Capítulo 5

Dentro de mim

Tradutor: João Mhx

No calendário do Reino de Arabakia, seria o ano de 661 — 17 de setembro.

Nunca vou esquecer aquele dia.  Embora, para alguém como eu, cuja vida nunca é certa, e nem sequer sei se o tempo até o meu desaparecimento final pode ser chamado de vida ou de uma existência completa…  Enfim, desde que eu tenha a capacidade de pensar, me lembrar e sentir algo, jamais esquecerei aquele dia.

A resposta da Vila Akatsuki para o No-Life King foi enviada de volta com Kuzaku. Não acredito que Akatsuki e os outros não estivessem preocupados com o que o Rei diria, mas ninguém quis tocar muito no assunto. Provavelmente porque havia preocupações maiores.

Por causa disso, os homens não entraram na cabana construída por Akatsuki e os outros com esforço conjunto. Houve apenas uma exceção: Ranta.

As mulheres, especialmente as membros das Wild Angels, criticaram o projeto, mas Ranta não se importou e, acima de tudo, Yume não o rejeitou. Ou melhor, ouvi diretamente de Ranta que Yume pediu a ele que ficasse ao seu lado. Ouvir isso do Ranta me deixou terrivelmente ansioso.

Há usuários de magia de luz, então acho que não haverá problema, mesmo que algo aconteça. Mas dar à luz não é pouca coisa.

Tenho certeza de que a única pessoa entre os Akatsuki e os outros que já assistiu a um parto é a companheira de Soma, a elfa Lilia. Parece que a população de elfos está diminuindo e raramente nascem crianças. Quando se trata de parto, é um evento importante para toda a raça. Lilia, é claro, participou desse evento. Embora fosse mais como participar de um ritual, ela não estava familiarizada com os procedimentos, apesar de saber que havia vários perigos tanto para a mãe quanto para a criança.

Lilia era a estrategista, e a torre de comando era a esposa de Akira, Miho. Foi a primeira experiência para todos, inclusive para Lilia, que era mais uma espectadora do que envolvida no parto. Apesar de acharem que estavam totalmente preparadas, ninguém podia dizer se seus preparativos eram realmente suficientes.

À medida que o dia se aproximava, fiquei mais pessimista do que assustado.

Imagino todos os tipos de cenários ruins justamente porque não sei quais casos específicos constituem um parto fracassado. Por mais que eu tente pensar positivamente, o pior cenário de não poder ver Yume ou a criança parece inevitável. Quanto mais eu tento me convencer de que isso não vai acontecer, mais parece que vai. Na verdade, não é mais irracional pensar que isso não vai acontecer? É provável que aconteça.

É claro que eu não disse essas coisas em voz alta e continuei trabalhando como sempre.

Yume, com sua barriga que não parecia apenas grande, mas gigantesca, perambulava pela Vila Akatsuki até o último momento, por isso nos cruzávamos com frequência. Eu não podia simplesmente ignorá-la.

Sempre que eu perguntava sobre sua condição ou murmurava palavras de encorajamento, nas quais nem eu mesmo acreditava, ela sempre sorria. Eu achava que estava escondendo desesperadamente meu medo além da ansiedade, mas Ranta percebeu. Acho que faltando dois ou três dias para ela dar à luz.

— Ei, por que esse medo todo, cara? É a Yume que está dando à luz, sabia?

Não há nada que possamos fazer, então, pelo menos, aja como se você estivesse bem. E também, os pais somos nós, não você, ok? — Ranta deu um forte tapa nas minhas costas.

Deve ter sido secretamente assustador para Yume pedir para o Ranta ficar ao lado dela, bem mais do que parecia de fora. De certa forma, Ranta era o mais calmo, o que foi bem surpreendente e parte da razão pela qual acho que nunca vou superá-lo no final. Se eu estivesse na posição dele, jamais conseguiria me comportar assim.

— Aah. Algo pode estar errado, você não acha?

Era final da tarde de 17 de setembro quando Yume disse isso e entrou na cabana. Fiquei observando a cabana à distância por um tempo e depois voltei a trabalhar na construção de outra cabana. Eu deveria estar fazendo algum tipo de trabalho manual, mas definitivamente não estava no estado de espírito certo. Tentei evitar olhar para a área ao redor da cabana onde Yume estava. Mas me lembro vagamente do Ranta saindo da cabana ou voltando para dentro, ou de Anna e Mimori saindo e dizendo o que precisavam, ou de Tada e Kikkawa correndo por toda parte, então acho que eu ficava checando como eles estavam com frequência.

Por algum motivo, lembro vividamente de ter visto Soma e Akira-san conversando.

Além disso, o Renji me abordou. “Como vai?” Parecia uma pergunta estranhamente desajeitada para Renji, provavelmente sem muito significado por trás.

— Sim… — Respondi com um aceno casual e o Renji murmurou: “Entendo”, antes de ir embora para algum lugar. Lembro-me de sua figura se afastando enquanto coçava a cabeça.

Os aplausos irromperam dentro da cabine depois que escureceu.

Naquele momento, Eu estava sentado no chão, fazendo alguma coisa. Não me lembro bem, mas provavelmente pensei que era tarde demais ou que não havia esperança, ou que já estava decidido, ou achei que era óbvio, ou entendi, ou estava pensando algo nesse sentido – pensamentos inúteis, reorganizando-os futilmente em minha mente.

Assim que ouvi que era uma voz alegre, entendi, então fechei os olhos e respirei fundo.

Não fazia sentido, mas eu sentia como se estivesse sendo punido. Considerando o que eu tinha feito, seria estranho não receber retaliação. Então, coisas boas não deveriam acontecer. Mas seria injusto para Yume, Ranta ou seu filho enfrentar punição divina. Não, precisamente porque seria injusto, eu temia que o pior resultado acontecesse, o que seria o castigo mais severo para mim. É claro, eu não queria que acontecesse dessa forma. No entanto, por algum motivo, as coisas só progrediam na direção que eu não queria. Se eu nutria alguma esperança, ela não se tornaria realidade.  Aconteceria o oposto. Eu não deveria desejar nada. Até mesmo desejar a felicidade de pessoas próximas a mim poderia ser algo que alguém como eu deveria evitar.

Depois de um tempo, Ranta saiu da cabine.

Pensei que ele fosse gritar alguma coisa, mas ele permaneceu em silêncio. Ranta ergueu os punhos em silêncio. Não foi ele quem gritou a plenos pulmões, mas sim os membros da Akatsuki que estavam do lado de fora da cabana.

Naquele momento, eu que estava perto da minha área de dormir. Não conseguia reunir nenhuma força em meu corpo, incapaz de me mover.

Lembro-me claramente de pensar: “Se hoje fosse o último dia…” Se tudo acabasse hoje, tudo bem. Seria melhor. Que termine aqui. Eu até desejei fortemente morrer aqui e agora. Porque não há mais nada. Não poderia piorar mais. Era doloroso. Esses dias eram dolorosos demais para mim, que era fraco. E hoje, esse dia chegou. Já chega. Que isso acabe aqui. Por favor, eu lhe imploro.

