Spice and Wolf - Volume 5 - Capítulo 2.2 - Anime Center BR

Spice and Wolf – Volume 5 – Capítulo 2.2

Volume 5

Capítulo 2.2

A casa de Rigolo aparentemente ficava um pouco ao norte do centro da cidade.

Esse distrito em particular parecia relativamente rico, dadas as fundações de pedra e o térreo dos edifícios de lá, mas o ambiente era, no entanto, pobre. Muitas casas foram ampliadas repetidamente com carpintaria, e suas paredes se projetavam na rua, quase se encontrando lá em cima.

A área parecia ter sido um bairro rico, mas declinara com o tempo.

Enquanto as famílias que eram prósperas por gerações sabiam que o dinheiro nem sempre trazia felicidade, os novos ricos eram diferentes. Contanto que tivessem dinheiro, desejavam exibi-lo expandindo suas casas.

Tudo continuava bem, mas essas expansões arruinaram a atmosfera do bairro. Vira-latas e mendigos começavam a passear pelas ruas sempre escuras.

Quando isso aconteceu, os verdadeiramente ricos se mudaram para outro lugar, e o valor das casas na área caiu, e junto com ele a qualidade do bairro. Antigamente eram os prestamistas e donos de empresas de comércio intermediário que viviam aqui, mas agora a área era povoada por artesãos aprendizes e donos de barracas de mercado.

“É uma rua bastante apertada,” disse Holo.

Talvez devido ao peso dos prédios de ambos os lados, a rua fosse torta, aqui e ali faltavam paralelepípedos, talvez por terem sido arrancados e vendidos por alguém que estava desesperado por dinheiro. A água então se acumulava nos buracos deixados para trás, contribuindo para a sensação de degradação geral, dando a impressão de que a estreiteza da rua apenas aumentava.

Lawrence não podia andar lado a lado com Holo, e se alguém viesse do outro lado, teria que se espremer contra a parede para passar.

 

 

“Admito que é inconveniente,” disse Lawrence, “mas eu gosto desse tipo de lugar desordenado.”

“Oh ho.”

“Você pode sentir como isso aconteceu com o passar dos anos de mudança. Assim como uma ferramenta antiga que gradualmente assume uma forma diferente ao longo do tempo, transformando-se em algo único.”

Lawrence olhou para Holo, que andava atrás dele. Ela passou os dedos pelas paredes enquanto seguia.

“Como um rio muda de forma?”

“…Lamento dizer que não entendi sua comparação.”

“Mm. Nesse caso… a forma como o coração muda. A alma, é como o chamam?”

O exemplo de Holo se encaixava tanto com ele que Lawrence foi um pouco lento para absorver. “Acho que sim,” ele finalmente respondeu.

“Se pudéssemos retirá-lo e dar uma olhada, imagino que seria assim. O coração fica arranhado, amassado e é reparado ao longo do tempo e, com um olhar, você pode diferenciá-lo os outros.”

Enquanto Lawrence e Holo caminhavam, encontraram uma das grandes poças que pontilhavam a rua. Lawrence atravessou primeiro com um único salto, depois se virou e estendeu a mão para Holo.

“Milady,” disse ele com cortesia. Holo ofereceu  a  mão  com exagerada magnanimidade em resposta, pulando sobre a poça para pousar ao lado de Lawrence.

“E como seria sua alma, hein?” Ela perguntou.

“Mm?”

“Sem dúvida, estaria tingida com a minha cor.”

 

 

Lawrence não se encolheu diante dos olhos vermelhos que o encaravam.

O efeito deles realmente estava desaparecendo.

Lawrence deu de  ombros  e  voltou  a  andar. “Eu  diria  que envenenada é uma palavra melhor que colorida.

“Então é um veneno potente, de fato,” disse Holo por cima do ombro, altiva, enquanto ela corria à frente. “Afinal, meu sorriso ainda te derruba.”

“Então, de que cor é sua alma?” retrucou Lawrence, imóvel e sempre impressionado com sua inteligência.

“De que cor?” repetiu Holo, depois olhou para a frente como se estivesse pensando no assunto. Ela diminuiu a velocidade por um momento e Lawrence a alcançou. A rua era muito estreita para ele passar, então ele simplesmente olhou para ela.

