O Soberano de Ossos – Novel - Capítulo 1 - Anime Center BR

O Soberano de Ossos – Novel – Capítulo 1

Lembrai Que És Mortal

 

As águas do rio Lúmia são escuras. A noite envolve os corações num abraço terno, os consolando na perda e no luto. Dizem que as águas deste rio levam os mortos para o seu descanso, mas o que fazer quando um deles não deseja ir?

Próximo ao crepúsculo, à margem das águas negras, sentados em torno de uma fogueira quase extinta, repousava um grupo de aventureiros de cobre. Naquela noite, as estrelas possuíam um brilho único, como se estivessem parabenizando os heróis por sua primeira conquista.

A primeira missão do grupo Espada de Cristal não havia sido tão heroica, mas não deixou de ser significativa. O trabalho foi simples, ainda que árduo: consertar e ampliar uma cerca em torno de uma fazenda. A debandada de javalis fora de época estava atrapalhando o cultivo do milho.

Mesmo sendo apenas um trabalho simplório, para Cliff, líder do grupo, era uma realização e tanto; estudaram juntos na “Alcateia”, formaram-se como aventureiros e, agora, estavam juntos para finalmente comemorar.

Na manhã da comemoração, o loiro tinha acordado mais cedo. A alegria por finalmente ter realizado seu primeiro contrato após anos empunhando a espada era clara em seu semblante. O rapaz, filho de camponeses e órfão de guerra, se encontrava radiante como nunca em sua vida. Os olhos azulados brilharam quando, de encontro à cabeceira, as mãos buscaram e encontraram seu maior e mais novo tesouro: a plaqueta de cobre.

Levantou-se, sentando-se sobre o desconfortável colchão de palha da pousada, a tentar conter o palpitar de seu coração com as mãos trêmulas. Ainda assim, por mais forte que fosse, esta era uma tarefa quase impossível de se realizar. Ele tentou conter as lágrimas em vão, que escorreram junto ao sorriso bobo que se formou à medida que seu polegar traçava delicadamente a plaqueta de metal barato.

Em tuas mãos repousa um símbolo da coragem daqueles

que não se conformam com o mundo em que vivem.”

 Aquelas palavras, gravadas no cobre de segunda, eram agora parte de um jovem que queria mudar o mundo.

Uma das mãos, trêmulas, buscou no peito o que talvez fosse a única recordação de sua inocência: o colar de sua mãe — seu bem mais precioso e também o único de real valor. Ao olhar a peça junto à plaqueta, seus lábios tremeram e, junto à emoção, um choro baixo. Tinha orgulho estampado no rosto, um sorriso de orelha a orelha, o mais puro que já tinha dado em sua vida, e, talvez, o mais verdadeiro que esboçou em muito tempo.

— Eu consegui, mamãe… — ditou e repetiu com uma voz fraca, que ficava cada vez mais baixa até desaparecer.

A sacerdotisa, Nara, por outro lado, não demonstrava a mínima vontade de estar ali. Seus olhos esverdeados rolavam de um lado para o outro, da floresta escura até a beira do lago, tentando calar os impulsos que seu corpo despertara na noite anterior. Foi a primeira vez que sua fé falhou.

Desde sua bênção, Nara nunca havia falhado com mandamento algum, sequer passava por sua cabeça pecar. Na noite anterior à comemoração, ela foi a única que recusou se juntar aos outros na taberna.

Agarrada à sua plaqueta de cobre e escorada contra o parapeito da janela, refletia sobre como sua vida havia mudado desde o dia em que foi forçada a tornar-se uma aventureira. Nunca havia de fato desejado aquele estilo de vida que não a reservava uma cama própria para dormir, a deixava a vagar pelo país sem saber quando descansaria, ou se sequer voltaria para casa. Maldito foi o alto clero, malditos fossem todos.

Mas era melhor engolir seco, já que toda aquela situação talvez fosse sua culpa. Se tivesse se mantido calada, se tivesse virado o rosto ao invés de enfrentar de frente, certamente não estaria ali, afinal de contas, abuso por parte de superiores aconteciam o tempo todo e em qualquer lugar; no seio do sagrado não

As lembranças eram amargas, encarar aquela plaqueta somente lhe causava um desgosto impossível de se esconder. Era nojento saber que só estava ali por ser uma ponta solta.

— Aventureira de cobre, quanta tolice… — Foi quando a plaqueta caiu da ponta de seus dedos e ficou pendendo pelo colar, mirando a poça d’água suja abaixo da janela da pousada. Parecia tão certo manchar aquela peça…  parte de seu corpo ansiava por apenas deixar aquele capítulo de sua vida para trás.

