Vol. 2 Cap. 121 Tesouros Problemáticos
Embora Arran tenha se sentado em silêncio, o Mestre Xu manteve um olhar desconfiado sobre ele e a bolsa. Pelo olhar em seu rosto, era como se ele temesse que Arran pudesse pegar a bolsa e fugir a qualquer momento.
E se era isso que o homem gordo de fato temia, ele tinha razão em estar preocupado. A ideia de fugir já havia se passado na cabeça de Arran várias vezes desde a chegada do homem, mas a única coisa que o impedia de fazer isso era a certeza de que seria pego.
Ele pensou que não poderia ser tão ruim como ele temia. Ainda que a bolsa tivesse uma quantidade de tesouro impressionante para a maioria das pessoas, para alguém tão rico quanto o Lorde Sevaril, a quantia não deveria ser ultrajante.
Arran entendeu que a afeição de Lorde Sevaril por Snow Cloud não se estendia a ele. Caso o homem queira ficar com os tesouros de Arran, seria fácil fazer com que ele desaparecesse.
O tempo passava lentamente para Arran, entre a esperança e a preocupação, mas a verdade é que ele ainda não conhecia bem o Lorde Sevaril para entender completamente a situação. Agora o que importava era o caráter do homem, e disso ele não sabia nada.
Finalmente, depois de meia hora, a porta se abriu novamente e o Lorde Sevaril entrou um momento depois.
“Vá”, disse ele ao Mestre Xu. “E não fale uma palavra sobre isso para ninguém.”
O Mestre Xu imediatamente obedeceu à ordem e, ao fechar a porta atrás de si, Lorde Sevaril se voltou para Arran.
“Você parece ter uma grande fortuna. Por que não me procurou diretamente?”
“Eu vim”, apontou Arran.”Suponho que sim, de certa forma”, respondeu Lorde Sevaril conforme seus olhos se moviam para a bolsa sobre a mesa. “Suponho que devo ver por mim mesmo o motivo de todo esse alvoroço.”
Ele pegou a bolsa que, logo depois, arregalou os olhos de surpresa.
“Onde você conseguiu a comida?”, ele perguntou, olhando bruscamente para Arran. Ao falar, havia algo em seus olhos que deixou Arran desconfortável – um indício de ganância mal disfarçada.
“A comida?” Arran franziu a testa com a pergunta, com o olhar ansioso do homem aumentando ainda mais sua confusão. De todos os seus bens, a comida parecia ser o menos notável. Mesmo tendo uma verdadeira montanha de comida, a essência natural que ela continha era fraca demais para ser de grande utilidade para os magos.
“Você tem os recursos para criar um exército inteiro”, disse Lorde Sevaril, dando a Arran um olhar atento. “Onde você conseguiu isso?
De repente, Arran entendeu a situação e quase quis dar um tapa em si mesmo por não ter percebido antes.
Ele havia descartado a comida como quase sem valor, já que a concentração de Essência Natural nela era muito baixa para ser útil para ele. Mas para os plebeus, seria diferente.
Usando uma técnica simples de refinamento corporal e com alguns meses de ingestão da comida do Panurge, os soldados comuns poderiam dar os primeiros passos para se tornar um refinador corporal. Logo depois, uma ou duas garrafas de vinho iriam permitir que eles dessem mais um passo à frente.
Embora ainda estivessem indefesos contra qualquer mago de verdade, eles ficariam ainda mais fortes do que soldados ou bandidos comuns. E com a quantidade ridícula de comida e vinho na bolsa, teria o suficiente para formar um exército de milhares de pessoas.
Agora Arran percebeu que as coisas que Panurge havia dado a ele eram suficientes para formar um exército ou até mesmo um clã. Ele não teve tempo de pensar nas intenções por trás do presente – Lorde Sevaril aguardava uma resposta e a centelha de ganância em seus olhos só havia aumentado.
“Um amigo próximo me deu”, respondeu Arran, fazendo o possível para manter a expressão confiante. “Parte de um pequeno presente para ajudar meu progresso.”
Ele percebeu que foram os dons de Panurge que atraíram o interesse de Lorde Sevaril, e não havia dúvida que o homem era capaz de tomar tudo o que ele tinha à força. Mas se ele acreditasse que Arran tem apoiadores poderosos, talvez relutasse em arriscar irritá-los.
Felizmente, seu estratagema parecia estar funcionando, já que a expressão de Lorde Sevaril se tornou pensativa diante de suas palavras.
“Parece que eu o julguei mal”, disse o homem de cabelos brancos com uma voz pensativa. “Eu acreditava que a Snow Cloud o acolheu como um ato de caridade, mas agora parece que eu posso ter entendido errado.”
Arran deu de ombros, como se achasse o assunto indigno de discussão. “Então, você está interessado ou não?”
“Estou interessado”, respondeu Lorde Sevaril. “Muito interessado. O que você oferece é valioso e oportuno. Mas temo que não posso oferecer um preço justo por seus produtos – o número de cristais de essência em minha mão é limitado.”
Novamente Arran viu um brilho de ganância nos olhos de Lorde Sevaril e percebeu que o homem não tinha intenção alguma de deixar esse preço escapar, quer ele pudesse pagar ou não.
“Tenho certeza que podemos chegar a um acordo”, Arran disse rapidamente, com medo de que se ele tirasse a bolsa da mesa, Lorde Sevaril pôde correr o risco de irritar os aliados que ele acreditava que Arran poderia ter.
E isso não era uma perda total – mesmo se Arran conseguisse algumas dúzias de Cristais de Essência ao invés das poucas centenas que ele esperava, ainda assim ele se manteria abastecido pelos próximos meses.
“Fico feliz que esteja disposto a ser razoável”, afirmou o homem dando um sorriso oleoso que causou um arrepio na espinha de Arran. “Eu posso oferecer mil e oitocentos Cristais de Essência de alta qualidade, e um item de sua escolha do meu tesouro pessoal para compensar a diferença.”
Por um momento, Arran se surpreendeu e precisou de toda a força de vontade para manter a compostura. Essa oferta foi muito além de tudo o que ele poderia esperar, foi o suficiente para que ele se mantivesse abastecido com Cristais de Essência por anos.
Entretanto, ele sabia que precisava esconder seu choque. Se Lorde Sevaril percebesse a fachada e se desse conta de que Arran só tinha seu próprio poder para protegê-lo, a ideia de economizar quase dois mil Cristais de Essência ainda seria tentadora demais para ser deixada de lado.
Ao fingir que estava pensando no assunto por alguns segundos, ele concordou lentamente com o Senhor Sevaril. “Essa oferta parece razoável. No momento, não tenho muito uso para essas mercadorias, mas preciso muito de cristais de essência.”
A expressão alegre no rosto de Lorde Sevaril deixava claro que a oferta não era nada razoável, mas Arran sabia que não estava em posição de barganhar. E mesmo que o homem tivesse a melhor parte do acordo, ainda assim Arran ganharia muito mais do que esperava – sem falar que escaparia com vida.
“Então temos um acordo”, disse Lorde Sevaril. Sorrindo, ele acrescentou: “E eu lhe devo um favor”.
“Não há necessidade de favores entre amigos”, respondeu Arran, sorrindo para o homem de forma tão calorosa quanto insincera.
Lorde Sevaril afirmou com a cabeça, obviamente satisfeito pelo resultado da negociação. “Eu sugiro que retornamos à fortaleza. Levará algum tempo para meus homens descarregarem o conteúdo da bolsa e, durante esse tempo, você pode escolher algo do meu tesouro. Há vários itens que podem despertar seu interesse.”
Conforme voltavam para a fortaleza na carruagem de Lorde Sevaril, Arran se perguntou quais eram as intenções de Panurge com os presentes. Ele pretendia que Arran formasse seu próprio exército? E se sim, com que objetivo?
Seja qual for o motivo, Arran teve certeza que havia algo por trás disso além do que ele entendia no momento e teve uma sensação desconfortável de que os eventos do dia teriam consequências de longo alcance.
Vol. 2 Cap. 122 O Poder Das Mentiras
Durante a viagem de carruagem de volta ao castelo, Arran e Lorde Sevaril permaneceram calados, Arran continuava pensando nos acontecimentos do dia e Lorde Sevaril em seus próprios pensamentos.
Agora que ele achava que entendia o verdadeiro propósito da comida de Panurge, Arran se convenceu de que estava perdendo o negócio. Ele já havia vendido ao Lorde Sevaril o que equivale a um exército de Refinadores de Corpo por um preço inferior de um quarto de Cristal de Essência por soldado e, ainda que Arran tivesse pouca ideia do valor dos soldados, ele suspeitava que fosse muito superior ao que havia recebido.
Mas Arran não precisava de um exército – já que não tinha soldados para treinar nem terras para conquistar, ele não tinha a ideia de liderar um bando de bandidos ou mercenários. Seu único objetivo é aumentar sua própria força por meio dos Cristais de Essência, que eram infinitamente mais valiosos do que a comida.
Ao considerar o assunto, ele tinha certeza de que mesmo que seus tesouros tenham um valor muito alto, havia poucos lugares onde poderia vendê-los. Dentro do Império, sem dúvida chamaria muito a atenção da Academia e, deste lado da fronteira, ele só conhecia o Lorde Sevaril, que tinha os meios e o desejo de formar um exército.
E quanto mais ele pensava sobre isso, mais ele ficava satisfeito com o resultado do negócio. Pode ser que as coisas não tenham saído exatamente de acordo com o planejado, mas o resultado ainda era bom.
Ao chegarem no castelo em direção à fortaleza, Lorde Sevaril finalmente voltou a falar. Pela sua expressão, era como se ele tivesse percebido uma oportunidade e estava decidido a aproveitá-la completamente.
“Esse seu amigo”, disse Lorde Sevaril. “Aquele que o presenteou com os tesouros. Quem é ele?”
Essa pergunta foi indesejada, mas não inesperada. Arran sabia que Lorde Sevaril queria saber mais sobre seu misterioso apoiador e já havia elaborado as respostas.
“Ele tem muitos nomes”, disse Arran com uma risada forçada. “O que posso dizer é que ele está interessado em ambos os lados da fronteira e está procurando por novos aliados.”