Os membros da Akatsuki estavam cercando o Ranta, comemorando. Eu também queria comemorar o nascimento do filho do Ranta e Yume, mas será que eu tinha o direito de fazer isso? Se eu comemorasse, isso não se transformaria em uma maldição?

É constrangedor admitir isso, mas é passado, então vou confessar.

Naquele momento, eu estava pensando em me levantar e deixar a Vila Akatsuki assim que recuperasse força suficiente em meu corpo.

Eu não tinha para onde ir. Nenhum lugar. Não poderia haver nenhum lugar para onde ir. Eu não pertencia a lugar nenhum. Seria melhor para mim não estar com meus companheiros.

Eu estava pensando em ir sem rumo para o oeste ou para o norte e morrer solitário, ou, em outras palavras, cometer suicídio. Eu não queria apenas que isso acabasse; eu queria acabar com isso corretamente.

Considerando a Yume, que tinha acabado de dar à luz, eu sabia que não deveria fazer uma coisa dessas. Eu sabia disso. Mas eu só queria que tudo acabasse. Eu não aguentava mais. Ainda tinha forças para acabar comigo mesmo agora.

— Haruhiro!

Ranta, que estava cercado pelos membros da Akatsuki, veio especificamente até mim.

Até então, eu estava olhando para o chão, mas levantei a cabeça e provavelmente disse algo como “Ah”, “Sim”, “Isso é bom” ou “Como está Yume?”.  Só que não me lembro exatamente.

— O que tá acontecendo com você? Você tá mesmo um cara sombrio, sério. E de todas as vezes, logo em um momento como esse.

— Desculpe. Acho que… eu apenas baixei a guarda.

— Heh. Vocês dois estavam tão nervosos, você e a Yume.

— Talvez.

— Você provavelmente estava pensando que algo ruim iria acontecer, né? Típico de você.

— Sim… É apenas a minha natureza.

— Você é um cara muito confuso. Realmente é. Você é o epítome da porcaria, sério.

— …Não diga muito isso. Estou ciente.

— Ah, é mesmo?

Ranta se sentou ao meu lado. Eu me perguntava por que ele não ia embora. Os membros da Akatsuki queriam celebrar com você e a Yume. E vocês dois merecem ser celebrados. Eu não deveria ser incomodado com isso.

— É um garoto. Bem, eu meio que tinha um pressentimento. A Yume também disse isso. De qualquer forma, por que você não perguntou isso primeiro?

— …Certo. Isso é verdade. É um menino. Ele certamente se tornará uma criança forte. Porque ele é seu e da Yume.

— É isso mesmo. Ele certamente se tornará mais forte do que qualquer outra pessoa.

— Quanto ao nome… ainda não foi decidido, né? Qual será?

— Não, já está decidido. Yume e eu pensamos nisso juntos. Para um nome de menino e também para o caso de ser uma menina. Se fosse uma menina, escolheríamos Yori. Não necessariamente por seu significado, mas mais pela forma como soa. Ranta, Yume e Ruon. Parece certo, sabe? Como se tudo se conectasse de alguma forma.

— Conectar…

— Conheça o Ruon.

Ranta abraçou meu ombro.

Não pude deixar de me surpreender com o fato do Ranta fazer algo assim comigo.

Ranta tinha um lado amigável, e muitas vezes ele abraçava e unia os braços com outras pessoas além de mim. Mas, fundamentalmente, ele não fazia isso comigo.

Ranta e eu não tínhamos esse tipo de relacionamento.

Pelo que me lembro, essa deve ter sido a primeira vez.

E uma coisa é certa: foi a última.

— Vamos apresentá-lo ao Ruon — disse Ranta, ainda abraçando meu ombro.

— Ouça, Haruhiro. Ele é meu filho e da Yume. Mas você sabe, ele não é apenas nosso filho.

Não se trata de sangue. De alguma forma, Ruon nasceu aqui, agora. De certa forma… de certa forma, sabe? Ruon também é seu filho. Entendeu? Ou melhor, entenda. Não me faça dizer isso. Não sou só eu e a Yume. O Ruon é protegido por todos nós, incluindo você. É assim que estamos ligados. Eu não gostaria de sobrecarregar meu próprio filho com isso, mas não há outra maneira. Então, conheça o Ruon. Não fuja, Haruhiro. Fique aqui. Hoje, amanhã, depois de amanhã, fique conosco aqui. Precisamos de você, e você precisa de nós.

 

Assenti com a cabeça. Mas demorei um pouco para tomar minha decisão e, no final, só encontrei o Ruon na manhã seguinte. Pouco depois do amanhecer, quando Ranta saiu da cabana onde Yume e Ruon estavam, pedi a ele que me apresentasse a eles.

— Claro, entre, entre — disse Ranta, mas, por algum motivo, ele não tentou entrar comigo.

Entrei na cabine sozinho. Yume estava deitada em uma cama de palha, e o bebê parecia estar dormindo em seu braço.

— Ah, Haru-kun — Yume sorriu e chamou meu nome suavemente. Havia um fogão na cabana, que emitia uma luz fraca. Yume parecia bastante cansada e sonolenta, mas não parecia esgotada.

Ajoelhei-me ao lado da cama.

O bebê era pequeno.

Incrivelmente pequeno.

Mesmo sendo tão pequeno, tinha características humanas distintas, o que, honestamente, me deixou desconfortável.

Era uma criatura tão frágil que parecia que poderia se quebrar só de ser levantada e deixada cair. O fato de ser filho da Yume e do Ranta era incrivelmente estranho e um tanto assustador.

Essa criatura não tem como sobreviver, certo? Pensei do fundo do meu coração. Parecia cruel demais abandonar um bebê tão indefeso neste mundo impiedoso. Se eu tivesse o direito de decidir, jamais permitiria tal coisa. Eu não permitiria.

— Ele não é fofo? Não é, Ruon? Bem, mas ele está dormindo. Seus olhos ainda não estão totalmente abertos… Oh…

Quando Yume acariciou gentilmente sua cabeça, as pálpebras inchadas do bebê se levantaram ligeiramente, revelando seus olhos pretos.

— Ruon, você está acordado? Parece que sim. Devo amamentá-lo? Haru-kun, Yume, pode amamentar o Ruon?

— Huh, uh, bem, isso é… claro, sim… hum, eu, uh… eu vou me virar

— Entendo. É está tudo bem? Não vai parecer estranho?

— Bem…

Dei as costas para Yume e o bebê. Eu não entendia o que eles estavam fazendo, nem me importava. Eu apenas sentia que não deveria estar ali, mas não podia ir embora.

Como ficar em silêncio era estranho, conversei com Yume. Ou melhor, ela me fez perguntas, e eu tive que responder.

Lembro que tivemos uma conversa relativamente séria, mas calma e tranquila naquele momento.

O assunto girava principalmente em torno de Shihoru, Mary, Setora e Kuzaku. Yume queria que eles conhecessem Ruon. Ela esperava que eles também quisessem conhecê-lo. Tenho certeza de que todos eles sabiam, especialmente Setora e Mary, já que Kuzaku as havia informado sobre a criança que nasceria entre Ranta e Yume. Yume acreditava que todos queriam conhecê-lo, sem dúvida.

