Capítulo 7 (Parte 2)

Guia.

— Ngh… — Haruhiro cobriu a boca instintivamente e prendeu a respiração.

Aquele cheiro.

Sangue?

Poderia ser sangue, talvez? Era semelhante ao cheiro de sangue. Não, mas era mais cru.

— O que…? — Setora recuou.

— M-Mary-chan?! — Yume gritou.

— Mary-san! — Kuzaku gritou.

— Eek! — Shihoru deixou escapar um gritinho.

O que era aquilo? Que diabos era aquilo? Haruhiro acabou ajoelhando-se com a mão esquerda no chão. O sangue, ou o que quer que fosse, ele não sabia direito, mas o líquido que estava saindo de Mary molhou sua mão esquerda e depois seus joelhos. Era uma quantidade absurda.

— Aguh, goh, guh, gah, gwuh, gwah, agah, cack, fugagh… — Mary emitia sons bizarros em vez de sua voz enquanto continuava a vomitar a substância líquida.

O que agora? O que eu devo fazer? Não posso simplesmente ficar parado. Preciso tomar alguma atitude. Tenho que fazer algo. Quero dizer, ela parece estar sofrendo.

— M-Mary…! — Haruhiro deu um passo ousado à frente, abraçando Mary pelos ombros. Ele queria parar aquilo. Parar o líquido de sair. Mas seria certo fazê-lo? Ele podia parar? Como?

O líquido continuava saindo de dentro de Mary. Ela já estava encharcada. Haruhiro também. Suas mãos, braços, pernas, tudo estava coberto. O líquido tinha respingado até mesmo em seu rosto. Provavelmente, aquilo não era sangue comum. Ou será que era sangue?

Haruhiro pressionou o ombro direito de Mary com sua mão esquerda, enquanto estendia a direita até o rosto dela. Não era só a boca, afinal. Parecia que o líquido estava saindo também pelo nariz e pelos olhos. Haruhiro tentou limpar. Era inútil. Continuava a sair. Será que havia uma fonte inesgotável? Não parava, nem por um instante. Mas ele não podia deixar de tentar limpar. Porque não era possível simplesmente não fazer nada.

— Mary, você consegue me ouvir?! Mary! Sou eu, Haruhiro! Mary!

Ele queria fazer algo, mas não podia fazer nada quanto àquela substância líquida. Era impossível parar algo que estava jorrando daquela forma.

— Mary! Mary! Mary! — Haruhiro continuava a chamá-la.

O corpo inteiro de Mary estava rígido, e ela podia começar a se debater novamente a qualquer momento. Aquilo devia ser incrivelmente difícil para ela. Provavelmente, ela estava sofrendo.

Se ela estava sofrendo, isso significava que estava em um estado em que podia sofrer. Nesse caso, não estavam quase lá? Quase onde, exatamente? Era difícil de explicar. Mas, provavelmente, faltava muito pouco.

Haruhiro segurou Mary com força e gritou: — Vai ficar tudo bem! Não precisa se preocupar! Eu estou aqui! Nós estamos aqui! Mary, estamos com você!

Seu corpo está aqui, mas talvez você ainda esteja em outro lugar. Um lugar onde minha voz não consegue chegar. Talvez você nem consiga ouvir minha fraca voz. Nesse caso, vou continuar gritando até que chegue até você. Vou rugir, deixar minha voz ecoar, para que alcance você. Talvez eu não consiga pegar sua mão, onde quer que você esteja, e trazê-la de volta. Mas, nesse caso, vou gritar o mais alto que puder e puxar você para mim.

— Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Mary. Maryyy. Maryyyyyy!

Haruhiro apertou Mary com mais força. Tentou gritar seu nome mais uma vez. Sua voz já estava rouca há muito tempo. Ele não se importava se arruinasse a própria garganta. Ele a chamaria pelo nome pelo tempo que fosse necessário.

Mary inalou. Até aquele momento, tudo o que ela tinha feito era expelir a substância líquida.

Ela começou a tossir.

— Ha… ru?

Em meio a uma série de tosses, Haruhiro teve certeza de que ouviu Mary dizer isso.

Então ela conseguiu murmurar: — Haru. Era você, Haru?

O que Mary estava pensando que Haruhiro era? Haruhiro não sabia. Mas não importava.

