Capítulo 2070

Fragmentos da Guerra (7)

Uma lua despedaçada brilhava sobre um castelo igualmente despedaçado. O castelo sempre fora uma ruína, mas agora havia sido reduzido a escombros. Os escombros costumavam ser cercados por um lago profundo, mas agora o lago havia desaparecido.

Seu fundo fora revelado, em todo seu mistério e horror.

De pé sobre o monte de destroços que outrora fora uma grande muralha, Kai olhava para baixo. Bem abaixo dele, ruínas antigas reluziam sob a pálida luz da lua. Estavam cobertas de lama e algas marinhas, mas ele ainda podia reconhecer as formas de belas edificações de pedra e construções menores sob a lama.

O castelo ficava no topo de uma montanha, e havia uma próspera e vasta cidade ao redor da montanha… ou havia, uma vez.

Outros não veriam, mas Kai via. Enterrados na lama, escondidos na escuridão dos edifícios antigos… havia ossos humanos. Eram tantos que era impossível contar. Miríades de crânios o encaravam com olhares vazios, como se o culpassem por estar vivo.

Milhões de pessoas devem ter perecido ali, muito tempo atrás. Alguns esqueletos estavam intactos, outros esmagados. Ele não sabia o que havia matado os habitantes da antiga cidade, mas fosse o que fosse, suas mortes haviam sido súbitas e brutais.

Talvez tenha sido a grande enchente que afogara a cidade, enterrando-a sob a massa de água por milhares de anos.

Talvez a grande enchente tenha ocorrido no mesmo dia em que a lua foi despedaçada.

Observando a cidade submersa que se espalhava por toda a bacia do lago, Kai se perguntou se havia uma ruína semelhante no fundo do verdadeiro Lago Espelho.

Não… este era o verdadeiro Lago Espelho. A Bastion que ele conhecia era meramente uma ilusão.

Ainda era estranho pensar nisso.

Soltando um pesado suspiro, ele desviou o olhar das ruínas da antiga cidade e ergueu os olhos para o céu.

A lua despedaçada era sempre a mesma, e Kai sabia que era melhor não olhar para ela por muito tempo. Ela não podia lhe dizer nada sobre o tempo, de qualquer forma… mas ele sabia que haveria lua cheia na versão ilusória de Bastion hoje.

O que significava que, por um breve momento, realidade e ilusão se sobreporiam um pouco, permitindo a passagem de uma para a outra.

…O que significava que, se Mordret quisesse infiltrar-se na capital do Domínio da Espada, teria que ser hoje. Haveria outra batalha, sem dúvida… e muito mais feroz do que todas as anteriores.

Se é que isso era possível.

A ruína do castelo não havia sido reduzida a escombros sem motivo, afinal, e o fundo do lago não fora revelado por acidente. No último mês, Kai e os outros Santos recrutados por Morgan de Valor vinham batalhando contra o Príncipe do Nada nesta terra onírica, mudando lentamente a própria paisagem do verdadeiro Bastion.

Até mesmo a floresta antiga do outro lado do lago oco agora estava carbonizada e devastada, suas margens externas reduzidas a cinzas.

O amargo confronto entre os filhos do Rei das Espadas havia sido como um cataclismo, erodindo a própria terra que deveria ser seu direito de nascimento. Observando a cena de total devastação ao seu redor, Kai não pôde deixar de sentir alívio por Morgan ter decidido esconder a Bastion ilusória e repelir o cerco de seu irmão nesse lugar desolado. Caso contrário, a perda de vidas teria sido mais insuportável do que durante a Campanha do Sul.

Ele ainda não havia presenciado uma batalha tão catastrófica… exceto talvez pelo cerco de Verge, onde enfrentaram a Legião Profanada e o abominável Primeiro Buscador. Essa, ele ainda via em seus pesadelos às vezes.

Milagrosamente, os defensores de Bastion haviam mantido sua posição por um mês inteiro. Parcialmente devido à sua própria determinação e habilidade, parcialmente devido à tenacidade de Morgan de Valor e seu corpo encantado, e parcialmente por pura sorte.

Mas, principalmente, por causa do campo de batalha que ela escolheu.

Aqui, no verdadeiro Bastion, habitavam criaturas assombrosas que Morgan chamava de Outros. Essas entidades nebulosas habitavam reflexos, e, portanto, os poderes de seu irmão eram abafados.

Kai e os outros defensores só haviam encontrado os Outros algumas vezes, e mesmo assim, quase lhes custara a vida. Mas Mordret tinha que enfrentar essas estranhas e alienígenas entidades toda vez que queria usar os poderes de seu Aspecto, o que significava que ele lutava uma guerra em duas frentes.

Uma guerra contra sua irmã e seus Santos, e outra guerra nos reflexos.

Era por isso que ele ainda não conseguira esmagar os defensores do castelo em ruínas, apesar de seu poder terrível… ainda… e era por isso que Bastion ainda não havia caído nas mãos do Domínio Song.

Pelo menos, era assim que parecia na superfície. Kai, no entanto, sentia-se inquieto… afinal, ele conhecia Mordret, tendo conquistado dois Pesadelos e lutado em Verge juntos.

Quando aquele homem não tinha um esquema escondido na manga?

Algo não era como parecia ali, mas Kai não sabia o que era e não tinha evidências para provar sua suspeita.

De qualquer forma, Bastion não podia cair. O Domínio da Espada estava atualmente em uma situação desesperadora, e eles não podiam permitir que ele desmoronasse agora.

Olhando para baixo, Kai esfregou o rosto cansado e ergueu-se no ar, voando suavemente até onde uma fogueira ardia no coração das ruínas, e o aroma tentador de comida subia de uma panela de liga metálica.

Ao pousar suavemente no chão e cumprimentar os outros Santos, uma forte rajada de vento atingiu os restos de uma parede em ruínas que protegia o fogo, e um pequeno seixo caiu dela na panela.

Antes que pudesse mergulhar no ensopado perfumado, no entanto, a Princesa Morgan ergueu a mão e o pegou sem nem olhar para cima. Sua reação foi tão rápida quanto se esperava de uma Santa, mas foram seus sentidos que impressionaram Kai. Ela pegou o seixo simplesmente ouvindo-o roçar o ar, ou possuía uma Memória que lhe concedia completa consciência de seu entorno?

Foi uma boa captura, de qualquer forma. Ter um seixo sujo caindo no ensopado teria tornado a refeição menos agradável.

Kai sorriu e abriu a boca para dizer algo.

Mas antes que pudesse, Morgan falou primeiro:

“Boa captura. Eu sei.”

Ele a olhou, perplexo.

Soltando um suspiro, a princesa ergueu a cabeça e olhou para ele com olhos fundos.

“…Estará pronto em alguns momentos.”

Seu olhar, normalmente afiado, parecia um pouco embotado, e ela estava um pouco desalinhada. Morgan de Valor sempre fora impecável e controlada, mantendo uma postura impecável e uma compostura fria mesmo no meio das lutas mais terríveis. Sua meticulosidade era quase compulsiva.

Mas agora, suas roupas estavam desalinhadas, e seu belo cabelo corvo implorava por uma escova. Ela parecia desgastada e exausta — o que era compreensível, considerando que todos estavam.

A questão era que, quando Kai a viu algumas horas atrás, Morgan parecia muito mais cheia de vitalidade.

Olhando para ela agora, ele franziu o cenho.

Algo… estava errado com Morgan de Valor.

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