Capítulo 7 (Parte 1)

Guia.

Tradução: Tinky Winky

Eu corro.

Corro.

Está escuro.

Corro por um túnel longo e escuro como breu.

Consigo ver o que parece ser luz lá na frente.

Corro em direção a ela. Corro.

 

Eu corro.

 

Corro pela escuridão.

Em direção à luz, eu corro.

Parece que nunca consigo alcançá-la. Mesmo assim, continuo correndo.

Eu corro.

Corro.

Estou quase lá. Só um pouco mais.

Parece que o túnel está prestes a acabar, mas ele nunca termina.

 

Corro.

 

Corro.

 

Continuo correndo, e…

 

De repente, a luz transborda.

 

Saindo do túnel, continuo correndo.

Eu corro.

Corro o máximo que consigo.

Sob a luz do sol, meus braços e minha cabeça expostos sentem o calor.

Enquanto corro, o vento fresco me atinge e me faz não querer parar.

Eu corro.

Corro pelo campo.

Quando olho para trás, o sol entra nos meus olhos e me cega.

De alguma forma, isso me parece engraçado, e eu começo a rir.

Enquanto rio, volto meu olhar para frente e continuo correndo.

— Ei, não vá tão longe.

Ouço uma voz dizendo isso.

— Ah, não vou, — respondo, rindo de novo, acelerando o passo.

Não quero ser pega, penso.

Não quero ser pega por ninguém.

Não é como se houvesse algum lugar para onde eu quisesse ir.

Mesmo sem vento, ao correr assim, sinto como se ele estivesse soprando.

 

…Ei, sério… volte já.

 

Ouço a voz de novo.

Acho que preciso voltar, penso, e paro.

Papai está sempre ocupado com o trabalho e não faz exercícios o suficiente. Ele adora gravar tudo com sua filmadora, então, nos dias de folga, ele me leva para algum lugar—às vezes longe, às vezes apenas ao parque perto de casa—e filma. Ele gravou minha formatura na creche, a cerimônia de entrada na escola, o Hina-matsuri, o Natal, e também os meus aniversários.

Mas, por mais que ele grave, quase nunca assiste aos vídeos, certo?

— Está tudo bem — diz papai. — É um registro. Algum dia, vai chegar o momento em que vamos querer assistir, e aí podemos ver juntos e relembrar. Estou gravando para quando esse dia chegar.

— Tipo, quando eu crescer? — pergunto.

— Bem, por exemplo — responde ele. — Quando você crescer, se casar e tiver um filho seu…

É muito estranho ouvir isso. Eu, me casar?

— Você não pode dizer com certeza que não vai, certo? Bem, seria completamente normal se acontecesse. Provavelmente, um dia, você vai se casar com alguém, acho.

…Será? Vou me casar? Ter filhos? Isso significa que vou me tornar mãe?

— Talvez você se torne uma — diz papai.

Tenho a sensação de que isso nunca vai acontecer.

— …Hã? O quê? Diga de novo — murmurei. — Espera… Não consegui ouvir direito.

Mamãe está dizendo algo pelo telefone. Mamãe está chorando. Não consigo ouvi-la direito por causa das lágrimas.

Mas, sinceramente, eu entendo. Ouvi bem quando ela disse que papai morreu.

Só que acho que deve ser mentira, ou que ouvi errado. Quero dizer, parece algo impossível de acontecer, então peço para ela repetir.

Huh?

O que foi, mamãe? Fale direito.

O que aconteceu com o papai…?

Corro.

Eu corro.

Eu corro pelo corredor da escola.

Saio pela porta e corro.

Chegando a uma avenida principal, enquanto corro, procuro por um táxi. Levanto a mão e corro.

Entro no táxi que para para mim. Digo ao motorista o destino. O táxi segue lentamente. Quando o sinal fica vermelho, ele para.

Isso é tão, tão lento, penso. Se era para ser assim, eu não devia ter pego o táxi. Devia ter continuado correndo.

O táxi para em frente ao hospital. Tento sair. A porta não abre.

— Senhorita, a tarifa. Precisa pagar a tarifa — ele me diz.

— Quanto é? — pergunto, pegando minha carteira.

Fico pálida.

Dentro dela, só há 425 ienes. Não é suficiente.

O que eu faço? O que eu faço?

— Hum, meu pai morreu, então, desculpa, pelo dinheiro… — balbucio.

— Oh, tá tudo bem, tá tudo bem, eu entendo — o motorista abre a porta.

— Desculpa, desculpa, desculpa — peço desculpas repetidamente, saio do táxi e corro. Corro pelo hospital.

Em um lugar escuro, assisto aos vídeos que meu pai gravou. Estou correndo. Rindo. Sendo educada. Assoprando velas em um bolo. Cantando.

Às vezes, ouço a voz do meu pai. Algo como, “Ei, não vá tão longe.”

Ouço a risada do meu pai.

Quando eu canto, meu pai canta também.

Eu me sento no chão de um quarto com as luzes apagadas, assistindo às imagens de mim mesma na televisão por sabe-se lá quanto tempo.

O rosto do meu pai nunca aparece. Nem mesmo suas mãos.

Eu só ouço sua voz. Mas, de vez em quando, penso: Por que eu não gravei o meu pai também?

— Por favor, namore comigo — Hakamada-kun me diz debaixo de uma árvore. Eu penso um pouco e, então, respondo.

— O que exatamente isso envolve? — pergunto.

— …O que envolve? Tipo… ir para casa juntos e tal?

— Só preciso voltar para casa com você?

— Não, não só isso… tipo, sair para brincar também?