— Sim! Sou eu, Mary. Haruhiro. Você me conhece. Consegue me ouvir, certo? Mary, você voltou. Mary! Mary…!

Mary assentiu. Parecia que as tosses estavam diminuindo. Sua respiração ainda era extremamente irregular. Mesmo assim, Mary havia demonstrado estar consciente. Claramente, de uma forma que não deixava dúvidas. Mary havia chamado pelo nome de Haruhiro. Ela entendia o que Haruhiro estava dizendo.

O que isso significava…?

Isso é inacreditável.

Não, eu posso acreditar.

Que palavras podem expressar esse sentimento? “Conseguimos”? “Graças a Deus”? Devo dizer, “Bem-vinda de volta”? “Estava esperando por você”? “Obrigado por voltar para nós”? “Eu senti sua falta”? Todas essas são verdadeiras, mas, mesmo se eu dissesse todas, não seriam suficientes. Mas, se Mary está conosco, isso é mais que suficiente.

Awuuuuuu! Awuuu! Awuuuuuu! Awuuuuuu!  Awuuuuuuuuuu!

— Haruhiro! — Kuzaku gritou. — São aqueles vooloos!

— Vooloos — disse Mary claramente. Ela tentou se levantar.

Haruhiro imediatamente tentou impedi-la.

— Mary, ainda não-

— Não é hora de dizer isso.

Ela estava absolutamente certa. Não era hora de dizer que ela não estava pronta ainda. Haruhiro ajudou Mary a se levantar.

Mary tentou andar, mas cambaleou. Seu cajado estava encostado nas grades próximas.

Mary pegou-o em mãos.

— Para o equipamento — murmurou, então soltou um gemido baixo e balançou a cabeça. — Seria útil ter um escudo. Um arco e flechas também. Eles devem estar no depósito…

— Mary…?

— Precisamos nos apressar.

Mary se agachou, mexendo no corpo de Jessie, que não era tanto um cadáver quanto uma casca abandonada. O que exatamente ela estava fazendo? Antes que ele pudesse perguntar, Mary se levantou.

— Vou mostrar o depósito pra vocês. É bem perto. Venham comigo.

— Er… Uh, tá bom.

Haruhiro tinha algumas dúvidas, mas as colocou de lado. Não era hora de questioná-las.

Setora e Kiichi estavam perto da entrada, assim como Yume e Shihoru.

Kuzaku estava do lado de fora, um pouco afastado. Sua grande katana brilhava com uma luz branca. Ele deve ter usado o feitiço Saber de magia de luz nela.

Awuuuuuuuu! Awuuuu! Awuuu! Awuuuuuuuuu!

Eles estavam perto. Os uivos dos vooloos ecoavam.

— É enorme! — gritou Kuzaku.

Ele estava falando de um vooloo? Onde estavam? Haruhiro ainda não conseguia vê-los.

— Ó Luz, que a proteção divina de Lumiaris esteja sobre você. Protection.

Mary usou magia de luz. Um hexagrama brilhante surgiu no pulso esquerdo de Haruhiro e de todos os outros.

— Hahhhhh! — Kuzaku brandiu sua grande katana. Um clarão branco surgiu e…

Foi só um vislumbre, mas acho que vi um. Um vooloo. É isso? Mas sério, isso não é grande demais…?

— Kuza… — Haruhiro começou a falar.

— Whoa…?!

A sombra do que parecia ser um vooloo engoliu Kuzaku. Não, ele havia pulado sobre Kuzaku e o derrubado? Haruhiro não conseguia dar um passo sequer. Yume, Shihoru e Setora também estavam paralisadas.

A única que se moveu foi Mary. Deixando Haruhiro e os outros para trás, ela avançou.

— Ó Luz, que a proteção divina de Lumiaris esteja sobre você… — Mary lançou uma luz ofuscante em direção ao vooloo que estava sobre Kuzaku. — Blame!

A criatura soltou um grito, todo o seu corpo tremeu e, embora tenha sido apenas por um instante, dessa vez eles conseguiram vê-la claramente.

Era coberta de pelos, provavelmente de uma cor escura. Marrom-escuro, cinza-escuro ou algo assim. Era um lobo necrófago.

