O Soberano de Ossos – Novel – Capítulo 4 - Anime Center BR

O Soberano de Ossos – Novel – Capítulo 4

Para todos os fãs:

Olá a todos! Faz um bom tempo não? Quase seis meses, senti falta dessas cartinhas no começo de cada edição, bom, antes de começar essa cartinha a vocês, gostaria de agradecer ao meu novo parceiro de Novel “Sunny”, por ter comprado essa ideia maluca de escrever a história mais louca que já sonhei. Bem, os últimos meses foram complicados, tivemos um pequeno contratempo durante o preparo deste volume, sendo um deles a própria arte, cujo após a saída da Bianca do projeto se tornou um turbilhão, depois disso, meu antigo parceiro Vinicius assumiu, porém este também deixou o projeto. Foi complicado manter Soberano de pé, mas eu nunca desisti deste conto, todas as vezes que precisei me inspirar, eu lia os comentários de vocês na Novel, e sabia que tinha que tentar de novo. Fora isso, trabalhei em outros projetos, que ainda estão por vir, e fiquei ocupado pela grande pressão social da falta de dinheiro (Hehe).  Eu espero que vocês gostem deste capítulo, ele foi lapidado o máximo, e ficou tão grande que tive que dividir em dois! A próxima parte sai no próximo mês e estou super ansioso, pois a cada novo dia, estamos mais perto de completar nosso primeiro volume com 12 capítulos!

 

Autor: Guilherme Fernandes | Instagram: @Gui_escritor

Artista: Sunny | Instagram: @Esirynnus

 

 

Mande sua cartinha e apareça na próxima edição:

recadosparaoelegor@gmail.com

 

 

(Um tributo ao Vini, e ao todos os fãs, a última arte do Vini na obra, Tranita e Elegor no túmulo da criança.)

 

 

 

 

Sangria

 

O canto dos pássaros era confortável, vinha como uma brisa de veraneio, suave e passageira, se perdendo em meio aos imensos pinheiros da floresta densa.  Entre as sombras que se faziam pelas árvores, cipós e mata alta, os grilos silvestres enchiam o ambiente com sua própria melodia, porém esta não era lá agradável de se ouvir, pois devido a quantidade deles naquela época do ano, ficar por ali no “estopim do verde” era pedir para ensurdecer. A visualização do céu era quase nula, a neblina densa acompanhada da escuridão ambiente fazia com que fosse fácil de se tropeçar ali. Dificilmente, algum corajoso que não fosse louco entraria naquele local com algum intuito.

E por azar, ainda que fosse manhã, não se tinha nem sequer um bendito sinal de que o tempo poderia melhorar, maldita época de chuva, pensou Zeliarsa. Foi uma das poucas coisas que conseguira pensar, afinal de contas, quando um elfo da floresta pisa em seu habitat natural, é correto afirmar que sua mente deixa de ser sua “propriedade”, para ser propriedade de sua mãe, a natureza.

 

— Puta merda! Como eu odeio o mato! —Exclamou Zeliarsa, dando um tapa espalmado sobre sua própria testa.

 

— Se acalme elfa de Jahän, estou na última caixa — Respondeu Tobias com uma voz falha e frágil.

 

Ajoelhado sobre o chão barroso, com sua barba longa e agora imunda tocando o solo lamacento, o velho humano carregava consigo alguns pedaços de bambu e um cantil. Agora não estando mais nu, vestindo trapos, que não seriam melhores do que sacos de batatas costurados e amarrados em seu corpo frágil e magricela. Quando a jovial elfa questionou o velho do porquê não usar sua magia para lhe fazer novas roupas, ele respondeu com um sorriso gengival que fez a mulher tremer em desconforto. Respondeu ele que seria uma lembrança do passado feliz no campo. Para a ex-escrava que fez o agrado ao senhor, era um gesto meigo, para Zeliarsa, foi bizarro.