“Aliados?” Lorde Sevaril respondeu, demonstrando seu interesse. “Então ele tem ambições nesta região?”
“Suas ambições estão muito além desta região”, respondeu Arran. “Mas ele possui um poder à altura delas.”
“Isso é claro”, Lorde Sevaril respondeu acenando com a cabeça, pensativo. “A verdade é que também estou procurando aliados. Eu construí essa cidade do nada e a mantive segura por séculos. Só que a região se tornou inquieta nos últimos anos, é uma questão de tempo até que essa inquietação se espalhe para Gold Haven.”
“É por isso que você ajudou a curar o patriarca do Sexto Vale?” perguntou Arran. Era a sua intenção desviar a conversa de suas mentiras, mas também estava curioso a respeito da motivação do homem diante dele.
“É”, Lorde Sevaril respondeu de maneira direta. “Até sua doença, o Patriarca foi um dos poucos aliados que eu tive na região. Quando ele adoeceu, foi uma grande perda.”
“As outras facções não se aproximaram de você?” Arran ficou surpreso com o fato de Lorde Sevaril ter se disposto a falar sobre a situação tão abertamente, mas não perdeu a oportunidade de saber mais.
“É claro que sim”, disse Lorde Sevaril. “Mas associar meu destino a uma delas seria correr o risco de me tornar um inimigo das outras. É muito melhor se o Patriarca se recuperasse.”
De repente, sua expressão mudou, como se tivesse percebido algo importante.
“Seu amigo disse para você se juntar a Snow Cloud?” Perguntou Lorde Sevaril, com um olhar atento.
“Ele disse”, mentiu Arran. “Embora ele não tenha dito o motivo.” Seja qual for a teoria que o homem esteja conjurando, ele achou melhor entrar na brincadeira.
Lorde Sevaril sorriu com isso, mostrando um olhar de compreensão presunçoso. “Ao que parece, os interesses de seu amigo e os meus estão alinhados. Ele deve ter enviado você para mantê-la segura em sua missão.”
Arran fingiu uma expressão pensativa. “Suspeito que você possa estar certo”, disse ele, na tentativa de demonstrar que tinha entendido a mesma coisa.
“Gostaria muito de conhecer esse seu amigo”, disse o homem de cabelos brancos. “Talvez seja possível que você providencie isso?”
“Eu ficaria feliz em fazer isso”, respondeu Arran. “Mas eu não sei ao certo quando o verei novamente. Pode ser que leve meses ou até anos. Eu não espero que ele me procure novamente antes de eu ter concluído minha tarefa atual.”
“É claro”, disse Lorde Sevaril com desdém. “Alguns anos não significam nada. E se acontecer algum infortúnio em suas viagens?”
Arran deu de ombros. “Basta eu assegurar que isso não aconteça.”
Não importa o que aconteça, sua intenção era estar bem longe quando Lorde Sevaril descobrisse a verdade. Se o homem se preocupar com o fato da morte de Arran interferir com a esperança de uma aliança com o apoiador imaginário de Arran, pode ser que ele se encoraja a fornecer alguma ajuda.
Lorde Sevaril não ficou totalmente satisfeito com a resposta, mas logo depois, ele assentiu com a cabeça. Ele parece entender que apontar para morte de Arran seria inconveniente para ele.
Com um leve encolher de sobrancelhas ele perguntou: “A Snow Cloud sabe de alguma sobre esse assunto?”
Arran negou com a cabeça. “Ela acha que eu sou apenas um recruta. Eu ficarei grato se guardasse o meu segredo.”
“É claro”, respondeu o homem, dando um sorriso conhecedor diretamente ao Arran. “Quando chegamos ao meu tesouro. Vamos ver se posso ajudar a garantir seu retorno seguro.”
Eles passaram pela fortaleza e subiram a maior parte das escadas da torre enquanto conversavam. Agora eles estavam em um dos andares superiores da torre, em um grande corredor com uma enorme porta de aço no final – provavelmente a entrada para a Sala dos Tesouros de Lorde Sevaril.
Arran deu um suspiro secreto de alívio quando entendeu que a conversa havia terminado. Mesmo tendo preparado sua história da melhor forma possível, ele não esperava ser pego em uma rede de mentiras tão elaborada.
Mas esse era um assunto para mais tarde. Por enquanto, Arran escolheria um dos tesouros de Lorde Sevaril e depois se retiraria para seu quarto a fim de passar alguns dias treinando. A essa altura, a Snow Cloud já deveria ter terminado de examinar os ingredientes e, sem dúvida, iria querer sair imediatamente para pegar os poucos que restavam.
Com um pouco de sorte, Arran pensou, ele seria capaz de evitar qualquer discussão adicional com o Lorde Sevaril, e assim terminaria o assunto.
Quando Lorde Sevaril abriu a porta do cofre, Arran não pôde deixar de sentir orgulho por ter lidado com a situação. Ele havia evitado o desastre por pouco e, no processo, garantiu fundos suficientes para sustentar seu treinamento por muitos meses.
Vol. 2 Cap. 123 Verdade Seja Dita
Só de abrir a porta do tesouro, Lorde Sevaril precisou de algum tempo, e Arran pôde perceber que a porta é protegida por algum tipo de mecanismo mágico, ainda que não pudesse ver exatamente como ele funciona.O fato de Lorde Sevaril estar preocupado com tais defesas mesmo aqui, na sua própria torre, só podia significar uma de duas coisas. Ele não confiava em seus próprios homens ou havia uma quantidade grande de tesouros para ser protegidos que as portas não eram suficientes para protegê-los.
Arran tinha esperança de ser a segunda opção. Se fosse assim, poderia haver algo de bom a ser obtido.
Certamente, que ele não seria muito ganancioso. Mesmo que o Lorde Sevaril tenha dito que Arran poderia escolher um item de sua preferência, mas ele não era tão ingênuo ao ponto de pensar que podia pegar qualquer coisa.
Assim que Arran decidiu como lidar da melhor forma possível nessa situação, Lorde Sevaril conseguiu desativar as defesas mágicas que protegiam seu tesouro e as portas de aço maciço se abriram de repente.
“Siga-me”, disse o Lorde Sevaril com uma voz ansiosa. Sem esperar que Arran respondesse, ele atravessou a porta.
Arran obedeceu ao homem, e o seguiu até a grande câmara que estava além da porta de aço e, apesar da sua apreensão com Lorde Sevaril, se viu surpreso com o que viu.
Não havia bugigangas como ouro e joias no tesouro, nem inúmeras armas e outros equipamentos. Ao invés disso, havia cerca de duas dúzias de itens colocados cuidadosamente sobre os pedestais ao longo das laterais da parede, e cada um deles tinha um amplo espaço dentro da câmara.
Imediatamente, Arran pôde entender que não era uma exibição de mera riqueza, mas de poder. Embora não soubesse o que os itens em exposição realmente faziam, ele concluiu que cada um deles era um artefato valioso – uma raridade a ponto do Lorde Sevaril considerar um tesouro digno de ser exibido.
“Estes foram os tesouros mais raros e poderosos que eu coletei ao longo dos últimos séculos”, afirmou Lorde Sevaril, demonstrando orgulho em seu rosto. “Cada item aqui exposto é único e inestimável.”
Arran franziu a testa, sem dizer nada. O fato que esse homem teria acabado de trocar um desses itens considerados valiosos parecia insensato.
“Este aqui pode ser do seu interesse”, disse Lorde Sevaril ao se aproximar de um dos pedestais, no qual estava uma lança de aparência simples. “Um mago pode despejar Essência nela de forma constante e liberá-la em um único ataque. Com isso, até um novato tem uma chance de derrotar um mestre.”
Observando a expressão gananciosa de Arran, Lorde Sevaril deu uma risadinha. “É claro que é preciso de algum tempo para enchê-la de Essência, mas cada uso a esgota completamente. Isso significa que ela só é útil quando se tem tempo para se preparar e contra vários oponentes fortes, ela não será muito útil.”
Arran concordou com a cabeça, levemente desapontado. Por mais que fizesse sentido que a lança funcionasse nesse sentido, esse item parecia ser útil apenas em raras situações. Em batalhas reais, normalmente se tem pouco tempo para se preparar, afinal de contas.
O Lorde Sevaril se dirigiu ao pedestal seguinte, no qual havia o que parecia ser um pequeno colar preto azeviche. “Esse é um dos itens mais incomuns que eu tenho”, disse ele. “O usuário pode canalizar sua Essência para o colar, que a transformará em Essência Mental, provocando medo incontrolável nas pessoas próximas.”
No mesmo instante, Arran se lembrou da criatura sem olhos e, ciente do quão poderosa sua aura medonha era, ele ficou bastante interessado no item que poderia ter o mesmo efeito.
“Você poderia demonstrá-lo para mim?”, perguntou ele.
“É claro”, disse Lorde Sevaril. Ele pegou o colar em suas mãos e o colocou enquanto olhava com expectativa para Arran.
Passaram vários momentos sem que nada acontecesse, até que Arran começou a sentir uma leve sensação de medo. Porém, era apenas isso – uma sensação ligeiramente incômoda. Pode ser que ele tenha vivenciado a aura de medo ainda mais forte da criatura sem olhos, ou que tenha sentido pavor desde que Lorde Sevaril entrou no Salão Dourado, mas de qualquer forma, o efeito foi insignificante.
“É só isso?”, perguntou ele, decepcionado com a demonstração.
Lorde Sevaril se mostrou assustado por um momento, até que soltou uma gargalhada ao colocar o colar de volta no pedestal. “Parece que você tem uma vontade forte”.
“E aquele ali?” Arran perguntou, apontando para o próximo item.
Agora ele sabia exatamente o que era: se tratava de uma espada de metal, como a que ele carregava em sua bolsa. Mesmo sabendo o que era o item, ele esperava que o Lorde Sevaril pudesse lhe dizer mais sobre seu uso. Até o momento, ele só havia descoberto que a sua era pesada, resistente e afiada como uma navalha.
“Ah! Essa é a minha mais recente aquisição”, disse o Lorde Sevaril. “Essa é uma espada feita com o metal de uma estrela cadente. Ao golpear um mago com essa arma, ele absorve parte da Essência de seu corpo e, a cada inimigo derrotado, a arma fica mais forte.”