Ela murmurou, aparentemente contando algo nos dedos. “Hmm,” ela entoou. Ela então notou Lawrence olhando por cima do ombro e inclinou a cabeça, virando-se um pouco para ele. “De muitas cores.”

“…Oh.”

Por um momento, Lawrence não compreendeu o significado disso, mas entendeu que ela estava se referindo à história de seus romances.

Holo tinha vivido por séculos, então era lógico que ela teria experimentado o amor uma ou duas vezes. Dada sua inteligência, sem dúvida alguns de seus parceiros eram humanos.

Com Holo bloqueando o caminho à frente, Lawrence empurrou levemente as costas pequenas, incentivando-a a avançar.

Holo obedientemente começou a andar.

Eles geralmente andavam lado a lado, então Lawrence tinha poucas oportunidades de vê-la de costas. Era algo estranhamente novo.

 

 

Visto por trás, ela era esbelta, as linhas de seu corpo eram adoráveis, mesmo através das roupas grossas que usava. Seus passos não  eram longos  nem  rápidos  demais; a  palavra graciosa veio   à mente de Lawrence. Havia também algo solitário em sua forma, algo suave a ser abraçado.

É isso que é se sentir protetor? Lawrence se perguntou com um sorriso depreciativo, mas de repente ficou cheio de dúvidas.

Holo tinha contado em seus dedos, mas quantos homens seguraram seus ombros esbeltos?

Ele  se  perguntou  como  seria  a  expressão  dela. Ela  ficaria satisfeita? Ela estreitaria os olhos com timidez? Ou suas orelhas tremeriam e sua cauda balançaria de um lado para o outro, porque ela seria incapaz de esconder sua felicidade?

Eles deram as mãos, se envolvendo… Holo não era uma criança, afinal de contas…

Quantos ela já teve? Lawrence pensou consigo mesmo.

“…”

Assim que o pensamento apareceu em sua mente, ele se apressou a descartá-lo. Uma terrível chama surgiu das profundezas de seu coração.

Seu peito latejava  como  se  tivesse  caído  de  um  penhasco. O choque era como tocar em carvão quente, achando que o fogo já havia se apagado, apenas para se queimar gravemente.

Ela os contou nos dedos.

Era a coisa mais óbvia do mundo, mas quando ela assinalou cada dedo em sua imaginação, algo nele entrou em colapso lá no fundo, deixando apenas uma raiva ardente.

O sentimento era inconfundível. Era o ciúme mais sombrio.

 

 

Lawrence estava irritado consigo mesmo. Era incrivelmente egoísta da parte dele, mesmo que tivesse nascido na avareza que leva alguém a assumir a ocupação de mercador.

Mas o amor ao dinheiro não era nada comparado a esse sentimento.

Foi assim que, quando Holo se voltou para ele com a acusação em seus olhos, isso teve um efeito mais profundo sobre ele do que o sermão que qualquer clérigo jamais poderia ter.

“Então, você terminou suas suposições?”

“…Você vê tudo, não é?” Ele respondeu, cansado.

Seu coração estava tão pesado que o fazia querer sentar e descansar.

Mas, surpreendentemente, Holo sorriu, mostrando seus caninos afiados. “Eu também não sou muito melhor.”

“…”

“Você simplesmente parecia tão feliz, tão desesperadamente feliz, por falar com alguém sem uma gota de charme —”

Naquele instante, o rosto de Holo estava zangado.

Ele já tinha visto seu rosto zangado várias vezes antes, mas este tinha algo particularmente selvagem.

Ela é uma loba sábia, se lembrou Lawrence.

“Faria sentido se eu dissesse gostei como um mercador?” Ele perguntou, tentando oferecer uma desculpa.

Holo parou, depois começou a andar novamente, uma vez que Lawrence havia diminuído o espaço entre eles.

“Você quer que eu pergunte o que é mais importante — o dinheiro ou eu?”

Essa frase estava entre as três principais coisas que um mercador solitário sonhava em ouvir de uma mulher.

 

 

E era um problema que faria qualquer mercador rasgar seu coração em frustração.

Lawrence levantou as duas mãos em derrota.

“Para ficar claro, a razão pela qual eu ficaria brava é exatamente o que você está pensando. É uma noção totalmente egoísta e infantil. Mas nós dois temos juízo; nós podemos falar sobre  isso. Portanto, não estou com raiva.”

“…”

Holo era uma loba sábia com muita experiência.

Lawrence não podia esperar lutar de igual para igual com ela.