Os símbolos em suas costas brilhavam em dourado, suas longas e grossas unhas estavam imundas com terra de tom avermelhado se juntando abaixo delas. O ancião abriu um buraco no solo, assobiando enquanto o fazia, depositando os pedaços de bambu ali cuidadosamente, como se estivesse decidindo a posição de cada pequeno pedaço. Apesar de curiosa, Zeliarsa observava aquilo com um olhar superficial, não dando muita atenção ao que o velho fazia, sua destra repousava sobre a guarda de seu novo “brinquedo”. A adaga, se é que poderia se chamar assim, tinha sua lâmina em formato curvado quase como um disco de arremesso ou bumerangue. Sua guarda era oval com as pontas contendo pequenos ganchos laterais, Tobias enquanto forjava tal arma peculiar, havia alertado a elfa que aquilo seria inútil. E de fato era verdade, em um combate corpo a corpo, Zeliarsa não teria chances usando aquela arma estranha, mas seu intuito não era lutar, nunca foi na verdade. Na escola a qual havia se formado aventureira, seu estilo de combate era intitulado de “bater e correr”, e isso ela fazia com primor.  Zeliarsa se formou na academia como a melhor atiradora, não havia arma a distância cujo ela não soubesse operar.  Nas tavernas que frequentava ficou conhecida não só por arrumar confusão quase todas as noites, mas também por ser uma excelente arremessadora de facas, talento do qual fazia questão de se gabar, principalmente quando estava bêbada.

 

— Isso vai funcionar mesmo? — Perguntou a elfa cruzando os braços na altura do peito.

 

— Sim, sim… caixas de dispersão como esta, foram muito usadas em Shivar, no período em que— O Velho sem perceber, começava a colocar um tom didático em suas palavras, virando sua atenção a elfa.

 

— Ah, não vovô, eu não quero saber— Disse Zeliarsa o interrompendo.

 

Como uma criança birrenta a elfa era castigada, a represália que sofrera de sua mãe fora muito pior do que um cascudo ou puxão de orelhas. Logo após terminar sua frase, a de orelhas baixou a cabeça rapidamente colocando as mãos sobre os ouvidos, um ruído ensurdecedor lhe tomava a consciência e tomada por um impulso Zeliarsa berrou. Seu uivo de dor era tão alto, que era como se sua pele estivesse sendo arrancada de si enquanto ainda estava viva.

 

— MAS QUE INFERNO, CALA A PORRA DA BOCA, FLORESTA MALDITA!!!

 

Ela gritava o mais alto que podia, usando todo ar de seus pulmões, sua raiva era tão pura e genuína, que nem mesmo quando matou os traficantes de escravos uma noite atrás havia se exaltado tanto.

 

Em sua fúria a de orelhas se virou contra a árvore em que estava outrora apoiada, a olhando como se fosse alguém que tivesse lhe cuspido no rosto. Ergueu o punho em um frenesi de adrenalina e socou o tronco com tudo que tinha. Logo depois se arrependeu, pois machucara a mão o fazendo. A dor e a raiva logo sumiram, dando espaço a bochechas coradas e olhos levemente marejados,

 

“Eu sou retardada?!”

 

Pensou consigo mesma, e então a floresta lhe respondeu:

 

“Minha criança, por que não desistes de tua teimosia? Não és tola, ou débil, és perfeita filha minha, volta ao seio da tua mãe, não rejeita quem és.”

 

    A elfa, respondeu ao chamado interior, com a paciência se esgotando.

 

“Eu já disse, porra! Eu não sou a caceta da sua filha, caralho! Eu não vou virar uma druida e ficar tragando erva de ninfa no mato o dia todo!”

 

   A voz em sua mente, então persistiu.

 

“Tens um vínculo comigo, assim como teu pai, o pai do teu pai, e aqueles antes deles, assim como tua mãe, a mãe de tua mãe, e aquelas antes delas, o meu povo é meu, e eu sou dele, a mim tu pertences, e eu pertenço a vós, somos belos por ser quem somos, somos únicos pois assim fomos feitos.”

 

— A vai se fuder— respondeu Zeliarsa alto, abanando a mão machucada rapidamente, como se aquilo fosse resolver a dor.

 

O ancião, sem tirar o foco de seu trabalho gargalhou, uma risada prazerosa como se estivesse em um banquete farto, se deleitando com uma mesa cheia. Zeliarsa escutou a risada e a princípio, teve vergonha, logo assumiu a postura de um cão raivoso, ladrando da maneira mais esganiçada que podia.

 

— Perdeu alguma coisa, peça de museu? — Disse a elfa cerrando os olhos, o massacrando com o olhar, inevitavelmente levantando o seu dedo do meio ao velho humano.

