Shadow Slave – Capítulos 981 ao 990 - Anime Center BR

Shadow Slave – Capítulos 981 ao 990

Tudo Quieto

Rain havia completado recentemente dezesseis anos.

Para todo adolescente, essa era uma data especial. Isso significava mais do que palavras poderiam descrever, porque a partir desse ponto, por cerca de dois ou três anos, eles estariam vulneráveis à infecção do Feitiço.

Ela esperava sentir uma grande mudança dentro de si mesma, mas, para surpresa de Rain, tudo sobre ela parecia mais ou menos o mesmo.

… O mundo ao seu redor, no entanto, tinha mudado muito.

Sua rotina diária era exatamente como era antes, mas sob a superfície, todos estavam agindo de maneira diferente. Seus pais tentavam esconder o medo, mas ela sabia o quão preocupados eles realmente estavam. Seus colegas de classe estavam tentando parecer corajosos, mas nenhum deles podia agir tão bem quanto pensavam. Até os professores pareciam muito mais contidos.

O clima nas ruas da cidade também era sutilmente diferente.

Claro, Rain não era o centro do universo. A maioria dessas mudanças não tinha nada a ver com ela e eram causadas pelo evento que mantinha todos grudados nos portais de notícias – a grande evacuação do Quadrante Sul. Era um evento histórico, afinal.

Concedido, nada disso havia afetado verdadeiramente a NQSC. Os refugiados ainda não haviam chegado, e o perigo do qual estavam fugindo estava tão distante que não parecia real. Era apenas que todos pareciam ter uma opinião sobre o que estava acontecendo, e havia veículos militares nas estradas às vezes.

Havia numerosos pôsteres de recrutamento por toda a cidade, incentivando as pessoas a se alistar no Segundo Exército de Evacuação. O Primeiro já estava alcançando vitória após vitória na Antártica, repelindo as abomináveis Criaturas dos Pesadelos a cada dia. Qualquer pessoa que quisesse conquistar glória e ajudar os heróis vitoriosos a defender a humanidade era convidada a se juntar ao esforço de guerra.

Ou pelo menos era isso que as notícias diziam a eles. A maioria das pessoas simplesmente aceitava a propaganda como verdadeira, acreditando que a campanha na Antártica estava indo bem, mas Rain tinha uma leve vantagem sobre eles quando se tratava dessas coisas. Seu pai trabalhava para o governo, afinal, e embora raramente falasse sobre seu trabalho em casa, ela tinha aprendido algumas coisas ao longo dos anos.

Nos dias de hoje, seu pai parecia muito estressado. Ele parecia mais estressado a cada dia que passava.

… E Sunny se foi.

Rain tinha se acostumado ao seu vizinho excêntrico indo e vindo como bem entendia, às vezes desaparecendo por longos períodos de tempo. Pelo menos ela sabia onde ele estava, nesta ocasião… se algo, a ideia de Sunny dando ordens aos soldados era mais cômica do que assustadora.

‘Essas pobres pessoas…’

Ela sabia, é claro, que seu professor travesso era um Mestre real. Apesar da atitude ridícula e das esquisitices estranhas de Sunny, ele era um Ascendido de considerável poder… não qualquer um poderia ter sido membro da coorte de Estrela da Mudança.

Mas ainda assim, mesmo assim…

Lady Nephis, Effie, Night… todos eles eram guerreiros exaltados. Mas Sunny era um batedor. Mesmo que ele fosse um espadachim esplêndido e um estrategista astuto, seu Aspecto não era adequado para a batalha, quanto mais para o tipo de batalhas que devem estar acontecendo na Antártica.

O que diabos aquele tolo estava fazendo no meio de uma guerra?

E por que diabos ele não estava respondendo às suas mensagens?!

‘Maldição, Sunny!’

Sentada na sala de aula e se vendo incapaz de se concentrar na lição – era apenas um curso de verão perfunctório, de qualquer forma, e todos estavam sonolentos depois de um intenso treinamento de combate – Rain estava olhando intensamente para a tela de seu comunicador.

As coisas estavam bem no começo, mas depois tudo deu errado. Quando Sunny parou de responder, ela não estava muito preocupada. Por um par de semanas.

Já faziam dois meses, no entanto, e ainda não havia sinal dele.

Em algum momento, Rain ficou preocupada e, sem saber o que fazer, entrou em contato com Aiko. Mas Aiko simplesmente disse para ela relaxar e que Sunny estava indo muito bem onde quer que estivesse. Parecia que a jovem tinha muita confiança nas habilidades de Sunny.

E ainda assim, Rain estava inquieta.

Era engraçado… agora, ela deveria estar preocupada com a escolha do Feitiço, mas o estranho silêncio de Sunny a incomodava muito mais.

E assim, Rain estava encarando a tela de seu comunicador no meio de uma aula.

Seu registro de mensagens teria sido embaraçoso, se as coisas não fossem tão assustadoras.

“Hey, você recebeu minha última mensagem?”

“Rain para Sunny, olá?”

“Pare de me ignorar.”

“Por que você não está respondendo?”

“Sunny?”

“Se você está ocupado demais, é só dizer e eu vou encontrar algo mais interessante para fazer.”

“O quê, nem um ‘ok’? Vamos lá.”

“Sério, porém, você está bem?”

“Aconteceu alguma coisa?”

“Se eu descobrir que você apenas esqueceu de ler minhas mensagens, você é um homem morto.”

“Você não está realmente morto, está?”

“Ha-ha, só estou brincando.”

“Que diabos, você nem me parabenizou pelo meu aniversário?”

“Sunny, você está bem?”

“Me responda, droga.”

“Sunny, me responda.”

“Eu posso estar um pouco preocupada, então… por favor, me mande uma mensagem quando tiver tempo livre.”

“Por favor, me responda.”

Rain cerrava os dentes e guardava o comunicador. Tentou ouvir a palestra, embora fosse difícil ouvir qualquer coisa com o quanto seus colegas sussurravam ao seu redor, falando sobre isso e aquilo.

A aula, a fofoca, tudo parecia tão… inconsequente.

A sala de aula inteira parecia surreal, na verdade. Era muito pacífica, muito quente e muito normal. Em algum lugar, milhões de pessoas estavam sendo deslocadas ou morrendo. A perda de um dos quatro Quadrantes poderia ter consequências catastróficas a longo prazo para toda a humanidade. O mesmo que estava acontecendo na Antártica poderia acontecer em outros continentes em breve.

E ainda assim, as pessoas agiam como se nada fora do comum estivesse acontecendo. Elas simplesmente seguiam com suas vidas, agindo despreocupadas. Será que não entendiam o que estava acontecendo? Será que não sabiam que soldados estavam morrendo na linha de frente todos os dias?

Que Ascendidos também estavam morrendo?

‘Tolos… malditos tolos…’

Naquele momento, uma de suas colegas se virou, se inclinou para frente e sussurrou:

“Ei, Rain. Por que você está tão pra baixo ultimamente? Quer ir comer algo apimentado depois da aula? Provavelmente vai haver racionamento de alimentos por um tempo depois que esses refugiados chegarem, então esta pode ser nossa última chance de…”

Antes que Rain soubesse o que estava fazendo, uma resposta irritada voou de sua boca:

“Comida é tudo em que você está pensando?!”

Ela piscou, percebendo que estava em pé e que toda a turma a estava encarando. Aparentemente, ela esqueceu de abaixar a voz… e de permanecer em sua cadeira…

O professor deu a Rain um olhar perplexo.

“…Bem, sim. Esse tópico pode não parecer muito interessante para vocês jovens, mas seria antiético da minha parte pensar em outra coisa enquanto estou apresentando. Agora, por favor, sente-se e comporte-se, jovem senhorita. Onde estão seus modos?”

Envergonhada, Rain voltou para sua cadeira e olhou para a janela.

A aula continuou, e a fofoca também. Só que desta vez, ela era o assunto dos sussurros.

A caminho de casa, Rain passou por uma casa cinza familiar. Ela parou por alguns momentos, olhando para o alpendre onde um certo mestre insuportável frequentemente podia ser visto no passado, bebendo café e agindo como se não tivesse uma única preocupação no mundo.

O alpendre estava vazio, e a casa também estava vazia.

Com um suspiro, ela virou as costas e continuou a andar.

‘Por que eu me importo com esse idiota, afinal? Maldito Sunny. Mesmo que ele me mande uma mensagem agora, eu não vou responder.’

Naquele momento, seu comunicador vibrou, anunciando que havia uma nova notificação.

Rain olhou para ele distraída e, de repente, congelou. Havia uma nova mensagem na tela.

Dizia:

“Sunny: Deuses! O que há com todas essas mensagens? Você é uma perseguidora? Eu estava preso em uma área sem conexão de rede por um tempo, não havia necessidade de atacar minha caixa de entrada! De qualquer forma… feliz aniversário atrasado, eu acho. Como você está? As transferências de dados são limitadas onde estou agora, então serei breve. Estou bem. Ah… e recebi outra medalha. Bem legal, né?”

Rain ficou olhando para a tela por alguns momentos, depois respirou fundo e começou a digitar furiosamente.

Escuro, Vazio E Silencioso

Cassie abriu os olhos na escuridão.