Para ser sincero, eu estava cético, não entendi muito bem, mas se for esse o caso, tudo bem.

Conhecer Ruon pode não mudar nada. Provavelmente, a situação não mudará significativamente. Mas acho que devem conhecê-lo sim.

Seja qual for a decisão que tomemos a partir de agora, é melhor fazê-lo depois.

Por exemplo, se desencadearmos os fogos do inferno sobre o mundo, devemos estar cientes do que aconteceria com Ruon como resultado.

— Haru-kun, você quer pegar o Ruon no colo?

Yume sugeriu que eu pegasse Ruon no colo, mas eu recusei. Simplesmente senti medo, afinal não sabia como segurar um recém-nascido. Mais do que isso, senti que seria imperdoável tocar aquela criatura pequena e inocente com minhas mãos sujas.

Agora me arrependo.

Se eu tivesse tido um mínimo de coragem, mesmo que não conseguisse segurar Ruon firmemente, pelo menos teria fingido. Se tivesse feito isso, com certeza teria segurado Ruon muitas outras vezes depois.

 

Nunca toquei em Ruon, e na época acreditei que era o certo, mas talvez estivesse errado. Afinal, se estivesse certo, as coisas não teriam terminado assim.

Eu deveria ter segurado Ruon.

Porque eu queria segurá-lo.

Sentir o peso, ou talvez a leveza, o calor do filho do Ranta e Yume, eu queria sentir isso. Talvez tivesse uma intuição de que me privar daquilo era uma punição justa.

Se eu tivesse tocado gentilmente o Ruon, provavelmente o teria achado adorável. Ruon é precioso e deve ser estimado, mas não amado. Se ele fosse amado por mim, Ruon seria infeliz. Eu acreditava sinceramente nisso.

Vocês, idiotas, podem rir se quiserem.

É uma avaliação justa.

Ninguém merece ser tão ridicularizado quanto eu.

Nem um mês depois do nascimento de Ruon, Kuzaku apareceu. O No-Life King queria se encontrar e conversar diretamente.

O problema era que, sem tomar medidas especiais, o No-Life King convocaria o sekaishu, o que tornaria difícil se mover livremente na superfície. Então, representantes de ambos os lados foram escolhidos, e eles decidiram se encontrar dentro do Buraco das Maravilhas para evitar o sekaishu.

Do lado do No-Life King estavam o próprio rei, Kuzaku, Setora e um príncipe chamado Architekra. Do lado da vila, cerca de dez pessoas se moveram para perto do local do encontro. Especificamente, Soma e Akira-san foram escolhidos porque conheciam bem o outro lado, e Ranta e eu também fomos escolhidos.

Os preparativos para a reunião correram relativamente bem, mas houve muita oposição sobre se Kuzaku deveria conhecer Ruon.

As Wild Angels lideradas por Kajiko estavam na vanguarda da oposição, argumentando veementemente que Kuzaku poderia tentar sequestrar Ruon e usá-lo como refém. Os Tokkis e, por algum motivo, até mesmo os membros do Typhoon Rocks concordaram com elas.

— Se vocês duvidam tanto de mim, podem cortar minha cabeça!

Kuzaku não se ajoelhou diante dos aldeões, mas sentou-se no chão em seiza, implorando.

— Em troca, apenas deixe minha cabeça conhecer o bebê do Ranta-kun e Yume-san. Eu não vou necessariamente morrer. Mesmo que eu me torne apenas uma cabeça. Uma cabeça viva. É isso que uma cabeça viva de verdade é, certo? Não, não estou brincando. Estou falando sério.

— Só uma cabeça? Isso é incrivelmente assustador!

Ranta deu um tapa na nuca de Kuzaku.

— Ai! Eu posso não morrer, mas ainda posso sentir dor, sabe!?

— Eu não me importo, e além disso, se não doesse, não valeria a pena te bater!

— Bem, você sabe, é meio que, hum, satisfatório para mim de certa forma.

— Você encontra alegria nisso? Você é um esquisito!

— Não, não é assim, é mais como, oh, você ainda está me dando um trabalho difícil, sabe?

— Isso é simplesmente assustador!

No final, foi por insistência da Yume, e não por decisão de ninguém, que Kuzaku teve permissão para conhecer Ruon.

Só para ter certeza, eu, Ranta, junto com a Kajiko das Wild angels, e também Renji, Mimori e Anna-san estávamos presentes. Dentro da cabana, Yume estava sentada na cama, segurando Ruon. Kuzaku manteve distância da cama e sentou-se no chão. Não era uma atitude excessivamente solene, mas também não era casual. Vendo-o assim, Yume riu.

— Faz tempo, Kuzaku. Olha só? Você parece estar limpinho.

— Se você vai dizer isso, pelo menos diga todo arrumadinho, certo?

Quando Ranta a corrigiu, Yume respondeu com uma risada leve: “Ah, entendi.”

— Bem…

Kuzaku ficou em silêncio, olhando alternadamente para Yume e Ruon. De repente, ele abaixou a cabeça e seus ombros começaram a tremer.

— Uau… Acho que estou ficando emocionado. Pode ser a primeira vez que me sinto assim desde que virei isso. O filho do Ranta-kun e Yume-san, hein? Isso é incrível. Sério, é inacreditável. Ranta-kun como pai e Yume-san como mãe. Vocês realmente precisam viver muito. E, seria ótimo se o mundo pudesse estar em paz. Todo mundo se dando bem, sem brigar…

Kuzaku não estava chorando. Parecia que ele queria chorar, mas as lágrimas não vinham.

— Talvez não acredite, mas nosso rei deseja esse tipo de coisa. No entanto, parece muito difícil. Eu me pergunto por quê. Talvez tenha a ver com raças, nações, história ou circunstâncias. Há muitos fatores. É simplesmente impossível deixar tudo de lado e se divertir, não é? Não posso deixar de me perguntar por quê. Por que não podemos simplesmente esquecer o passado?

Não há mais nada a fazer a não ser deixar para lá, tem que esquecer e seguir em frente, caso contrário, nada mudará, não é? É isso que estou dizendo. Vamos parar com isso. Sim.

Começar do zero, de um quadro em branco. Acho que essa é a melhor maneira. Porque essa criança é como uma folha em branco. Todos falam sobre o que aconteceu e como as coisas eram naquela época, talvez com boas intenções, mas estão plantando sementes, colorindo. Mas essa criança é inerentemente em branco. Ela deveria ser capaz de se dar bem com qualquer pessoa. Seria bom ter um mundo assim. É nisso que eu acredito. Eu realmente acredito nisso.

Eu entendi o que Kuzaku estava dizendo.

Entendo em teoria.

Mas é apenas idealismo.

É impossível. Não é realista. Não posso deixar de pensar assim.

Nem mesmo Kuzaku teria dito essas coisas antes de mudar. Ele não poderia tê-las dito. O No-Life King e Kuzaku não entendem nossos sentimentos, afinal de contas.

Sim. Esta é uma questão de sentimentos, emoções.