Um lobo? Haruhiro pensou, incrédulo. Como isso é um lobo? Em que parte? Lobos não são tão grandes, certo? Eles são mais esguios, não são? Isso aí é sólido demais. Mas parece que o formato da cabeça é parecido com o de um cachorro. Parece um lobo. Mas, no geral, dá uma impressão bem diferente. Aquilo parece mais com um urso.

No momento em que a palavra “urso” veio à mente, ele se lembrou. Jessie tinha falado sobre eles.

“A leste das Montanhas Kuaron, há vooloos maiores que as panteras da névoa do Vale dos Mil. Eles têm o tamanho de ursos” ele havia dito.

Ursos.

Era isso. Ele tinha mencionado ursos!

— Gwahhryahh! — Kuzaku empurrou o vooloo para longe, saindo debaixo dele. Quase ao mesmo tempo, talvez um pouco antes ou logo depois, Mary girou e acertou a cara do vooloo com seu cajado. Parecia que isso deixou o vooloo desorientado.

Mary gritou: — Haru!

E saiu correndo. Ela estava indo para o tal depósito?

— Estamos indo! — Haruhiro disse, mas logo pensou: Isso é ruim. Eu não estou tomando decisões por mim mesmo. Estou só seguindo o fluxo. Qual é o sentido de eu sequer existir? Não, minha razão de existir não importa agora.

— Ahhh, droga! — gritou Kuzaku. — Obrigado, Mary-san! Ainda bem que você tá bem! Zahhhhhh! — Ele acertou o vooloo com sua grande katana e então virou-se e correu.

— Corram, pessoal! Corram! — Haruhiro gesticulou, apressando-os.

Setora e Kiichi, Yume, Shihoru e, por último, Kuzaku seguiram Mary. Haruhiro veio logo atrás de Kuzaku.

Os vooloos estavam vindo.

Awuuuuuuuuu! Awuuu! Awuuuuuuuu! Awuuu! Awuuuuuuuuu!

Os uivos dos vooloos ecoavam por toda parte. Quantos deles havia? Muitos. Como podia haver vários daquelas coisas enormes, parecidas com ursos? Não, antes de se preocupar com os outros vooloos, ele tinha que se preocupar com aquele de antes.

Fweh, hah, hoh, hah, hah, hahh, hah, hahh.

Haruhiro ouvia sua respiração se aproximando. O vooloo de antes estava avançando em disparada. Ele os alcançaria. Estava vindo para atacar.

— Khhh…! — Haruhiro soltou uma exclamação estranha enquanto saltava para o lado, rolava e se levantava novamente.

Por pouco! Suas garras, ou algo do tipo, quase o acertaram!

O vooloo soltou um grunhido insatisfeito, curvando seu enorme corpo como se estivesse se preparando para algo. Estaria?

Oh, merda, merda, merda!

Haruhiro correu. Correu o mais rápido que podia. Mas sentia que não tinha chances de superar aquilo em velocidade.

Olha só. Tá vendo? O vooloo já tá bem perto.

Era escuro, então ele não conseguia enxergá-lo bem. Mas seus olhos brilhavam.

Está perto. É rápido, rápido demais. Vai me pegar.

— Whaa…! —

Ele tentou escapar de alguma forma. Será que não conseguiu a tempo? Quando percebeu, estava sendo esmagado. Um cheiro intenso de animal o envolvia. Ele não conseguia respirar. Seria devorado? Engolido?

— Toma issoooo…! — gritou Kuzaku.

Será que Kuzaku tinha voltado para atacar o vooloo que tentava comer Haruhiro?

O vooloo soltou um ganido, mas não soltou Haruhiro.

— Ei, você! — gritou Kuzaku, desferindo outro golpe no vooloo. — O que acha que está fazendo com o Haruhiro? Sai de cima dele! Eu vou te matar! Morre, seu urso desgraçado! — Ele golpeava repetidamente com sua grande katana.

Não, acho que essa coisa não é um urso, refletiu Haruhiro. Ou é um urso? Isso importa?

Finalmente, o vooloo saiu de cima de Haruhiro.

Imediatamente, Kuzaku puxou Haruhiro e o ajudou a se levantar.

— Haruhiro, você tá bem?!

— É… de algum jeito…

— Isso tá ruim. Não consigo cortar essa coisa. O pelo dele é meio—Oh…?!