Por alguns momentos, ela estava desorientada pelo dilúvio de cores e sensações.

Ela estava olhando para o céu azul brilhante e o mar de nuvens brancas rolando sob a Torre de Marfim. A luz do sol acariciava sua pele, e ventos suaves cantavam em seus ouvidos.

Ela estava envolta em calor, faíscas vermelhas voando de um cadinho onde o aço derretido brilhava com um brilho incandescente. Uma voz cansada cantava algo em uma língua antiga, as palavras alienígenas se afogando no clamor da forja.

Ela estava trancada em um pequeno escritório, lendo um documento. O papel estava frio ao toque e cheirava a tinta fresca. Sua visão estava turva pela falta de sono, e seu coração estava pesado. O conteúdo do documento era grave…

Havia outros lugares, outras pessoas. Levou um tempo para se encontrar entre os estranhos.

O mundo de Cassie era o único que não tinha cores e formas. Era escuro, vazio e silencioso.

Ela conseguia sentir o toque do tecido macio de seu pijama em sua pele e o calor de sua cama. O cheiro estava errado, no entanto. Errado, mas agradável e familiar.

‘…Onde estou?’

Ela franziu a testa e então lembrou. Esses não eram seus aposentos na Torre de Marfim. Ela tinha voltado ao mundo desperto e agora estava em seu quarto.

Ela estava em casa…

Cassie permitiu que as perspectivas de várias pessoas marcadas por sua Habilidade se desvanecessem em segundo plano e se concentrou na própria.

Ela se levantou da cama e foi para o banheiro tomar um banho. A disposição de seu quarto era organizada e familiar, e ela tomava cuidado para manter tudo em seu devido lugar. Por isso, ela conseguia se orientar sem problemas aqui, sem precisar de ajuda. Essa escuridão era segura.

Não foi sempre assim, no entanto. Nas primeiras semanas depois de receber sua Falha, Cassie era uma coleção ambulante de contusões.

…E então, o solstício chegou para ela.

Depois de um banho curto, mas agradável – muito melhor do que qualquer coisa que eles tinham conseguido arranjar na Torre de Marfim – ela caminhou até seu guarda-roupa e se vestiu. Suas roupas eram organizadas de acordo com um sistema estrito, com uma etiqueta de script tátil adicionada a cada cabide para rotular as cores, para que Cassie pudesse encontrar qualquer coisa que quisesse rapidamente.

Finalmente pronta, ela saiu do quarto e desceu as escadas.

Fora de seu próprio espaço, ela se sentia menos confiante. Seus pais tentavam estar atentos à sua Falha, mas ainda era algo desconhecido para eles. Nos anos após ficar cega, Cassie passou a maior parte do tempo em outro lugar, afinal. Como poderiam ter se acostumado com isso?

Ela estava quase certa de que não haveria um móvel movido ou um item aleatório deixado descuidadamente no caminho. Mas a mera possibilidade de esbarrar em algo ou cair a deixava tensa. Cassie se sentia… sentia-se como uma estranha em sua própria casa.

Ela odiava essa sensação.

Claro, nada aqui realmente poderia machucá-la. Sua constituição Ascendida estava além de ser machucada por um acidente mundano, mas hoje era um dia especial. Ela queria torná-lo perfeito.

Cassie hesitou por um tempo e então ativou sua Habilidade Desperta. Com tantos meios de perspectiva por aí, sua essência estava em um estado de equilíbrio delicado. Ela tinha que ter cuidado para não gastar mais do que poderia se reabastecer passivamente, e se entregar sem um motivo real não era muito responsável.

‘…Só por um tempinho.’

Imediatamente, o mundo mudou.

Cassie estava de pé perto das escadas, mas também estava descendo-as com cautela. Um degrau, dois degraus, três degraus…

Cassie abaixou o pé no primeiro degrau, mas também estava no quarto degrau.

Cassie chegou ao quarto degrau, mas também estava no patamar.

Sua mão deslizava pelo corrimão, mas também estava pendurada ao lado dela. Ela não cheirava a nada em particular, mas também conseguia sentir o cheiro do xampu de sua mãe e… flores?

Cassie ainda estava nas escadas, mas também sentiu uma pontada de dor quando sua canela bateu em algo duro, seguido pelo som de um vaso de vidro se partindo ao atingir o chão.

‘Aquilo não estava lá antes…’

Cassie se moveu para o lado, evitando o suporte desconhecido, e se inclinou um pouco para frente para cheirar as flores. O vaso estava parado e perfeitamente inteiro.

Ao mesmo tempo, houve o som de uma porta se abrindo, e o cheiro de sua mãe ficou mais forte.

Cassie se virou para a porta fechada.

A porta se abriu, e sua mãe entrou pela rua.

“Ah! Minha bebê acordou!”

Cassie sorriu e desativou sua Habilidade Desperta. Em vez disso, ela enviou sua essência para frente e substituiu sua visão pela de sua mãe. Imediatamente, a sala inteira veio à vista, incluindo um suporte de madeira desconhecido com um belo vaso de flores naturais em cima.

…Ela se viu também.

Cassie podia ver seu próprio rosto, mas não o de sua mãe.

Ela franziu um pouco a testa.

‘Minha saia está amassada…’

“Feliz aniversário! Eu não posso acreditar, minha adorável filha está completando vinte anos!”

Cassie sorriu. Ela não sentia que tinha vinte anos… ela sentia que tinha duzentos.

Antes que pudesse dizer algo, sua mãe a envolveu em um abraço.

“Estou tão feliz que você conseguiu vir! O trabalho é trabalho, mas uma jovem como você não deveria esquecer seus pobres pais velhos. Te mataria visitar mais frequentemente? Tudo, o que estou dizendo? Visitar, o quê visitar? Isso ainda é sua casa, sabe! Você mora aqui!”

O sorriso de Cassie se alargou.

“Eu sei.”

“E onde estão esses amigos seus? Como assim, ninguém está vindo para a festa? Entendo que a Lady Nephis possa estar ocupada, mas e os outros? Aquele rapaz jovem, Sunny, aquele que você sempre menciona? Onde está ele?”

Cassie permaneceu em silêncio por um tempo.

“…Ele também está ocupado.”

“Toda essa minha filha é muito boa. Se fosse eu, daria uma bronca nesses chamados amigos… perder uma festa de aniversário nunca está certo!”

Cassie apenas abraçou a mãe mais forte. Ela não pôde deixar de se apegar a ela um pouco mais do que deveria.

…Isso porque Cassie sabia exatamente quantos aniversários eles seriam capazes de celebrar juntos.

Ela sabia quando sua mãe morreria e como.

Ela sabia quando seu pai morreria também.

Ela até sabia o dia de sua própria morte e onde seria enterrada.

Cassie sabia de muitas coisas, e por isso, ela se sentia triste.

O destino não era fácil de quebrar, e não podia ser quebrado sem pagar um preço.

“Tudo bem, querida, me solte para que eu possa preparar um café da manhã de aniversário muito especial para você.”

Ela terminou o abraço relutantemente e suspirou.

“Eu não sou um bebê, sabe. Eu já sou uma Ascendida.”

Sua mãe riu.

“Quem disse que um Ascendido não pode ser um bebê? Agora me diga o que você quer para o café da manhã!”

Cassie escondeu habilmente sua tristeza e colocou um sorriso grande e brilhante no rosto.

“Que tal ovos? Com bacon?”

Sua mãe já estava indo para a cozinha.

“Sem problema! Só temos bacon sintético, no entanto. Isso está bom, Srta. Ascendida?”

Cassie seguiu, cuidadosa para não esbarrar em mais nada. “Essa é a melhor escolha!”

Havia um relógio digital na cozinha, e quando sua mãe o olhou de passagem, eram dez da manhã.

Cassie se sentou silenciosamente e olhou para o relógio, embora não pudesse vê-lo.

Alguns minutos depois, quando um cheiro delicioso encheu a cozinha, ela suspirou e olhou para o horizonte, como se pudesse ver algo muito, muito longe.

Seu sorriso vacilou um pouco.

‘Está começando, então…’

A Queda De Falcon Scott (1)

Falcon Scott não era a maior cidade do Quadrante Sul, mas desempenhava um papel importante. Situada perigosamente perto do oceano, servia como ponto de entrada para o Centro Antártico.

Um fluxo constante de pessoas e carga costumava passar por ela, tornando-a o coração da infraestrutura da região.

A cidade se espalhava pelos sopés da cordilheira, empoleirada no topo de altos penhascos. Na base dos penhascos, uma fortaleza-porto independente ficava à beira da água, cercada por seu próprio anel de paredes. A fortaleza era muito maior e mais bem fortificada do que aquela de onde Sunny havia partido no Quadrante Norte, e o Primeiro Exército não poupou recursos para reforçá-la ainda mais.

O porto estava conectado à cidade por uma cadeia de plataformas elevatórias industriais, que podiam transportar uma quantidade formidável de peso para cima e para baixo. Devido a isso, a fortaleza poderia ser apoiada pelo fogo de artilharia da muralha da cidade, e mesmo que caísse, o inimigo teria que escalar a alta barreira vertical dos penhascos sob uma chuva de fogo defensivo.

…Não que perder o porto fosse uma opção, na situação atual.

