguia pensar: Não estou com medo. Porque ela era corajosa. Então, mesmo que fosse assustador, ela não tinha medo.

 

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