Dando uma risada, ele acrescentou: “Porém, este ainda é jovem. Será necessário milhares de inimigos para alcançar todo o seu potencial, e receio não ver muitas batalhas aqui na cidade.”
Arran acenou com a cabeça, pensativo. Essa descrição corresponde ao que o Lorde Jiang havia lhe dito uma vez, que sua espada de metal estelar poderia ficar mais poderosa à medida que ele a usasse. Até agora ele não havia visto nenhuma mudança na arma, a não ser que ela precisasse de mais uso.
“Mas agora vamos passar para o próximo item”, prosseguiu Lorde Sevaril, dirigindo-se a outro pedestal. Sobre ele havia um bastão branco como osso, o qual Lorde Sevaril pegou cuidadosamente e entregou a Arran. “Segure-a e você logo descobrirá seus poderes.”
Arran agarrou o bastão em suas mãos e guardou-o por vários segundos, mas nada aconteceu. “Não estou sentindo nada”, disse ele finalmente.
“Diga-me que o céu está vermelho.” Lorde Sevaril abriu um sorriso enquanto falava, mas havia algo diferente no sorriso, como se estivesse tramando algo.
“O quê?” Arran lançou um olhar intrigado para ele.
“Faça isso”, disse Lorde Sevaril mas, dessa vez, seu tom de voz indicava que não se tratava de um pedido.
“O céu está…” Repentinamente, Arran foi incapaz de falar. Por mais que tentasse, foi como se a sua boca não fosse capaz de formar a última palavra da frase. Ele encarou o Lorde Sevaril em pânico, mas um sorriso surgiu no rosto do homem.
“Esse artefato permite que aqueles que o possuem não mintam”, disse Lorde Sevaril.
“Eu não acho que seja muito útil para mim…” arran começou, entrando em pânico ao entender as intenções de Lorde Sevaril.
“A comida”, interrompeu Lorde Sevaril, mas seu sorriso se desfez repentinamente. “Quem a deu a você?”
O primeiro instinto de Arran foi largar a vara e correr, mas ele sabia que não tinha esperança de escapar – não com o Lorde Sevaril ao seu lado. Pela expressão do homem, estava claro que negar a resposta também não era uma opção.
“Não conheço seu verdadeiro nome”, afirmou Arran depois de um curto momento de hesitação. “Mas ele é extremamente poderoso.”
De certa forma, as palavras eram verdadeiras. Depois das várias mentiras que Panurge havia lhe contado, Arran duvidava que o nome “Panurge” não fosse sua verdadeira identidade, mas seu poder era inquestionável.
Lorde Sevaril ergueu uma sobrancelha. “Por que ele lhe deu isso?”
Arran engoliu com dificuldade. Então, cuidadosamente escolheu suas palavras e disse: “Ele me deu depois de me pedir para se juntar à sua causa e me tornar seu aprendiz”.
Ainda que a vara o impedisse de contar mentiras, parece que ela não tem efeito em enganar as verdades, e Arran não conseguiu deixar de suspirar de alívio. Pelo visto, a esperança ainda não estava perdida.
“Seu aprendiz?” Lorde Sevaril dirigiu a Arran um olhar de avaliação. “E essa causa dele… o que é?”
Dessa vez, Arran foi incapaz de distorcer a verdade a seu favor. Ao invés disso, resolveu impressionar o Lorde Sevaril com um fato direto. “Ele quer derrotar a Academia.”
“A Academia?” Imediatamente, um olhar de choque surgiu no rosto do Lorde Sevaril. “Ele é um servo do Caos?!”
“Eu não o chamaria de servo”, respondeu Arran, forçando um sorriso. Mesmo que ele estivesse surpreso pelo fato de Lorde Sevaril conhecer o Caos, agora não havia nada a se fazer a não ser aumentar a vantagem. “Se o Caos tem um mestre neste mundo, ele é o mestre.
Ao ouvir essas palavras, o choque no rosto de Lorde Sevaril se tornou um verdadeiro terror. Ao invés de responder, ele pegou a vara e a arrancou das mãos de Arran.
Para o espanto de Arran, ele se curvou profundamente.
“Peço perdão pela minha insolência”, disse o homem de cabelos brancos com uma voz trêmula. “Se eu soubesse que você era…” Sua voz falhou enquanto ele olhava para Arran, com os olhos cheios de medo.
“Você não vai falar sobre isso com ninguém”, disse Arran. Finalmente livre da vara, ele acrescentou: “Ou meu mestre saberá”.
“Não direi a ninguém”, respondeu Lorde Sevaril em uma voz fraca. “Juro por minha vida.”
Arran observou a vara nas mãos do homem e lentamente assentiu. Ao que parece, o Lorde Sevaril não tinha intenção de quebrar sua palavra, até o momento.
“Então, agora”, disse Arran. “Eu acredito que você pretendia me mostrar o resto do seu tesouro?”
Vol. 2 Cap. 124 Escolhendo Tesouros
Enquanto Lorde Sevaril mostrava a Arran o restante de seus tesouros, o humor do homem pareceu melhorar e em pouco tempo ele já estava se gabando mais uma vez dos itens do tesouro. Mesmo que estivesse chocado com as revelações de Arran, parece que se gabar de suas riquezas trazia a ele pelo menos algum conforto.
Por outro lado, Arran não se impressionou com a maior parte dos tesouros. Mesmo havendo muitos deles, apenas alguns pareciam ter algum poder útil.
Existia um bastão o qual podia criar Escudos de Força com a Essência do usuário, mas os escudos não eram tão fortes quanto os que Arran poderia produzir. Também havia um pequeno cajado verde que podia curar ferimentos, mas quando o Lorde Sevaril se gabou de que podia curar um osso quebrado em dias, Arran percebeu que suas próprias técnicas de refinamento corporal eram mais potentes.
Sempre que ele acreditava ter encontrado algo realmente útil, logo surgia uma desvantagem inevitável que anulava grande parte do valor do item.
Aparentemente, a maioria dos itens tornava todos os tipos de Essência em um único tipo específico para ser utilizado na formação de um feitiço sem que o usuário precisasse lançá-lo. Assim, os magos poderiam lançar feitiços desconhecidos, com tipos de Essência que não possuíam.
No entanto, por mais impressionante que isso parecesse, a força dos itens era decepcionante, na melhor das hipóteses. Todos os efeitos pareciam ser uma versão inferior dos feitiços reais, e Arran passou a suspeitar que grande parte da Essência era perdida quando os itens a convertiam.
No final, apenas dois itens chamaram a atenção de Arran.
O primeiro era um casaco preto blindado que, segundo Lorde Sevaril, era capaz de resistir a todos os ataques físicos e mágicos, exceto os mais fortes.
Por mais que Arran suspeitasse que se tratava de um exagero – já que o homem não conseguia parar de se gabar -, ele também suspeitou que não era um exagero. Havia algo no casaco que emitia uma aura poderosa, por mais que ele não conseguisse perceber nada fora do comum nele.
O segundo item era algo que o Lorde Sevaril conhecia como Manto do Crepúsculo – um manto que deixava o usuário invisível se Essência for direcionada a ele.
Arran suspeitou que ele criava uma versão do feitiço Manto das Sombras, mas com um efeito previsivelmente fraco – enquanto Arran havia testemunhado o uso do feitiço Manto das Sombras por um mago enquanto se movia, para usar o Manto do Crepúsculo o usuário precisava ficar no lugar.
Mesmo assim, tendo pensado um pouco, Arran resolveu escolher o Manto da Penumbra1. Ainda que o efeito seja limitado, é o tipo de coisa que certamente seria útil nas suas viagens – algo que poderia salvar a sua vida se ele fosse perseguido por adversários mais poderosos.
Mais importante, ao testar o manto, ele percebeu que conseguia sentir vagamente a Essência das Sombras usada para formar o feitiço. Mesmo sendo impossível sentir a essência das sombras de outros magos, parece que a Essência usada pelo Manto continuava vinculada a ele mesmo depois de ter sido transformado.
Se as suas suspeitas estiverem corretas, e o Manto do Crepúsculo esteja criando uma versão do feitiço Manto das Sombras, considerar os padrões da essência seria uma maneira perfeita de aprender o feitiço – muito melhor do que usar um pergaminho ou um professor.
“Eu fico com o Manto do Crepúsculo”, disse Arran, já decidido.
“É uma boa escolha,” Lorde Sevaril respondeu. “Embora eu tenha reparado que também estavas interessado na armadura.
“Estava”, disse Arran. “Mas prefiro o manto”.
“Deixe-me oferecer a armadura como sinal da minha amizade”, disse Lord Sevaril. Com um sorriso obsequioso no rosto, era óbvio que ele esperava algum tipo de favor.
“Em trocar de que?” Arran perguntou sem cerimônia, procurando passar as palavras com o tipo de confiança orgulhosa adequada a um aprendiz de um mago extremamente poderoso.
Esta pergunta direta deixou o Senhor Sevaril visivelmente assustado, mas depois de um momento, ele recuperou a compostura. “Há pouco, eu pedi para que arranjasses um encontro entre mim e o teu mestre”, disse ele. “Mas em um conflito tão grande, eu receio que minhas contribuições sejam de pouco valor para ele.”
As palavras utilizadas pelo homem foram escolhidas cuidadosamente para evitar ofender o mestre de Arran, mas estava claro que ele se arrependeu do pedido anterior. Ao que parece, ele desejava profundamente que nunca conheceria o mestre de Arran – o que seria uma escolha sábia, se Arran fosse realmente o aprendiz de Panurge.
“Não quer ganhar o favor do meu mestre?” Arran deu a Lorde Sevaril um olhar severo, como se a própria ideia o ofendesse.
“Não é isso”, respondeu o Senhor Sevaril rapidamente. “Eu só me questiono se sou digno disso. Meu poder é limitado, e eu tenho pouco a contribuir. Pedir ao seu mestre para se encontrar com alguém tão fraco quanto eu… eu temo que seria um insulto ao seu poder.”
Arran mal pôde conter um sorriso. A preocupação de Lorde Sevaril era, obviamente, que num conflito entre o Caos e a Academia, ele seria esmagado como um inseto. Era um medo aceitável, pensou Arran, e que ele próprio partilhava com o homem.
“Eu compreendo a sua preocupação,” Arran respondeu. “Onde os touros lutam, as formigas são pisoteadas.”