Por um tempo, ele procurou em seu pequeno vocabulário por alguma resposta adequada, mas não encontrou nada. “O que estou pensando é que não é justo comigo.”

“De verdade?”

Mentiras eram inúteis contra Holo.

“De verdade.”

Ela não se virou com a resposta dele.

Ele não tinha certeza se tinha sido o caminho certo.

Holo continuou andando silenciosamente, graciosamente, finalmente chegando a uma bifurcação na estrada. De acordo com as instruções que haviam recebido de Eva, eles precisavam virar à direita.

Lawrence não se sentia bem com isso, mas já que Holo parou, ele falou.

“Nós dobramos aqui.”

“Mm.” Holo se virou para encará-lo. “Então esta é a bifurcação da estrada.”

Lawrence não perguntou qual estrada estava bifurcando.

 

 

Evidentemente essa era a primeira barreira. A sobrancelha direita de Holo se moveu um pouco.

“Como você lida com seu ciúme egoísta?”

Ela agora estava fazendo perguntas que pareciam ter vindo de algum clérigo da Igreja?

Externamente,  a  coisa  certa   a   fazer   era   se   livrar desse sentimento sombrio e egoísta, mas, por dentro, Lawrence sabia que ele não desapareceria tão facilmente.

Ele olhou de volta para Holo, com uma expressão amarga no rosto.

Esta era Holo, a Sábia Loba. Ele não podia imaginar que ela o encurralaria com perguntas como essa sem um bom motivo.

Em outras palavras, mesmo que quase todas as respostas fossem erradas, havia uma que seria correta para Holo.

Mas como alcançá-la?

A mente de Lawrence disparou.

Holo havia dito poucos minutos atrás que ela era igual a ele. Portanto, ele pensou, a resposta devia estar em como ele via

Holo.

O problema mais difícil para ele poderia ser a coisa mais fácil do mundo para outra pessoa resolver.

Holo também estava tendo problemas para lidar com os ciúmes dela.

E a própria Holo queria saber como resolvê-lo, não é?

Portanto, tudo o que Lawrence precisava fazer era considerar o problema por fora, e a resposta viria naturalmente.

Ele    abriu   a    boca   para    falar   e    viu    Holo   se    firmar em preparação. “Minha resposta é que não há como resolver isso.”

Era como uma única onda na superfície calma de um lago.

 

 

Ele jogou outra pedra no lago, tentando trazer a expressão de volta ao rosto de Holo.

“E isso faz você se odiar.”

Nem enfrentar nem a rejeitar eram a resposta correta, ele pensou.

Se ele imaginasse que Holo era a ciumenta e não ele, era a coisa mais natural do mundo, e era realmente muito bom ser o objeto dos ciúmes.

Afinal, o ciúme nada mais era do que querer ter alguém só para você, então como algo poderia ser mais lisonjeiro, desde que não fosse excessivo?

Daí a resposta de Lawrence, mas Holo continuava sem expressão.

Lawrence não desviou o olhar. Ele tinha certeza de que essa era a barreira final.

“Hmph. Então, nós agimos certo, não é?” Ela disse com um sorriso, inclinando a cabeça. Com isso, Lawrence não pôde deixar de dar um suspiro de alívio. “Mas,” ela acrescentou, rindo.

“O quê?”

“Ciúme e se odiar, não é?” disse Holo com um sorriso.

Isso parecia um tanto antinatural e, quando começou a andar pelo caminho da direita, ele já estava atrás de Holo.

“Qual é o problema?” Ela perguntou, sorrindo por cima do ombro.

Se Lawrence realmente tivesse conseguido produzir uma resposta que a satisfizesse, Holo não deveria estar sorrindo assim. Ele esperava um sorriso aliviado ou uma carranca.

Então, o que esse sorriso travesso significava?

Lawrence sentiu o rosto corar. Ele tinha ficado vermelho tantas vezes naquele dia que estava começando a se preocupar.

 

 

Holo riu. “Você já descobriu?” Ela perguntou por cima do ombro. “Você se angustiou com o problema, inverteu as posições em sua cabeça e chegou à resposta. Estava claro como o dia em seu rosto. Mas se você pensasse um pouco sobre isso, perceberia. Quando alguém procura um conselho, a resposta que você acha correta é o que você quer que ele seja. O que significa?”

De fato.