Kuzaku foi arremessado para trás. O vooloo tinha investido novamente. No entanto, Kuzaku instintivamente se defendeu com sua grande katana. Ele conseguiu firmar os pés e não ser derrubado.

Awuuuuuu! O vooloo estava prestes a pular em Kuzaku.

Haruhiro sacou seu estilete. Ele nem sequer tinha preparado uma arma até agora.

O que diabos eu estou fazendo?

Ele se lançou contra o vooloo, que estava prestes a investir contra Kuzaku novamente, agarrando-o e cravando o estilete nele. Ele o esfaqueava repetidamente, definitivamente tentando esfaquear com todas as suas forças. O vooloo se contorcia porque não gostava disso, mas… isso não estava funcionando, estava?

O pelo. Aquele pelo oleoso e resistente era o culpado. O pelo emaranhado não era tão duro, mas era denso e formado em camadas, como uma espécie de almofada. Com algo tão curto quanto o estilete, Haruhiro podia enfiá-lo até o cabo, e, no máximo, ele apenas perfuraria aquela “almofada” de pelos.

Isso era ainda mais complicado que a pele semelhante a uma carapaça do guorella. Se fosse para fazer isso da maneira certa, teria que mirar nos olhos ou algo assim?

O vooloo soltou um uivo enquanto levantava a parte superior do corpo. Estava de pé sobre as patas traseiras.

— Ah?! — Haruhiro gritou.

Será que essa coisa não é mesmo um lobo e, na verdade, é um urso? Quero dizer, quando está de pé, é realmente enorme!

— Whoa?! Ohhhh?! — Kuzaku parecia surpreso.

Haruhiro se agarrou desesperadamente às costas do vooloo. Mas o vooloo uivava e balançava seu corpo violentamente, e ele não conseguia aguentar.

Isso é ruim.

Eu não consigo.

Eu não tenho força.

Ele foi lançado longe, atingindo, em vez do chão, a parede de uma construção. A parede não conseguiu segurá-lo, então ele atravessou direto.

— Ungh… Guh…

Hã?

Está… claro?

— Kyaa! — Aquela era… a voz de Yume?

Haruhiro estava de costas no chão. Ele tinha batido a cabeça com força ao atravessar a parede, aparentemente. Por isso, estava um pouco tonto.

Olhando ao redor, ele finalmente viu Yume. E Shihoru também. Além de Setora e Kiichi.

Oh, então era isso. O depósito. Esse era o depósito. Isso fazia sentido. Por isso as luzes estavam acesas. Por isso Yume estava ali, Shihoru estava ali, Setora estava ali, Kiichi estava ali e, claro, Mary também estava.

— …Hã?

Que estranho.

Por algum motivo, parecia que Mary não estava vestindo nada.

O que era isso? Uma ilusão? Tinha que ser. Afinal, não havia motivo para ela estar nua ali.

— Haru…!

Mary veio voando em sua direção, não literalmente, é claro. Isso era óbvio. Mary não podia voar. Mas ela foi rápida.

Quando Mary, nua, o abraçou, Haruhiro pensou que talvez aquilo fosse o paraíso. Não, provavelmente não. Não existia um paraíso, certo? Mas, nesse caso, isso era a realidade…?

— Ei, você! — Setora jogou um casaco azul para Mary. — Vista isso, pelo menos!

— Ah…! — Com a cabeça de Haruhiro ainda em seu colo, Mary pegou a peça de roupa e cobriu os seios. — E-Eu estava… hum, minhas roupas molharam, então eu estava trocando…

— O-Oh… — Haruhiro fechou os olhos com força. — …Certo. Eu não vou olhar. De jeito nenhum.

— Miau! Kuzakkun tá em apuros! — gritou Yume.

— Precisamos ajudá-lo! — exclamou Shihoru.

Yume e Shihoru estavam fazendo um alvoroço por algum motivo. Não, não era por qualquer motivo. Kuzaku estava enfrentando um vooloo sozinho. E eu? O que estou fazendo? É aceitável usar o colo de Mary como travesseiro enquanto ela troca de roupa? Não, não é, certo?

— Hum, Haru, já vesti a parte de cima, então…

— Oh, ohh…

Haruhiro abriu os olhos e se levantou apressadamente. Olhou de relance para Mary.