Lorde Sevaril concordou com um pequeno aceno de cabeça em resposta, deixando para trás o fingimento já que Arran tinha visto através dele.
Arran fingiu refletir um pouco sobre o assunto antes de falar. “Muito bem”, disse ele finalmente. “Não vou informar o meu mestre do nosso encontro.”
O Lorde Sevaril deixou escapar um profundo suspiro. “Obrigado pela vossa compreensão, jovem mestre”.
“Não penses nisso”, respondeu Arran. “Não seria justo eu retribuir a sua generosidade forçando-o a se juntar à nossa causa.” Após um momento de pausa, ele acrescentou em tom severo: “Eu acho que seria bom repensar sobre a sua posição. Em conflitos com esta dimensão, não podemos permanecer neutros para sempre.”
Lorde Sevaril estremeceu um pouco ao ouvir estas últimas palavras, mas ainda assim foi capaz de fazer um sorriso forçado aparecer no seu rosto. “Estou em dívida com você.”
Arran fez um leve aceno de cabeça. “Acredito que o negócio aqui está concluído. Suponho que os Cristais de Essência serão entregues no meu quarto imediatamente”.
O Senhor Sevaril garantiu rapidamente a Arran que os Cristais de Essência e o saco vazio de Arran chegariam até ele o mais rápido possível, o alívio era visível no seu rosto quando Arran finalmente partiu.
Arran, por outro lado, se forçou para se manter calmo ao descer as escadas e seguir seu caminho pela fortaleza. Somente quando voltou ao seu quarto é que se atreveu a soltar um profundo suspiro de alívio.
Nota:
[1] é a região de sombra parcial que é formada quando um objeto bloqueia parte da luz.
Vol. 2 Cap. 125 Ganhos Inesperado
Ao voltar para o seu quarto, Arran levou algum tempo para se acalmar. Embora tivesse passado as últimas horas mantendo uma fachada confiante, na verdade ele estava absolutamente aterrorizado desde o momento em que Lorde Sevaril pôs os pés dentro do Salão Dourado.
Ele não se iludia ao pensar que merecia o crédito pelo resultado inesperadamente bom. Ele compreendia muito bem que tinha andado à beira do desastre e a forma como o evitou foi mais devido à sorte do que à sua própria rapidez de raciocínio.
Somente agora que o perigo havia desaparecido é que Arran pôde compreender o quão perto estava a falha.
Se o Lorde Sevaril decidisse confiar no seu próprio raciocínio e não no artefacto, Arran duvidava de que as coisas tivessem acabado tão bem. Ainda assim, ele teve a sorte que o homem já conhecia o Caos, caso contrário ele poderia ter sido mais cauteloso com a história de Arran, com um artefato que dizia a verdade ou não.
Arran levou uma boa meia hora pensando sobre os eventos do dia, analisando seus erros e considerando tudo o que ainda poderia dar errado.
Mas não havia muito o que pensar e, em pouco tempo, ele optou por usar seu tempo de forma mais proveitosa.
Ele começou tentando estudar o selo do seu Reino proibido, mas com a mente preocupada com o que havia acontecido anteriormente, ele não fez nenhum progresso. Logo, ele desistiu.
Ao invés disso, ele focou sua atenção no Manto do Crepúsculo. Como ele já sabia como usá-la, ele estava ansioso pelo estudo de como ela causava seus efeitos.
Isso se mostrou ser mais vantajoso, e Arran logo se viu envolvido no estudo da forma como o manto combinava os inúmeros fios de Essência das Sombras até criar no que ele pensava ser um feitiço do Manto das Sombras.
Ele sabia muito bem que não possuía o controlo necessário para lançar um feitiço tão complexo e ficou admirado com a forma que um objeto tão simples podia realizar essa façanha. Ele quase se sentiu como um plebeu ao ver um mago a trabalhar.
Ele lembrou a si próprio que não era um plebeu. Ele era um mago, e tinha um Amuleto de Memória repleto de técnicas de encantamento num dos seus sacos vazios.
O Amuleto da Memória foi o primeiro objeto mágico que possuiu, mas durante anos, o seu sentido tinha sido insuficiente para o usar. Quando finalmente conseguiu desenvolver o sentido suficiente para estudar o seu conteúdo, estava demasiado focado em outras coisas ao ponto de não prestar muita atenção.
Mas agora ele decidiu que iria passar a estudar a sério as técnicas de encantamento que ela continha. Se os encantadores podiam fazer com que os objectos realizassem magia, ele queria saber exatamente como eles a realizavam.
Mas agora não há tempo para aprofundar o assunto, já que nesse momento bateram à sua porta.
Arran abriu a porta calmamente, tendo uma parte dele ainda com medo ao pensar que o seu truque não havia enganado o Lorde Sevaril. Mas quando abriu a porta, se deparou com um dos mordomos da torre que estava à sua frente, carregando o saco vazio que continha a comida e o vinho.
“Jovem senhor”, disse o homem fazendo uma reverência. “O meu senhor me pediu para lhe entregar isto, desejando que o conteúdo seja do seu agrado”. O mordomo entregou o saco a Arran, depois de fazer outra reverência, saiu.
Arran rapidamente prendeu o saco a si próprio e examinou o seu conteúdo. Ao examinar, ficou surpreso ao ver que continha cerca de três mil Cristais de Essência de alta qualidade – bem mais do que os mil e oitocentos que ele esperava.
A alegria que ele teve ao receber esse inesperado lucro só durou alguns momentos, mas a preocupação rapidamente tomou o seu lugar.
Se o Lorde Sevaril foi tão longe na tentativa de satisfazer o Arran, só pode significar que o homem está completamente aterrorizado. Não se tratava apenas de um perigo distante, mas de algo mais próximo – um perigo que ele já tinha encontrado, e provavelmente mais de uma vez.
Se o medo de Lorde Sevaril era tão urgente, então as forças do Caos já deviam ter uma forte presença na região – talvez até na própria cidade.
Este último pensamento, por mais perturbador que fosse, explicaria em grande parte as ações do Senhor Sevaril.
Mesmo que o homem temesse o mestre de Arran, ele não deveria se preocupar muito com o próprio Arran. Além disso, se Arran desaparecesse em Gold Haven, isso seria uma questão pequena para o governante da cidade.
Mas se o Lorde Sevaril acreditava que já está a ser observado, a situação era diferente. Portanto, ele teve uma boa razão para ser excessivamente cauteloso.
Mesmo que isso possa ter sido o que salvou Arran, só de pensar nisso ele não se confortava.
É provável que o próprio Panurge risse caso soubesse da situação, mas Arran não tinha o menor interesse em saber se os servos locais do Caos partilhavam do seu senso de humor. Mesmo que o seu truque tivesse funcionado com o Lorde Sevaril, ele nunca imaginou que pudesse enganar as forças do Caos.
Por um instante, ele considerou deixar a cidade naquele momento. Ainda que a região ao redor da cidade seja perigosa, não poderia ser pior do que os perigos da própria cidade.
Depois de um momento de reflexão, rejeitou a ideia.
A companhia da Snow Cloud mantinha-o mais seguro fora da cidade e, a longo prazo, só a Shadow Flame Society poderia oferecer a segurança de que precisava.
Por outro lado, ele duvidava que o Lorde Sevaril discutisse de bom grado o assunto com outros. E não porque o homem tenha jurado permanecer em silêncio enquanto segurava o bastão – Arran não tinha muita confiança no homem ou no artefato – mas sim devido ao medo que o deveria manter calado, pelo menos durante algum tempo.
Por agora, Arran não podia fazer nada a não ser esperar. A Snow Cloud deve ter terminado de preparar os ingredientes no depósito dentro de alguns dias, e depois disso, Arran sabia que ela iria querer partir o mais rápido possível.
Por mais perturbadora que a situação fosse, Arran se esforçou para deixar o assunto de lado. Se preocupar não o ajudaria muito, já que ele teria que esperar mais alguns dias, sua melhor opção era fazer bom uso do tempo.
Com os seus tesouros recém-adquiridos, era óbvio qual seria o melhor uso do seu tempo.
Ele pegou um dos Cristais de Essência e logo em seguida começou absorver a Essência Purificada que ele continha. Precisou de quinze minutos para absorver a maior parte dela, antes mesmo de terminar, pegou outro.
Ele já tinha Cristais de Essência o suficiente para aumentar seu poder a um novo nível. Ele só precisava absorver os cristais, e não perderia tempo com isso.
Vol. 2 Cap. 126 Treinamento Rápido
Durante toda a noite e no dia seguinte, Arran trabalhou sem fazer intervalos nem dormir enquanto absorvia os Cristais de Essência um após o outro. Ele sentia sua afinidade com a Essência cada vez mais forte a cada novo Cristal de Essência – mais e mais, era como se sua Essência fosse parte dele, e não uma substância alienígena que ele mal podia manipular.
Depois de apenas um dia, Arran terminou de absorver a Essência Purificada de cerca de cem Cristais de Essência, com o efeito de deixá-lo fascinado com a melhora no controle da Essência.
Anteriormente, era como se estivesse escrevendo uma carta ao segurar uma caneta somente com os cotovelos e, olhando para trás agora, ele estava pasmo por ter conseguido lançar feitiços.
Mas agora, a situação era completamente diferente. Ele sentia que a Essência estava realmente sob seu controle, para ser utilizada como quisesse, além de que a falta do jeito desajeitado que ele sempre sentia ao usar a magia desaparecia rapidamente.
Ele finalmente passou a entender a real diferença entre os magos das Chamas Sombrias e os magos da Academia que havia conhecido. Caso os outros magos das Chamas Sombrias pudessem ter esse tipo de controle, os magos da Academia seriam como aleijados comparados a eles.
Ele sentiu que ainda havia mais progressos ao seu alcance e, animado com a perspectiva, prosseguiu com seu trabalho nos Cristais de Essência. Ele continuou até não poder mais, interrompendo seu trabalho apenas quando o cansaço começou a interferir em sua concentração.
Então, ele fez uma pausa para dormir, mas não por mais de algumas horas. Poucos minutos depois de acordar, começou a trabalhar novamente.