Vários Leviatãs de liga estavam atualmente ancorados perto da fortaleza, balançando nas ondas e inundando o oceano escuro com os feixes móveis de poderosos holofotes. A cidade em si estava superlotada, abrigando dez vezes sua população pretendida. Afinal, depois que todas as capitais de cerco restantes do Centro Antártico foram evacuadas para cá, Falcon Scott abrigava perto de duzentos milhões de pessoas.

Todos eles estavam esperando sua vez para embarcar nos navios de guerra e serem transportados pelo estreito, para a extensão muito melhor protegida do leste da Antártica, onde o Primeiro Exército ainda mantinha uma semelhança de controle. Um dos quatro comboios navais foi designado para transportar as pessoas, mas mesmo com a capacidade prodigiosa das enormes embarcações, isso levaria um tempo.

O fato de que vários dos navios de guerra, como o antigo ancoradouro de Naeve e o Ariadne, foram perdidos para os estragos da Cadeia de Pesadelos não tornava o processo mais rápido.

‘…Isso é mais da metade da população do QNSC. Loucura.’

Sunny estava olhando a imagem ao vivo da cidade, projetada em uma falsa janela em um dos escritórios do complexo do governo local. A cidade brilhava com uma miríade de luzes na escura noite polar, com a aurora fantasmagórica girando de maneira arrepiante acima. Havia gente demais por toda parte, e a maioria deles parecia perdida, desorientada ou derrotada.

A maior parte do complexo, é claro, estava localizada subterraneamente, então a janela tinha que ser falsa. O complexo também abrigava a filial regional do Comando do Exército, razão pela qual Sunny recebeu instruções para visitar hoje.

Com um suspiro, ele se afastou da janela, foi até a mesa de conferência e se sentou.

Sunny ainda estava usando o Manto do Titereiro, mas a diferença era que ele teve tempo para dormir, tomar um banho adequado e fazer uma refeição completa. Muito mais importante do que isso, o peso de dezenas de milhares de almas não estava mais pressionando sobre ele. No geral, ele parecia bastante revigorado.

‘Onde ela está…’

Ele não teve que esperar muito. Um ou dois minutos depois, a porta se abriu, e a Mestra Jet entrou.

A Ceifadora de Almas parecia praticamente a mesma que da última vez que ele a viu. Concedido, hoje ela estava usando o macacão usual em vez da armadura de batalha… ah, o macacão… mas tirando isso, não parecia que os meses infernais da campanha antártica a tinham afetado de maneira negativa.

Notando Sunny, Jet sorriu.

“Bem, se não é o jovem Mestre Sunless, valente matador de abominações e salvador dos homens. É bom tê-lo de volta, Sunny.”

Sunny forçou um sorriso em resposta.

“Yeah… é bom estar de volta. Como os últimos dois meses trataram você? Porque, você sabe, eu tive um pouco difícil.”

Mestra Jet tomou assento na cabeceira da mesa e o olhou com um olhar humorístico.

“Você não tem ninguém além de si mesmo para culpar. Quem pediu para você ser um superdotado? Eu te enviei para recuperar um homem, e você me trouxe quarenta mil em vez disso. Devo dizer, se todos aqui tivessem essa atitude, a Cadeia de Pesadelos teria acabado em uma semana. Inferno, poderíamos ter recuperado a América até agora.”

Sunny olhou para ela sombriamente.

“Não, obrigado.”

Considerando quantos refugiados estavam atualmente em Falcon Scott, quarenta mil não era um número grande. No entanto, alguns daqueles milhares eram soldados reais, e alguns mais eram marinheiros experientes. Isso era realmente significativo o suficiente para causar impacto, então a notícia de seu retorno se espalhou por toda a parte.

Todos eles – tanto os refugiados quanto os soldados – também pareciam ser muito dados a contar histórias sobre as muitas façanhas do Diabo. Sunny não tinha certeza do tipo de reputação que tinha conquistado, mas certamente tinha uma reputação agora. Por toda a cidade, as pessoas estavam familiarizadas com seu nome.

…Para o bem ou para o mal.

“Ah… obrigado por me enviar o seu corvo, aliás. Isso ajudou bastante.”

Jet sorriu, mas antes que ela pudesse dizer algo, a porta se abriu novamente. Winter e Dale entraram e ocuparam seus lugares. Com apenas os quatro Irregulares no escritório, parecia um pouco vazio.

Sunny olhou ao redor.

“…Onde estão Randal e Jesse?”

Mestra Jet hesitou por um momento.

“Eles estão mortos.”

Ele ficou em silêncio.

“Oh.”

A Ceifadora de Almas suspirou, depois pegou seu datapad, percorreu alguns documentos e os abordou com uma voz alegre:

“Bem, então, vamos começar. Haverá uma grande reunião estratégica em uma hora para todos importantes o suficiente para comparecer, mas antes disso, devo atualizá-los sobre a situação atual. Nos próximos dias, Falcon Scott será sitiada por um mar interminável de abominações. Nossa tarefa é simples: devemos garantir que ela não caia por pelo menos três semanas…”

A Queda De Falcon Scott (2)

A situação estava tanto clara quanto sombria. Sunny já sabia de algumas coisas que Jet lhes contou, mas outras foram uma completa surpresa.

O Primeiro Exército estava planejando se retirar do Centro Antártico, levando consigo toda a sua população. O plano anterior de se entrincheirar em várias capitais cercadas fortificadas para evacuação gradual tinha sido abandonado, ou melhor, adiado – seria implementado eventualmente, mas não antes de todos serem realocados com segurança para a Antártica Oriental.

A Antártica Oriental estava indo muito melhor do que a região central do Quadrante por várias razões. Em primeiro lugar, era muito maior e mais densamente povoada do que o Centro, com um terreno melhor. Foi por isso que a força do Primeiro Exército enviada para lá era várias vezes mais poderosa.

O exército de campo do qual Sunny fazia parte contava com cem mil soldados, com cerca de cinco mil Despertos os acompanhando… ou melhor, contava. Agora, talvez houvesse a metade deles restante. As três forças armadas operando na Antártica Oriental, por outro lado, tinham trezentos soldados e quinze mil Despertos, sem contar as forças locais.

Se isso não fosse o suficiente, dois dos três Santos participantes da campanha também estavam estacionados lá. O emissário do clã Canção e o Transcendente do governo estavam ambos designados para a massa terrestre maior, com Sky Tide sozinha responsável por toda a Antártica Central.

A Cadeia de Pesadelos também parecia estar atingindo especialmente forte a região central…

Por último, e talvez mais crucialmente, a Antártica Central era onde a Besta do Inverno tinha aparecido. Apenas esse titã era responsável por inúmeras mortes, pois sua influência havia colapsado a rede de comunicação por toda a massa terrestre. Se não fosse pelo fato de que o Santa Tyris era um contraponto direto aos seus poderes, a situação poderia ter sido ainda pior…

Infelizmente, ela só podia conter a Besta do Inverno, não matá-la.

De qualquer forma, o Comando do Exército decidiu cortar suas perdas e concentrar todas as forças humanas restantes no Quadrante na defesa de uma única região. Os primeiros destacamentos do Segundo Exército estavam programados para chegar no final do mês, então sua decisão pelo menos parecia prudente.

…O problema, é claro, era que os defensores combalidos do Centro Antártico tinham que sobreviver à realocação primeiro.

Havia cerca de duzentos milhões de pessoas em Falcon Scott, e relocá-las para a Antártica Oriental levaria pelo menos três semanas. O estreito não era muito largo, então transportar refugiados através dele seria dez vezes mais rápido do que tentar evacuá-los até o Quadrante Norte. Ainda assim, havia apenas muitos deles para realizar qualquer coisa de maneira oportuna.

Portanto, os membros remanescentes do exército de campo tinham que garantir que a capital cercada sobrevivesse essas semanas sob cerco constante pelas Criaturas dos Pesadelos.

Mestra Jet recostou-se.

“Resistimos a três ataques em grande escala ontem, e provavelmente haverá quatro ou cinco hoje. Esse número só aumentará no futuro. Teremos que parar de contá-los eventualmente, acho, pois será apenas um ataque ininterrupto de abominações, vinte e quatro horas por dia.”

Winter e Dale se olharam. Eventualmente, o atirador aguçado Ascendido suspirou.

“…Não é o número de Criaturas dos Pesadelos que me preocupa. São os bastardos particularmente poderosos que não têm para onde ir, exceto aqui, agora.”

Ceifadora de Almas deu de ombros.

“Temos que desenvolver estratégias contra cada um. Para isso é a grande reunião, no entanto, então não falemos sobre isso ainda…”

Sunny saiu um pouco da conversa, olhando para as cadeiras vazias ao redor da mesa.

Davis, Randall e Jesse… três dos seis capitães Irregulares agora estavam mortos. Ele não os conhecia muito bem, mas a perda deles ainda parecia um mau presságio. Especialmente Randall. De alguma forma, Sunny imaginava que o veterano barbudo seria o último deles a se perder.

Jesse também parecia ser uma pessoa muito legal.

‘Maldição…’

Não escapou de sua atenção que os três Mestres caídos eram aqueles que se especializavam em ofensivas diretas – seja em assaltos frontais, táticas de bater-e-correr (hit-and-run) ou operações furtivas. Os que sobreviveram eram Sunny, Winter e Dale – um especialista em utilidades, um lutador à distância e uma potência defensiva.