 

— Eu pensava que os elfos amavam a floresta— O ancião a respondeu com um sorriso satisfeito, não era deboche, tão pouco gozação, e isso a deixava inquieta.

 

— Velho, que fique claro, eu não gosto de você, do mesmo jeito que eu não gosto do Elegor— Disse a elfa com as orelhas agora levantadas, como as de uma raposa atenta ao ambiente.

 

— Não há necessidade de se falar coisas óbvias, jovem elfa— O velho a respondeu estendendo sua mão sobre os pedaços de madeira— Elfos de Jahän sempre foram teimosos.

 

— Escuta vovô, corta esse papo furado de—Zel fez uma pausa, tomou um pouco de ar inflando seus pulmões, tentando ficar um pouco mais robusta, em seguida, soltou o ar se despojando, colocando uma das mãos sobre sua coluna fingindo dor, logo começando a falar com uma voz arrastada, tentando simular idade.

 

— Esses jovens de hoje são muito rebeldes, você devia ser mais paciente e honrar seu legado elfo, cadê o meu mingauzinho?! Cadê minha sopinha?!— Ela imitava, ou tentava imitar a postura de um idoso enquanto gesticulava.

 

Após sua sátira, fez uma pausa voltando à sua postura de antes, cruzando os braços na altura do peito e com a mão que ficava para fora, lhe mostrava o dedo do meio, completando a hostilidade ao falar:

 

— Eu vou mandar você tomar no seu cu, velho.

 

Quando Zeliarsa completou sua fala, Tobias ficou em silêncio, um silêncio cujo fez a elfa se sentir angustiada, talvez tivesse passado dos limites novamente. Era especialista nesse tipo de coisa afinal de contas. Zel buscava preocupada, alguma coisa para dizer que aliviasse levemente sua consciência, algo que não fosse um pedido de desculpas porque isso não faria nem morta. O grisalho deixou uma gargalhada escapar, o que não ajudou a elfa a conter sua irritação. Em meio a risada do velho, uma tosse seca se fez presente, acompanhada de uma respiração que parecia ter dificuldades de encontrar a entrada e saída dos pulmões. O idoso contraiu o corpo como um feto, num semblante medonho de olhos esbugalhados e boca aberta para tentar puxar o ar, as veias de seu pescoço saltavam num esforço tão visceral que devido a sua magreza se fosse encarado por tempo demais, era possível ver sua pulsação.

 

Ele socava seu peito inúmeras vezes, como se estivesse se engasgando com o próprio ar.

 

Zeliarsa descruzou os braços por alguns segundos, havia se impressionado, deixava transparecer uma leve preocupação em sua face, estendendo uma das mãos a ele. Mas logo relaxou, pois o ancião voltava a sua postura sorridente, trabalhando com um sorriso ainda mais satisfeito enquanto despejava a água de seu cantil no interior de um dos bambus.

 

— Pelo contrário, minha amiga! —  Disse o velho, fechando o cantil— Eu sempre adorei a ousadia dos elfos de Jahän.

 

Zeliarsa tombou sua cabeça para o lado ao escutar a frase, a raiva em seu semblante outrora hostil começou a sumir, dando espaço a uma face repleta de dúvida. As palavras sumiram, pela primeira vez, ela não tinha uma resposta na ponta da língua.

 

— Espera… deixa eu ver se eu entendi, você está me dizendo que gosta de Jahäns? Você tem noção do que está falando? —  Perguntou ela, baixando as sobrancelhas como se estivesse em aflição

 

— Como poderia não gostar? — Perguntou o velho sincero.

 

— Tendo bom senso. — Respondeu ela seca.

 

O ancião se levantou cambaleando, parecia que a menor brisa poderia arrastar Tobias por milhas e milhas de distância, seus ossos estalavam e só conseguiu apoio, após tomar sua bengala do chão. Esta por sua vez era pequena e curta, uma maravilha da transmutação.

 

— Bobagem! Tudo bobagem! Desde cedo, tudo que se sabe sobre esse mundo que existem correntes, correntes em escravos, correntes em animais, correntes morais, nascemos acorrentados a nossas mães, e estamos acorrentados à morte até o fim, presos! Estamos todos presos!