Ele começou o segundo dia da mesma forma que o primeiro, sem parar de absorver a Essência Purificada e transformando aos poucos seu corpo em algo mais adequado para o uso da magia.
No entanto, se no primeiro dia ele avançou rapidamente, no segundo dia os ganhos foram muito mais lentos. Nessa altura, os novos cristais de essência quase não lhe traziam ganhos significativos, parecendo que ele precisou gastar mais da metade dos cristais para obter o mesmo progresso que obteve com um único cristal no primeiro dia.
Ainda assim, ele não desistiu. Ele continuou avançando, embora de forma mais lenta, e no final do segundo dia já havia queimado mais cem cristais de essência.
Novamente, ele dormia apenas quando se sentia excessivamente cansado para continuar, e voltava ao trabalho assim que acordava.
Ao terceiro dia, o seu progresso reduziu-se ainda mais. Era preciso ter uma grande quantidade de Cristais de Essência para fazer algum progresso perceptível, mas mesmo assim ele persistiu – mesmo a este ritmo mais lento, ele conseguia em horas o que teria levado anos.
Somente depois de ter descansado novamente, no quarto dia, é que ele finalmente parou.
Até agora, ele havia trabalhado mais de trezentos Cristais de Essência, mas sabia que para continuar a progredir seria necessário tempo e muitos cristais – isso não o impedia de querer continuar.
Mas primeiro, ele queria ver os resultados do seu trabalho.
Ele decidiu testar a sua Visão das Sombras, e logo descobriu que o seu Sentido havia melhorado juntamente com o seu controle, ainda que não fosse muito. Mas, ainda que ele pudesse espalhar a névoa de Essência das Sombras por uns bons trinta passos ao seu redor sem que ela se tornasse fina o suficiente para ser detectada, a melhoria foi um pouco decepcionante.
Pensando nisso, ele começou a mover a névoa, mas imediatamente ficou animado com o resultado. Ao que parece, o seu controle tinha aumentado ao ponto de conseguir manipular a névoa sem grande esforço, embora não conseguisse expandi-la muito mais.
Curioso para ver até onde iria o seu controle, ele abriu a porta do seu quarto e enviou uma nuvem invisível de Essência das Sombras para o corredor. Rapidamente, um sorriso apareceu em seu rosto ao descobrir que ele podia controlar e sentir a nuvem a quase duzentos passos de distância.
Embora isso não o permitisse reconhecer instantaneamente tudo ao seu redor, era possível vasculhar uma área considerável sem precisar se mover, e bem mais rápido do que seria possível de outra forma.
O resultado encorajou-o a tentar um feitiço, mas as opções eram limitadas. De todos os feitiços que conhecia, apenas o Escudo de Força poderia ser usado com toda a potência sem causar danos sérios à fortaleza. Mas isso já era bom o suficiente – uma vez que o seu controle sobre esse feitiço tinha melhorado, o mesmo aconteceria com os outros.
Animado com os resultados de seu trabalho, ele rapidamente criou um Escudo de Força, e imediatamente se surpreendeu com a mudança em suas habilidades.
Se a melhoria da sua Visão das Sombras o deixou sorridente, o melhoramento do seu Escudo de Força trouxe um sorriso largo ao seu rosto, e ele mal conseguiu evitar gritar de excitação.
Anteriormente, ele demorava um pouco para formar um Escudo de Força, mas agora, ele conseguia fazer isso quase instantaneamente. E não só isso, ele podia dizer que o Escudo está mais denso do que antes, o que significava que ele seria mais forte também.
Isso por si só já seria suficiente para valer os Cristais de Essência que ele havia usado, mas com o seu novo controle, ele acabou descobrindo de que ele era capaz de mover e manobrar o Escudo com facilidade.
Se antes, ele usava o feitiço como uma barreira imóvel, agora, ele descobriu que pode usar o escudo como se fosse um escudo de verdade. Em uma luta real, isso significava que ele seria capaz de movê-lo para enfrentar diferentes ataques.
Até parecia ser demasiado bom para ser verdade. Em alguns dias, o seu poder havia dado um salto, progredindo mais do que ele poderia ter previsto. Se os outros feitiços tivessem melhorado tanto – o que ele tinha quase a certeza de que tinham – então derrotar o seu “eu” de há poucos dias seria agora uma questão trivial.
Esse progresso o deixou atordoado por alguns instantes, mas depois ele decidiu voltar ao trabalho. Ele sabe que ainda há mais progressos a fazer, mesmo que não seja tão rápido como antes, cada passo aproxima-o do seu objetivo.
Retirou mais um Cristal de Essência do saco vazio, e mal tinha começado a absorver o seu conteúdo ouviu várias batidas na sua porta.
“Entrem!”, gritou, não querendo interromper o seu trabalho.
A porta se abriu um instante depois, mas Arran não se surpreendeu ao ver que era Snow Cloud. Ele sabia que o trabalho de selecionar os ingredientes levaria apenas alguns dias, e parece que ela finalmente o terminou.
Pela aparência cansada do seu rosto, ele duvidou que ela tivesse dormido mais que algumas horas desde que chegou a Gold Haven, ainda assim havia uma expressão de ansiedade em seu rosto, como se estivesse prestes a completar uma tarefa difícil.
Pelo visto, o Lorde Sevaril não havia mentido a respeito de ter encontrado todos os ingredientes que ela precisava para curar o Patriarca do Sexto Vale, exceto um punhado deles.
“Consegui obter alguns Cristais de Essência?” perguntou ela, reconhecendo o que Arran estava a fazer.
“Consegui”, respondeu ele. Por agora, não via necessidade de informar a Snow Cloud sobre os seus tesouros recém-adquiridos.
“Ótimo”, disse ela. “Vai precisar de todo o poder que conseguir para onde estamos a ir.”
Vol. 2 Cap. 127 Deixando Gold Haven
“Acredito que você deve ter encontrado a maioria dos ingredientes de que precisa?” perguntou Arran, sem deixar de absorver a Essência Purificada enquanto falava.
“Encontrei”, respondeu Snow Cloud. “Só faltam os cinco ingredientes finais. Para encontrar três deles, precisaremos de sorte, mas os outros dois, eu sei onde procurar.”
“Então, para onde estamos indo?” perguntou Arran. Como ele entendia pouquíssimo de alquimia e herbalismo, não adiantava perguntar quais eram os ingredientes restantes. Mesmo que a Snow Cloud lhe dissesse, os nomes não significam absolutamente nada para ele.
“Os restos do Império Eidaran”, respondeu Snow Cloud. “A cerca de dois meses de viagem a noroeste daqui.”
“O Império Eidaran?” Arran nunca ouviu esse nome antes, e o fato de haver outros impérios ainda era estranho para ele. Em sua opinião, só havia um Império verdadeiro.
“Até algumas décadas atrás, foi um dos maiores e mais prósperos poderes a oeste da região fronteiriça”, disse Snow Cloud. “Então, um dia, ele entrou em colapso em uma guerra civil. Agora tudo o que restou foi o caos e a destruição.”
“O que aconteceu com ela?” perguntou Arran.
“Eu não sei”, disse Snow Cloud. “E isso não importa. O que importa mesmo é que as terras que antes eram suas estão agora repletas de conflitos, com grupos diferentes guerreando para controlar o pouco que restou. E, para nós, isso significa que a região será perigosa.”
“E as pessoas que estão atrás de você?” Arran perguntou, relembrando o que Lorde Sevaril havia dito a eles quando chegaram a Gold Haven.
“São poucas as pessoas da Sociedade que se aventuram tão longe da fronteira”, respondeu Snow Cloud. “Pelo menos devemos estar a salvo deles.”
“Então, quando partiremos?
“Assim que você terminar com o cristal.
Arran voltou sua atenção para absorver a Essência Purificada restante, terminando pouco tempo depois.
“Creio que teremos que nos despedir do Lorde Sevaril?”, ele perguntou depois de terminar. Ele não queria encontrar o homem novamente, mas se esse era o preço para se livrar dele para sempre, ele pagaria com prazer.
Para a surpresa de Arran, Snow Cloud balançou a cabeça.
“Seus mordomos me disseram que ele se isolou em meditação e não pode ser interrompido”, afirmou ela com um encolher de ombros. “Isso não tem importância. Já tenho o que preciso dele, portanto, partiremos agora mesmo.”
Ainda que Arran se sentisse feliz em saber que não teria que ficar cara a cara com Lorde Sevaril novamente – enfrentando os riscos que isso implicava – ele não podia deixar de se perguntar por que o velho se trancou em sua torre. Se era apenas por medo do mestre de Arran, não havia muito com o que se preocupar, mas ele se preocupava que houvesse mais do que isso.
Em um suspiro, ele deixou o pensamento de lado. Qualquer que fosse o motivo do Lorde Sevaril, Arran logo se livraria do homem e de sua cidade.
Eles já estavam atravessando a cidade menos de meia hora depois. Em cada curva, Arran temia que alguém ainda os parasse, se bem que suas preocupações parecessem infundadas, e eles logo chegaram ao portão da cidade.
Os guardas no portão permitiram que eles passassem sem problemas, e Arran se sentiu aliviado quando estavam fora da cidade. Mesmo sabendo que muitos perigos estavam por vir, ele se sentiu mais confiante em enfrentá-los na natureza ao invés dos limites da cidade – ao menos aqui, ele poderia fugir se necessário.
Quando mais deixavam a cidade para trás, mais confortável Arran se sentia e, depois de várias horas, a curiosidade sobre seu destino finalmente superou as preocupações que ainda sentia.
“Então, esse Império Eidaran, o que tem de tão perigoso?”, perguntou ele, imaginando quais ameaças estariam no final da jornada à frente.
“Eu já lhe disse”, respondeu Snow Cloud com clareza. “Ele está repleto de grupos disputando pelo poder, e qualquer um desses grupos pode ser uma ameaça para nós.”
“Mas você é um mago das Chamas Sombrias”, disse Arran. “Você trilha o Caminho Verdadeiro. Os magos do grupo não seriam bem mais fracos do que você?”
Depois de testemunhar os efeitos da Essência Purificada, ele não teve mais dúvidas sobre o poder dos magos das Chamas Sombrias.