Mary estava no meio de se levantar. Ela vestia o casaco azul, como deveria. Mas suas pernas estavam nuas. Ela disse que tinha coberto a parte de cima. E a parte de baixo…?

Ele balançou a cabeça. Mesmo que ela estivesse sem nada na parte de baixo, o que importava? Além disso, se ela tinha roupas para trocar, era óbvio que iria querer se trocar. As roupas anteriores estavam completamente arruinadas. Honestamente, Haruhiro também queria se trocar.

Yume estava com um arco, com uma aljava cheia de flechas pendurada no ombro. Setora carregava uma lança e um escudo quadrado.

Shihoru também segurava um escudo, mas não para ela mesma, então provavelmente era para entregá-lo a Kuzaku.

Observando melhor, por menor que fosse, aquele lugar era definitivamente um depósito. As prateleiras estavam cheias de espadas e lanças, e vários escudos estavam encostados nas paredes.

Havia arcos. Havia flechas. Uma prateleira com tecidos e peças de roupa. Não dava para saber o que havia dentro, mas também havia potes. Não eram apenas as lamparinas penduradas nas vigas; havia outras coisas que ele não conseguia identificar de imediato.

Haruhiro olhou involuntariamente na direção de Mary. Imediatamente desviou o olhar. Mary estava agachada, mexendo dentro do casaco. Provavelmente estava colocando alguma roupa.

— Nuwah! Zwah! Seahhhh! — Kuzaku lutava contra o vooloo sozinho.

— C-Certo! — Haruhiro voltou à realidade, mas antes que pudesse dar qualquer ordem…

— O escudo! — gritou Setora, correndo até Shihoru.

— Certo…! — Shihoru reagiu bem, saindo pelo buraco que Haruhiro havia aberto na parede. Yume a seguiu.

Haruhiro deu um tapa na bochecha esquerda com a mão esquerda. Concentre-se, ele disse a si mesmo. Seguiu Yume. Setora trouxe Kiichi e veio junto.

Quando olhou, Shihoru acabava de gritar: — Kuzaku-kun…! — e jogar o escudo. O escudo rolou até os pés de Kuzaku. Ele olhou de relance para ele, mas só isso. Parecia que não tinha tempo para pegá-lo.

Kuzaku avançou contra o vooloo, gritando e brandindo sua grande katana. A lâmina atingiu o ombro esquerdo do vooloo, mas não conseguiu cortá-lo, como era esperado.

Kuzaku recuou a grande katana.

— Keeahh…!

Ele a desceu com força. A lâmina atingiu a cabeça do vooloo, mas a criatura apenas cambaleou e recuou. A espessa pelagem era algo assustador. Como lidar com isso?

— Idiota, não corte! Estoque! — gritou Setora.

Ela não apenas gritou. Correu na direção do vooloo. Com a lança estendida, cravou-a em sua garganta. Incrivelmente, a lança penetrou.

Sem hesitar, Setora soltou a lança e recuou.

— Vai logo, seu idiota!

— Rarrrghhhh!

Kuzaku investiu contra o vooloo. Quando ele entrava no modo de combate, liberando todos os seus instintos de uma vez, ficava violento a ponto de assustar. E foi exatamente assim agora.

Kuzaku colidiu com todo o corpo contra o vooloo. Sua grande katana penetrou fundo no peito da criatura. Surpreendentemente, nesse momento, Setora já havia voltado ao depósito.

— Haru! — Ao ouvir seu nome e se virar, uma lança vinha voando em sua direção.

Por quê? Haruhiro se perguntou, mas instintivamente a pegou.

— Você também, caçadora! — Setora jogou outra lança para Yume e pegou uma para si mesma. — Vamos lá!

Mesmo pensando: Sou um idiota, indeciso, incompetente, inútil e sem esperança, Haruhiro guardou seu estilete e empunhou a lança.

Provavelmente ele nunca tinha usado uma lança antes. Mas e daí?

— Recuando! — gritou Kuzaku, enquanto Setora e Yume avançavam, cada uma tentando chegar primeiro.

O golpe que Kuzaku havia desferido foi especialmente eficaz. O vooloo estava completamente na defensiva.