Se havia uma lição filosófica em tudo isso, ele estava muito perturbado e triste agora para descobrir.

“…falando nisso… ei, Sunny, você está ouvindo?”

Sunny olhou para o Mestra Jet e piscou algumas vezes. “Sim, um pouco.”

Ceifadora de Almas riu, então jogou algo nele. Ele pegou, depois olhou para uma pequena caixa em sua mão, confuso. Abrindo-a, Sunny viu uma medalha de ferro com uma imagem de um coração ardente gravada nela.

A medalha parecia muito ostensiva, se um pouco solene. Muito mais elaborada do que a anterior que ele havia recebido, com a fita anexada pintada em vermelho rico. No entanto… era feita de ferro simples… então não poderia ser muito valiosa.

Ele olhou para a Mestra Jet com uma pergunta silenciosa, fazendo-a rir.

“Deuses, você não sabe de nada? Isso é a Ordem da Humanidade, Sunny, a mais alta honra militar que uma pessoa pode receber. Parabéns. Você é oficialmente um herói.”

Ele franziu um pouco a testa, provocando um sorriso de Jet.

“…E sim, ela vem com pontos de contribuição. Muitos deles. Você também foi promovido a major. Isso vem com uma pensão aumentada, também.”

Sunny relaxou e depois olhou para a medalha de ferro com um pouco de carinho.

“Eu sei de algumas coisas, na verdade…”

Ele duvidava que seria capaz de usar sua considerável quantidade de pontos de contribuição acumulados em Falcon Scott, já que a logística aqui devia estar sob grande pressão. A maioria dos recursos seria distribuída instantaneamente para aqueles que precisavam deles, incluindo Memórias valiosas… ou não tão valiosas, aliás, considerando quantos novos Adormecidos precisavam ser armados.

Uma vez que chegassem à Antártica Oriental, no entanto…

Mestra Jet olhou para o datapad e suspirou.

“É hora de irmos para um escritório maior. A reunião estratégica está prestes a começar.”

Sunny levantou-se, olhou pela última vez para a falsa janela e dirigiu-se para a porta.

‘Se chegarmos à Antártica Oriental, quero dizer…’

A Queda De Falcon Scott (3)

A próxima sala de conferências era muito maior, e havia até alguns petiscos para os participantes da reunião. Sunny encontrou o canto mais escuro da sala para se acomodar e abriu um pacote de petiscos adoçados – depois de se certificar de que não havia mel envolvido em sua criação, é claro.

Mastigando algo que parecia uma fruta seca, ele olhou ao redor.

As figuras mais proeminentes do Primeiro Exército estavam chegando uma após a outra. Havia alguns comandantes comuns, mas a maioria era Ascendida. Eventualmente, ele contou nada menos que vinte e um Mestres – incluindo os quatro Irregulares.

Naeve e Roan também estavam presentes, então ele acenou para eles.

Mestra Jet, que estava relaxando em uma cadeira ao lado de Sunny, deu-lhe um olhar curioso.

“Que amigos interessantes você tem, Sunny.”

Ele deu de ombros.

“E quanto a eles?”

Ceifadora de Almas riu.

“Não, nada. É só que aqui está uma sala cheia de Ascendidos do governo, e os dois para quem você está acenando estão ambos ligados aos grandes clãs. Se eu não te conhecesse melhor, pensaria que você tem uma queda por escalar socialmente.”

Sunny resmungou.

“A única escalada de que eu gosto é… na verdade, deixe pra lá. Não foi você quem me ajudou a negociar um acordo para não me juntar à Valor, de qualquer maneira? Certamente você entende que uma joia preciosa como eu não precisa de conexões para ganhar o favor de um grande clã…”

Ouvindo Jet rir silenciosamente, ele acrescentou com uma expressão séria:

“Oh… obrigado por isso, aliás. Só de pensar que eu poderia ter estado vivendo como um príncipe em algum lugar em Bastion em vez de passar tempo de qualidade aqui na Antártica me faz sentir levemente nauseado. Quem precisa de luxo quando se pode ter rações militares ilimitadas, certo?”

Winter o encarou de trás de seus óculos de sol e sorriu.

“Eu não sabia que a Valor tentou te recrutar. E você recusou, hein… ela era realmente feia?”

Sunny levantou uma sobrancelha.

“Não? O que você quer dizer?”

Winter balançou a cabeça.

“Quero dizer a noiva que eles ofereceram, é claro, para casar você no clã. Ou ela era realmente feia, ou você é realmente burro… hein, acho que tenho minha resposta?”

Ele abriu a boca para retrucar, mas naquele momento, a porta se abriu, e duas pessoas entraram na sala. A atmosfera dentro mudou instantaneamente.

A primeira delas era Santa Tyris, tão impressionante quanto Sunny se lembrava. O segundo era um homem com pele de ébano lisa e cabelos perfeitamente brancos, seus olhos brilhando em tons de índigo e azul profundo.

Sunny só tinha visto o homem uma vez, e de longe, mas sabia quem era o estranho.

Bloodwave, um Transcendente da Casa da Noite. Ele estava encarregado do comboio naval que entregara o exército de campo ao Centro Antártico, e o Santo que Sunny testemunhara mergulhando nas águas negras como uma assassina baleia assassina uma vez.

‘Ah! Ele também está em Falcon Scott?’

Fazia sentido, em retrospecto. O comboio naval foi designado para transportar os refugiados através do estreito, então é claro que Bloodwave estava envolvido. Ele provavelmente estava encarregado de garantir que nada destruísse os navios durante a realocação.

Os emissários da Casa da Noite não faziam parte do Primeiro Exército, razão pela qual Sunny não percebeu que havia realmente um quarto Transcendente no Quadrante Sul agora… não, deve haver ainda mais, já que os outros três comboios também precisavam de um poderoso guardião para protegê-los.

Inicialmente, não deveriam se envolver na operação terrestre, mas a situação parecia ter mudado de alguma forma.

Sky Tide cumprimentou todos reunidos na sala e depois ocupou o lugar principal da mesa. Bloodwave simplesmente se apoiou na parede depois de trocar algumas palavras com Naeve, forçando alguns Mestres a se mexerem desconfortavelmente conforme sua presença os tocava.

…Sunny também sentiu.

‘Que cara incrível.’

Enquanto estudava o misterioso Santo através de suas sombras, Sky Tide começou a reunião.

“Vocês todos sabem o que precisa ser feito…”

Sem perder tempo, Santa Tyris descreveu brevemente o estado geral do contingente do Primeiro Exército, o escopo das tarefas à frente deles, bem como as forças inimigas alinhadas contra eles. Sua voz era calma e composta, como se não estivessem enfrentando uma ameaça existencial de proporções terríveis.

Para ser honesto, Sunny lutava para imaginar Sky Tide perdendo a compostura em qualquer circunstância. Como isso sequer pareceria?

‘…Na verdade, espero nunca descobrir.’

A maior parte do que ela lhes disse eram coisas que ele já sabia em certa medida, mas ouvir tudo listado de maneira estruturada foi útil para obter uma visão sólida do quadro geral.

O quadro geral… não parecia muito bom.

Apontando para o mapa projetado da cidade e seus arredores, Santa Tyris continuou:

“…agora que Falcon Scott é o único alvo na região, a luta entre as Criaturas dos Pesadelos vai aumentar drasticamente. O terreno limita a abordagem deles, o que significa que várias hordas e tribos de abominações terão que competir entre si pelo direito de atacar a parede. Muitas serão massacradas muito antes de chegar até nós.”

Seu olhar era frio e pesado.

“Então, não devemos nos preocupar muito com sermos sobrecarregados com números puros. O que precisamos nos preocupar, no entanto, é que apenas as criaturas mais brutais, letais e poderosas vão conseguir passar. O objetivo principal desta reunião é identificar alvos prioritários entre essas criaturas e encontrar uma maneira de lidar com elas.”

Santa Tyris apontou para as projeções, onde várias imagens substituíram o mapa da cidade.

“A análise preliminar mostra que essas Criaturas dos Pesadelos representam a ameaça mais aguda para esta cidade.”

Sunny olhou para as imagens, sentindo um peso sombrio se instalar em seu coração.

Ele já estava familiarizado com a maioria delas.

Uma nuvem de vermes voadores devorando a paisagem. Uma imagem não clara de um rio de escuridão fluindo por uma garganta profunda. Uma imagem estática das instalações LO49. Um desenho nebuloso de uma besta grotesca escondida atrás de um véu de neve.

E uma montanha ambulante com um único olho desumano, emergindo de um mar de lava incandescente para atacar uma vasta cidade.

Sunny suspirou.

‘…Três semanas, hein?’

A Queda De Falcon Scott (4)

Santa Tyris esperou por alguns momentos e, em seguida, falou novamente: “Alguns de vocês já enfrentaram esses monstros. O Mestre Sunless ali até sobreviveu ao encontrar quatro deles…”

Sem ser solicitado, todos na sala viraram-se para encará-lo, suas expressões variando de piedade a espanto. Até ouviu alguns sussurros: “Quatro? E ele ainda está vivo?” “Esse garoto deve estar amaldiçoado ou algo assim.” “Sorte do diabo, ha…”

Sunny limpou a garganta. “Ah, sim. Aproveitando esse momento, eu poderia muito bem agradecer sinceramente ao Comando do Exército por me dar a oportunidade de completar minha coleção e conhecer a Besta do Inverno também.”