Foi quando seu olhar pousou sobre a janela da casa à frente, num quarto de casal. Um homem, uma mulher, ambos à beira da cama com seus corpos tocando-se, suados.

Os sons que emitiam, os espasmos. Aquilo fez com que Nara ficasse estática. Ela desviou o olhar tentando se inibir da transgressão. Aquele ato, sujo e asqueroso, como eles podiam não ter o mínimo de decência? Ainda assim, os corpos deles, aquela sensação de ser completo por outra pessoa, como seria?

Abriu os olhos devagar, admirando a cena intrigada, sentindo sua garganta secar. A mulher gemia alto, revirava os olhos. Suspiros se condensavam no ar e os beijos tinham uma paixão que não conseguia descrever… O estômago lhe deu algumas pontadas, duma dor boa, da qual nunca havia desfrutado.

A sacerdotisa deslizou os dedos por seu corpo até o ventre, tocando sua pele quente. Um suspiro lhe foi arrancado; deixou seu desejo a conduzir. O pecado nunca foi tão atraente.

Enquanto se afogava em seus próprios pensamentos, Nara esqueceu do porquê de estar ali: anunciar a Cliff e ao resto que iria seguir seu caminho sem mais ser uma aventureira. Aquela farsa já havia perdurado por tempo demais, mas sua paz jamais seria tão facilmente alcançada enquanto existisse Zeliarsa.

— Ei, virjona, tá com uma cara estranha. Tá bem? — perguntou a elfa, estalando os dedos frente à jovem.

Para Zel, a arqueira, o maior prazer dentro do grupo era implicar com Nara. No dia de sua nomeação como aventureira, havia sido expulsa de mais de cinco tabernas na mesma noite. Ninguém poderia dizer que ela não sabia como se divertir.

Crescer em Gomin não foi fácil, somente ela sabia a sensação de passar uma noite atrás das grades. Sua rebeldia e raiva desenfreada mais lhe deram problemas do que uma real ajuda, pois nunca gostou do silêncio. Quando parava para pensar, todas as coisas ruins voltavam num piscar de olhos. Toda a dor e cada cicatriz voltava a latejar lembrando-a de seus erros.

Graças aos Deuses, ela tinha Byn por perto, um ladrão bem afeiçoado e seu melhor amigo, talvez a única pessoa a quem podia confiar. Era ele quem a tirava da sarjeta quando desmaiava de bêbada e quem, quando tinha fome, a entregava seus últimos trocados por um pão dormido que fazia questão de dividir. Se não fosse pela indicação do ladrão à Academia, jamais teria se tornado uma aventureira. Eram carne e osso, onde um estava, era bem capaz do outro estar.

Além de uma bêbada, Zel era uma elfa rara de se encontrar. Não possuía etiqueta ou cordialidade e, quando possível, debochava desses traços. Escolhia se fingir de ignorante a ajudar o próximo a troco de nada. Se pudesse, teria queimado os livros de tradição. Bem, mas o que esperar de uma sem clã que manchava o símbolo de sabedoria dos elfos com tatuagens azuis? Zeliarsa, um caso perdido.

A rixa das duas mulheres não era recente e sequer tinha um real fundamento para existir. Apenas não iam com a cara uma da outra e, sempre que questionadas sobre o assunto, insistiam que a rival quem havia começado a disputa, cada uma com seu ponto de vista. A elfa acreditava que a loira era a responsável por espalhar rumores sobre ela ser uma “promíscua”, por assim dizer. Já Nara, tinha certeza absoluta de que havia sido ela quem havia dito aos outros sobre supostamente ter quebrado sua castidade com um instrutor da Alcatéia.

Não era como se não conseguissem trabalhar juntas, pelo contrário, eram uma dupla infalível em campo. O juramento de aventureiro nunca disse que ambas precisavam se amar. Quando brigavam, chegavam próximas da morte e, se não fosse pela intervenção de Byn, já teriam chegado lá.

O ladino de cabelos castanhos e sardas pontilhadas pelo rosto sempre tentava mediar as discussões, talvez pelo fato de ter feito isso desde pequeno. Veio de uma família turbulenta, visto que, quando criança, estava acostumado a se esconder embaixo da cama quando os gritos de sua mãe e seu pai ficavam mais altos. Foi só quando fugiu de casa que encontrou a tão sonhada paz. Ao menos era o que ele sentia.

— Deixe-a, Zel — disse o rapaz, pegando a cerveja de seu cantil e despejando um pouco na caneca da companheira. As provocações cessaram assim que a elfa deu atenção à bebida, ainda rindo debochando da clériga.