Snow Cloud riu. “Apesar de seu nome grandioso, o Caminho Verdadeiro não passa de um entre os muitos meios de obter poder. Sem a Academia que reprime os usuários de magia, todos os magos daqui descobriram todos os tipos de métodos para ficar mais fortes. Não os subestime”.
Arran se preparava para fazer outra pergunta quando notou que, a poucos passos à frente, havia um pequeno grupo de pessoas na estrada. Pelo que parece, eram cerca de seis pessoas e aparentavam utilizar vestes de magos.
Notando o mesmo, Snow Cloud falou em voz baixa: “Acho que temos problemas adiante. Estejam prontos”.
Arran concordou com a cabeça, e então enviou sua Visão Sombria. Um pouco depois, ele disse suavemente: “Existem outros deles se escondendo no mato próximo à estrada. À esquerda”.
Snow Cloud consentiu em silêncio, sem questionar como Arran conseguiu descobrir a ameaça oculta. Pelo contrário, uma expressão rígida apareceu em seu rosto, no qual Arran sabia bem que, assim como ele, ela se preparava para a batalha.
Ao se aproximarem do grupo à frente, eles diminuíram o ritmo, mas não se viraram para correr. Era inútil fazer isso – se um ataque viesse, enfrentá-lo de frente seria sua melhor chance de sobrevivência.
Por volta de cem passos, os olhos de Arran arregalaram ao reconhecer um dos homens do grupo – o vendedor do Golden Hall. Parece que o homem também o reconheceu na mesma hora, porque de repente ele esticou o braço e apontou para Arran.
Sem tempo para pensar no assunto, pois logo depois, o homem ao lado do vendedor ergueu a mão e Arran sentiu que ele estava reunindo Essência de Vento para um ataque.
De imediato, Arran criou um Escudo de Força e uma fração de segundo depois ele pôde sentir que o ataque se dirigia a ele. Entretanto, o ataque atingiu o Escudo de Força com um forte estrondo, mas não o atravessou, e Arran revidou imediatamente, enviando uma Lâmina de Vento em direção aos homens.
Tanto o vendedor quanto o homem ao seu lado morreram rapidamente, a Lâmina de Vento de Arran atravessou seus corpos como se fosse uma espada cortando um papel. No mesmo momento, dois rastros de fogo branco emergiram das mãos de Snow Cloud, fazendo com que outros dois inimigos morressem sem que pudessem lançar seus próprios ataques.
Mesmo quando o grupo à frente foi praticamente eliminado em um instante, a Visão das Sombras de Arran o informou que seis flechas estavam vindo em sua direção pelo mato ao lado da estrada.
Ele moveu o Escudo de Força rapidamente para se proteger, porém foi tarde demais – uma das flechas o atingiu no ombro e a outra em seu braço.
Sem se importar com a dor, Arran retirou a flecha do ombro, desembainhou a espada e se lançou contra os oponentes ocultos, com o Escudo da Força à sua frente. Snow Cloud teria que lidar com o que restava do grupo na estrada.
Os poucos segundos que Arran levou para alcançar seus inimigos, várias flechas foram lançadas em sua direção, mas elas atingiram inofensivamente seu Escudo de Força.
Assim que Arran se aproximou do arbusto, pôde ver vários homens dentro do arbusto, sacando suas espadas e se preparando para o ataque de Arran. Agora ele podia ver que eram Refinadores de Corpo, ainda que fossem bem mais fracos que o próprio Arran.
Ele não parou ou hesitou em seu ataque, imediatamente atravessando sua espada no peito do homem mais próximo e, ao mesmo tempo, golpeando seu Escudo de Força em outro.
Pode ser a excitação da batalha repentina, ou então um efeito imprevisto dos Cristais de Essência, mas Arran sentiu uma força e uma sede de sangue inéditas nele, e sua espada rasgou os oponentes com tanta facilidade que ele os massacrou.
Em questão de segundos, todos os seus oponentes foram mortos, com seus corpos dilacerados pelos ataques furiosos de Arran. Mesmo que eles fossem refinadores de corpo, seus corpos reforçados pela Essência não ofereciam proteção contra a fúria de Arran.
Quando o último oponente foi derrotado, Arran se virou e foi surpreendido pela Snow Cloud sentada na estrada, segurando sua perna. Como não havia mais inimigos na estrada, Arran entendeu que ela havia sido ferida na briga.
Rapidamente, ele voltou até ela e, quando a alcançou, notou uma flecha saindo de sua perna – parece que ele não era o único que havia sido atingido.
“Você está ferida”, disse ele com preocupação, se ajoelhando ao lado dela para examinar o ferimento.
Ao invés de gemer de dor, ao contrário do que ele esperava, ela o olhou com calma, mas com um olhar questionador.
“Quantos cristais de essência você usou?”
Vol. 2 Cap. 128 Lesões
“Depois falamos sobre os Cristais de Essência”, disse Arran. “Primeiro, tenho que ver esse ferimento”.
A Snow Cloud concordou com a cabeça, estremecendo enquanto olhava para a seta espetada na perna.
Enquanto Arran olhava para a ferida, percebeu que, ainda que a ponta da flecha tivesse sido cravada profundamente na coxa de Snow Cloud, não parecia ter atingido o osso.
“Vou tirar a seta”, disse Arran. “Estás pronta?”
“Faça-o”, disse ela, apertando o maxilar.
Com cuidado, Arran segurou a flecha firmemente em sua mão. Então, com um único movimento rápido, ele a tirou da perna de Snow Cloud.
Ela gritou de dor por um momento, arquejando quando a ponta da flecha afiada rasgou sua carne mais uma vez no caminho para fora.
“Está feito,” disse Arran. Em seguida, retirou uma garrafa de água da sua bolsa vazia e limpou a ferida de forma cuidadosa. Agora que a flecha tinha saído, a ferida não parecia ser tão ruim – ainda que fosse profunda e escorresse sangue, o corte parecia limpo e deveria cicatrizar bem.
“Eu cuido do resto a partir daqui,” disse Snow Cloud, pegando num pequeno frasco do qual despejou um líquido espesso sobre o ferimento. Ela gemeu ao esfregar o líquido na ferida, mas o líquido, seja qual for, estancou a hemorragia.
Ao mesmo tempo que a Snow Cloud fazia a ligadura na perna, Arran agarrou no ombro e verificou as lesões que tinha sofrido. Para sua surpresa, apenas encontrou um corte superficial no ombro, e o corte no braço parecia já estar curado.Isto fê-lo hesitar.
Mesmo que os seus ferimentos tenham sido menos graves do que os de SnowCloud, certamente foram piores do que agora. Mesmo que os anos de Refinamento Corporal tivessem feito com que seu corpo se curasse rapidamente, ele não havia se recuperado tão rápido quanto isso.
Por um instante, ele cogitou a possibilidade de que os Cristais de Essência pudessem ter algo a ver com isso, mas logo rejeitou o pensamento. Embora fossem poderosos, não havia razão para pensar que eles teriam tal efeito.
Foi então que se deu conta de uma situação desconfortável, ao se lembrar do seu encontro com a criatura sem olhos.
Depois do ocorrido na fortaleza, a queimadura em seu rosto se curou muito mais rápido do que deveria. Ele não pensou muito sobre isso na época, mas agora, ele suspeitava de que a criatura tivesse feito algo que alterou seu corpo de forma duradoura.
Mesmo que o poder fosse bem-vindo, a sua origem deixava-o preocupado. Pelo que ele havia visto da criatura, não acreditava que qualquer coisa que ela pudesse transmitir fosse benigna. Se ela tivesse lhe dado um novo poder, ele duvidava que fosse sem um custo.
“Ei!” A voz da Snow Cloud interrompeu os seus pensamentos.
“O que foi?” Arran perguntou, voltando com os seus pensamentos ao presente.
“Perguntei se tinha algum ferimento”, disse ela, segurando o pequeno frasco que tinha usado para tratar os seus próprios ferimentos.
“Nada que vale a pena mencionar”, disse Arran. “Deixe-me só pegar os saques, e nós podemos seguir nosso caminho. Quando sairmos daqui, eu falo sobre os Cristais de Essência”.
Snow Cloud observou com um olhar de desaprovação enquanto saqueava os corpos, mas Arran ignorou sua expressão. Ainda que ela preferisse abandonar os itens do que roubar os mortos, para ele não havia problema. Tesouro era um tesouro, e os mortos não precisavam dele – muito menos os inimigos dos mortos.
Ele ficou desapontado ao descobrir que nenhum dos magos parecia ter nada de valor. Há alguns Cristais de Essência de baixa qualidade e vários pergaminhos, fora isso, não encontra nada de interessante.
“Eu me pergunto por que eles nos atacaram”, disse Snow Cloud que olhava, com uma careta no rosto.
“Não é preciso perguntar”, respondeu Arran. “Um deles esteve na casa comercial onde eu comprei os meus Cristais de Essência. Ele deve ter informado aos outros que eu estava carregando um tesouro”.
Essa era a única explicação que fazia sentido. Tanto a Snow Cloud como Arran possuíam vários inimigos, mas nenhum deles teria a coragem de os atacar com tão pouca força.
“Quantos Cristais de Essência conseguiu comprar na cidade?” perguntou Snow Cloud, com um ar de curiosidade no rosto.
“Centenas”, respondeu Arran, sem dizer quantas centenas de cristais tinha de facto. Depois do que aconteceu com Lorde Sevaril, ele decidiu que não iria mais falar livremente sobre as suas posses – nem mesmo para amigos e aliados.
Ainda assim, os olhos da Snow Cloud se arregalaram de surpresa com a resposta dele, até que ela deu uma risadinha. Arran ficou satisfeito por ver que ela não ficou chateada, ainda que a sua falta de discrição tenha feito com que ela fosse ferida.
“Não é de se admirar que tenha chamado a atenção deles”, disse ela, balançando a cabeça. “E suponho que já utilizou a maior parte dos cristais?
“Já usei algumas centenas”, disse Arran, percebendo que não havia sentido em esconder isso. “Mas ainda tenho um número decente para treinar mais.
“Usá-los neste momento não vai servir para nada”, disse a Snow Cloud. “Eu tenho certeza de que você já descobriu que quanto mais cristais você absorve, o efeito deles fica mais fraco. E como você já os consumiu, o controlo não será mais o seu gargalo pelo menos nos próximos anos”.
“O meu gargalo?”