Holo não esperava que as palavras de Lawrence resolvessem seus problemas.

Na verdade, ela esperava que ele revelasse seus próprios sentimentos.

“Você fica com ciúmes e se agoniza com isso. É isso que você espera de mim, para que possa desempenhar o papel e oferecer sua mão em consolo? Devo agora cair em lágrimas encantadoras de recriminação, me agarrando pateticamente à mão que você oferece tão generosamente?”

“Urgh—”

Então era assim que era ter o coração exposto.

Ele se sentiu como uma donzela envergonhada, cobrindo o rosto com as mãos.

A loba de presas afiadas deslizou suavemente para o lado dele.

E, no entanto, havia um certo consolo ao ver que Holo não tinha feito isso simplesmente para seu bel-prazer.

Até Lawrence sabia disso.

Holo estava realmente com ciúmes de sua conversa agradável com Eve, e essa conversa era uma espécie de brincadeira.

“Hmph. Venha, vamos lá,” disse Holo, talvez lendo a expressão desprotegida de Lawrence. “Podemos deixar as coisas dessa forma,” ela parecia estar dizendo.

 

 

Certamente seu humor havia melhorado com tudo isso, e  ela provavelmente seria mais generosa sobre ele desfrutar da conversa de mercador para mercador com Eve.

No entanto, Lawrence não pôde deixar de sentir que tinha sido descuidado.

Ele havia permitido que seus desejos mais profundos ficassem à mostra.

“Então,” disse Holo ao lado dele, seu tom completamente casual. A atmosfera ainda era ruim, mas a rua havia se ampliado o suficiente para os dois caminharem lado a lado. “Na verdade, estou lhe perguntando isso simplesmente porque quero provocar você, mas…”

Mesmo com um aviso como esse, Lawrence se sentia como uma lebre esperando o massacre.

“Você quer saber quantos eu contei?”

Seu  sorriso  puro  e   inocente   caiu   sobre   ele   como   um cutelo gigante.

“Fui lembrado de quão pequeno e frágil meu coração é,” era tudo o que Lawrence podia responder, mas isso parecia satisfazer Holo.

A satisfação sádica estava escrita em todo seu rosto quando ela se agarrou ao braço dele. “Bem, eu tenho que colocar minhas garras naquele seu coração frágil antes que ele congele.”

Lawrence olhou para ela, incapaz de formular qualquer tipo de resposta.

Inacreditavelmente, seu rosto sorridente era como o de uma garota vitoriosa, satisfeita com suas próprias travessuras.

Mas mesmo o pior pesadelo acabava.

Depois que encontraram a casa que Eve  havia  descrito  para Lawrence, com a placa de cobre verde cortada na forma de uma galinha de três pernas, Holo abandonou sua perseguição.

 

 

“Bem, então,” disse Lawrence para quebrar o silêncio, seu tom estranhamente leve após a conversa frustrante e embaraçosa que o precedeu. “Me disseram que Rigolo é um homem difícil, então tenhamos cuidado.”

Holo assentiu enquanto caminhava ao seu lado, ainda segurando o braço dele. “Suponho que isso  encerre  nossa  adorável troca  de ideias. Agora estamos de volta à realidade chata.”

Lawrence    não    fazia    ideia    de    quão     séria     era essa declaração murmurada. “Nesse caso, sinta-se livre para voltar para a estalagem e dormir,” ele retrucou baixinho.

“Mm… isso pode ser legal. É claro que não seriam ovelhas que eu contaria ao adormeçer…”

Holo ainda tinha vantagem quando se tratava de ser desagradável.

Mas agora que o assunto havia surgido, Lawrence se sentia estranhamente encorajado. “Ah? Então, quantos foram?”

Ele não queria saber todos os detalhes, mas também seria mentira dizer que ele estava totalmente desinteressado.

Afinal, ela havia levantado o assunto aleatoriamente, então a resposta poderia muito bem ter sido zero.

Sugerir que uma parte dele não esperava que isso fosse verdade também seria uma mentira.

Mas Holo não disse nada em resposta à pergunta. Sua expressão estava em branco, e ela nem tremeu. Isso a fez parecer uma boneca perfeita e intocada.

Quando ele percebeu que era um ato, Lawrence sabia que não poderia vencer.

“Os homens são tolos, e eu sou seu rei,” ele finalmente falou. Holo voltou à vida e parecia bastante satisfeita. Lawrence aceitou a derrota, sorrindo.