— Não me importo de brincar, mas…

— Mas o quê?

— Tá tudo bem, de verdade.

Acho que vamos acabar nos casando, penso comigo mesma.

Hakamada-kun não disse nada sobre casamento, é claro. Ele nem mencionou o assunto.

Mas o que significa namorar se você não está pensando em casamento? Acabo me perguntando.

— O que você vê de tão especial no Hakamada? — Yakki me pergunta, e eu inclino a cabeça, pensativa.

Yakki está com sua bicicleta estacionada ao lado do banco, comendo um picolé. Eu também estou comendo um. As cigarras do verão fazem barulho, e meu picolé está supergelado, mas eu não estou suando.

— Nada de tão especial nele — respondo honestamente.

— Ele não tem nada de bom, mas você ainda está namorando com ele? — Yakki pergunta.

— Dizemos que estamos namorando, mas tudo o que realmente fazemos é voltar para casa juntos.

— Isso é o que chamamos de namoro — diz Yakki. — Bem, vocês já se beijaram, pelo menos?

— Isso ainda não aconteceu.

— O quê, você não quer?

— Acho que nunca pensei que quisesse, na verdade.

— Por que você está namorando com ele, então?

Bem, se eu tiver que dizer algo, talvez eu tenha achado que namorar alguém não seria tão ruim, mas agora que penso nisso, sinto que é um pouco diferente disso.

Enquanto fico sem resposta, Yakki sugere: — Talvez você devesse terminar com ele.

Eu também acho. Mas como vou dizer isso para Hakamada-kun?

Quando tiro minhas pantufas do armário e as calço, sinto uma sensação desagradável nos pés. Quando as tiro, vejo uma mancha vermelha nas minhas meias.

Entendi. Aposto que sei o que é isso. Inspeciono-as.

Parece que tinha ketchup dentro. Não fui eu que fiz isso, então deve ter sido outra pessoa.

— Alguém… — murmuro para mim mesma, tirando as meias. Ambas as pantufas estão cheias de ketchup.

Não são hot docks, sabe, penso.

Não, não hot dock, hot dogs. Um dock é onde você amarra um barco. Um dog é o melhor amigo do homem. Um hot dog é um cachorro aquecido.

Mesmo pensando que não estou fazendo sentido, seguro uma das minhas meias manchadas de ketchup, caminhando pelo corredor com meu pé esquerdo ainda calçando a meia suja de ketchup e o direito descalço. Devem haver pantufas para visitantes em algum lugar.

— Huh? O que foi? — Yakki me chama.

A parte inferior do rosto de Yakki está estranhamente relaxada. A parte superior está um pouco tensa. Pela expressão dela, fico convencida de que foi ela quem fez isso.

— Estou procurando pantufas — respondo.

— Por quê? Huh? O que aconteceu com suas meias?

— Elas ficaram sujas, de alguma forma.

— Como você conseguiu sujá-las assim? Você é esquisita, minha nossa! Você é um pouco estranha, sabia?

— Sou?

Decido terminar com Hakamada-kun.

Quando digo isso para ele depois da aula, Hakamada-kun fica desconcertado.

— Hein? Eu fiz algo…?

— Você não fez nada, Hakamada-kun — digo.

— Então por que você está dizendo que quer terminar?

— Não acho que isso está certo.

— Huh? O que não está certo?

— Como posso explicar? — digo. — Hmm, eu acho que você provavelmente gosta de mim.

— Claro que gosto. É por isso que te pedi em namoro. Espera, então você não gosta de mim?

— Acho que meus sentimentos são muito diferentes dos seus. Eu nem sei o que significa gostar de alguém.

— Então talvez você não devesse ter começado a namorar comigo.

O rosto de Hakamada-kun está vermelho como um tomate. Ele está realmente bravo.

Não posso culpá-lo. Aceitei namorar sem pensar muito e estou arrependida. Acho que fiz mal a ele. Acabei machucando-o.

Percebo que não querer machucá-lo foi o motivo de ter aceitado namorar com ele. Mas isso acabou machucando-o ainda mais.

Hakamada-kun era o tipo de pessoa com quem eu conseguia conversar casualmente, e, quando ele me chamou para sair, talvez tivéssemos ido brincar com algumas outras pessoas. Fazer isso era divertido, mas então ele me pediu em namoro.

No fim, provavelmente não quis tornar as coisas estranhas rejeitando-o. Por isso aceitei. O resultado foi que ficou ainda mais estranho, e a atmosfera agora está completamente desagradável. Tenho certeza de que nunca mais conseguirei conversar casualmente com Hakamada-kun de novo.

— Eu sou terrível — digo.

— É mesmo — ele concorda.

— Me desculpe. — Faço uma reverência.

Hakamada-kun não diz nada.

Eu olho para baixo. Ele tem a mão esquerda no bolso da calça do uniforme. Sua mão direita está fortemente cerrada, tremendo.

Se eu dissesse: “Vamos continuar juntos, afinal”, será que isso acalmaria sua raiva? Mas não posso fazer isso.

 

— Hã? Então você terminou com o Hakamada-kun? — pergunta Yakki.

Eu respondo que foi exatamente o que fiz.

— Coitado — diz Yakki. — Azar do Hakamada-kun.

Acho que ela quis dizer má sorte. Mas fico calada.

— Espero que você aprenda com isso e não faça de novo. As pessoas vão guardar rancor de você.

Enquanto respondo com um “É”, me pergunto por que Yakki acabaria ressentida comigo pelo que aconteceu com Hakamada-kun.