 

O velho se apoiava em sua bengala, virando agora sua atenção a elfa, suas íris de cor preta e dourada se fixaram nela como se fosse um predador ou uma peça de carne suculenta. Zeliarsa tentou o encarar de volta, porém, o brilho que tais olhos possuíam a fazia sentir um calafrio, era como uma mariposa no fogo, a sedução de encarar, e o temor de ser consumida.

 

— Mas você, senhorita Zeliarsa, você é a filosofia de Jahän encarnada, a rebeldia élfica personificada! — Dizia o velho entusiasmado, com as pupilas ganhando um tom dourado mais forte.

 

Zeliarsa encarou o velho que agora sim parecia que teria perdido por completo o senso comum, tal postura infantil não cabia a alguém que o vento podia carregar se não tivesse almoçado, mas de certa forma, era engraçado. Zel deu uma risada baixa ao ver aquela pilha de ossos e pele empolgada como um bardo num bordel.

 

— Velho, você realmente não bate muito bem—Disse Zeliarsa se aproximando do buraco e do senhor.

 

— Então já que você se empolgou, aproveita pra me dizer, para que são essas coisas, e porque o Elegor mandou você colocar elas pela floresta? — Perguntou a elfa se ajoelhando para observar.

 

— Ah sim, espere, deixe-me finalizar.

 

O velho fechou os olhos, inspirando profundamente e tornando-se a ajoelhar, a elfa se distraiu por alguns segundos, e quando voltara a realidade, percebia que agora, o ancião murmurava palavras de clamor e adoração em tom baixo. O instinto a fez recuar, reconhecia aquele sentimento profano, havia sentido isso após o demônio que possuía seus amigos tocar seu corpo. Não era sujo, tão pouco era sombrio em sua essência, mas agradável, era uma expressão forte demais para definir tal aura. O ancião estendia as mãos magras e finas sobre os pedaços de bambu, de suas palmas, um brilho envolto de um preto fosco com linhas douradas deixava suas falanges, como se a própria luz estivesse podre. Os pedaços de bambu começaram a se abrir como flores, tomando formas, se juntando, expandindo e retraindo como órgãos. Era fascinante assistir, mas eu nunca que colocaria a mão ali, pensou a elfa. Os tocos antes espalhados, se aglomeravam no centro, se arrastando até ele como minhocas, se juntando ao um pedaço maior fincado no solo, este cujo havia sido preenchido com água. O pedaço maior se achatou, sua forma cilíndrica iria ficando robusta e quadriculada. Em suas pontas, ao invés dos cantos da “caixa” continuarem quadriculados, o próprio objeto se arredondou. Dos tocos menores, pequenas vegetações surgiam, grama e mato alto, daquele tipo cujo pisamos sem nem sequer se importar. Pequenos buracos deixavam estes agora “canos”, e deles, uma pequena fumaça branca começava a subir, se misturando à neblina que cobria as botas de Zeliarsa. Em seguida, o velho pegava um punhado de mata alta, atirando-a por cima de sua criação, colocando alguns gravetos em cima para finalizar, como um cozinheiro colocando o último adorno no prato.

 

— Está terminado— Disse Tobias, se levantando com dificuldade.

 

Zeliarsa levantou o olhar, e por gentileza, ajudou o velho a se pôr de pé, colocando uma de suas mãos sobre seu peito e outra sobre as costas. Foi quando sentiu um estalo ao deslizar os dedos pelos símbolos dourados nas costas do ancião. A elfa abriu um sorriso de canto, baixando a cabeça e sacudindo em negação como se tivesse pensado em uma piada boba.

 

— Obrigado pela ajuda, jov— Zeliarsa novamente o interrompeu.

 

— Não agradeça velho, e pare de me chamar de jovem ou elfa, isso é um pé no saco, me chame de Zeliarsa, ou Zel, para encurtar.

 

Ela deu uma risada, voltando sua atenção agora à floresta, parecendo até que o ódio que sentia havia sumido durante aquele momento.

 

— E outra, eu não sei se você sabe, mas Jahän na minha língua significa escoria, em outras palavras, você está me chamando de vadia ou semelhantes, se não quer usar Zeliarsa, use o sobrenome.

 

— Oh, certo… e qual seria?

 

— Vendaval, Zeliarsa Vendaval.

 

O velho apertou os olhos, coçando a barba enquanto a olhava intrigado.