“Você já tinha um corpo forte e Reinos poderosos quando o conheci”, disse Snow Cloud. “E agora você tem o controle que faltava anteriormente. Só que o seu Sentido continua fraco, e a sua habilidade com a magia é bem fraca. Essas são as coisas que precisas de melhorar para te tornares mais forte”.
Essa explicação fazia sentido, e Arran concordou pensativo. “Então o que eu devo fazer?”
“Desenvolve o seu Sentido através da sua aplicação na purificação da Essência”, disse ela. “Mesmo que não necessite dos cristais, purificar a Essência será uma das melhores formas de treinar o seu Sentido. E quanto à sua habilidade… isso requer prática e treino, e muito treino”.
“Que tipo de treino?” Arran perguntou.
“Feitiçaria e treino”, respondeu Snow Cloud imediatamente. “Apenas usando magia se pode melhorar. É como tocar alaúde1 – um bom instrumento e dedos ágeis só o levarão até certo ponto. Até certo ponto, é preciso começar a trabalhar de verdade para progredir.
Arran suspirou com a resposta dela. Mesmo sabendo que ela tinha razão, ele preferia os atalhos em vez de ter que passar horas intermináveis a treinar. Mas parece que ele não tinha mais atalhos.
“Então, quando começamos?”, perguntou. Se trabalhar era a única opção, o melhor era começar o mais cedo possível.
“Quando estivermos a poucos dias da cidade”, disse SnowCloud. Depois, virando-se para a perna, acrescentou: “E quando isso estiver curado”.
Em seguida, prosseguiram o seu caminho, largando para trás os cadáveres dos seus supostos ladrões.
Snow Cloud mancava durante a caminhada, mas recusou a oferta de Arran em carregá-la, dando-lhe um olhar frio por ter sugerido isso. Arran encolheu os ombros – já que ela queria sofrer sem necessidade, isso era problema dela.
Quando finalmente anoiteceu, Gold Haven já havia desaparecido na distância. Mesmo assim, Arran ainda não se sentia totalmente seguro. O assalto fracassado fez com que ele se lembrasse de que mesmo pequenos erros podiam voltar para assombrá-lo, e não havia nenhuma falha e indiscrição em seu passado.
Nota:
[1] é um instrumento musical de corda palhetada ou dedilhada, com braço trastejado e com a sua característica caixa de ressonância em forma de meia pêra ou gota.
Vol. 2 Cap. 129 Viagens Suaves
Depois que eles partiram de Gold Haven, Arran rapidamente descobriu que o treinamento com Nuvem de Neve era bem mais árduo do que ele imaginava.
Embora tenham realizado algum treinamento juntos antes de irem para Gold Haven, com os avanços que Arran havia feito com os Cristais de Essência, aparentemente Snow Cloud acreditava que ele estava pronto para um treinamento mais rigoroso.
Os dois passaram a maior parte do dia viajando, mas, mesmo durante a caminhada, Snow Cloud fez com que Arran treinasse seu feitiço por meio de constantes e lentos ataques ao que quer que estivesse na beira da estrada.
Ocasionalmente, ela o orientava e dava dicas, mas, na maioria das vezes, o repreendia se ele interrompesse a prática por mais de alguns minutos.
Algumas vezes, ela desferia ataques repentinos, permitindo que Arran se defendesse com um Escudo de Força. Os ataques não eram fortes o suficiente ao ponto de causar danos sérios, mas as queimaduras e os hematomas deixaram uma dor suficiente para motivá-lo a aprender rapidamente.
O lançamento constante de feitiços deixava Arran exausto, mas não podia negar os resultados. Em poucos dias, sua habilidade em lançar feitiços apresentou pequenos sinais de melhora e, mesmo que não fosse muito, ele podia dizer que estava progredindo.
Além disso, com o seu senso e o seu controle fortalecidos, ele descobriu que o treinamento também o ajudou a entender melhor a magia.
Anteriormente, ele seguia as instruções de seus pergaminhos de feitiço, combinando fios de Essência da forma mais próxima possível dos originais. No entanto, a simples imitação permitia que ele lançasse feitiços funcionais, o que também limitava seus poderes.
Mas agora ele começava a ter uma vaga compreensão sobre os princípios da magia e começou a descobrir que a alteração em pequenas partes de seus feitiços pode mudar drasticamente seus efeitos.
Mas ele ainda estava longe de ter uma compreensão real do funcionamento da magia ou de alterar seus feitiços de forma útil, mas podia sentir que estava no caminho certo.Ainda que o progresso fosse lento, ele tinha certeza de que, prosseguindo com o treinamento, ele acabaria chegando.
Após vários dias em que Arran treinou sozinho, Snow Cloud concluiu que a perna dela já havia se curado o suficiente e, a partir daquele momento, os dois passaram várias horas de treino todas as noites.
Embora eles já tivessem treinado antes, Arran viu que seus combates paralelos estavam totalmente diferentes do que eram antes. Ele entendeu que a Snow Cloud havia se contido anteriormente, mas rapidamente ficou claro que ela havia se controlado muito mais do que ele imaginava.
A cada combate, Snow Cloud combinava vários feitiços e técnicas de maneiras diferentes, fazendo com que Arran chegasse ao seu limite e, em seguida, rapidamente o ultrapassasse.
Às vezes, ela atacava com uma força avassaladora, obrigando-o a se defender com todas as forças que pudesse reunir. Em outros casos, ela usava truques, amarrando os pés dele com correntes de ar no momento em que ele corria em direção a ela, ou o induzia a lançar ataques que ela refletia de volta para ele.
Seja qual for a estratégia que ela usava, todos os resultados eram os mesmos, com Arran sendo derrotado repetidas vezes.
As intermináveis derrotas até poderiam afetar sua confiança, se não fosse o progresso constante que estava fazendo.
A cada nova derrota, os seus ataques se tornavam mais rápidos e as suas defesas mais fortes, mas derrotar Snow Cloud em uma luta justa era algo que ainda estava muito além do seu alcance, diariamente ele se via durando um pouco mais em suas lutas.
“Como estou em comparação com os outros novatos?” Arran perguntou após a primeira semana de treinamento.
Diante da pergunta, Snow Cloud ficou com uma expressão pensativa e demorou um pouco para responder.
“Você ainda não tem habilidade suficiente para ser um aprendiz”, disse ela finalmente. “Mas com seu poder, você conseguiria derrotar sem problemas a maioria dos novatos mais fracos.”
“E quanto aos mais fortes?” perguntou Arran.
Snow Cloud negou com a cabeça decididamente. “Você perderia. Todos treinaram assim desde pequenos, e tiveram acesso a todos os recursos de que precisavam.”
Arran suspirou. Apesar de ter ficado desapontado com a resposta, ele já suspeitava disso. Mas então, um pensamento lhe ocorreu.
“Você mencionou que eu não tinha habilidade suficiente para ser um aprendiz”, disse ele depois de pensar um pouco. “Mas eu pensei que para ser um aprendiz bastava aprender um único feitiço?”
“Talvez no Império”, respondeu Snow Cloud com um sorriso desdenhoso. “Na Sociedade, existem alguns feitiços que qualificam um iniciante para se tornar um aprendiz, sendo que cada um deles requer um nível de habilidade que está além do seu.”
Arran franziu a testa, insatisfeito com a resposta. “Mas você disse que eu posso derrotar os novatos mais fracos.”
“O avanço na Sociedade é baseado na habilidade, não no poder”, explicou Snow Cloud. “Ter uma família rica ou boa sorte pode oferecer a alguém os recursos para se tornar forte. Mas a habilidade se baseia em seu próprio trabalho e talento – e são essas coisas que permitem ao mago se tornar realmente poderoso.”
Com uma risada, ela acrescentou: “Obviamente, ter treinadores adequados ainda ajuda.”
Ainda que o próprio Arran tivesse confiado mais na sorte do que no treinamento para atingir sua força atual, ele teve que admitir que o que ela disse fazia sentido.
Com Pílulas de Abertura de Reino, Tesouros Naturais e Cristais de Essência, até mesmo o mago mais inexperiente pode se tornar forte, mas sem esforço e talento, toda essa força seria desperdiçada.
Sem saber como seu talento se comparava ao dos demais, ele concluiu que, caso fracassasse, ele se certificaria de que não seria por falta de esforço. Seu trabalho era algo que ele podia controlar e resolveu dar tudo de si.
Depois disso, ele intensificou seu treinamento, se esforçando ainda mais do que antes. Antes, Snow Cloud precisava repreendê-lo para que mantivesse o trabalho, agora ele se repreendia quando se descuidava – o fato de não ter a habilidade necessária para se igualar aos iniciantes era algo que ele simplesmente não podia tolerar.
Contudo, o treinamento não era tudo o que eles faziam enquanto viajavam, apesar do novo fervor de Arran.
Os três ingredientes que Snow Cloud precisava ainda contavam com a sorte para serem encontrados, mas ela havia lhe dado descrições detalhadas de como eram – ainda que a chance de Arran se deparar com um deles seja pequena, não era uma chance que ela estava disposta a deixar passar.
Infelizmente, o talento de Arran para a magia continuava a ser questionado, mas o talento para o herbalismo certamente não era – era evidente que ele não tinha nada disso.
Várias vezes ao dia, ele encontrava alguma erva na qual acreditava que se assemelhava a um dos ingredientes de que precisavam e, todas as vezes, Snow Cloud a examinava brevemente e depois passava 15 minutos explicando as diversas maneiras pelas quais ela era totalmente diferente do que procurava.
Arran suportou mansamente suas explicações, mas não tiveram muito efeito. Inevitavelmente, em poucos dias, ele cometia o mesmo erro novamente e recebia outro sermão sobre as mesmas ervas.
Embora as explicações tivessem pouco efeito, Arran não se incomodava muito com elas. Como a maior parte de seu tempo é dedicada ao treino de magia, mesmo ouvindo a Snow Cloud explicando as diferenças entre a flor de folha vermelha e a folha de flor de laranjeira, era uma distração bem-vinda.
E então, havia as aldeias.
No começo, Arran achava que Snow Cloud quisesse evitar os vilarejos, mas logo descobriu que ele não poderia estar mais longe da verdade.