Sempre que não entendia algo, eu costumava perguntar ao papai. Raramente recorria à mamãe, e ainda não o faço. Pensando bem, mamãe é um pouco parecida com Yakki.

Yakki geralmente é leve, sorridente e fácil de conversar. Mas às vezes pode ser cruel de repente. Palavras tão duras que chegam a chocar saem de sua boca, e ela explode com alguém. Então, com o tempo, age como se nada tivesse acontecido, como se nem lembrasse do que disse.

Já aconteceu várias vezes de uma coisinha que a mamãe disse sem querer—ou pelo menos acho que foi sem querer—me ferir no peito, como uma faca de vidro, me deixando em dor.

Sempre que eu falava disso com o papai, ele dizia: “Ela não quis te machucar”, e passava a mão na minha cabeça.

Eu sempre pensava: ela só estava de mau humor, ou algo assim. Ela tem dias assim.

Quando foi aquela vez que o papai e a mamãe brigaram?

— Estou dizendo que não é justo você agir assim! — gritou mamãe.

— Não precisa gritar. Eu consigo te ouvir muito bem.

— Eu sou sempre a vilã. Pode ser que você esteja bem com isso, mas eu não aguento mais.

— Você não é a vilã. Eu não acho que você seja má. Se tem alguém errado aqui, sou eu.

— Você não pensa isso, e sabe disso!

— Eu penso, sim.

— Então, o que tem de errado em você?

— Eu te deixo com raiva. Se eu não fosse ruim, você não ficaria brava comigo.

Papai era uma pessoa quieta. Estava sempre sorrindo, com um pouco de preocupação no rosto, ou parecia exausto e cansado.

No dia em que o papai morreu, mamãe se sentou em um banco no hospital, com o rosto entre as mãos.

— Como eu vou continuar vivendo sem você…?

Sentei ao lado dela, passando a mão nas costas dela. Tinha certeza de que o papai teria feito o mesmo.

— Eu estou aqui, mamãe. Você não está sozinha.

Mamãe chorou por um tempo, depois assentiu. Depois disso, aconteceu um monte de coisas naquela noite, e eu fui para um quarto escuro assistir aos vídeos que o papai havia gravado. Papai não aparecia em nenhum deles.

Em um vídeo, eu estava correndo. Onde era aquele campo, afinal?

Se eu perguntasse para mamãe, ela saberia? Mamãe provavelmente sabia. Mamãe devia estar com a gente naquela época.

Eu quero ir para aquele lugar. O sol brilha forte, quase não há vento, e, se eu ficar parada, é quente, mas eu posso apenas correr.

— Você não gosta de rosa, Meri? — papai me pergunta.

— Não, não gosto muito — digo.

— Que cor você gosta?

— Branco, talvez? Ah, e azul!

— Azul claro, né.

As roupas que mamãe comprava para mim por conta própria geralmente eram rosas.

— Você é uma menina, então rosa é mesmo a cor mais fofa, não acha? — ela sempre dizia.

Sempre que ela dizia isso e eu me irritava, papai dizia, prestativo: — Mesmo sendo menina, acho que ela pode usar a cor que quiser.

Eu quero correr.

Vamos correr.

Eu vou correr.

— Ei… — ouço uma voz me chamando.

Quem poderia ser?

Papai, talvez? A voz soa diferente.

Quero correr mais, então ignoro e corro.

— Ei, Mary… — Acho que é uma voz familiar.

Eu paro. Será que é o Michiki?

Viro-me para trás.

Há alguém à distância. Não é apenas uma pessoa. Talvez Michiki e o grupo dele?

— Michiki? Mutsumi? Ogu?

Levanto a voz, chamando por eles. Não sei se são três pessoas ou não. Eles estão longe demais. Seja como for, há alguém bem distante, e não se movem.

— Mutsumi? Ogu? Michiki? Yakki? Pai? Mãe?

Não importa quantas vezes eu chame, eles não vêm. Se não forem Michiki e os outros, ou Yakki, ou meu pai, ou minha mãe…

Eu tento chamar todos os nomes. Todos…

Quem? Quem são todos?

Não consigo lembrar.

Por quê?

Oh, claro, penso. Se eles não vêm até mim, eu posso ir até eles.

Desta vez, corro na direção deles.

Corro.

Mas, por mais que eu corra, não consigo me aproximar dessas pessoas. Avanço e avanço, mas elas não ficam maiores.

Fico exausta e paro.

De repente, uma sombra passa.

Viro-me para trás, e algo grande e escuro voa acima de mim.

O que é isso?

Eu o sigo com os olhos.

Desaparece no horizonte antes que eu consiga entender o que era.

Desisto e procuro aquelas pessoas.

Elas não estão mais lá. Em lugar nenhum. Sumiram.

Não sei para onde. De onde vim, e para onde estava indo?

O campo gramado se estende até onde a vista alcança. A grama, o céu. Não há mais nada.

— …Estou sozinha — sussurro.

Minha voz nem soa oca. Está presa, reprimida dentro do meu coração.

Completamente… sozinha.

Reflito sobre essas palavras, mastigando-as até perderem todo o sabor, e então finalmente percebo.

Oh.

Olho ao redor.

O céu, a grama, e mais nada, como sempre.

Eu morri, percebo. É por isso que estou sozinha.

Sinto que havia alguém à distância antes, mas é só imaginação minha. Morri e acabei completamente sozinha, então não podia haver ninguém.

Quando você morre, perde a si mesmo e para de entender qualquer coisa, tenho certeza.

Mas, antes disso, eu queria vê-los. Esse desejo meu pode ter feito parecer que havia alguém ali.