 

 

O frango de três pernas pendurada nos beirais da casa Rigolo foi esculpida baseada na imagem do frango que há muito tempo previa as inundações do rio Roam, que fluía por Lenos.

A Igreja afirmou que era uma mensageira de Deus, mas de acordo com a história, o dilúvio havia sido previsto pela posição das estrelas, lua e sol — em outras palavras, pelos registros astronômicos da época.

Desde então, o frango de três pernas se tornou um símbolo de sabedoria.

Talvez a família Rigolo, que aparentemente servia como cronista há séculos, esperava que os registros que mantinham um dia atuassem como guias, apontando o caminho para o futuro.

Lawrence bateu na porta usando a aldrava de prata, pigarreando.

A recomendação de Eve já deveria ter chegado, mas mesmo Eve, cujas habilidades de negociação eram consideráveis, alegava que Rigolo era um osso duro de roer. Lawrence não pôde deixar de se sentir nervoso.

Atrás dele, Holo havia se esquecido de continuar segurando sua mão, mas a presença dela era embaraçosamente tranquilizadora.

Era possível que ele não tivesse sido dominado por Eve anteriormente, precisamente porque conhecia Holo e foi a companhia dela que o permitiu pensar dessa maneira. Antes de conhecer Holo, a única pessoa com quem Lawrence podia contar era ele  mesmo. Ele estava cheio de um desejo  ardente  de  vencer  e  um medo terrível de perder.

Era   melhor   ou   pior   ter    amigos    com    quem  contar? Enquanto Lawrence considerava essa pergunta, a porta se abriu lentamente.

Aquele momento — o instante entre a abertura da porta e o ponto em que ele podia ver o rosto da pessoa — era o mais estressante de todos.

E quando a porta se abriu, um velho barbudo e envelhecido —

 

 

— não estava atrás dela.

“Posso perguntar quem está chamando?”

Lawrence ficou surpreso com a figura que abriu a porta, mas não foi uma surpresa desagradável.

Ela não devia ter mais de vinte anos, a cabeça coberta até a sobrancelha com o pano delicado de um simples hábito preto. Ela era freira.

“Acredito que Eve Bolan explicou que estávamos vindo.” “Ah, nós estávamos esperando você. Entre.”

Lawrence propositadamente evitou se apresentar, mas ou essa freira era uma pessoa particularmente agradável ou Eve era uma pessoa particularmente confiável.

Incapaz de saber qual era a verdade, Lawrence fez o que lhe foi pedido, entrando na casa com Holo atrás dele.

“Fique à vontade para sentar e esperar aqui.”

Ao entrar na casa, eles imediatamente se viram em uma sala de estar com um tapete desbotado no chão.

Nenhum dos móveis desbotados pela idade era particularmente grande, e expressavam claramente o longo período de permanência do dono da casa.

A primeira cronista que Lawrence conheceu foi Diana na cidade pagã de Kumersun, por isso esperava que esse lugar fosse tão confuso quanto o de Diana — mas não, era surpreendentemente arrumado.

Em vez de livros amontoados em todas  as  prateleiras,  havia brinquedos de pelúcia e bordados, junto com uma pequena estátua da Santa Mãe que uma menina poderia carregar com facilidade. Ao lado da estátua pendiam bulbos de alho e cebola. As únicas coisas que sugeriam que essa casa pertencia a um cronista eram canetas de pena, garrafas de tinta e um pequeno baú cheio de areia

 

 

usado para secar páginas com tinta, junto com pergaminhos e maços de papel escondidos em cantos discretos.

Holo olhou ao redor da sala, sua expressão de leve surpresa sugeria que ela tinha expectativas semelhantes.

Em primeiro lugar, dificilmente se esperava ver uma freira, que parecia pronta para sair em peregrinação, em uma casa como esta — embora a estátua da Santa Mãe e o emblema do frango de três pernas sugeriam uma casa tanto com segurança financeira  quanto fé profunda.

“Sinto muito por ter deixado vocês esperando,” disse a freira quando ela voltou.

Depois de ouvir histórias sobre a má disposição de Rigolo por parte de Eve, Lawrence estava preparado para ficar esperando por causa dessa ou daquela falha imaginária, mas parecia que eles seriam capazes de encontrá-lo com uma facilidade inesperada.