Mesmo se deixarmos tudo de lado e todos derem as mãos, pelo menos não mataremos uns aos outros.

Isso é algo que todos nós sabemos sem precisar que nos digam.

Mas, mesmo sabendo disso, há coisas que não podemos fazer.

— Kuzaku.

Yume chamou Kuzaku.

— Você poderia segurar o Ruon um pouco?

Kuzaku hesitou.

Ele começou a se levantar, mas voltou a se sentar.

Nós, que estávamos assistindo, talvez estivéssemos um pouco tensos, ou melhor, razoavelmente tensos. Como era a mãe de Ruon que estava perguntando, não podíamos nos opor, mas ninguém estava totalmente convencido. Bem, exceto talvez Ranta, que parecia relativamente calmo.

— Adoraria, mas…

Kuzak levantou e abaixou os quadris algumas vezes, depois disse para si mesmo, como se estivesse se convencendo: “Quero segurá-lo, mas talvez da próxima vez. Quando as coisas se acalmarem… quando houver um certo nível de confiança estabelecido? Talvez seja melhor então. Acho que isso pode ser motivador para mim também, sabe? Do tipo: “Tenho que fazer isso”. Se eu pensar assim, posso me esforçar.”

— Enquanto isso, ele vai crescer grande e forte — brincou Ranta, ao que Kuzaku respondeu alegremente: “Temos que nos apressar, então!”

— Não planejamos demorar muito. Queremos fazer as coisas rapidamente. Se tudo sair conforme o planejado, podemos começar de novo. No momento, ainda acho que estamos em um aperto, mas também é uma oportunidade…

De fato, o lado do Rei tratou do assunto o mais rápido possível.

Kuzaku nunca estava agindo sozinho. Um grande número de imortais estava posicionado no Buraco das Maravilhas e na superfície, e quando Kuzaku tinha algo a relatar, eles transmitiam um por um.

Foi Setora quem aconselhou e realizou a construção dessa rede para o No-Life King. Graças a isso, o Rei podia obter informações sobre eventos e informações trazidas por alguém, não apenas a cem quilômetros de distância, mas até trezentos, tudo no mesmo dia. Portanto, Kuzaku não precisou retornar ao Rei para transmitir as intenções da Akatsuki. Kuzaku foi informado pelos mensageiros mortos-vivos de que os preparativos do lado do No-Life King estavam completos e transmitiu isso ao lado da Aldeia Akatsuki. Partimos da Vila Akatsuki com Kuzaku.

Dentro do Buraco das Maravilhas, há uma área chamada Floresta Subterrânea.

Embora não tenha sido confirmado, parece que essa área fica logo abaixo da Floresta das Sombras, onde os elfos costumavam viver.

Por ser uma floresta subterrânea, ela é densamente arborizada. Entretanto, as plantas não são muito parecidas com as da superfície e não se sabe se pertencem à mesma família.

As árvores da floresta subterrânea têm troncos e galhos pálidos e brilhantes, com folhas transparentes ou crescimentos semelhantes a algodão que brotam dos galhos. Os soldados voluntários se referiam a essas árvores como árvores subterrâneas ou arvores submersas.

Os tamanhos das árvores subterrâneas variam. Algumas têm apenas um ou dois metros de altura, enquanto outras têm mais de dez metros. Não é incomum encontrar árvores subterrâneas com objetos semelhantes a frutas vermelhas, azuis ou amarelas.

A floresta subterrânea cobre uma vasta área, com alturas e profundidades variadas. Há rios e cachoeiras subterrâneas e fluxo de água.

A maior árvore da floresta subterrânea é chamada de Grande Árvore. Ela não é apenas uma árvore, mas parece ser formada por várias árvores subterrâneas entrelaçadas, crescendo a tal ponto que alcança desde o fundo até o teto da floresta, estendendo seus galhos ainda mais. O tronco sozinho deve ter mais de cem metros, talvez até duzentos metros de circunferência.

A reunião seria realizada sob a Grande Árvore.

Ao nos separarmos dos outros companheiros, Soma, Akira-san, Ranta, eu e Kuzaku fomos para lá, onde o Rei, Setora e Architekra já estavam nos esperando.

Setora usava um vestido curto que lembrava um quimono preto, combinado com botas até o joelho.

Ela carregava o que parecia ser uma adaga curta, a única arma visível nela. Ela nem sequer sorriu para mim ou para Ranta, o que era bastante típico dela. Em vez disso, parecia mais interessada em Soma e Akira-san, examinando-os abertamente.

Esse foi meu primeiro encontro com Architekra. Ela foi um dos príncipes criados pelo No-Life King e era conhecida por ser uma praticante de magia. Apesar de sua aparência feminina, fiquei um pouco surpreso com sua estatura pequena, quase infantil. Seus cabelos eram incrivelmente longos, penteados de uma forma que lembrava as asas de um pássaro.

Seus olhos tinham bordas vermelhas e ela usava batom, além de marcas na testa e nas bochechas. Seu traje era semelhante ao de Setora, e ela não estava de pé, mas sentada em um objeto esférico que parecia pairar levemente.

Seria uma relíquia ou um resultado de sua magia?

E ainda havia o No-Life King, Mary.

Em contraste com Setora e Architekra, o Rei usava vestes adornadas com tons de roxo, azul-marinho e vermelho escuro, longas o suficiente para ficarem atrás dele. Seu cabelo parecia meticulosamente penteado, liso como uma flecha. Ele usava uma coroa, não ostensiva, mas modesta, com decorações sutis, mas que exalava uma sensação de sofisticação e valor considerável.

Mary não costumava usar esse tipo de vestimenta. Pelo menos, não a Mary que eu conhecia. Mas eu entendia.

Era a Mary.

Ela estava com as mãos apertadas na frente do abdômen, demonstrando uma tensão considerável nos ombros e nos braços. Havia um leve franzido em sua testa enquanto ela olhava diretamente para mim, concentrando seu olhar somente em mim.

Eu tinha certeza de que era a Mary.

A mulher diante de nós era a Mary.

Nós nos enfrentamos sob a árvore colossal. Éramos três contra cinco. Setora lançou um olhar frio para Kuzaku, que soltou um pequeno “ah” e deu alguns passos à frente, parando exatamente no meio do caminho entre o lado da Akatsuki e o lado do Rei. Ele gesticulou para o Rei com a mão e fez uma leve reverência.

— Talvez seja desnecessário dizer, mas este é o nosso rei… o rei. Bem, você sabe? Não acho que precisemos de formalidades ou algo do gênero, mas… Talvez sim. Provavelmente.

Quando Kuzaku o apresentou, o Rei baixou o olhar e inclinou ligeiramente o queixo.

— Eu sou Architekra.

A Princesa Architectra se apresentou com uma voz aguda que lembrava a de uma jovem.

— Tenho servido a Sua Majestade há algum tempo, mesmo durante sua ausência, preparando-me para seu retorno. Sua Majestade me confiou a função de administradora-chefe.

— Eu auxílio o rei. Eu sou Setora.

Setora declarou de forma concisa, e Kuzaku estufou o peito.