Tento me sentar. Meu corpo não obedece.

Baixo os olhos.

Não consigo ver minhas próprias mãos. Não tenho braços, nem pernas, nem corpo.

Não tenho nada.

Ah, é porque eu morri—eu penso.

Porque eu morri, não sobrou nada de mim.

Mas é estranho.

Eu ainda consigo pensar assim.

Será que realmente estou pensando?

Mesmo que eu já não exista?

Nesse campo infinito, com o céu tão alto…

Campo?

Céu?

Onde estão eles?

Sumiram.

Não vejo nada.

Não ouço nada porque o vento não sopra?

Tento fechar os olhos. Nada muda. Obviamente.

Não tenho corpo. Então, não tenho olhos.

A única coisa que posso fazer é pensar.

Não sei se o que estou fazendo é pensar ou não, mas penso.

Penso.

Sobre o que devo pensar?

Decido contar.

 

Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Seis. Sete. Oito. Nove. Dez. Onze. Doze. Treze. Quatorze. Quinze. Dezesseis. Dezessete. Dezoito. Dezenove. Vinte. Vinte e um. Vinte e dois. Vinte e três. Vinte e quatro. Vinte e cinco. Vinte e seis. Vinte e sete. Vinte e oito. Vinte e nove. Trinta. Trinta e um. Trinta e dois. Trinta e três. Trinta e quatro. Trinta e cinco. Trinta e seis. Trinta e sete. Trinta e oito. Trinta e nove. Quarenta. Quarenta e um. Quarenta e dois. Quarenta e três. Quarenta e quatro. Quarenta e cinco. Quarenta e seis. Quarenta e sete. Quarenta e oito. Quarenta e nove. Cinquenta. Cinquenta e um. Cinquenta e dois. Cinquenta e três. Cinquenta e quatro. Cinquenta e cinco. Cinquenta e seis. Cinquenta e sete. Cinquenta e oito. Cinquenta e nove. Sessenta. Sessenta e um. Sessenta e dois. Sessenta e três. Sessenta e quatro. Sessenta… sessenta… e quatro. Cinco? Sessenta… seis… sessenta… e cinco? Seis?

Não, deixe-me contar. Os números, por favor. Se eu não fizer isso, ah…

Eu vou desaparecer.

Desaparecer.

Desap…

 

 

 

 

 

 

 

— Mary.

Há uma voz.

A voz de alguém.

Eu quero te ver.

Porque essa é a última vez.

Este é o fim.

Antes que eu desapareça.

Todos, por favor—

 

Quem é “todos”?

 

Mary? Mary…?

Ele segurou minha mão.

O que… o que eu devo fazer…?

Você não precisa fazer nada.

Eu não preciso de nada.

Porque você já fez o suficiente por mim.

Isso não é mentira.

Eu

Fui

Feliz

Porque eu

Não estava sozinha.

Você esteve

Lá por mim.

Haru

Eu

Ouça, eu

Haru, eu

 

O que era mesmo?

Eu

O que eu estava tentando dizer?

 

Eu esqueci.

 

Havia tantas coisas que eu queria te contar.

Tantas coisas.

Elas estão escapando, então adeus.

Oh, se isso for um adeus…

Se eu estou indo para longe…

 

Todos…

 

Estou feliz por ter conseguido…

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

— Ei, nerdão.

Eu tenho um sorriso idiota no meu rosto cheio de espinhas quando Matt, o grandalhão que passou mais de cinco anos me zombando, me chama disso.

Nesse momento, eu perco a cabeça. Eu avanço contra ele. Meu ataque surpresa é um sucesso. Eu derrubo Matt. Eu o monto e começo a golpear seu rosto.

Meu corpo é fraco. Eu não consigo realmente machucar Matt, então meus golpes são ineficazes.

Matt se recupera do choque. Ele facilmente me empurra para longe. Em pouco tempo, Matt começa a me espancar, e seus golpes não são nem um pouco inofensivos.

Dói. Eu estou assustado. Quero que ele me poupe. Mas eu não imploro por misericórdia. Eu me defendo desesperadamente, cerro os dentes. Resisto até que a fúria de Matt cesse.

Os punhos de Matt começam a doer eventualmente, e ele vai embora, soltando palavrões enquanto se afasta.

Eu fico deitado na beira da estrada, na South Pine Street, sozinho, cantando uma pequena canção de vitória para mim mesmo. Eu sou um nerd, mas não sou fraco. Nem burro. Eu vou ficar mais forte e realizar meu sonho.

Eu estudo japonês. Meus principais materiais de estudo são anime e mangá. Também anisongs e J-pop. Depois, leio romances japoneses. Eu estudo.

Eu já era bom em ciências desde o início. Depois que começo a estudar japonês sozinho, paro de odiar tanto as matérias de humanas.

Eu corro. Faço alongamentos. Levanto peso. Treino meu corpo.

Eu não consigo ser um grandalhão como Matt. Mesmo assim, ganhei alguns músculos. Ninguém quer nada comigo agora.

Eu suporto a solidão. Me esforço ao máximo. Finalmente, piso em solo japonês como estudante de intercâmbio. É por um período de cerca de um ano.

Por que eu não pude nascer neste país? De qualquer forma, o país combina comigo. Eu sou um otaku e um nerd, claro.

Com minha família anfitriã, os Hazaki, eu sinto um tipo de amor familiar caloroso que nunca experimentei com minha família de verdade.

Na escola japonesa, um lugar que sonhei em frequentar, consigo fazer amigos de verdade pela primeira vez.