A festa à beira do lago Lúmia havia sido ideia do ladrão. Não se tratava de uma comemoração grandiosa, tampouco um banquete, mas a cerveja e a carne de um dos javalis que conseguiram derrubar pareciam bem mais que apetitosa.

Foi então que Cliff, em meio às risadas e desaforos, se levantou, com um sorriso enorme. Para ele, a vida acabava de começar, afinal, estava no topo do mundo agora, junto àqueles que mais amava.

— Muito bem, muito bem, time. Eu quero falar uma coisa —  anunciou o rapaz, colocando as mãos ao redor da cintura e inflando o peito para não perder a postura.

— Eu gostaria de falar algumas palavras de agradecimen… — Ele se preparava para dar suas primeiras palavras mais profundas de gratidão, quando um grito arrastado e esganiçado o interrompeu:

— Ahhh não! Discurso emotivo de novo não! —  exclamou a elfa.

— Olha, escuta aqui, sua rampeira! Tenha respeito pelo Cliff! —  Atravessou a sacerdotisa, já embravecida.

— Eh? Melhor ser uma rampeira do que ter essa boceta cheia de teia de aranha!

Novamente a fúria as envolvia. O líder engoliu seu discurso a seco, guardando suas palavras para si e dando um tapa sobre a própria testa. Virou a cabeça de um lado para o outro em negação e quando abriu os olhos, não conseguiu conter a risada da cena que tinha frente a si.

Um sorriso satisfeito se formou em seu semblante, podia sentir seu coração aquecer e a força da coragem lhe abraçar de bom grado, pois havia encontrado, em seus amigos, uma família.

De qualquer forma, aquele momento não durou para sempre. As risadas e discussões se encerraram assim que um barulho vindo do rio lhes chamou a atenção. A elfa rapidamente passou para trás da mulher com quem antes implicava, sacando seu arco. O ladrão recuou, colocando seu capuz e Nara engoliu seco, apertando suas vestes.

— Cliff, quais são as ordens? — perguntou a elfa balançando as orelhas, prendendo a respiração para manter a mira firme.

Das águas escuras, braços começaram a se esticar e se arrastar para a borda. Uma figura negra trajava um manto escuro, que quebrava o silêncio à medida que a água por ele escorria. A espada de Cliff deslizou para fora da bainha, seus dentes cerraram e dali indicou com uma das mãos que o grupo entrasse em formação.

A figura se colocou de joelhos, tremendo e se agarrando à armadura. O líder abaixou a guarda devagar diante da cena, começando a se aproximar de maneira cautelosa. Inquieta, a elfa cutucou a sacerdotisa com um dos joelhos e sussurrou.

— Mas… O que é aquilo? —  questionou a elfa, sussurrando incrédula, no que puxava a linha do arco mais firme.

— Não tem poder mágico, nem mesmo parece ser um conjurador a julgar pela armadura — Concluiu a clériga, afiando o olhar às reações externas.

O ladrão empunhava seu   devagar, enquanto a outra mão deslizava para dentro da bolsa. Apanhou um frasco com um líquido roxo, retirando a rolha que mantinha o composto lacrado. O ataque seria efetivo, de vitória precisa, mas, foi quando os olhos de Cliff se prenderam àquela armadura, que ele abaixou sua arma, desesperado:

— Parem! É um guarda de Gomin — Exclamou, correndo na direção do ser. Sua arma repousou no chão ele parou de joelhos em frente ao homem, tentando levantá-lo.

— Senhor, está consciente? Pode me ouvir?! — os gritos do rapaz eram claramente preocupados. Os companheiros de guilda repousaram as armas junto a ele, esperando por uma resposta.

— Sim… — respondeu a figura.

Uma mão cadavérica envolveu o pescoço do loiro. Não existia ali pele ou carne, apenas ossos fortes que se prendiam à derme do rapaz como uma prensa. Cliff rangeu os dentes em dor, forçando seu corpo na tentativa de sair daquela armadilha, mas era inútil.

A figura se levantou, fazendo com que a água acumulada nas juntas da armadura escorresse pelo chão. O manto que encobria a cabeça da criatura cedeu para trás, revelando seu crânio com chifres pontiagudos e dentes afiados como navalhas.

—  Agora cale a boca e me deixe pensar — disse a criatura, voltando sua atenção aos demais ali presentes.

As pernas de Byn tremiam, os corações de todos pareceram parar por alguns instantes. Um arrepio também subiu pelo pescoço da sacerdotisa, que apertou seu cajado mais forte.

A outra mão da criatura segurou a face do líder, tocando sua pele como mãe zelosa que acaricia o filho. O polegar pontiagudo como uma faca tocou um dos olhos e, então, o perfurou feito um balão, o amassando e revirando feito um moedor, deixando o sangue pingar sobre a grama.