Uma onda de risos se espalhou pela sala.

Sky Tide o olhou seriamente. “Vou marcá-lo como voluntário, então.”

Antes que Sunny pudesse protestar, ela continuou: “O primeiro alvo é uma entidade de enxame conhecida como Nuvem Devoradora. Nossos videntes conseguiram determinar que não é uma Criatura dos Pesadelos poderosa em si, mas sim os restos de uma. A Nuvem Devoradora era provavelmente um Terror Caído, que teve sua consciência principal destruída em algum ponto do passado. O enxame de sua prole permanece, no entanto, e é isso que precisamos combater.”

Ela olhou para os Irregulares. “Mestre Winter, considerando sua proficiência em ataques à distância e de área, você será responsável por reforçar as defesas da cidade quando se trata de repelir ameaças aéreas.”

Winter concordou. Após explicar mais alguns detalhes, Santa Tyris continuou: “O segundo alvo é uma criatura designada como Coração das Trevas. Não se sabe muito sobre ela, exceto pelo fato de ser composta por inúmeros drones semelhantes a insetos, que possuem poderes relacionados à escuridão elemental e possivelmente distorção espacial. O conhecimento sobre esse ser nos foi trazido pela Primeira Companhia Irregular.”

Isso seria Sunny e os membros de sua coorte, que haviam relatado diligentemente tudo sobre os inimigos que o comboio encontrou durante suas visitas ao Reino dos Sonhos.

Sky Tide olhou na direção dos quatro Irregulares. “O Coração das Trevas está presente no Centro Antártico desde antes da Cadeia de Pesadelos. Seu Rank e Classe são desconhecidos, mas a teoria atual é que os Irregulares perturbaram a evolução do ser para titã… se assim for, podemos ter evitado um desastre ainda maior. Em qualquer caso, as pessoas mais adequadas para lidar com essa ameaça são…”

Ela nomeou três Ascendidos desconhecidos do Primeiro Exército. Aparentemente, seus Aspectos funcionariam bem contra uma miríade de besouros assassinos infundidos de escuridão. Sunny ficou feliz ao ouvir que não teria que enfrentar os malditos insetos novamente.

…Se as coisas seguissem o plano.

“O terceiro alvo foi designado como Terror do LO49. Mais uma vez, seu Rank e Classe exatos são desconhecidos, embora a criatura seja mais provável de ser um Terror Corrompido. Ela é responsável por destruir o navio de guerra Ariadne, além de massacrar a guarnição da instalação LO49. Mestre Sunless é o único sobrevivente conhecido do ataque, então ele é a melhor pessoa para nos informar sobre essa ameaça.”

Sunny hesitou por alguns momentos, depois deu de ombros. “Não há muito o que dizer. O bastardo se esconde debaixo d’água e mata as pessoas atraindo-as para o oceano com uma manipulação mental incrivelmente poderosa. Ele também coloca um fetiço mental em todos os outros para fazê-los ignorar as vítimas. Esse é o padrão de comportamento que eu testemunhei, o que não quer dizer que a criatura não tenha outros meios de ataque. Vocês podem ler os detalhes nos relatórios que enviamos.”

Ele pensou um pouco e depois acrescentou: “Se há algo estranho sobre esse Terror, é que ele emergiu do Portal sozinho. Parece não ter um séquito de Criaturas dos Pesadelos mais fracas para defendê-lo, o que pode ser uma vulnerabilidade. Ah… também deve haver algum tipo de limitação em sua capacidade de eliminar grandes grupos de pessoas. Caso contrário, ele não teria esperado semanas para matar todos em LO49.”

Sky Tide assentiu. “Santo Bloodwave[1], Mestre Naeve. Como a criatura parece ser aquática, será responsabilidade de vocês caçá-la. O Terror não pode se aproximar da cidade.”

Os emissários da Casa da Noite simplesmente assentiram… Sunny esperava que tivessem Memórias de proteção mental suficientes.

Enquanto isso, Santa Tyris se virou para a imagem da Besta do Inverno. Uma ponta de desprezo apareceu em seu belo rosto. “A Besta do Inverno… foi recentemente confirmada como um Titã Corrompido. Eu não posso matá-la, mas eu a conterei. Lidar com a criatura será minha responsabilidade.”

Muitas pessoas na sala empalideceram ao mencionar o Rank da criatura. Mestre Roan especialmente parecia ter uma expressão grave.

Ignorando o clima sombrio, Santo Bloodwave se virou para a última imagem. “O que nos deixa com o Titã Caído Golias, a criatura responsável pela obliteração do Campo Erebus. Observe que, até agora, só experimentamos sua força física. A natureza exata dos poderes de Golias ainda é desconhecida, então… não sabemos o suficiente para determinar como destruí-lo.”

Os Mestres ficaram em silêncio, encarando a imagem assustadora de um colosso de pedra caminhando por uma paisagem desolada.

…Naquele silêncio, de repente, uma voz calma falou: “Eu vou matar Golias.”

Todos se viraram, encarando Sunny com expressões confusas. Ele sorriu. “O quê? Esse bastardo me deve uma nova armadura. Além disso, eu nunca matei um titã antes… deve ser uma experiência interessante.”

A maioria deles balançou a cabeça. “Não é um bom momento para fanfarronices vazias, garoto.”

Sunny deu de ombros. “Tão bom quanto qualquer momento.”

Santo Bloodwave estudou-o por alguns momentos, depois se virou. “De qualquer forma…”

Antes que ela pudesse terminar, porém, vários comunicadores na sala notificaram seus donos sobre uma mensagem recebida.

Sunny levantou uma sobrancelha. Aquilo era… incomum. Falcon Scott ainda estava na área de efeito da Besta do Inverno, então não havia conexão de rede em lugar algum dentro das muralhas da cidade.

Havia uma poderosa matriz de comunicação, no entanto, conectada via uma cadeia de relés especiais à Antártica Oriental.

Sua largura de banda era muito limitada e principalmente monopolizada pelo Comando do Exército – Sunny teve que gastar uma quantia considerável de pontos de contribuição para receber uma pequena cota, o que lhe permitia entrar em contato com Rain.

Ainda assim, a cota era pequena o suficiente para ele ter que contar símbolos ao compor mensagens, e em vez de uma conexão constante, pacotes de dados eram enviados e recebidos duas vezes por dia, de acordo com uma programação estrita.

Ele olhou para o próprio comunicador para verificar a hora. Era por volta das dez da manhã no Quadrante Norte, o que, traduzido para o horário local, seria… de forma alguma próximo ao período de ativação programado da matriz.

‘Interessante…’

Ainda mais interessantes eram as pessoas que receberam a mensagem. Havia apenas três delas – Santo Bloodwave… e Ceifadora de Almas Jet.

Santa Tyris leu a mensagem e franziu ligeiramente a testa. A outra Transcendente suspirou, depois mostrou brevemente seu comunicador para Naeve e o escondeu. Mestre Jet olhou para a tela e não mostrou reação alguma, permanecendo em sua pose usual relaxada.

Sunny hesitou por um momento, depois se inclinou para ela e perguntou baixinho: “O que foi isso?”

Mestra Jet olhou para ele e deu de ombros. “Um Santo morreu esta manhã no Reino dos Sonhos, enquanto defendia heroicamente uma Cidadela de alguma Criatura dos Pesadelos viciosa. Um de Valor.”

Sunny ficou um pouco surpreso. Santos não morriam com muita frequência…

“Uma Criatura dos Pesadelos viciosa, huh?”

Ceifadora de Almas sorriu um pouco.

“Yeah… as coisas vão acelerar bastante agora. Não que isso importe para nós aqui. Por enquanto…”

Nota:

[1] A tradução de Bloodwave seria algo como Onda de Sangue, preferi deixar o original em inglês mesmo, porque sei lá…

A Queda De Falcon Scott (5)

Sunny estava sentado no parapeito do muro defensivo, observando a visão apocalíptica de uma horda gigante de Criaturas do Pesadelo avançando sobre a cidade. Eram tantas que parecia que o próprio chão estava se movendo, fluindo para a frente enquanto fervia e borbulhava.

A escuridão ao redor da cidade foi afastada por dezenas de foguetes de sinalização, que desciam lentamente do céu negro como estrelas cadentes brilhantes. No chão, rios de chamas devoravam os cadáveres das abominações que haviam sido mortas nos ataques anteriores. A mistura incendiária queimava por muito tempo e com intensidade, mas, felizmente, o cheiro de carne queimada mal conseguia alcançar o topo do muro.

Colunas de fumaça se elevavam ao céu, torcendo-se enquanto lutavam para sustentar seu peso. E acima de tudo, obscurecidas por nuvens escuras, luzes fantasmagóricas da aurora giravam com tons de carmesim.

A batalha estava prestes a começar.