Eu encontro o amor, também.

Com uma colegial japonesa, uma JK, Satsuki. Sim, eu arranjei uma namorada com o mesmo nome daquela garota de Meu Amigo Totoro.

Eu seguro as mãos de Satsuki…

Caminhamos por um dique, atravessamos uma ponte, entramos em uma livraria.

— Jessie, seu japonês é muito bom — diz ela. — É tão natural.

…Satsuki?

Jessie?

E u be ij o Sa tsu ki.

É um beijo doce, apenas com os lábios tocando.

…Quem? Eu? Com Satsuki?

Eu amo Satsuki de verdade. Quero amá-la com toda a sinceridade que posso reunir, mas sem deixar de ser eu mesmo.

Am ar Sa tsuk i se m de ix ar de ser e u mes mo…

Algo parece estranho. Algo está errado. O dia em que eu deixarei o Japão se aproxima.

Satsuki me diz: — Eu fico bem com um relacionamento à distância.

Eu apenas digo repetidamente que a amo. Porque amo Satsuki.

Finalmente, volto para casa. Faço chamadas de vídeo com Satsuki várias vezes ao dia. Conversamos sobre tudo e nada. Só isso já me faz feliz.

Mas, quando as chamadas terminam, sinto-me irremediavelmente sozinho e triste. Quero ouvir a voz de Satsuki de novo. Quero ver o rosto dela.

Enquanto encerro mais uma chamada, porque já está tarde no Japão e Satsuki deve precisar dormir, sinto que algo está errado.

— Jessie, você não está sendo meio frio ultimamente? — diz Satsuki, e, quando peço desculpas, ela explode comigo.

Algo está estranho. Está errado. Tudo está errado.

Quem sou eu? Sou Jessie? Eu…

— Ageha, estaremos juntos para sempre. — Takaya me abraça apertado e sussurra no meu ouvido.

Quero que ele me segure assim para sempre. O queixo de Takaya está pressionado contra minha testa.

Takaya não faz a barba direito todos os dias, então, quando se mexe, sua barba arranha minha testa, e isso dói um pouco. Lembro-me de dizer a ele para se barbear. Ele disse “tudo bem”, mas se esquece depois de alguns dias. No fim, desisto. Acabo me acostumando.

Agora, não acho essa sensação tão desagradável. Desta vez, quando Takaya e eu estamos enrolados juntos em um cobertor, está quente, minha cabeça está enevoada, sinto sono, mas não consigo dormir, e ele é tão precioso para mim. Eu o amo, e quero pedir para que ele me beije, mas estou com vergonha. Quero que Takaya faça isso por conta própria. No entanto, Takaya está dormindo.

Ah, qual é! Fico irritada. Tento dormir também. Quando tento, os lábios de Takaya pressionam minha testa. Lentamente, eles descem. Eu os recebo com os meus próprios lábios.

Enquanto compartilhamos um longo beijo, sinto que algo está estranho. Algo está errado.

O calor de Takaya desaparece. Ele estava quente até um momento atrás. Quente, até.

Ainda estou segurando Takaya. Tento aquecê-lo. Não acho que seja em vão. Não quero pensar nisso.

Rikimaru está por perto. Karatsu está aqui. Domiko está aqui. Taratsuna está aqui. Ninguém mais se move.

O sangue derramado pelos meus companheiros agora está frio. Ouço o zumbido dos insetos. Moscas estão se juntando. Tento afastá-las com a mão. Mas não consigo afastá-las todas. É difícil até mesmo mexer minha mão. Quando olho, as moscas também estão se aglomerando no meu estômago.

Quero fazer algo quanto a isso. Não sei o que fazer.

Takaya. Acorde, Takaya. Quero chamar o nome dele. Minha voz não sai.

Uma mosca pousa nos meus lábios. Ela se move lentamente. Está tentando entrar em mim. Tento fechar a boca. Mas não consigo direito. Em vez disso, meus olhos começam a fechar. Sinto que algo está estranho. Algo está errado.

— Há uma maneira. Apenas uma.

Percebo algo.

Mesmo que não me tenham dito diretamente, não me deram a chave? Qual o significado de sermos ensinados Magic Missile, que de certo modo é um feitiço único, como nosso primeiro feitiço?

Agora entendo. Então era isso.

— É assim que é, não é, Mago Sarai?

Digo isso diretamente a ele, Sarai, o grande ancião da guilda dos magos, que apenas sorri e não diz nada.

Estão me dizendo para pensar nisso por conta própria, entendo. Para abrir meu próprio caminho. Se não o fizer, nunca alcançarei a verdadeira magia. As coisas que eu descobrir assim serão minha magia.

Mesmo que pergunte sobre isso, Sarai não confirmará. Contudo, estou confiante. Finalmente consigo enxergar. O caminho que devo seguir. Caminharei pelo caminho onde não há caminho. Esse é o meu caminho.

— Yasuma — diz Sarai para mim. — Não seja precipitado. Agora olhe para mim. A vida é longa, sabe? Você pode ir devagar.

Naturalmente, essa era minha intenção. Mesmo sentindo que algo está estranho, finalmente encontrei uma pista. É estranho dizer isso de mim mesmo, mas acho que sou sério e estudioso. Quando me tornei um soldado voluntário e mago, dediquei-me completamente a dominar a magia. Adquiri muitos feitiços.

Dou minha opinião e, se sinto que alguém está errado, digo isso. Por causa disso, já tive desentendimentos e me separei de algumas pessoas. No entanto, sempre há quem precise de mim como mago.