— A propósito, Setora-san ocupa o cargo de Ministra da Fazenda, e eu sou o Ministro da Justiça. Não entendo muito bem o significado, mas parece legal, não é?

— Eu sou o Soma.

— Aqui é o Akira.

— Ranta.

— Eu sou o Haruhiro.

Cada um de nós se apresentou por sua vez.

Como estávamos dentro do Buraco das Maravilhas, Soma usava a armadura de relíquia, Ma’gai Waiohmaru, e carregava uma espada longa curva de um único gume nas costas, com uma espada menor na cintura. A armadura mágica de Soma foi construída com inúmeras placas de metal preto e, embora o cobrisse do pulso aos pés, também incluía saias assimétricas que não atrapalhavam nem um pouco seus movimentos. A luz laranja vazava dos espaços entre as placas de metal, dando-lhe uma aparência mística. Mais do que suas características faciais, os olhos estreitos de Soma deixavam uma forte impressão naqueles que o conheciam. Na época, como um inexperiente, eu não entendia, mas olhando para trás agora, aqueles eram os olhos de alguém que conhecia a tristeza profunda.

Akira usava um sobretudo carmesim sobre sua armadura e carregava um conjunto de espada e escudo.

Seu cabelo amarrado para trás e a barba longa eram cerca de um terço brancos e, apesar de brincar com frequência sobre sua idade, ele ainda se movia com vigor juvenil. Ele era uma pessoa bastante robusta, mas não parecia muito grande, talvez devido às suas características faciais suaves. Entretanto, em comparação com a época em que o conheci, Akira parecia ter perdido um pouco de peso durante esse período. Lembro-me de ele mencionar que não conseguia mais comer tanto. Ele disse que isso era, na verdade, uma coisa boa, já que a comida nem sempre era abundante, e o envelhecimento não era de todo ruim.

Apesar de ser tratado como uma figura lendária entre os soldados voluntários, Akira era cheio de humildade. Sem medo de ser mal interpretado, ele era apenas um cara comum com habilidades e experiência excepcionais. Ele parecia pensar assim também, sendo uma pessoa despretensiosa e acessível.

— Obrigado por ter vindo. Sinto-me honrado.

O No-Life King disse com a voz da Mary antes de olhar para Soma, Akira, Ranta e depois para mim, um por um.

Não, eu me senti diferente.

Até agora, ela era Mary, mas agora está diferente.

— Vocês provavelmente sabem, mas, no passado, formei alianças com orcs, elfos cinzentos, goblins, kobolds e, juntos, destruímos reinos humanos. Mesmo que eu diga que não era minha intenção, é difícil para vocês acreditarem. No entanto, tentei negociar com os reinos humanos de Ishmar, Nananka e Arabakia, bem como com elfos e anões. Mas eles não nos ofereceram nada, só nos caluniaram, exigindo que partíssemos para terras desoladas. Então, expulsamos as tribos humanas e dividimos o que pegamos delas. No fim das contas, a decisão foi minha. Se há culpa, é minha. Nós massacramos tribos humanas, tomamos suas terras, cidades, toda a riqueza e cultura, e as expulsamos das Montanhas do Dragão no Norte até Grimgar. Foi tudo obra minha no passado.

 

— Eu… — Soma deu de ombros levemente. — O jeito que você coloca, ‘atualmente como recipiente,’ está correto?

— É melhor não chamá-lo de recipiente.

O No-Life King pressionou gentilmente o dedo indicador de sua mão direita contra o peito.

— Eu resido nela, mas eu também sou ela, e ela também pode ser considerada eu.

— Eu… não a conhecia intimamente, mas a conhecia. Ela deveria me conhecer também. O que ela sabe, você também deve saber. Essa é uma suposição justa?

— Na maior parte.

— Então você também deve entender. Somos humanos, mas não temos nenhuma conexão real com o Reino de Arabakia. Acredito que podemos ter vindo de outro mundo.

— De fato, os humanos não existiam originalmente em Grimgar. Pelo menos, de acordo com as lendas dos povos antigos, os humanos eram recém-chegados.

— O povo antigo, — Akira interveio. — Isso se refere aos ancestrais dos elfos, anões, gnomos, centauros e kobolds. É difícil de acreditar à primeira vista, já que suas aparências são tão diferentes, mas eles compartilham lendas antigas em comum. De acordo com essas lendas, diz-se que eles divergiram do mesmo ancestral.

O No-Life King assentiu com a cabeça.

— ao norte, há o povo com chifres e, no deserto de Nehi, há o povo dos Pilares. E há também as tribos de orcs e goblins. Assim como os humanos, também se acredita que eles vieram de fora.

— E quanto a você? — Akira perguntou ao Rei. — Quando você chegou a Grimgar? De onde você veio?  tem essas respostas?

— Infelizmente, não me lembro, — Disse o Rei, fitando o horizonte..

Talvez ele estivesse contemplando aquele passado distante que não se lembra.

— No começo, eu não tinha pensamentos nem memórias. Surgiram aos poucos. Com o tempo, tornei-me quem sou. Aquele eu do tempo que não me lembro deve ter sido bem diferente de quem sou agora. Certamente eu estava no norte. O povo de chifres canta sobre mim em suas canções. Mas eles não falam de tempo. Se foi há mil anos, cem anos ou ontem, para eles é tudo a mesma coisa. Por isso, o povo de chifres ainda me considera um amigo. Prometeram se juntar à batalha contra o sekaishu que se aproxima.

— Cara, estava muito frio lá, no norte… — Kuzaku se arrepiou todo — Era tudo branco até onde a vista alcançava, como um mundo prateado, sabe? Era lindo, mas, cara, se não fosse por esse corpo, eu teria morrido congelado. Estava muito frio.

Como é que aquelas pessoas com chifres vivem lá tão confortavelmente?

— Você foi lá? —  Ranta perguntou, ao que Kuzaku respondeu levemente: “Sim”.

— Setora-san foi se encontrar com o povo do Pilar no deserto de Nehi. Eles estavam discutindo se o clima frio ou quente é melhor, e concluíram que o frio pode ser preferível ao quente.

— Aventurar-se por conta própria…

— Se você se juntar a nós, Ranta-kun, poderá ir para o norte e outros lugares. Além disso, talvez você viva mais, sabe? E pode ser para o bem do Ruon também. Talvez você não morra por um bom tempo, sabe?

— O diabo que eu vou!

— Oxi, por que não? Faça uma tentativa. Vamos ver como vai ser. Você pode decidir depois de experimentar.

O que você acha, Rei? Devemos tornar Ranta-kun um nobre também?

— Não estamos chegando a lugar nenhum assim!

— Isso não vem ao caso. Vamos continuar com a conversa.

Quando Setora os repreendeu friamente, Kuzaku e Ranta deram de ombros.

— Então, você já fez um acordo com o povo chifrudo? — Akira-san perguntou.

No lugar do Rei, Setora respondeu: “As várias tribos do povo com chifres são aliadas do rei há muito tempo. Eu organizei conversas com o povo do Pilar também.