 

— Então… você é uma nobre?

 

— Não, mas por escolha.

 

— Alguma saga épica, digna de um bardo eu presumo — Disse o velho tentando andar ao lado da jovem, que começava a caminhar.

 

— Nem tanto, eu saí porque odeio almofadinhas— Respondeu ela revirando os olhos.

 

— Mas então, velho… me conta, qual é a da roupa bizarra? — Perguntou a elfa com um sorriso de canto.

A primeira carta era colocada sobre a mesa, esta que era forrada com um pano branco, sedoso e macio. O cheiro do incenso só não era mais satisfatório do que o ruído da lâmina deslizando para fora do baralho e estalando contra a mesa. Estava escuro, extremamente escuro, a pouca iluminação ambiente se fazia por um velho e pobre castiçal quebrado, cujas velas derretidas se aglomeravam para formar amálgamas de cera. Enquanto as velas queimavam despejando lágrimas de cera em meio a aflição e sombras, há poucas quadras dali a princesa de Gomin caminhava às escondidas como um rato faminto. Disfarçada ou pelo menos acreditando estar, a burguesa da capital se envolvia nos mantos de sua mucama, cujo tinham uma cor branca puxando para um amarelo encardido. Uma típica roupa local das “Quebradas de Marciello”, não que este fosse o nome dali, mas se ela ousasse repetir o que os nobres falavam do povo abaixo da praça, provável que seria condenada pelo crime de “patrícia” e sabe se lá qual seria a sentença.

 

“Pelos deuses, o que eu estou pensando?”

 

A pergunta ecoava na mente de Salana, a cada novo passo que dava entre a multidão, cobrindo seu rosto e fingindo uma tosse pigarrenta, tentava se passar por enferma. A agonia de caminhar por ali era tamanha, que sequer poderia expressar. As casas não respeitavam o espaçamento entre si, algumas desciam para o subsolo, outras, pareciam que o marceneiro fizera goza com o proprietário, eram estreitas demais ou de formatos que a geometria não conseguiria explicar. Os muros sim existiam, junto a eles, portões de concreto, madeira, e aqueles mais modestos feitos sim de tijolos, vinham com uma lâmina barata e quebradiça que os mercantes de Shivrav adoravam, vidro. Nas vielas o olhar de Salana evitava de sequer passar por muito, os olhos amendoados da princesa desviavam de todo possível beco que podia passar. Não que não fosse natural ver o comércio de drogas, vinho, armas, mulheres, carne…carne humana. É que de fato, a nobreza jamais daria muita importância aquela parte da cidade, pois, enquanto eles pagassem os impostos e não subissem para a parte superior, poderiam se matar e violentar uns aos outros. Eles eram plebe, não pessoas. E este pensamento repulsivo, era o que enfurecia a jovem o suficiente para às vezes, questionar o amor que tinha por seu pai, e por seu país. Não era por esse propósito que havia virado uma sacerdotisa, não era este o dogma que pregava e principalmente, não era por esse propósito que havia feito sua mãe perder a vida. Quando passava pelos moribundos e mendigos na rua, era como se seu peito sentisse uma fisgada de volta à realidade. Pois o poder e vontade de ajudar, possuía, mas se o fizesse, botaria tudo a perder.

 

Foco, Salana…foco.

 

O chão lamacento onde pisava parecia afundar o solo cada vez mais, o cheiro pútrido de cadáveres de animais na sarjeta começava a lhe causar náusea.  Deveria estar perto…segundo a empregada que havia lhe recomendado aquilo, quando o lugar começasse a feder como inferno, bastava seguir em frente, e encontrar o galinheiro.

Porém, o que a quebrada não tinha de classe, tinha de rentável, tamanhas aglomerações, corredores fechados com pouco ar, pessoas e mais pessoas… era fácil se perder. E principalmente, de ser descoberta.

 

“Eu espero que Elegor valha a pena esse esforço todo.”

 

Pensou ela em sua maior dúvida, ou desejo. Os cacarejos a fizeram acordar de seus pensamentos, os olhos dourados da jovem pousaram sobre uma pilha de pequenas gaiolas, todas cheias das aves gorduchas e de penas brancas. Algumas, tinham até um laço cor rosa pastel as enfeitando, o que fez parte da jovem se derreter, pois amava qualquer tipo de animal que fosse.