Dizer que as lanças de Haruhiro, Setora e Yume iriam empalá-lo seria um exagero, mas as três lanças o perfuraram com precisão. O vooloo se arqueou de dor, mas torceu o corpo antes de cair de costas, acabando por tombar de lado. Talvez quisesse se levantar, mas parecia que as quatro lanças e a grande katana de Kuzaku, cravadas em sua garganta, peito e outras partes, estavam atrapalhando.

— Saiam da frente! — gritou Kuzaku, que havia recuado temporariamente, antes de avançar no vooloo em um frenesi. Ele arrancou sua katana e, imediatamente, a cravou novamente.

Ele o perfurou na boca. Kuzaku enfiou a grande katana na boca do vooloo e não parou por aí.

— Nuwohhhhh! — Ele torceu a katana com força bruta, puxando-a para cima. A grande katana cortou a cabeça do vooloo de dentro para fora. Por mais resistente que a criatura fosse, aquilo tinha que ser um golpe fatal.

Haruhiro sentiu alívio. Mas, como se o repreendesse por ser ingênuo, Setora deu uma ordem ao nyaa cinza.

— Kiichi!

Ele estava mesmo sendo ingênuo. Tão ingênuo que teve que se perguntar o que tinha acontecido com ele. Ainda havia vooloos uivando por toda parte, não havia? Isso estava longe de acabar. Eles ainda não tinham superado a situação. Se ainda não tinham saído dessa, por que estava se sentindo aliviado?

Mary saiu do deposito, com seu cajado em uma mão e uma lamparina na outra. Aquele casaco azul, que não parecia nem um pouco sacerdotal, era um visual completamente novo para ela, e Haruhiro não conseguia tirar os olhos dela.

Ele só podia se exasperar consigo mesmo por isso. Algo estava seriamente errado com ele. Não estava conseguindo fazer nada do que um líder deveria. Não era Setora quem estava agindo muito mais como líder? Será que ele estava em uma crise ou algo assim? Era isso?

Não, como poderia chamar isso de crise? Ele nunca foi talhado para ser líder desde o início. Nunca, nem uma vez, tinha sido um bom líder. Ainda assim, não teve escolha a não ser assumir o papel, então fez o que pôde, do jeito que conseguiu, não foi?

Se fosse chamar isso de crise, ele estava em uma crise perpétua. Era normal estar em crise, e ele nunca conseguiria sair disso pelo resto da vida.

Ele era lento, mas tinha que pensar.

Setora tinha dado uma ordem a Kiichi. Parecia que Kiichi tinha ido procurar uma rota de fuga para eles.

Mary estava carregando uma lamparina. Será que aquilo era seguro? A luz parecia chamar a atenção. Mas os vooloos eram noturnos, certo? Eles podiam enxergar no escuro. Se a party não pudesse enxergar, estaria em desvantagem. Melhor ter a luz.

De qualquer forma, por enquanto, precisavam correr. Sair dali.

Era um líder pouco inspirador, e havia muito mais coisas que ele não sabia ou não conseguia fazer do que o contrário, mas não podia se queixar disso, e como não podia sair dessa sozinho, sim, teria que contar com a força de todos os outros.

— Setora! Para onde devemos ir?! — gritou.

— Espere. — Setora fez um som agudo com os dentes. Ela fechou os olhos, girando a cabeça.

Foi sutil, mas havia um leve “Nyaa”.

De que direção tinha vindo? Haruhiro não conseguia decidir. Parecia que Setora tinha ouvido. Ela abriu os olhos, apontando para a esquerda.

— Por aqui, por enquanto. Não posso garantir que é seguro, mas…

— Serve. Kuzaku, vá na frente!

— Tá! — Kuzaku pegou o escudo e assentiu.

— Setora, fique ao meu lado e dê as direções.

— Entendido.

— Yume, fique na retaguarda.

— Miau!

— Mary, você… — Ele quase engasgou com as palavras. Sentiu que poderia chorar. De que adiantaria? Ele só precisava fazer como sempre. Pensar que ainda conseguia dizer o de sempre a Mary era algo bom. — Proteja a Shihoru e fique na frente da Yume!

Sem perder o ritmo, Mary respondeu: — Entendido!

— Shihoru, economize sua magia — acrescentou Haruhiro. — Não sabemos o que está lá fora.