Sempre que eles passavam por um vilarejo ao longo da estrada, Snow Cloud fazia questão de parar e visitar os herboristas1 e curandeiros locais, questionando se eles conheciam os ingredientes que ela procurava e quais ervas podiam ser encontradas na região.
As conversas frequentemente duravam horas e, depois de ter passado por vários deles, Arran decidiu que, dali em diante, ele esperaria na estalagem ou na taverna local.
Nota:
[1] é uma tradição milenar em que se estuda e usa ervas para fazer proveito de suas propriedades medicinais.
Vol. 2 Cap. 130 Um Rosto Familiar
“Poderíamos simplesmente contornar a aldeia”, disse Arran, observando a fumaça flutuando no céu. “Seja lá o que aconteceu com a aldeia, já acabou há muito tempo, mas os responsáveis podem ainda estar lá.”
Ainda que ele sentisse curiosidade em ver o que havia acontecido com a aldeia, a melhor opção seria simplesmente evitá-la por completo. Esse não foi seu primeiro instinto, mas seus instintos raramente o levavam para longe do perigo.
“Não podemos”, respondeu Snow Cloud com um leve balançar de cabeça. “Se a aldeia foi atacada, é possível ter uma ideia de quem é o responsável. “Com uma voz suave, ela acrescentou: “E pode haver pessoas que ainda estejam vivas”.
“Tudo bem”, disse Arran, e não precisou ser muito convencido. “Podemos dar uma olhada, mas primeiro me dê alguns momentos para me preparar.”
Com receio de correr o risco sem estar preparado, ele colocou a armadura preta que recebeu do Lorde Sevaril e colocou sua espada de metal. Com seu Manto do Crepúsculo ao alcance, ele imaginou que teria uma boa chance de escapar, mesmo se houvesse uma dúzia de magos fortes na aldeia.
Assim que terminou seus preparativos, Snow Cloud lhe lançou um olhar curioso. “Equipamento novo?”
“Peguei o casaco em Gold Haven”, respondeu Arran. “A espada eu já tenho há algum tempo.”
“Você é realmente uma pessoa cheia de surpresas, não é?”
Pela expressão da Snow Cloud, Arran pôde perceber que ela reconheceu que tanto o casaco quanto a espada não eram nada comuns, mas não podia ser evitado. Não adiantava ter tesouros se ele não pudesse usá-los quando estivesse enfrentando o perigo.
“Vamos”, disse ele. “Eu sugiro que saiamos da estrada e nos aproximemos pela floresta. Se houver alguém por lá, não nos verão chegando tão facilmente.”
Snow Cloud confirmou com um aceno de cabeça e, rapidamente, eles avançaram pela floresta densa que cercava a aldeia, atravessando lentamente os arbustos densos na direção da fumaça.
Ao chegar à aldeia cerca de 15 minutos depois, Arran imediatamente comprovou que sua suspeita estava correta – independentemente do que havia acontecido, já tinha acabado há muito tempo. A maior parte dos edifícios da aldeia já havia sido totalmente queimada e os poucos edifícios que ainda estavam de pé não passavam de cascas fumegantes.
No entanto, por mais que a aldeia tivesse sido destruída, ele se surpreendeu ao ver que não existia nenhum corpo em lugar algum. Por outro lado, ele não sentiu o cheiro familiar de carne carbonizada – ele só conseguia sentir o cheiro de madeira queimada.
“Acredito que os aldeões tenham fugido antes que isso acontecesse”, disse ele em voz baixa. “Ou isso ou eles foram levados embora.”
“Vamos dar uma olhada”, Snow Cloud sussurrou de volta. “Mas tenham cuidado.”
Arran não pretendia ser descuidado, independentemente da advertência dela, mas enquanto eles caminhavam furtivamente para a aldeia em ruínas, ele continuamente varria a área com sua Visão das Sombras, atento a quaisquer possíveis ameaças.
Logo concluiu que a aldeia estava totalmente abandonada, mas então, por trás de um dos prédios meio desmoronados, detectou três formas – figuras adultas, segurando armas.
“Ali!”, ele gritou, indicando a localização dos três. Desembainhando a espada, ele avançou correndo em direção ao prédio atrás onde os três estavam escondidos, Snow Cloud o seguiu alguns passos atrás.
Ele alcançou os três homens escondidos rapidamente, bem antes que eles pudessem fugir ou reagir, e os olhares amedrontados demonstraram claramente que ele os havia pegado de surpresa.
No entanto, quando ele os viu, imediatamente soube que eles não foram os responsáveis pelo incidente na aldeia – seus rostos estavam magros ao ponto de estarem abatidos e, por mais que parecessem ter participado de uma batalha há pouco tempo, estava claro que eles estavam perdendo.
“O que aconteceu aqui?”, perguntou ele, recolhendo sua espada ao perceber que eles não eram uma ameaça. “Quem incendiou a aldeia?”
Ao verem Arran guardar a espada, os três homens relaxaram visivelmente, mas ainda olhavam para ele e para Snow Cloud com cautela.
Por um momento, nenhum deles falou, mas um deles deu um passo hesitante para frente. Era um jovem, que mal havia saído da infância, com um físico magro de aparência feminina. No entanto, mesmo com seu físico inexpressivo, ele aparentava ter menos medo do que seus companheiros.
“Um grupo de invasores atacou a aldeia”, disse o jovem – ou melhor, a jovem, pois ao ouvir a voz, Arran percebeu que não tratava-se de um homem, apesar do cabelo curto e da falta de curvas.
“De quem era o grupo de invasores?” Snow Cloud interrompeu. “E onde estão os aldeões?”
“Nosso mestre os levou para um lugar seguro antes do ataque”, respondeu a jovem. “Quanto ao grupo de invasores, eles pertencem a um senhor da guerra local – um mago poderoso, segundo nosso mestre. Já enfrentamos seus homens várias vezes.”
Arran não precisou perguntar como havia terminado aqueles confrontos. Vendo a aparência da jovem e de seus companheiros, ficou claro que o lado deles havia sido o perdedor.
“Esse seu mestre, quem é ele?”, perguntou.
“Ele é membro da Shadow Flame Society”, disse a jovem, orgulhosa ao falar, apesar do seu estado deplorável. “Nós somos seus recrutas.”
“A Shadow Flame Society?” disse Snow Cloud, com a voz afiada. “Nos leve até ele imediatamente.”
Os olhos da jovem mulher se arregalaram. “Eu não posso…”
“Sou uma aprendiz da Shadow Flame”, interrompeu-a Snow Cloud. “Se fosse para machucá-la, você já estaria morta.”
“Você é uma maga das Chamas Sombrias?!” A jovem ficou muito assustada com a revelação, mas um momento depois, uma ponta de esperança surgiu em seu rosto. “Então você pode nos ajudar!”
“Veremos”, respondeu Snow Cloud sem rodeios. “Primeiro, nos leve até esse seu mestre.”
Deixando a aldeia em ruínas para trás, a jovem mulher e seus companheiros os conduziram para a floresta, mas Arran se impressionou com a facilidade com que eles atravessavam a densa floresta.
Possivelmente não eram guerreiros imponentes, mas pelo menos pareciam ser bons batedores. E nessa região, pensou ele, isso contava muito.
A viagem pela floresta densa durou cerca de duas horas, mas finalmente conseguiram chegar ao que parecia ser um pequeno vale, pouco visível entre as árvores.
A extensão do vale era de quase 800 metros , e ao passar por ele, Arran ficou atento a uma emboscada, vasculhando constantemente a área com sua Visão das Sombras. Contudo, não houve nenhuma emboscada e, por fim, o vale se alargou em uma grande clareira.
A clareira abrigava um acampamento considerável, se bem que desorganizado, o que parecia ser quase uma centena de pessoas, amontoadas em torno de algumas pequenas fogueiras.
Cerca de metade das pessoas no acampamento pareciam saudáveis e bem alimentadas, mas entre elas, Arran avistou crianças pequenas e até mesmo vários bebês. Em sua opinião, esses devem ser os aldeões.
Já a outra metade apresentava uma aparência consideravelmente pior, com seus corpos magros e suas roupas rasgadas e sujas. No entanto, por mais que sua aparência fosse desleixada, pareciam bem armados e alertas, seus olhos se voltaram imediatamente para Arran e os outros quando entraram na clareira.
“Lorde Stone Heart!” A jovem mulher chamou. “Trouxe visitantes!”
Um momento depois, uma figura alta se levantou do acampamento e se virou para eles.
“Stone Heart?”
Havia uma certa dúvida na voz de Snow Cloud quando ela olhou para o homem, mas Arran compartilhou sua descrença. Ainda que o homem tivesse uma altura ridícula como a de Stone Heart, sua aparência era completamente diferente de um guerreiro dominador e confiante como o que Arran conheceu perto de Hillfort.
Os olhos do homem pareciam vazios, com círculos escuros ao redor, e sua barba e cabelo estavam esfarrapados. Haviam várias cicatrizes recém-criadas em seu rosto que, ainda que fosse musculoso, não tinha o volume de Stone Heart, em vez disso, parecia que mal havia comido em semanas ou até meses.
No entanto, mesmo na condição atual do homem, ao começar a caminhar em direção aos recém-chegados, Arran pode ver que se tratava do Stone Heart – por mais magro e cansado que estivesse, e apesar das cicatrizes recentes que carregava.
Stoneheart parou diante de Snow Cloud, e fez uma pequena reverência a ela. “Lady Snow Cloud”, disse ele, em uma voz respeitosa, mas cansada.
Logo depois, ele se virou para Arran, com uma ponta de surpresa em seus olhos. “Então foi para lá que você desapareceu”, comentou. Ele deu outra olhada em Arran e depois acrescentou: “Você ficou mais forte”.
“Você ficou mais magro”, respondeu Arran.
Stone Heart soltou uma risada cansada. ” Eu suponho que sim, sem dúvida.”
Snow Cloud permaneceu em silêncio por um momento, dirigindo um olhar examinador a Stoneheart. “O que aconteceu com você?”, ela finalmente perguntou, com a voz carregada de preocupação.
“Muita coisa”, respondeu Stone Heart. “Infortúnio, estupidez – provavelmente ambos. Mas venha, junte-se a nós. Infelizmente não temos muita comida ou bebida, mas temos alguns troncos para sentar”.