Além disso, forças significativas do povo com chifres e do povo do pilar já se aproximaram das planícies de Hayagami. Temos a aprovação de Diff Ogun, rei da tribo dos orcs, Tsarzveld, rei dos elfos cinzentos, do chefe Ademoy dos kobolds, dos dezesseis clãs de centauros e até de Jumbo de Forgan.

— Jumbo… de Forgan também! — A expressão do Ranta mudou radicalmente. Eu também fiquei um pouco surpreso.

— Você mencionou uma batalha contra o sekaishu antes.

Quando o No-Life King assentiu, Soma soltou um suspiro.

— Por que você nos procurou? Somos necessários para essa batalha?

— Absolutamente necessário, — disse o Rei.

Durante toda essa conversa, o Rei não olhou para mim nenhuma vez. Era como se eu nem estivesse lá. Não me senti deslocado. Não era Mary, pois ela é o No-Life King. Eu simplesmente entendi isso.

— Acredito que seja necessário que você participe dessa batalha — continuou o No-Life King.

— Hmm… — Akira-san acariciou sua barba pensativamente.

— Uma vez, orcs, goblins e kobolds, liderados por você, junto com os mortos-vivos, destruíram os reinos humanos… Certo. Mesmo que não consigamos imaginar os meios, combinaremos nossa força para erradicar o sekaishu e recuperar Grimgar, para compartilhar entre nós — disse o Akira-san.

— Pode não ser tão fácil, — interveio Architekra, quebrando o silêncio com um leve sorriso. — Depois de expulsar os humanos de Grimgar, o que aconteceu em seguida? Os elfos cinzentos, injustamente acusados de matar o rei, foram embora. Orcs, goblins e kobolds buscaram a independência. As várias tribos acreditavam no rei apenas por necessidade, não por confiarem umas nas outras. O rei nunca quebra uma promessa feita.

Entretanto, a maioria tem prioridades além da lealdade. Até mesmo nós, os príncipes, que somos essencialmente as encarnações do rei, temos desejos e aspirações diferentes. Há até mesmo príncipes tolos que sonham em substituir o rei.

— Eu também não sou muito otimista, — O No-Life King não repreendeu Architekra.

— Testemunhei traições, discórdias e divisões e, em um determinado momento, cheguei a aspirar vagar pelo mundo como um mero eremita nos anos que me restavam — disse o Rei.

— Você não vai morrer, vai? — Soma piscou os olhos inocentemente, virando a cabeça com curiosidade.

— Chamar de ‘anos restantes’ não seria exagero? — A expressão do No-Life King suavizou-se ligeiramente.

Não era o jeito da Mary de rir. Eu senti isso. Será que eu queria acreditar nisso?

— Não acho que não vou morrer. Pelo menos, não sou imortal. Se eu fosse completamente apagado, eu pereceria. Mesmo os seres considerados deuses provavelmente não são imortais. Só não morrerei até ser destruído — explicou o Rei.

Akira-san deu de ombros. — Não envelhecer e morrer sozinho é invejável, mas tenho pensado muito nisso ultimamente. Envelhecer é difícil. A propósito, como vamos destruir esse sekaishu?

— O sekaishu tem raízes. Nós localizamos seu paradeiro, — o No-Life King nos informou sobre essa antiga lenda.

— No princípio, só existiam o céu e o mar. Do além do mar, seres sem nome chegaram, lançando milhões de sementes no mar antes de partir. Essas sementes germinaram, definharam, e seus restos formaram os continentes, mais precisamente, Grimgar.

Com o retorno desses seres sem nome, Grimgar se encheu de vida, dando origem ao povo ancestral.

Entretanto, um dragão primordial desceu do céu, expulsando os seres sem nome.

O dragão adormeceu, sendo finalmente enterrado na terra, e Grimgar desfrutou de uma quietude fértil.

Porém, dois deuses vindos de longe envolveram o povo ancestral em seu conflito, despertando o dragão de seu sono.

Em uma batalha furiosa, e tomado de piedade pelo povo ancestral, os seres sem nome do além dos céus fizeram chover uma estrela vermelha.

O dragão abateu a estrela vermelha, mas seus fragmentos se enraizaram na superfície da terra, tornando-se o tumor negro.

Os dois deuses se esconderam sob o tumor, enquanto o dragão voltava a dormir.

Exaurido de sua força, o dragão se decompôs em seu leito de descanso.

O significado da estrela vermelha é incerto, mas o tumor negro, sem dúvida, se refere ao sekaishu.

Se o sekaishu é consequência da queda da estrela vermelha, então o dragão e o tumor são, no mínimo, incompatíveis.

Diz-se que o Buraco das Maravilhas é o local de descanso do dragão e, de acordo com a tradição ancestral, também sua tumba.

O sekaishu não se aproxima da tumba do dragão.

O sekaishu ainda evita ou respeita o dragão falecido.

 

— A estrela vermelha… — O Rei apontou o dedo indicador para o céu invisível acima, lentamente abaixando-o. — As raízes do sekaishu se encontram onde os fragmentos caíram. Enquanto vagava por Grimgar como um mero eremita, eu a procurei — disse o rei.

— Você a encontrou? — perguntou Soma, e o Rei assentiu.

— É a Montanha da Coroa. Explicarei os detalhes mais tarde, mas faz parte do plano da Setora aqui. Reuniremos nossas forças neste local, atrairemos o sekaishu e, enquanto estiver distraído, destruirei rapidamente suas raízes. — explicou o Rei.

Em outras palavras, todos, exceto o Rei, servirão como iscas, realizando uma operação de distração.

Isso significa que o próprio No-Life será o responsável por destruir as raízes do sekaishu.

— Eu considerei várias opções, mas esta parece ser a mais eficiente — disse Setora calmamente.

— Se o rei falhar, nós nos retiraremos imediatamente. O rei será absorvido pelo sekaishu, será selado ou morrerá. Lidaremos com isso quando chegar a hora. Buscaremos a coexistência com os sekaishu ou consideraremos outras opções. Se o rei morrer, não há garantia de nossa segurança. — explicou Setora.

— Você diz isso tão levianamente — Kuzaku resmungou, mas ainda estava sorrindo. Parecia ser uma questão de vida ou morte para eles, mas não pareciam sentir essa urgência. Talvez por isso tudo tenha parecido uma fantasia para mim.

Será que temos mesmo que nos esforçar tanto para erradicar os sekaishu?

Deve haver um motivo para a decisão do No-Life King. Mas e quanto a nós?

No final, o dragão primordial, os dois deuses, a estrela vermelha, o tumor negro e até mesmo o povo antigo e o próprio Grimgar – eles realmente importam para nós?

Pensando bem, Shima, um antigo companheiro de Soma, uma vez sussurrou algo assim para mim:

— Estamos procurando uma maneira de voltar ao nosso mundo original.

O mundo original.

Antes de virmos para Grimgar, estávamos em outro lugar, em um mundo diferente.

Se pudéssemos voltar a esse mundo, talvez minha família e meus amigos estivessem lá. Talvez a cidade onde eu nasci e cresci estivesse lá. Minha verdadeira cidade natal.