Como mago e soldado voluntário, vivi uma vida da qual posso me orgulhar. Tenho consciência disso. Ainda assim, algo está estranho.

Decido aprimorar meu Magic Missile. Tenho confiança de que isso será meu avanço. Ainda estou no meio do caminho. Não, nem isso; pode-se dizer que estou apenas começando.

Não posso cair ainda. E, no entanto, sinto que algo está estranho.

— Viva com força, Itsunaga. Com força…

Minha mãe está quase completamente coberta por folhas caídas. Eu mesmo as juntei.

Minha mãe parece estar com frio. Ela está tremendo. Por isso, penso que preciso aquecê-la.

Seguro a mão da minha mãe. Ela aperta minha mão de volta. Logo, seu aperto enfraquece. Minha mãe sorri.

Minha mãe está morrendo. Eu sei disso também. Já vi muitas criaturas morrerem, então sei o que é a morte. Minha mãe está prestes a morrer e está me deixando uma mensagem para que viva com força.

Acho que algo está estranho. Algo está estranho. Seja como for, minha mãe vai morrer. Segurando sua mão enquanto ela para de se mover, juro a mim mesmo que nunca esquecerei o que as pessoas da aldeia fizeram com ela e comigo.

Minha mãe não expressa nenhuma palavra de reclamação. No entanto, não consigo perdoar as pessoas da aldeia. Simplesmente não posso.

No bolso, guardei a pequena lâmina que minha mãe me deu para proteção. Resolvo vingar-me com esta lâmina. Se esta pequena lâmina não alcançar suas gargantas, encontrarei uma lâmina mais longa e, com ela, perfurarei seus corações com um único golpe.

Se eu contar isso a ela, minha mãe certamente me impedirá. Então, não direi nada. Silenciosamente, deixo minha mãe morrer em paz.

Que ela descanse.

Mas acho que algo está estranho.

Algo está estranho.

Quem sou eu? Sou Itsunaga? Nem mesmo eu sei mais quem sou. Não por completo.

Nomes mudam. Não me importo com como sou chamado. Deixo de lado dez nomes, pego cem, e possuo mil.

Diha Gatt. Esse é apenas um dos mil nomes que carrego. No entanto, é um nome bastante antigo. Talvez o mais antigo entre eles.

Eu sou—

Jessie Smith.

Ageha.

Yasuma.

Itsunaga.

Diha Gatt.

Quem sou eu?

O nome não importa. Tenho mil nomes. Atravessei milhares de terras.

Sem destino? Acho que algo está estranho. Enquanto vago em busca de paisagens desconhecidas, algo está estranho em mim.

De pé nos penhascos íngremes da enseada, com o vento subindo, olho para o mar onde o verde brilhante se transforma em azul, e depois em tons ainda mais profundos. Inalando o intenso aroma do mar, fecho os olhos.

Contemplo minhas próprias mãos. Minhas mãos, de tonalidade esverdeada. Meus dedos, robustos. Minhas garras, firmes e resistentes.

Eu sou um rato solitário.

O Rei dos Ratos.

Eu sou

Je geha há tsuna a sie yasu di su ma ie gatt mith ga didididididiha gagagagagagagagagagagagagatt gaitsutsutsutsutsuna gayasususususususususumaa geageagegegegegegegegeagehajessiejejejesiesmismismismismismismismithit hmememememememememememememe merryryryrymemememememememememememe jessiesmithagehayasuma itsunagadihagattratatatatatatatatatat kinginginginging

 

Eu não devo ir mais longe.

 

Eu estou correndo

Cor ren do

Corr

 

 

Nenhum campo

Nenhum céu

Nada

 

 

On de é is to?

Ning uém es tá a qui

Es tou soz inha

 

 

 

 

 

 

 

Você não está sozinha, alguém diz.

Várias pessoas dizem isso. Elas se aproximam. Me tocam. Sem hesitação. Violentamente. Forçam sua entrada em mim. Invadem.

Parem. Não entrem. Não dentro de mim. Não. Por favor.

— Mary!

Isso é…

Isso é o meu…

— Mary!

Chamem meu nome.

Chamem mais.

Me prendam.

Não soltem.

— Mary!

— Mary!

— Mary!

Ah…

E então, eu tento abrir os olhos.

 

Kuzaku entrou na prisão.

— Mas que droga! — ele gritou para a party. — Aqueles bichos pretendem ficar aqui mesmo depois que escurecer?!

Várias vezes, mais do que podia contar, Kuzaku tinha saído e voltado assim. Ele devia estar exausto. Sem dúvida, estava faminto e sedento. Mesmo assim, não conseguia ficar parado.

Era fácil entender o motivo. Haruhiro sentia o mesmo. Era difícil se manter calado sobre aquilo. Mas ele não podia se afastar do lado dela.

Yume estava sentada com um joelho levantado perto da entrada quebrada, onde não havia mais porta. Embora tivesse uma katana na mão, seus dedos mal estavam segurando o cabo.

Yume continuava olhando para baixo o tempo todo. Mesmo que ele a chamasse, talvez ela não respondesse. Era essa a impressão que Haruhiro tinha.

Shihoru estava em um estado parecido. Sentada ao lado de Haruhiro, com a cabeça baixa, ela permanecia imóvel.

Os pássaros continuavam fazendo um barulho terrível. Revezando-se no buraco do teto, mais de dez corvos permaneciam tão barulhentos quanto antes.

Kuzaku chutou o chão e depois se agachou. Um momento depois, ele perguntou: — O que vamos fazer?

Haruhiro abriu a boca para dizer algo. Nada saiu.