—  SOCORRO, SOCORRO! Arhh! — Os gritos de agonia de Cliff quebraram o silêncio.

Tomado pela adrenalina, o ladrão arremessou o frasco, deixando uma grande explosão subir em uma cortina roxa. A arqueira disparou contra o que julgava ser a cabeça da criatura, com o barulho de ossos se partindo confirmando seu acerto. A silhueta de Cliff cai ao chão, afastada da fumaça.

— Graças aos deuses… — suspirou a clériga, aliviada e ao chão, contudo comemorando no momento errado: a cabeça do loiro rolava como uma bola até os pés do ladrão.

Quando a fumaça se dissipou, era possível ver o corpo de Cliff formando uma poça de sangue, deixando a terra lamacenta. A flecha foi fincada no centro do crânio da criatura, mas ela não havia caído. Pelo contrário, começou a marchar na direção dos outros. Nara colocou as mãos sobre a boca, tentando conter o choro de pavor.

— Nara! Faça algo! Por que você não lançou nenhum feitiço?! – exclamou a elfa, preparando mais uma saraivada.

— Eu… não posso…!

— O quê?! Como assim?!

— Ela não é mais pura — Interrompeu a criatura, continuando seu caminhar à clériga.

Um calafrio subiu pelo corpo de Zeliarsa, que recolheu o arco e puxou a loira pelo braço, mas ela não se movia. Em desespero, a elfa se voltou à parceira, gritando à medida que aquele monstro enorme se aproximava.

— O que tá fazendo parada?! Você é idiota?! — perguntou, enquanto a puxava com toda a força que tinha para a levantar.

— Eu… não consigo — disse a loira com uma voz trêmula e chorosa, até finalmente se levantar com movimentos duros e desengonçados, indo ao encontro da criatura.

Ela abraçou o monstro com uma expressão de pavor iminente, seus olhos chorosos estavam arregalados, mas, mesmo assim, um grande sorriso satisfeito se mantinha em seu rosto, como se fosse uma boneca de pano.

A loira olhou para Zeliarsa com os olhos marejados, um fio de saliva desesperado pendia por entre seus lábios quando abriu sua boca para falar, mas já era tarde demais. As garras do demônio se prenderam em uma parte de seu pescoço e o rasgaram de uma ponta a outra, deixando o sangue tomar suas vestes brancas e douradas, as banhando em vermelho vinho.

— Patético… Se ela visse você, teria vergonha, uma devota que não consegue manter seu voto de castidade não merece o privilégio de ser uma conjuradora.

Aproveitando o choque de Zeliarsa em ver aquela cena, o ladrão a empurrou aos pés da criatura para que ganhasse tempo para correr, jogando a honra e a amizade que tinham no lixo.

— Perdão! —  exclamou, o ladino sem sequer virar-se para trás.

O esqueleto direcionou sua cabeça em direção ao homem. Sua voz até o presente momento havia sido serena, mas dali pra frente, ao ver aquele ato, era como se pudesse se sentir a repulsa da criatura em cada palavra, no erguia uma das mãos na direção do ladrão:

— Eu sempre odiei ladrões… mas você.

Num estalo, as pernas de Byn não se moviam mais. Ele as jogou para frente com a pouca força que tinha nos braços e tentou mancar antes de cair na grama seca, mas nada funcionou.

Aos poucos, Zeliarsa foi se levantando, vendo seu amigo se arrastando pelo gramado enquanto gritava desesperadamente de dor. Parecia que seu corpo estava quebrando de dentro para fora.

Quando a grande figura chegou perto do rapaz, sua voz voltou a ser suave, enquanto um de seus pesados pés se erguiam sobre a cabeça do mesmo. O ladrão ergueu um dos braços ao alto, tentando talvez parar sua morte.

— Eu estive no inferno… e eles não tratam bem ladrões, mas fazem pior com traidores.  — O pé desabou com pressão e logo a cabeça de Byn deixou de existir, virando uma massa pegajosa que grudou na bota do ser…

— E, finalmente… chegamos em você, elfa.

A elfa, estática e banhada pelo sangue de seus companheiros, olhava para cima com o rosto repleto de lágrimas e desespero:

—  Não me mate, por favor! — Implorou, se jogando aos pés da criatura.

—  Eu não irei, criança, se você me cumprir uma tarefa simples.

—  Sim, qualquer coisa!

A criatura se ajoelhou, segurando o rosto da elfa com suas garras, a forçando a olhar o vazio de suas cavidades profundas:

—  Jure lealdade a mim.

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