Até mesmo insetos, os evitava matar pois os respeitava como vida, com um sorriso infantil a princesa se aproximou de uma das aves com o lacinho, e tomou um susto, quando abruptamente uma mão grosseira e faltando o anelar a pegou pelo pescoço. Salana ficou estática aquela visão, a sua frente, um homem robusto usando um avental sujo e com um bigode desfiado nas pontas.

Ele cuspiu num balde, cujo tinha outras cabeças em seu interior e estava quebrado na lateral, fazendo o sangue viscoso escorrer pro chão lamacento da entrada do lugar.  Com força, deu um supetão na galinha a colocando contra a bancada e mirou no laço cor de rosa no pescoço, a degolando num único e preciso golpe, enquanto Salana encarava aquilo horrorizada. O sangue espirrou contra o vestido que a jovem usava e por um grito de apavoro suprimido ela tremia de olhos arregalados e quase, quase chorando pelo animalzinho. O açougueiro a olhou, e ela o encarou de volta, e então, o desespero, a paranoia, ele vai me reconhecer?! Ele vai gritar?! Vão me matar ou abusar aqui mesmo?!

 

— Ela já estais a te esperar, gaja— Disse o açougueiro, limpando o sangue viscoso e amarelado da ave de sua bancada com um pano, cujo melhor adjetivo para este, seria podre.

 

Ela não respondeu, na verdade, era correto afirmar que o aceno de cabeça que a jovem deu em resposta ao açougueiro, fora somente uma reação inconsciente. O homem apontou com a faca a um corredor dentro do açougue, e Salana seguiu. Aquilo estava começando a se tornar loucura, mas que escolha teria? Óbvio que seu pai jamais aprovaria tal atitude ou qualquer outra pessoa que estivesse sã. Mas as respostas óbvias já não mais a ajudavam. Os feiticeiros não conseguiam a ajudar, a bruxa mais poderosa que conhecia não havia lhe dado respostas, o químico mais pesado já não fazia efeito. Tão pouco rezar, dia e noite, em penitência como fazia no passado estava lhe ajudando, pois a cada noite, aquele homem de cabelos pretos e olhos vermelhos voltava.

Nos sonhos, ele sempre a tocava fortemente, fazia seu coração bater num ritmo acelerado como se fosse rasgar seu peito tamanha felicidade. Quando a beijava, ou quando seus corpos se tocavam, um calor pecaminoso consumia a ela, um cujo ela se desculpava todas as noites por sentir. Mas ele sempre, não importa o que fizesse, era tomado de si da forma mais horrenda possível. Ele morria de novo e de novo, num ciclo sem fim onde ela poderia apenas assistir, e clamar por aquele desconhecido que a atormentava… Elegor, Elegor, Elegor. Uma portinhola no fim do corredor entrava a frente da visão de Salana, e junto dela, uma placa de madeira, humilde e quebradiça, com pequenos pedaços faltando, porém com seu conteúdo ainda legível.

 

“Madame Boa-Fortuna, mandingas, bruxaria e cartomancia.”

 

— Acho que deve ser aqui…— Disse Salana levantando um pouco o cenho enquanto colocava uma das mãos sobre a portinhola.

 

A segunda lâmina era aberta sobre a mesa, assim que a portinhola se abriu, uma voz melódica e calorosa ecoou na escuridão, como se quisesse guiar Salana.

 

— Eu estava esperando por você— Disse a voz ecoando em um dos cantos da sala.

 

Em um dos cantos da sala, iluminada por somente um castiçal rústico, em frente a uma mesa de tecido branco, macio e limpo…