Ele passou a língua nos lábios. Doíam um pouco. Estavam secos e rachados.

No fim, Haruhiro apenas disse: — Nada ainda.

— Certo, então.

Kuzaku tentou se levantar. Suas pernas não estavam funcionando? Ele acabou caindo.

Quanto a Haruhiro, ele não estava apenas observando e sem fazer nada. Foi preciso muita coragem, mas ele verificou o estado de Mary e de Jessie, que havia se transformado em algo como uma boneca de couro fina. E fez isso não apenas uma vez, mas várias.

Era especialmente assustador tocar em Jessie. Não havia calor em sua pele, e ela não parecia úmida, mas também não estava completamente seca.

Haruhiro tentou levantar o pulso esquerdo de Jessie. Tinha peso, como deveria. Mas não o peso de um humano. Jessie era apenas pele e ossos agora? Não havia como ele estar vivo, mas também não exalava o cheiro da morte. Isso significava que ele não estava apodrecendo.

Nesse ponto, ela era igual.

Ela havia morrido. Ou deveria ter morrido. Haruhiro estava lá no momento em que aconteceu.

Mesmo agora, naquele momento, ela não estava viva. Ele havia confirmado isso. Não tinha pulso. Seu coração não batia. A temperatura de seu corpo provavelmente não era muito diferente da temperatura ambiente. Apesar disso, o rigor mortis[1] não havia se instalado. Ela não estava se decompondo.

Havia mais uma coisa que ele verificou, já que lhe chamou atenção.

Nos humanos, enquanto estavam vivos, o coração bombeava sangue constantemente por todo o corpo. Quando o coração parava, naturalmente o fluxo de sangue também cessava. O que acontecia então?

O sangue era afetado pela gravidade. Se uma pessoa estivesse deitada de costas, o sangue se acumulava na parte posterior do corpo. Isso era visível até mesmo do lado de fora de um cadáver. Era chamado de lividez post-mortem, e a área afetada ficava arroxeada.

Haruhiro tentou levantar a cabeça dela. Para isso, teve que mover Jessie, que mantinha o pulso esquerdo pressionado contra o ferimento no ombro dela. Haruhiro gentilmente desfez o pano que os prendia juntos.

Ele duvidou de seus olhos. Havia um ferimento, como um corte, no pulso esquerdo de Jessie. No entanto, o ombro dela estava limpo.

O ferimento profundo, que poderia muito bem ser considerado o responsável por sua morte, havia desaparecido completamente. Nem mesmo os vestígios do sangue abundante que deveria ter saído do ferimento de Jessie estavam lá. Até o pano, que deveria estar encharcado de sangue, estava seco e não particularmente sujo.

Com um gemido, Haruhiro levantou a cabeça dela, afastando o cabelo para olhar a nuca.

Talvez o resultado fosse esperado.

Não havia sinais de lividez post-mortem ali.

O que exatamente isso significava? Ela não estava viva. No entanto, ele também não podia dizer que estava morta. Não havia como ela permanecer daquele jeito. Alguma mudança precisaria ocorrer.

Que tipo de mudança? Ele não podia prever. Era óbvio. Não havia como ele prever isso.

Haruhiro estava esperançoso de que fosse uma boa mudança. Ao mesmo tempo, estava assustado. Algo inacreditável poderia estar prestes a acontecer. Ou talvez já estivesse acontecendo.

Não importava o tipo de mudança que fosse, ele não tinha escolha a não ser aceitá-la. Mas, no final, seria capaz?

Awuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu…

— Whoa! — Kuzaku levantou-se rapidamente.

Yume também olhou para fora.

— Haruhiro-kun… — chamou Shihoru, e Haruhiro assentiu.

Ele não tinha esquecido. Jessie os avisara. Quando o sol se pusesse, os vooloos apareceriam.

Yume ficou de joelhos, preparando sua katana. Alguém entrou correndo na prisão. Yume deixou a pessoa passar sem interceptá-la. Não era um dos necrófagos conhecidos como vooloos. Era Setora, carregando um cajado, seguida por Kiichi, o nyaa cinzento.

Setora sequer olhou para Yume ou Kuzaku enquanto corria até Haruhiro.

— Haru!

— Sim — foi tudo o que Haruhiro respondeu.

Setora apoiou o cajado nas grades e parou na frente de Haruhiro, respirando fundo.

Kiichi roçou-se nas pernas de Setora, soltando um miado: nyaa.

— Onde você esteve esse tempo todo? — perguntou Shihoru.

— Procurando, — respondeu Setora de forma seca, tirando um objeto do tamanho de um punho do bolso.

Não era apenas o tamanho. Tinha o formato de um punho cerrado também. Era de metal? Parecia duro e tinha um peso considerável. Havia diversos buracos nele, de onde vazava uma luz azulada.

Haruhiro olhou para o objeto. Apenas isso. Não despertava seu interesse. Não importava o que fosse, ele simplesmente não ligava.

— Isso é um receptáculo de pseudo-alma — explicou Setora, por conta própria. — A pseudo-alma de Enba está aqui dentro. É o que se pode chamar de corpo verdadeiro de um golem de carne. O necromante liga uma pseudo-alma a um golem feito costurando corpos mortos. Eu nasci na Casa Shuro, e mexo com cadáveres de pessoas e animais desde que me lembro. Mesmo na aldeia, a Casa Shuro é vista como algo inquietante. Muitas vezes, zombavam de mim, me chamando de fedorenta.

Ela fez uma pausa.