Soma originalmente formou os Daybreakers com o objetivo de invadir o Reino dos Mortos-vivos, acreditando que havia sinais do renascimento do No-Life King. Mas parece que eles não estavam pensando em derrotar o No-Life King assim que ele ressuscitasse ou algo assim. Parece que Soma e os outros tinham um propósito diferente e verdadeiro. Esse objetivo era encontrar um caminho de volta ao mundo original.

Naquela época, quando eu estava lutando dia a dia como um mero soldado voluntário, a conversa sobre o retorno ao mundo original não me tocava nem um pouco.

Mas agora, sinto que estou entendendo.

Se houvesse uma maneira de retornar ao mundo original, eu gostaria de voltar?

Não posso dizer imediatamente que sim.

Mesmo com tudo o que aconteceu com Mary, Kuzaku e Setora, eu poderia simplesmente deixar Grimgar para trás? Mas se houver um caminho de volta, quero saber.

É como um último recurso. Se as coisas ficarem muito ruins, eu poderia voltar ao mundo original. Eu poderia fugir.

— Isso não é exatamente uma condição — disse Soma.

O que tem o Soma? Mesmo alguém como Soma, ele queria fugir? Ou havia algum outro motivo?

— Estamos procurando uma maneira de retornar ao nosso mundo original. Você deve saber mais sobre Grimgar do que nós. Não há nenhuma pista?

— Não sei de onde vieram os soldados voluntários de Altana, — o Rei balançou a cabeça. Era um ângulo estranho, nem horizontal nem vertical.

— No entanto, todas as raças chamadas de ‘humanoides’ em Grimgar provavelmente vieram do mesmo mundo. Talvez você possa sentir o sopro de seu mundo original na cultura das raças humanoides daqui —  continuou ele.

— Por exemplo, a linguagem —  disse Akira, cruzando os braços.

— Nós conseguíamos ler desde o início. Os anciãos que vieram para Grimgar antes de nós usaram a linguagem de nosso mundo original como ela era — explicou ele.

— Enad George. Ishiduo Zaemon. Ren Zaburo — No-Life King mencionou vários nomes. — Todos eles eram pessoas reais do período de fundação do Reino de Arabakia.

No entanto, a pronúncia de que me lembro é um pouco diferente. Minato Jyoji. Ishido Uzaemon. Renzaburo. Eles transmitiram que sua terra natal se chamava Hinomoto (Terra do sol nascente) ou Nihon (Japão) — explicou ele.

— Hinomoto… Nihon… — Não era só eu. Soma, Akira, Ranta, todos repetiram essas palavras.

Era uma ressonância nostálgica.

Talvez conhecêssemos essas palavras. Mas não conseguíamos imaginar exatamente o que elas significavam.

Lar, deve ser um lugar.

É um continente? Uma região? Ou talvez um país?

— Até onde eu sei, no entanto — disse o Rei antes de continuar. — Parece que nenhum humano retornou ao mundo chamado Hinomoto, Nihon.

No entanto, se alguém voltasse para Hinomoto sem informar a ninguém, seria impossível saber. Além disso, se eles vieram, deve haver algum ponto de contato com esse mundo em algum lugar. Se conseguir encontrar esse ponto de contato, talvez consiga retornar ao seu mundo original. E há outra possibilidade…. — Relíquias? —interveio Soma.

O Rei assentiu com a cabeça.

Relíquias são criações de outro mundo. Talvez eu também seja uma relíquia. Pode ser uma interpretação ampla, mas em lendas antigas, o Ser Sem Nome, o Dragão Primordial, os Dois Deuses, a Estrela Vermelha, o resultante Tumor Negro, o Sekaishu, todos podem ser relíquias. Relíquias que apareceram mais tarde podem ter entrado em conflito com relíquias que estavam lá primeiro, e relíquias podem tentar eliminar outras relíquias. As lendas antigas podem ser a história da luta pela sobrevivência entre relíquias em Grimgar.

— Dragões. Deuses. Estrelas. Sekaishu. O No-Life King … — Akira suspirou, seus lábios obscurecidos pela barba curvada para baixo.

— Se todos eles são relíquias… não seria estranho se houvesse relíquias que pudessem viajar de um mundo para outro, — ponderou Akira.

O Rei de repente franziu a testa, com uma expressão pensativa.

— Não seria surpreendente se já houvesse pessoas procurando por tais relíquias. Pretendo viver o resto da minha vida aqui em Grimgar, mas tenho um interesse especial por relíquias. Se eu puder me mover livremente pela superfície, não seria uma má ideia procurá-las. Se isso se alinhar com seus objetivos posteriormente, posso ser capaz de lhes emprestar meu poder.

Soma e Akira pareciam decididos a unir forças com o No-Life King.

Mas, pensando bem, não tínhamos tantas opções. Muitas raças e facções estavam se reunindo sob a bandeira do Rei Imortal. Se fôssemos nos juntar a eles, teríamos que nos unir com aqueles que éramos inimigos até ontem – sejam orcs, mortos-vivos ou os Forgan, deixando de lado as animosidades do passado pelo bem da aliança atual. Será que poderíamos fazer isso? No entanto, se nos afastássemos, seríamos párias.

A situação em que nos encontramos já era extremamente desfavorável. Embora ser um grupo pequeno e de elite possa parecer impressionante, mesmo com todos os nossos membros de elite, nosso número era simplesmente insuficiente.

Por exemplo, os orcs eram uma raça formidável, igual ou superior aos humanos, e nos superavam em milhares, dezenas de milhares ou talvez até mais. Se os orcs nos atacassem a sério, não importa o quão habilidosos Soma, Akira ou Ranta fossem em combate, não teríamos chance.

Mesmo que optássemos por não nos aliar ao No-Life King, buscássemos a independência e tentássemos evitar conflitos, os orcs, que há muito tempo eram adversários da raça humana, teriam misericórdia de nós? Para dizer o mínimo, não poderíamos ter expectativas excessivamente altas.

Se, hipoteticamente, fôssemos obrigados a nos tornar vassalos do No-Life King. certamente haveria resistência considerável.

No entanto, esse não era o caso. Esta aliança era uma medida temporária e, depois de lidar com o sekaishu na Montanha da Coroa, poderíamos explorar outras direções. Se unir forças com o No-Life King era a melhor opção para a nossa sobrevivência era discutível, mas certamente era uma alternativa melhor.

Os planos operacionais específicos foram explicados por Setora. Soma e Akira ouviram atentamente, e Ranta parecia um tanto interessado, mas eu estava principalmente distraído.

Fiquei intrigado com o No-Life King.

 

A respeito de Mary.

O acordo formal era levar a proposta do Rei de volta à Vila Akatsuki e transmiti-la através de Kuzaku, que nos acompanharia posteriormente. Com isso, a reunião foi encerrada.

O Rei finalmente voltou seu olhar para mim.

“Parece que ela quer falar com você,” disse ele.

Não  Mary.

Era o olhar do No-Life King.

— Você decide o que fazer. Ela não vai forçar nada.

Assenti sem hesitação.

Não apenas Soma e Akira, não apenas Ranta, mas também Kuzaku e Setora, e até mesmo Architekra, todos se distanciaram de mim e do Rei Imortal. Eles nos deixaram a sós.