Conforme a avançada maré de Criaturas do Pesadelo cruzava uma linha invisível, os poderosos disparadores de massa instalados nas muralhas de Falcon Scott entravam em ação, piscando com luz elétrica enquanto lançavam projéteis pesados de tungstênio voando a uma velocidade aterrorizante. O fogo da arma ferroviária era acompanhado por trovões ensurdecedores, fazendo toda a parede tremer e vibrar.

Embora os projéteis de tungstênio não fossem explosivos, eles impactavam a horda com força suficiente para produzir flashes de luz e ondas de choque devastadoras que pulverizavam dezenas de Criaturas do Pesadelo e cortavam faixas sangrentas em sua massa.

A horda, no entanto, continuava avançando imperturbável. Um momento depois, as brechas criadas pelo primeiro salvo dos disparadores de massa haviam desaparecido completamente, e as abominações corriam para frente com fúria assassina.

Enquanto os disparadores de massa acumulavam novas cargas, as torres de grande calibre colocadas ao longo do muro juntaram-se à briga. Longas línguas de fogo floresciam de seus canos, e milhares de balas enchiam o ar. Os rios brilhantes delas se torciam enquanto deslizavam pela horda, dizimando inúmeras criaturas. O barulho da barragem de torretas era sombrio e cacofônico.

Sunny fez uma careta infeliz.

A guerra era muitas coisas, mas principalmente era… barulhenta.

Ele olhou para a queda de setenta metros abaixo dele, depois se concentrou novamente nas mãos. Seus dedos estavam espalhados e se movendo, como se estivessem realizando uma dança elaborada. Do lado, parecia que Sunny tinha enlouquecido ou estava tentando lançar algum feitiço estranho.

É claro, ele não estava fazendo nada disso. Em vez disso, estava tecendo cordas de sombra – era apenas que os fios de essência em formação só eram visíveis para ele.

Felizmente, os membros de sua coorte estavam acostumados há muito tempo com as excentricidades de seu líder, então não estavam prestando atenção. Em vez disso, todos os seis estavam observando tensos a horda se aproximando.

Quando as centenas de Máquinas de Guerra Pesadas estacionadas no topo do muro se prepararam e abriram fogo, Samara colocou o cano de seu rifle no parapeito e se inclinou para a mira. Antes que ela pudesse carregar um tiro, no entanto, Sunny colocou a mão em seu ombro e balançou a cabeça.

… Sua terceira mão, já que ele estava usando quatro, duas feitas de carne e duas feitas de sombras. Samara olhou para ele com uma leve franzida de testa.

“Senhor? Por que não?”

Sunny continuou a tecer cordas de sombra enquanto respondia:

“Não há necessidade. A guarnição tem a situação sob controle, por enquanto, então não se envolva a menos que as Criaturas do Pesadelo alcancem o topo do muro. Preserve sua essência.”

Ele hesitou por um momento, depois acrescentou:

“De acordo com os relatórios mais recentes, a Nuvem Devoradora está a apenas um dia de Falcon Scott. Vamos precisar de toda a nossa força amanhã.”

Os Irregulares se mexeram desconfortavelmente, lembrando-se de seu último encontro com o enxame voador. Sunny, no entanto, ignorou seu próprio conselho e voltou sua atenção para os fios invisíveis de essência.

A batalha progrediu mais ou menos como ele esperava. A horda avançou apesar de sofrer pesadas baixas, e pouco depois que as Máquinas de Guerra Pesadas lançaram uma chuva de projéteis e mísseis na massa de abominações, os soldados mundanos entraram em ação, seguidos por feiticeiros e arqueiros Despertos.

O cerco era estranho, considerando que a maioria das medidas defensivas da cidade só conseguia lidar com Criaturas do Pesadelo Dormentes e Despertas. Para matar os Caídos, os lutadores Despertos tinham que abandonar a segurança dos parapeitos e sair, emergindo de escotilhas fortemente blindadas no muro ou de túneis ocultos que se estendiam sob o campo de batalha.

Esses túneis também eram usados para interceptar aquelas abominações capazes de cavar pelo solo, e poderiam ser facilmente desmoronados caso o inimigo tomasse controle de um deles.

Se uma Criatura do Pesadelo Corrompida aparecesse, os Mestres eram enviados para destruí-la.

Tudo parecia bem planejado e controlado, mas a realidade era pura confusão e caos. As abominações possuíam todo tipo de poder vil, então cada assalto era imprevisível e perigoso. Cada vitória custava muitas vidas humanas para ser alcançada.

Notando uma linha de escotilhas se abrindo mais abaixo no muro e uma dúzia de figuras ágeis pulando delas, Sunny suspirou. Ele vislumbrou a pesada armadura de Dale, o que significava que algo realmente perigoso havia surgido. O Comando Militar estava estranhamente protetor dos Irregulares, mantendo-os principalmente em reserva por enquanto. Provavelmente estavam destinados a fazer a parte deles morrendo quando os alvos prioritários aparecessem.

Considerando que a coorte de Knight tinha sido liberada, no entanto, a batalha atual devia estar indo menos suavemente do que ele pensava.

E de fato, pouco depois de Dale eliminar seu alvo e se retirar, a horda rompeu a barreira protetora e alcançou o muro. Parecia que as abominações tinham aprendido a usar os montes de cadáveres deixados pelos ataques anteriores como cobertura.

A parte mais baixa do muro também era a mais reforçada. Todos os materiais recuperados dos cadáveres de Criaturas do Pesadelo bem armadas eram usados para torná-la difícil de ser violada, então a horda ficou paralisada por um tempo, sofrendo sob uma inundação de balas e projéteis explosivos.

Então, no entanto, as abominações começaram a se empilhar uma sobre a outra, formando zigurates [1] mórbidos de corpos. Os zigurates cresciam, subindo cada vez mais alto à medida que mais Criaturas do Pesadelo escalavam as escadas feitas de carne retorcida. Dez metros, depois vinte, depois trinta… eventualmente, ficou claro que havia um risco substancial de a horda escalar o muro.

Com um suspiro, Sunny interrompeu seu tecer e se levantou, mantendo facilmente o equilíbrio no topo do parapeito. Um arco negro apareceu em sua mão, e uma flecha que parecia ser feita de relâmpago se acendeu em sua corda.

‘Eles sabem construir torres de cerco agora?’

Puxando o arco, Sunny hesitou por um momento e depois enviou o Golpe de Trovão voando para baixo.

Um momento depois, os uivos das Criaturas do Pesadelo rasgaram o clamor da batalha, e o Feitiço sussurrou em seu ouvido como um coral sonoro.

A batalha continuou…

Nota:

[1] O Zigurate é uma forma de templo, criado pelos sumérios, e comuns para babilônios e assírios. Era uma estrutura maciça em forma de pirâmide com vários andares sobrepostos, com um templo no topo.

A Queda De Falcon Scott (6)

…E ainda continuava quando Sunny e sua equipe terminaram o turno. Ou talvez já fosse outro ataque — agora, muitas vezes era difícil dizer onde um ataque terminava e outro começava.

Descendo da muralha, os Irregulares passaram pelo acampamento movimentado abaixo. Carregadores pesados corriam para enviar contêineres de munição pesada, soldados feridos estavam sendo triados e cuidados, reforços frescos aguardavam a vez de entrar nos elevadores. Aqui e ali, um MWP danificado permanecia, sendo rapidamente reparado por uma equipe de técnicos.

Deixando a área de preparação, logo chegaram ao Rhino. O poderoso veículo não estava na melhor forma, mas ainda podia ser usado para se locomover pela cidade. Além disso, enquanto os membros da equipe decidiram ficar em alojamentos confortáveis, Sunny escolheu permanecer no conhecido APC. Ele até aprendeu a dirigi-lo… bem, mais ou menos… com Luster.

“Você está vindo conosco, Capitão? Oh… desculpe… Major.”

Kim olhou para longe de forma constrangida após fazer a pergunta. Sunny simplesmente balançou a cabeça.

“Hoje não. Eu tenho alguns recados para fazer, então apenas leve o Rhino para os alojamentos e depois estacione no local de sempre. Ah… e descansem bem. Amanhã será um dia longo.”

Embora a equipe não tivesse feito muito hoje, todos ainda estavam cansados. Eles rapidamente partiram, deixando Sunny sozinho.

…O quarto dia de sua estadia em Falcon Scott estava chegando ao fim.

Circulando sua essência para acelerar sua taxa de reposição, Sunny caminhou por alguns minutos, respirando o ar frio enquanto o zumbido de explosões distantes o envolvia. Em seguida, ele pulou no degrau de um transporte em movimento e permitiu que o levasse mais perto de seu destino.

As vistas de uma cidade em guerra flutuavam diante dele, muitos refugiados amontoados em poucos prédios. Todos estavam fazendo o melhor para criar algum tipo de ambiente aceitável para si e seus vizinhos… mas havia muitos problemas também.

A maioria dessas pessoas estava abalada e traumatizada, algumas muito perto de desmoronar. Havia muitos conflitos e explosões violentas, e ainda mais sentimentos sombrios.

…Havia muitas Criaturas dos Pesadelos nascendo dos corpos dos Aspirantes falhos também, já que o Feitiço se espalhava entre os refugiados e não havia soldados suficientes para encontrar todos os infectados antes que o pior acontecesse.

Uma atmosfera sufocante de medo, tensão e tristeza permeava o ar.