Sua voz estava quase chorosa.

— Certo! — Shihoru respondeu rapidamente, com a voz chorosa também.

— Certo, vamos lá!

Haruhiro e a party começaram a correr.

Ele podia ouvir os uivos dos vooloos. Sentia-os se movendo ao redor, mas quantos eram e onde estavam? Ele não fazia a menor ideia.

Setora frequentemente dizia: “Por aqui!” ou “Por ali!” indicando as direções. Haruhiro apenas as seguia, embora sentisse como se todo o seu corpo estivesse sendo rasgado por uma sensação de impotência. Aceitar que sempre fora assim não fazia essa sensação desaparecer, mas ele conseguia suportar.

Olhando para trás, não era como se nunca tivessem tido momentos em que tudo parecia estar indo bem. Eles aconteciam de vez em quando. Mas, na maior parte do tempo, as coisas não saíam como esperado.

Mesmo quando obtinha resultados, nunca era um placar perfeito, de cem pontos em cem. Sempre pensava: Eu devia ter feito isso, ou Eu devia ter feito daquele jeito, mas simplesmente não consigo. Ele sabia que precisava corrigir suas falhas, mas, ao mesmo tempo, achava cansativo fazer isso e acabava não se comprometendo.

A pontuação que ele dava a si mesmo estava sempre abaixo de cinquenta pontos. Quarenta e sete ou quarenta e oito, talvez.

— Parece que conseguimos uma saída! — gritou Setora.

É agora que preciso me recompor de verdade, pensou Haruhiro.

— Cara, tem alguma graça viver assim? — Ele pensou ouvir a voz daquele idiota do Ranta, e isso o deixou enjoado.

Se você está perguntando se é divertido ou não, não é como se fosse incrivelmente divertido nem nada disso, respondeu ele mentalmente. Mas, acredite, é até um pouco divertido. Não que você fosse entender, Ranta. Quando você vive como eu, não há altos e baixos intensos. Em vez disso, você fica bem feliz ou triste com pequenas coisas. Se alguém quiser chamar isso de uma vida entediante, tudo bem. Não posso evitar. Este sou eu. Só consigo viver como eu mesmo.

Parecia que ele havia voltado ao seu estado normal. Por causa do que aconteceu com Mary, ele havia perdido a compostura de uma forma atípica. Apesar disso, Mary havia retornado de alguma forma, e Kuzaku, Yume, Shihoru, Setora e Kiichi estavam todos bem também. Ele provavelmente devia considerar isso sorte.

Porque Haruhiro, mesmo sendo o líder com todos os seus defeitos, tinha sido inútil. Dado isso, não seria estranho se tudo tivesse acabado em um desastre ainda maior.

Ele estava bem com uma pontuação de cinquenta em cem. Até mesmo algo na casa dos quarenta não era ruim. Procurar por sessenta seria pedir demais. Ele faria o melhor para evitar pontuar menos de quarenta. Ele mesmo era algo como um cinquenta, mas queria fazer com que todos alcançassem sessenta, talvez até setenta.

De alguma forma, ele queria transformar a party em um sessenta ou mais. Ele daria o que fosse possível para que isso acontecesse. Esse era o trabalho de Haruhiro como líder.

Saiba o seu lugar. Não se esforce além do que pode. Se perder o equilíbrio por causa disso, será contraproducente. Apenas mantenha a calma por agora. Olhe. Escute. Sinta. Use tudo o que puder. Especialmente a cabeça. Mesmo que seja repetitivo e não haja progresso, não perca o interesse. Continue fazendo, sem se cansar. Há algo mais importante do que seguir em frente passo a passo sozinho. Mova seus companheiros adiante. Acho que seria bom ter ambições maiores, como “Quero fazer algo grandioso” ou “Quero que as pessoas pensem que sou incrível,” mas no fim, eu mal tenho algo assim. Desejos como “Quero ver novos horizontes” ou “Quero ascender e olhar para a distância” não têm nada a ver comigo.

Mas, pelos meus companheiros, posso me esforçar razoavelmente.

Não odeio isso em mim. Dou o meu melhor pelos meus companheiros. Isso é o meu núcleo. Se eu perder isso de vista, não consigo continuar caminhando. Não, não consigo nem me manter de pé.