Ou talvez não sozinhos. Ou talvez estivéssemos sozinhos. Neste momento, sob a Grande Árvore, éramos apenas eu e Mary? Eu sentia que era a Mary, mas não conseguia afirmar isso.

Então, em silêncio, fiquei olhando para ela com os olhos virados para cima.

Será que as palavras lhe faltaram, ou talvez ela apenas hesitou em falar?

Como ela não fez nenhum esforço para falar, fiquei convencido de que ela era de fato a Mary.

— Oi — eu disse.

Imediatamente me arrependi da saudação estranha.

Mary baixou o olhar e emitiu um leve som de garganta.

Ela pareceu sorrir um pouco.

— …Haru. E-eu…”

— Sim.

— Eu não sei como dizer isso.

— Não tem problema. Sim… acho…

— Eu provavelmente já sabia há muito tempo. Mas não conseguia falar. Eu não entendia tudo, nem nada.

— Acho que… vai além da compreensão.

— Sim.

— É minha… — Não diga isso.

Mary balançou a cabeça.

Desde então, ela não olha diretamente para mim, mantendo o olhar desviado.

— Não é sua culpa Haru. É diferente. É meu problema. Eu tornei Kuzaku e Setora assim. Eu pedi para ele fazer isso. Ele apenas realizou meus desejos. Tudo o que aconteceu… estava tudo errado, e eu tenho pensado, teria sido melhor se tivesse terminado lá? Pensei nisso tantas vezes. Eu não sei. Não consegui transmitir o que queria dizer. Talvez não tenha sido o fim, e isso poderia ter sido bom. Porque depois disso, houve coisas maravilhosas…

Muitos momentos importantes. Não posso negar que não era necessário. Certamente, no momento em que eu, que deveria ter morrido, voltei à vida, foi decidido que algo assim aconteceria algum dia. Ele tem sua longa jornada, e há coisas que ele precisa fazer, coisas que não pode evitar. Não é sobre ele não ser capaz de desafiar isso, é diferente… Porque eu o entendo agora. Mas ele… ele nunca poderá nos entender. Ele é uma existência completamente diferente de nós. Ele está tentando entender. Ele quer entender. Mas ele não consegue entender completamente. Ele sabe disso também. Ele e nós… não podemos nos entender…

É por isso que, ainda mais, ele nos procura. Porque ele está sozinho. Verdadeiramente, completamente sozinho. Não há ninguém como ele.

— Será que você… sente simpatia por ele?

— Simpatia. Talvez. Ele está dentro de mim, e eu estou dele, digamos assim. Simpatia…

Honestamente, é difícil separar claramente ele e eu.

— Agora mesmo, é a Mary, não é?

— Eu penso que sim.

— Agora mesmo, é a Mary.

— Sim.

— É a Merry.

— Sim. Ele não está aqui. Ele está bem no fundo de mim, bem no fundo… Ele afundou. Ele nem mostra a cara.

— Ele está… ouvindo?

— Não quero mentir para você. Acho que ele está ouvindo. Se ele quiser, pode sair imediatamente.

— Se ele sair, o que acontece com a Mary?

— afunda profundamente… lá no fundo dentro de mim. Não sou só eu. Existem alguns outros.

— Você consegue… falar com essas pessoas?”

— No começo, era o Rato.

Mary sussurrou, sua voz acelerando.

— Era um único rato. O Rei Rato. Ele era o reserva dele. Ele se entregou ao Rei Rato como precaução. O Príncipe Ishidua Rohro o traiu e selou seu corpo principal usando uma relíquia. Outro dele, digamos assim, o  Rei Rato, escapou do perigo. Ele entrou em um orc chamado Diha Gatt. O próximo foi Itsunaga. Ele nasceu e cresceu em uma vila escondida, mas foi exilado com a mãe ainda jovem. Então, havia Yasuma, um ex-mago voluntário. Ele recebeu ensinamentos do mago Sarai e estava prestes a entender as profundezas da magia quando morreu. Ageha. Ela também era uma ex-soldada voluntária e tinha um amante chamado Takuya. Jessie Smith não conseguiu se adaptar à vida de soldado voluntário e morreu em uma jornada solo. A última sou eu. Não sei se sou a última ou não. Jessie teve suas memórias fragmentadas e está escondido em algum lugar.

Ao terminar sua história, Mary soltou um profundo suspiro.

— …Ele não interferiu. Contei a você o segredo dele. Ele é tolerante. Mas ser gentil e ser tolerante pode ser diferente. Ele perdoa, aceita, reconhece. Ele espera que, ao fazer isso, possa se tornar amigo de qualquer um. Ele parecia considerar a coexistência até com o sekaishu. Quando foi a vez de Jessie, ele descobriu que as raízes do sekaishu estavam na Montanha da Coroa. Ele tentou se comunicar com o sekaishu, mas falhou.

— Não acho que seja alguém com quem você possa negociar…

— Sim. Quando ele demonstrou inteligência, o sekaishu atacou. Os mortos-vivos que ele criou originalmente serviam como escudo contra o sekaishu. O sekaishu evita os mortos-vivos. Ele fez os mortos-vivos assim. Seu corpo principal, ainda selado em uma relíquia, segura o Cajado Yotsui.

Se ele canalizar poder imenso para este cajado, pode repelir o sekaishu. Ele não estava lutando contra o sekaishu para sobreviver em Grimgar. Ele estava procurando maneiras de evitar conflitos. Mas, no final das contas, ele e o sekaishu simplesmente não se dão bem.

— Então ele está finalmente tentando resolver isso…

— Sim. Não há outra escolha agora, ele está decidido. Ele possui um poder tremendo por natureza. Ele pretende usá-lo contra o sekaishu. Ele acredita que vencerá.

— Se isso acontecer… ele não terá nada a temer.

— Você tem medo dele?

— …Não posso dizer que não estou com medo, sabe?

— Muito parecido com Haru.

Mary sorriu.

E finalmente, ela olhou nos meus olhos.

— O que ele fará depois, eu realmente não sei. Talvez nem ele mesmo saiba.”

Mary apertou as duas mãos contra o peito.

Como se tentasse segurar algo que quer sair de lá.

— Mas ele está dentro de mim.

— …Merry? O que… você quer dizer…

— Felizmente, ele está dentro de mim.

Mary repetiu essas palavras claramente.

— Eu não vou deixar que ele cometa erros.

— Mary… você?

— Não acredite nele.

Mary. balançou a cabeça.

— Haru. Acredite em mim. Ele não cometerá erros. Assim que destruir o sekaishu, ele ajudará Soma e os outros. Ele investigará as relíquias. Ele também deve querer saber mais sobre elas. Há potencial nelas.

— Potencial?

— Acredite em mim, Haru.

Mary. estendeu as mãos que havia pressionado contra o peito em minha direção.

Eu não hesitei.

Peguei a mão dela.

Sem dúvida.

Era a mão de Mary.

— Por favor — ela disse.

— Eu acredito em você, — respondi. — Mary.

Chamando-a pelo nome cara a cara, eu não pensei que seria a última vez.

Eu ainda desejava fortemente que não fosse a última.

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