E ainda assim, as pessoas continuavam vivendo. Sua resiliência e adaptabilidade triunfavam sobre tudo, permitindo-lhes suportar e até encontrar momentos de felicidade neste inferno.

Sunny viu muitos sorrisos, ouviu muitas risadas e testemunhou muitos pequenos detalhes de como os refugiados estavam lidando com suas condições alteradas enquanto aguardavam ansiosos pela evacuação.

‘Ainda têm esperança…’

Eventualmente, ele pulou e continuou a pé, alcançando uma seção da área de preparação onde grandes armazéns brancos ficavam dispostos em várias fileiras, cercados por uma massa de atividade.

Foi lá que os materiais recolhidos estavam sendo processados e refinados para uso do Primeiro Exército.

Um engenheiro cansado o encontrou no portão.

“Major Sunless?”

Sunny assentiu e permitiu que o homem o levasse até uma fileira específica de armazéns.

“Sim, recebemos seu pedido. A aprovação veio rápido o suficiente, então, desde que você tenha pontos de contribuição suficientes, pode cortar uma boa parte para si mesmo. Não que eu saiba para o que você precisa… geralmente, são os mundanos que armamos com material processado que sonham em empunhar Memórias, não o contrário…”

Sunny sorriu.

Os armazéns estavam cheios de carcaças de Criaturas dos Pesadelos — aquelas valiosas o suficiente para serem recuperadas do campo de batalha e processadas pelo exército.

O cadáver do Remanescente da Rainha de Jade — o Tirano Corrompido que ele e Sky Tide haviam matado — já tinha sido colocado aqui, por exemplo. O casco de jade incrivelmente resistente do monstruoso besouro foi então refinado e usado para reforçar uma seção da muralha.

A maior parte do material processado era instantaneamente usada para fortalecer as fortificações da cidade ou do Primeiro Exército em si. Havia todo tipo de coisas que podiam ser feitas com várias partes de Criaturas dos Pesadelos, desde criar armas brancas e aprimorar as carapaças blindadas dos MWPs até alimentar mecanismos de feitiçaria exóticos.

É por isso que Sunny teve que impor sua influência, barganhar um pouco e gastar um monte de pontos de contribuição para receber uma cota modesta.

Estudando os armazéns, ele perguntou:

“Ontem teve um Diabo Corrompido que conseguiu romper a muralha. Onde ele está guardado?”

O engenheiro o encarou por alguns momentos.

“Uh… desculpe, senhor. Eu não faço ideia de qual deles rompeu a muralha. Nós apenas recebemos as carcaças e pensamos em maneiras de desmontá-las. Outra equipe então pensa em como realmente usar as partes.”

Sunny piscou algumas vezes.

“Faz sentido. Apenas me mostre o material Corrompido que você tem, então.”

Ele foi conduzido por vários armazéns, estudando uma série de cadáveres horripilantes, um mais assustador que o outro.

Havia uma criatura que se assemelhava a uma toupeira gigante coberta por pesadas placas de armadura óssea, e uma criatura que parecia uma massa de espinhos, com um pequeno corpo esquelético escondido em algum lugar no centro. Havia o cadáver de algo que parecia um carrapato metálico de oito patas, do tamanho de uma casa, e uma esfera de pedra coberta de protuberâncias que pareciam estranhamente rostos humanos.

‘Maldição…’

Finalmente, Sunny encontrou o que procurava. No espaçoso armazém, uma grande carcaça jazia no chão, cercada por andaimes de liga. A criatura era vagamente humanoida em forma, branca como osso, com fileiras incontáveis de agulhas espetando suas costas.

Cada agulha tinha cerca de três metros de comprimento, largura suficiente para que ele mal conseguisse segurá-la com uma mão, e pesava demais para vários homens adultos levantá-la. Eram feitas de um material estranho que parecia estar em algum lugar entre metal e osso, e extremamente afiadas.

Ontem, o Diabo havia disparado essas agulhas na parede, rasgando a liga blindada como se fosse papel.

Sunny encarou a abominação morta, então assentiu.

“Sim, isso deve servir.”

O engenheiro o observou com interesse:

“Ah, as agulhas? Quantas você quer?”

Sunny deu de ombros.

“Uma deve ser suficiente.”

Decidindo não incomodar a equipe de processamento, ele convocou o Pecado do Consolo e ouviu silenciosamente seus sussurros enquanto cortava uma das agulhas. O engenheiro o observava com curiosidade.

“Desculpe, senhor, mas posso perguntar para que você precisa disso?”

Sunny resmungou enquanto erguia a agulha e a colocava no ombro. Em seguida, olhou para o homem.

“…Prática de feitiçaria.”

A Queda De Falcon Scott (7)

Carregando a agulha no ombro, Sunny escolheu caminhar até seu próximo destino. A coisa era pesada o suficiente para que mesmo um Mestre como ele sentisse um pouco de esforço depois de um tempo, então ele teve que se envolver nas sombras em algum momento.

As pessoas estavam lançando olhares estranhos para ele, mas ninguém disse nada – o Manto do Titereiro identificava Sunny como um Desperto, e Despertos eram conhecidos por fazer coisas estranhas de vez em quando. Sunny também percebeu que pessoas comuns muitas vezes agiam tímidas na frente dele desde que ele se tornara um Mestre, o que cortava agradavelmente o número de conversas constrangedoras que ele precisava ter. Então, ele só precisava ter cuidado para não acertar ninguém com a agulha desajeitada por acidente.

Enquanto caminhava, Sunny decidiu verificar seus runas por tédio.

Fragmentos de Sombra: [2471/4000].

Ele sorriu um pouco.

O cerco a Falcon Scott poderia ter sido um assunto terrível, mas uma coisa que não faltava eram inimigos para matar. A taxa com que ele ganhava fragmentos aumentou muito nos últimos três dias. Neste ponto, a mudança feita por cada fragmento individual era insignificante, mas somava.

Ele agora estava consideravelmente mais forte do que no início da campanha na Antártica, e o quinto núcleo não era tão inatingível como antes parecia. Nephis ainda estava longe de atingir o Terror também, o que significava que ele finalmente tinha uma chance de alcançar sua Classe… pelo menos por um curto período.

‘Isso realmente importa agora? No final, ambos nós seremos titãs ou estaremos mortos.’

Os Pesadelos estavam subjugando muitos sonhos nos dias de hoje. No geral, Sunny estava em boa forma. Sua coorte havia sido forjada em uma das unidades de combate mais mortíferas do continente, com cada membro aprimorando suas habilidades para um grau verdadeiramente temível.

Tudo o que restava para impulsioná-lo a um nível totalmente novo de poder era para a Santa emergir de sua evolução. Talvez… apenas talvez… eles realmente conseguissem manter Falcon Scott por três semanas.

Sunny abriu caminho para uma coluna de veículos militares e olhou para a multidão de refugiados ao seu redor.

‘Sim… duvidoso.’

Com um suspiro, ele fez uma curva e se aproximou de uma das torres de dormitórios construídas às pressas. Esta parecia mais substancial do que a maioria, mas não muito. Olhando para cima, ele viu uma vasta extensão de janelas brilhantes, com milhares e milhares de humanos se abrigando do frio dentro delas.

Ele olhou para a agulha do diabo, então girou-a desajeitadamente e cravou a ponta fundo no chão. Levar para dentro do prédio teria sido uma complicação, e Sunny tinha certeza de que ninguém a roubaria – a coisa pesava mais do que qualquer humano comum, ou mesmo um grupo deles, poderia carregar embora.

…O problema, no entanto, era que a agulha era tão afiada que continuava a afundar no solo congelado por seu próprio peso. Sunny a encarou ressentido por um momento, depois repetiu o processo, desta vez enfiando-a no chão com a ponta cega.

Finalmente satisfeito, ele caminhou até a entrada da torre, onde um civil solitário estava retirando a neve. Ao passar, o homem recuou e o encarou com olhos arregalados.

Sunny suspirou interiormente.

‘Eu realmente sou tão assustador?’

“Capitão? Capitão Sunless, é você?”

Surpreso, Sunny levantou uma sobrancelha.

“Uh… sim? Tecnicamente, agora é Major. Eu te conheço…”

Antes que pudesse terminar a frase, o civil largou a pá e pegou sua mão, apertando-a vigorosamente. Sunny congelou.

‘O que diabos está acontecendo?’

“É você! Mestre Sunless, senhor… minha família e eu estamos vivos apenas por sua causa. Depois do Campo de Erebus, eu pensei… ah, desculpe… mas você nos trouxe todos até aqui. Obrigado. Muito obrigado!”

Sunny não sabia como se comportar naquela situação, mas felizmente, o civil finalmente soltou sua mão e abriu apressadamente uma pequena bolsa pendurada no cinto. Um momento depois, Sunny se viu segurando um sanduíche cuidadosamente embalado.

“Por favor, pegue isso! Eu sei que não é muito… mas minha esposa fez ela mesma. Você provavelmente não come muita comida caseira, ficando aí na parede!”

Sunny queria devolver o sanduíche para o homem, mas então hesitou. Os refugiados não estavam passando fome, mas ele sabia com certeza que a maioria das rações às quais tinham acesso não diferia do que ele estava acostumado nos arredores. Conseguir os ingredientes para fazer esse simples sanduíche não deve ter sido fácil… foi feito com amor e cuidado. O que significava que esse pequeno, mas sincero presente significava muito mais do que parecia.