Ele sentiu um arrepio com a mordida sobre seu pescoço, um gemido dentre os lábios lhe escapava e ele tombava o pescoço para o lado, enquanto ela o tocava com suavidez, deslizando as unhas pelas linhas de seu peito. Tombou a cabeça para trás se deleitando com o prazer que ela lhe proporcionou, os gemidos daquela voz angelical tomavam o quarto, e enquanto ele asfixiava sua garganta, só conseguia pensar no quão era saboroso assistir morrer com suas mãos. Sim… morra pra mim… ele despertava, o esqueleto vivo, se tivesse pulmões estaria ofegante. As visões outrora perturbadas o assombravam, assim como, a nova voz, de outro corpo. As memórias de outros se misturavam as suas, a cada novo corpo, uma nova voz, a cada nova alma, uma nova lembrança. Repousando no interior de uma tenda escura, talvez a única que não foi consumida totalmente pelo fogo da noite anterior a esta, Elegor se deitava entre um amontoado de palha forrado por um lençol imundo de sangue. A pele já não mais cobria sua caixa torácica. Os órgãos já haviam virado uma poça cascosa, cujo vazava para os lados do peito. As pontas de flechas haviam se perdido na amálgama de carne derretida…. Os fios de cabelo loiro começavam a se desprender conforme levantava.

— Deve ter morrido ontem…— Disse ele para si mesmo em tom baixo, colocando as mãos sobre sua caixa torácica derretida.

As unhas afiadas do demônio se prendiam aos ossos do peito, e então, num fechar da palma lhe esmagavam, o transformando em pó em questão de um piscar. Ele enfiou a mão putrida dentro do interior, mexendo no amontoado de restos de si mesmo, e retirou o coração, ainda pulsando. E então o pressionando firme, dizia em um tom calmo.

— Eu sinto que em seus últimos momentos, tenha que ver coisas assim, Abert… obrigado.

Quando o silêncio voltou a lhe assombrar, o gelatinoso som da carne deslizando entre os ossos enquanto era esmagado, e um sentimento fúnebre de respeito e carinho lhe tomava. Foi o suficiente para lhe fazer agora, ter forças para se levantar, a carne começava a se tornar cinzas, estas que se amontoavam e com o arrastar do lençol se misturavam aí ar se perdendo no interior da tenda. Até uma voz melódica impor ao silêncio um fim precoce, dentro das sombras da tenda, algo fez Elegor congelar ao ouvir.

— Eu estou amando sua performance — Respondeu a voz feminina com um tom doce, quase maternal.

Dentre as sombras, a figura de uma elfa de cabelos cinzas e curtos, com orelhas azuis se colocava em cima, estava nua, com a pele branca com um tom do mais claro inverno lhe tomando. Ela o encarava com seus olhos amarelados.

— Está forma não é adequada a você — Disse o demônio de forma ríspida, virando sua atenção ao feixe de luz que adentrava o espaço.

— Achei ela a mais apropriada para conter a minha forma… e consigo saber, que você gosta do que vê — Disse ela num tom provocativo, se aproximando devagar.

O crânio girou em torno do pescoço, as lacunas escuras que eram os olhos de Elegor se fixaram a figura que imitava a elfa. Os olhos escuros de brilhos dourado se encontravam a ele, a mulher, dizia lhe tocando a caixa torácica.

— Viemos te avisar que o jogo está começando a entreter a nós, e que está fazendo um ótimo trabalho…

A mulher colocava as mãos sobre os chifres da criatura, que não reagia tão pouco com hostilidade ou afeto, apenas respondendo, com frieza.

— Quanto tempo este mundo ainda tem?— Perguntou Elegor.

— No seu modo de contar os dias… você tem apenas seis meses para resolver essa questão, o prazo pode se estender conforme você for nós entretendo claro… mas por hora. É o máximo que você tem — Respondeu a elfa se colocando a se estender sobre as pontas dos pés, para lhe alcançar os lábios.

— E o que você deseja comigo, agora?— Disse Elegor a segurando pelo pescoço.

— Quero provar o sabor de um humano morto pela primeira vez…a cama está logo ali.

A criatura tensionava o pescoço da elfa, que parecia agonizar por alguns segundos, porém depois, abriu um sorriso genuíno de prazer e soltou um gemido semelhante a um de deleite, e então. As sombras tomavam o corpo da mulher, a levando novamente à escuridão de onde saiu.

Poucos segundos depois, Zeliarsa adentrava o ambiente impaciente, esbarrando em Elegor de forma avoada e recusando para trás um pouco.

— Ossudo, terminamos na floresta!— Exclamou ela, olhando para ele, encarando o ambiente escuro.

— Excelente — Respondeu Elegor.

Quando os olhos de ambos de encontraram, um grito agudo de uma mulher desesperado os alertou.

“ELES VÃO SE MATAR ASSIM!”

Foi ai, que os barulhos começaram a ficar mais altos.

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