Eles saíram da aldeia, reencontrando Kiichi assim que chegaram aos campos.

Awuuuuu! Awuuu! Awuuuuu! Awuuuuu!

Os uivos dos vooloos vinham de trás deles… ou pelo menos era isso que Haruhiro achava, mas ele não tinha certeza. Se fosse verdade, talvez conseguissem fugir assim. Ele realmente esperava que fosse o caso.

— Kiichi! — Setora chamou o nyaa novamente.

Kiichi correu à frente de Haruhiro e da party. Se houvesse vooloos por perto, ele os alertaria.

— Ainda consigo matar mais um ou dois! — Kuzaku estava ofegante, mas sua voz soava firme.

— Mary, apague a lamparina! — gritou Haruhiro.

— Entendido! — respondeu Mary, apagando a lamparina.

Os vooloos tinham uma excelente visão noturna. Manter uma lamparina acesa no meio do campo era como anunciar que sua presa estava bem ali.

Havia muitas nuvens no céu, nenhuma lua e poucas estrelas. A escuridão era sufocante. Mesmo assim, depois que seus olhos se ajustaram, Haruhiro conseguiu distinguir vagamente as silhuetas de seus companheiros ao lado dele.

Os uivos dos vooloos não estavam próximos. Eles tinham se afastado… ou era o que parecia.

— São necrófagos, afinal de contas… — murmurou Setora.

Ela devia estar falando dos vooloos. Eles não se interessavam muito por presas vivas como a party, então talvez não estivessem tão focados neles. Idealmente, essa seria a situação. Mas isso era apenas uma esperança, e eles não podiam baixar a guarda.

— Yume acha que não tem mais nenhum por aqui!

Se Yume sentia isso, talvez fosse verdade. Mas não, eles não podiam relaxar.

Mantenham a cautela. Até o ponto de serem covardes, se for necessário.

— Shihoru?! Você está bem?! — Haruhiro virou-se para perguntar, mesmo sem conseguir enxergá-la direito.

— Estou bem ainda! — respondeu Shihoru.

Imediatamente, Mary acrescentou: — Está tudo bem!

Se Shihoru estivesse se forçando além do limite, Mary teria interrompido em vez de dizer que estava tudo bem.

Setora soltou uma risada curta e irônica.

— Vocês…

— Huh? O quê? — perguntou Haruhiro.

— Nada — disse Setora, balançando a cabeça.

Os passos de Kuzaku eram pesados. Ele parecia estar tendo bastante dificuldade. Era um pouco tarde para perceber, mas Kuzaku devia estar sofrendo desde o início. Haruhiro queria deixá-lo descansar, mas ainda não era o momento. Mesmo que fosse necessário dar um tempo mais tarde, agora não era a hora. Porém, seria um problema se ele desabasse ali.

— Vamos diminuir o ritmo — disse Haruhiro.

— Beleza! — Kuzaku parou de correr e começou a caminhar com passadas largas.

Os uivos dos vooloos estavam bem distantes agora. Será que conseguiriam escapar?

Haruhiro soltou um suspiro profundo. Sempre que havia uma folga, ele tentava relaxar. Essa fragilidade era seu maior inimigo.

Ele era seu próprio maior inimigo. Era irônico que, quando o adversário era ele mesmo, ele se tornava assustadoramente perigoso.

Quase pensou em Ranta, mas afastou a ideia. Por que pensaria nele? Não eram mais companheiros. Mas…

Talvez eu não ache isso? Não acredito que ele tenha nos traído completamente.

Esqueça. Posso dizer, no mínimo, que pensar nisso agora não vai ajudar em nada.

Quero descansar. Honestamente, do fundo do coração, só quero relaxar. Comer algo gostoso e dormir profundamente. Por apenas um dia, não, até mesmo por meio dia, quero passar o tempo assim. É um luxo incrível. Sei disso. Tenho que colocar de lado até mesmo esse sonho, por enquanto.

— Kuzaku — chamou Haruhiro.

— Oi.

— Setora.

— Sim.

— Shihoru.

— …Certo.

— Mary.

— Aqui.

— Yume.

— Miau.

— Certo — disse Haruhiro, aliviado.

Estou cansado?

Deixe um comentário