Ele sorriu levemente.

“Obrigado. Vou aproveitar bem.”

O homem pareceu extremamente feliz ao ouvir isso e o deixou delicadamente, pegando sua pá e voltando a limpar a neve enquanto assobiava uma melodia.

Caminhando para dentro do prédio, Sunny olhou para o sanduíche e franzindo um pouco a testa. Ele realmente não sabia como se sentir sobre o encontro estranho. Por um lado, era bom ver um resultado tangível de seus esforços. Após a caravana chegar a Falcon Scott, os refugiados foram rapidamente processados e designados para vários dormitórios, então Sunny não os havia visto novamente.

Por outro lado, o homem alegre estava claramente se iludindo se achasse que Sunny o havia salvado a ele e sua família. Tudo o que Sunny havia feito foi adiar suas mortes por algumas semanas… eles só seriam verdadeiramente salvos quando atravessados pelo estreito, até a Antártica Oriental. Até então, uma espada afiada ainda pairava sobre seus pescoços.

‘…Mais uma razão para manter a maldita parede pelo maior tempo possível, então.’

De repente pensativo, Sunny usou um elevador para descer para o subsolo e se aproximou de uma porta específica. Alguns momentos depois de bater, Beth abriu e o olhou por um bom tempo.

“Oh. É você.”

Ele levantou uma mão com um sorriso largo.

“Eu trouxe sanduíches. Bem… um sanduíche.”

Ela se afastou para deixá-lo entrar e virou-se.

“Professor! Seu Desperto favorito está aqui!”

Sunny dispensou as botas do Manto do Titereiro antes de entrar. Essa pequena ação o fez se sentir estranhamente nostálgico.

‘Huh… vida civil. Como é que eu mal me lembro do que é?’

A Queda De Falcon Scott (8)

Sunny não tinha motivo específico para essa visita, além de simplesmente querer verificar como o velho se estabelecera. Desde sua primeira impressão, o apartamento dormitório era pequeno demais e básico demais para alguém da estatura do Professor Obel.

Havia cinco quartos compactos conectados a uma sala de estar, cozinha e banheiro compartilhados, com três dos quartos ocupados por outras pessoas. Ele podia ouvir a voz de uma criança atrás de uma porta, o que significava que poderia haver famílias inteiras de refugiados vivendo ali. Nesse sentido, talvez o fato de o Professor e Beth cada um terem um quarto para si já fosse um privilégio.

‘Mesmo assim… que diabos…’

Talvez ele não devesse ter ficado surpreso. O Professor Obel era de fato um cientista distinto que havia feito grandes contribuições à humanidade, mas o Centro Antártico era o centro administrativo de todo o Quadrante. Com duzentos milhões de pessoas concentradas em Falcon Scott, deve ter havido muitas pessoas distintas aguardando sua vez de serem evacuadas.

Beth o levou até a cozinha e colocou uma chaleira no fogão. Agora que não estavam ocupados tentando evitar que a caravana desmoronasse, Sunny percebeu que a jovem parecia um pouco abatida em comparação com o que ela havia sido em LO49.

Havia olheiras sob seus olhos, uma leve incerteza em seus movimentos e uma expressão sombria em sua testa. No entanto, o temperamento de Beth não havia mudado nem um pouco.

“Me diga direto… o muro vai aguentar?”

Sunny hesitou por um momento, desconcertado pela pergunta direta.

“Como eu deveria saber? Claro, vai aguentar… até que não aguente.”

Beth resmungou, despejando chá sintético em três xícaras de liga barata.

“E ainda assim você parece terrivelmente calmo.”

Sunny coçou a parte de trás da cabeça confuso.

“Pareço calmo? Bem, acho que estou. Quero dizer, o que é pior que pode acontecer?”

A jovem o encarou com indignação.

“Morte! Você pode morrer!”

Ele pensou nisso por alguns momentos.

“Prefiro não morrer, é claro. Mas a morte é definitivamente bem melhor do que algumas outras coisas. Acredite em mim.”

Sunny tinha vivido várias experiências terríveis e ainda se lembrava de alguns dos pesadelos terríveis a que fora submetido por seu corcel sombrio. Parecia que ele havia desenvolvido uma tolerância anormalmente alta à dor e ao medo em algum momento, sem nem mesmo perceber.

Claro, sua indiferença pareceria estranha para uma pessoa comum.

Sunny abriu a boca, pensando que provavelmente deveria tentar consolar Beth de alguma forma, mas naquele momento, o Professor Obel finalmente apareceu – poupando-os de um momento de constrangimento.

“Ah, Major Sunless! Que bom da sua parte poupar tempo para este velho.”

Os três se acomodaram atrás de uma pequena mesa de jantar, desfrutando do chá. Inicialmente, Sunny era quem mais falava.

“… então, as defesas da cidade estão em boas condições por enquanto. Ah, mas esperamos um grande ataque amanhã. Certifique-se de ficar dentro e não vá para os níveis da superfície do prédio, não importa o que aconteça.”

Beth e o Professor Obel trocaram olhares. Por alguma razão, a jovem parecia descontente com seu mentor.

“Sim, todos receberam instruções sobre como se comportar quando o alerta de ataque aéreo é ativado. Obrigado por nos lembrar, jovem.”

Sunny assentiu, então hesitou por um tempo. Eventualmente, perguntou em um tom cauteloso:

“Sinto muito por perguntar, Professor… mas por que você ainda está aqui? Eu pensaria que você seria colocado na lista de prioridades para a evacuação.”

Cada civil na cidade era designado como membro de um certo grupo, cada um com um valor diferente.

Os cidadãos de alto valor deveriam ser levados através do estreito primeiro, com todos os outros colocados em uma longa fila por um algoritmo randomizado. Vários fatores poderiam afetar o “peso” no algoritmo, no entanto – famílias com crianças pequenas tinham uma chance muito melhor de serem colocadas mais alto, por exemplo, enquanto pessoas com defeitos genéticos seriam colocadas mais baixo.

O nível de cidadania também afetava o algoritmo, o que significava que não cidadãos da versão local das periferias seriam evacuados por último.

‘Figuras…’

No entanto, nada disso tinha a ver com o Professor Obel. Por todas as contas, ele deveria estar em um dos primeiros navios saindo do porto. Os navios gigantes navegavam entre Falcon Scott e a Antártica Oriental há vários dias, levando muitos milhões de pessoas embora.

Beth deu ao velho um olhar repreensivo.

“Sim, Professor. Por que você ainda está aqui?”

Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, a jovem se virou para Sunny e disse com indignação:

“Acredite ou não, o velho f… o Professor abriu mão de sua posição na lista de prioridades, dizendo que não sairia sem sua assistente. E como eu não tenho nada a ver com o grupo de alto valor, ambos estamos presos no grupo de seleção padrão agora. Só os deuses sabem quando seremos designados para uma posição na fila, quanto mais sair!”

Sunny piscou algumas vezes.

“Isso é verdade, Professor?”

O velho baixou os olhos em constrangimento.

“Oh… vocês jovens não entendem. Eu sou um velho, sabem? Meus ossos ainda doem das longas semanas na estrada. Não posso descansar um pouco antes de pular em um navio?”

Beth resmungou, e desta vez, Sunny estava inclinado a concordar.

‘Que tipo de desculpa é essa?’

Havia obviamente algo mais profundo acontecendo. Esperançosamente, o Professor simplesmente não queria deixar Beth para trás… o que já era estúpido… se ele estava em alguma missão de auto sacrifício, Sunny tinha que colocá-lo no caminho certo.

Ele abriu a boca para dizer algo, mas naquele momento, a criança que ele ouvira antes irrompeu na cozinha, segurando um brinquedo improvisado nas mãos.

“Vovô Obel! Vovô Obel! Quebrou!”

O Professor Obel deu a Sunny um olhar apologético, então sorriu para a criança e pegou o brinquedo.

“O quê? Quebrou sozinho, hein? Bem, não se preocupe… eu vou consertar. Seu amigo vai estar novinho em folha em pouco tempo…”

Sunny olhou para os dois e disse em um tom contido.

“Professor, há uma diferença entre ser corajoso e ser suicida. Você precisa embarcar em um navio o mais rápido possível. O muro não vai segurar o inimigo por muito mais tempo. Nem todos vão…”

O velho afagou a cabeça da criança e simplesmente olhou para Sunny, sorrindo.

“Ainda mais motivo para o exército garantir que ele segure o máximo possível, então.”

‘Não é como se não estivéssemos tentando! Espere… não foi isso que eu disse?’

Sunny fez careta, então terminou seu chá de um gole e se levantou.

“Acho que você está certo. Vou indo, então.”

Ele olhou para Beth.

“Me avise se precisar de alguma coisa.”

Com isso, Sunny saiu do pequeno apartamento e voltou à superfície.

Pegando a agulha do diabo, ele resmungou e a colocou de volta no ombro.

‘Maldito Professor… como se eu já não tivesse dores de cabeça o suficiente…’

Resmungando baixinho, Sunny carregou a agulha pesada enquanto se dirigia para os distantes alojamentos.

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