— A verdade é que um necromante raramente lida com corpos apodrecidos. Na verdade, um cadáver meticulosamente lavado é mais limpo e menos fedorento que um humano vivo. Além disso, quando usados corretamente, ossos, músculos, vasos sanguíneos e órgãos são incrivelmente belos. Ver um golem de carne, feito costurando essas coisas, começar a se mover é, no mínimo, emocionante. No entanto, depois que criei Enba, perdi a motivação para criar outro golem. Os necromantes da Casa Shuro criam golems, os destroem e criam novos, repetindo isso ao longo de suas vidas, buscando aperfeiçoar sua arte. Mas eu fiquei satisfeita com Enba. Não que os outros membros da minha casa tenham entendido isso. Consideravam excêntrico que uma mulher da Casa Shuro criasse nyaas. Parece que sou uma espécie de esquisita.

Haruhiro acenou vagamente com a cabeça. Em outra situação, talvez ele tivesse ouvido Setora com atenção. Mas agora não. Ele não queria ouvir. Não podia ouvir. Para ser franco, tinha outras preocupações.

— Haru. — Setora guardou o receptáculo de pseudo-alma de volta no bolso. Kiichi olhou para ela, curioso. — Você ama aquela mulher, não é?

— O quê…? — O rosto de Haruhiro se contorceu, e ele perdeu as palavras. Por que ela diria isso, do nada?

Por que aqui? Por que agora?

Awuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu…

Os vooloos estavam uivando.

Haruhiro olhou para o buraco no teto. Em algum momento, todos os corvos haviam desaparecido. Ele abaixou o olhar, piscou duas vezes e respirou fundo.

— É unilateral — disse ele.

Não posso mentir, pensou. Isso é a única coisa que não posso fazer.

— São só os meus… sentimentos unilaterais, pode-se dizer. Isso não é realmente da sua-

— Tudo bem. — Setora se agachou, estendendo a mão direita e cobrindo a boca de Haruhiro. Então, por algum motivo, ela sorriu levemente e disse: — Eu entendo. Mas ouça, Haru.

A mão de Setora tremia. Ela aplicou mais força.

— Os mortos não voltam.

Haruhiro não conseguiu dizer nada em resposta. Não porque Setora cobria sua boca. Ele podia facilmente afastá-la. Haruhiro estava desconfiado.

Estou sonhando? Um sonho onde os mortos voltam à vida? Mesmo sabendo que a morte é o fim para as pessoas?

Com aquela única frase de Setora, seu sonho conveniente se despedaçou, e ele acordou. Era assim que ele se sentia agora.

[1] Rigor mortis, ou rigidez cadavérica, é um sinal de morte que acontece devido a uma alteração química nos músculos. Isso faz com que os músculos do corpo se tornem rígidos e difíceis de mover.

Setora recuou a mão direita, envolvendo-a com a esquerda e apertando-a firmemente.

— O golem foi, de certa forma, um produto de um compromisso. As pessoas que mais tarde passaram a ser conhecidas como necromantes inicialmente tentavam ressuscitar os mortos. A aquisição de uma relíquia permitiu que eles criassem pseudo-almas, e continuaram suas tentativas após a criação do golem. No entanto, nunca tiveram sucesso, nem uma única vez. A morte é um fenômeno irreversível. Não são apenas as pessoas—nenhum ser vivo pode retornar da morte. Mesmo que aquela mulher volte a respirar, do meu ponto de vista, não será o tipo de ressurreição que você espera. A mulher que voltar pode ser uma pessoa diferente daquela que morreu. Espero que, pelo menos, ela não seja algum tipo de monstro desconhecido.

Haruhiro permaneceu em silêncio.

— Ainda assim, se ela for adoravelmente leal como um golem, já é alguma coisa. Mas o que você fará se ela não for?

— O que eu… faria?

— Não — disse Setora. — Não há nada que você possa fazer. Você terá que reconhecer e aceitar tudo.

— Eu… sei disso.

— Sabe mesmo? Pode dizer com confiança que está preparado para isso, Haru?

Se estivesse preparado, ele deveria ter erguido a cabeça e assentido de imediato. Mas não conseguiu.

— Se você não conseguir fazer isso… — Setora suavizou o tom e falou em voz baixa. — …então há algo que você precisa fazer agora.

— Algo… que eu preciso fazer?

— Sim, exatamente. Tenho certeza de que ainda há tempo. Perfure a cabeça e o coração daquela mulher com seu estilete. Acabe com isso dessa forma. Se não puder fazer isso, eu posso fazer por você. Estou acostumada a carregar o carma ruim dos outros. Posso fazer isso sem hesitação. Farei num instante.

Ainda há tempo. Será? Tenho que fazer isso. Eu. Com minhas próprias mãos. Isso, ou deixar que Setora faça. Não, se alguém tiver que fazer, tem que ser eu. Mas será mesmo necessário? Não é. Resolução. É isso. Se eu apenas tiver a resolução. Se eu puder dizer que estou bem, não importa o que aconteça.

— Urgh… — Um gemido ecoou.

Não foi de Haruhiro. Nem de Setora. Tampouco de Shihoru, Yume ou Kuzaku.

Foi de Mary.

Os membros de Mary se estenderam para fora. Não eram apenas os braços e as pernas. Seu pescoço e torso também se arqueavam como um arco.

— Mary…! — Haruhiro jogou-se sobre ela. Sua cabeça logo foi jogada para trás.

— Uwahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh! — ele gritou.

Estava escuro, então ele não conseguia enxergar bem, mas algo estava saindo da boca de Mary—provavelmente de outras partes do corpo também. O quê? O que estava saindo de Mary?

Continua na segunda parte…

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