Liderados pela freira com seu sorriso suave e modos acolhedores, Lawrence e Holo seguiram da sala de estar por um corredor até uma sala mais para dentro da casa.

A própria Holo não parecia completamente diferente de uma freira, mas o efeito gracioso de uma freira verdadeira vinha de uma fonte diferente. É claro que, se Holo soubesse que ele estava pensando nisso, ela lhe daria uma bronca, pensou Lawrence — e imediatamente depois, ela pisou no pé dele.

Sem dúvida, ela simplesmente estava esperando por uma boa oportunidade, mas Lawrence não pôde deixar de sentir como se ela tivesse desfeito os botões do coração dele e espiado por dentro.

“Sr. Rigolo, estamos entrando.”

A freira bateu na porta como se abrisse delicadamente rachaduras em um ovo. No entanto, não havia como dizer qual a cor da gema.

 

 

Lawrence limpou sua mente e, quando a porta se abriu com uma resposta abafada que veio de dentro, eles entraram na sala.

Imediatamente depois, foi Holo quem, impressionada, proferiu um quieto “huh.”

Lawrence ficou ainda mais impressionado e não conseguiu falar nada.

“Nossa, que reação deliciosa! Melta, olhe; eles estão impressionados!”

A freira chamada Melta deu um sorriso claro e sinuoso para a voz jovem e vigorosa que ecoou pela sala.

A sala do outro lado da porta realmente era tão bagunçada quanto a de Diana.

No entanto, talvez isso possa ser chamado de desordem calculada, pois além das pilhas de livros diretamente à frente deles, e o modelo de pássaro de madeira pendurado no teto, tinha uma parede feita de vidro do chão ao teto, através da qual a luz do sol inundava, revelando um jardim verdejante além dela. Era como estar dentro de uma caverna e olhando através de uma saída para outro mundo.

“Ha-ha-ha, impressionante, não é? Com esforço suficiente, posso mantê-lo verde o ano todo,” disse um jovem de cabelos castanhos com uma risada orgulhosa ao se revelar. Ele usava uma camisa e calça de colarinho sob medida, sem sequer uma única ruga, apropriada para qualquer nobre. “Fleur me falou de você — disse que havia algumas pessoas com um pedido estranho para me fazer.”

“…Er,  sim…  Lawrence,  quero  dizer,  meu   nome   é   Kraft Lawrence,” disse Lawrence, finalmente recuperando a razão e pegando a mão que Rigolo estendeu, embora não pudesse desviar os olhos do magnífico jardim.

Era totalmente invisível de qualquer uma das ruas circundantes —

um perfeito jardim secreto.

 

 

A falta de originalidade apareceu em sua mente, e ele não conseguiu se conter.

“Meu nome é Rigolo Dedly. Prazer em conhecê-lo.” “O prazer é meu, tenho certeza.”

O olhar de Rigolo se voltou para Holo. “Ah, esta deve ser a companheira…”

“Me chamo Holo.”

Holo além de não ser do tipo tímida, mas em um primeiro encontro, ela sabia instantaneamente como agir para causar uma boa impressão.

Longe de se irritar com sua apresentação arrogante, Rigolo bateu palmas satisfeito, depois estendeu uma para ela em saudação.

“Bem então! Chega de apresentações, e eu já fiz você elogiar meu jardim, então estou bastante satisfeito. Há algo que eu possa fazer por você em agradecimento?

Alguns mercadores tinham personalidades aterrorizantes escondidas por trás de fachadas agradáveis, e Lawrence ainda não tinha certeza de que Rigolo não era assim.

Melta simplesmente sorriu pensativamente ao trazer pequenas cadeiras para Lawrence e Holo se sentarem, então parecia Rigolo era assim o tempo todo — supondo que Melta, que assentiu levemente antes de sair da sala, não estivesse mentindo.

“Você pode ter ouvido isso de Eve Bolan, mas esperávamos que pudesse nos mostrar histórias antigas de Lenos das quais você tiver registros.”

“Oh ho, então é verdade. Fleur — er, não, suponho que ela seja conhecida por Eve entre os mercadores. Ela é um pouco nervosa demais. Uma vez que ela conhece alguém, ela vai te contar um monte de coisas.”

 

 

Lawrence sorriu compreendendo. “Isso tem alguma coisa a ver com o motivo de você não ser um eremita de rosto severo e barbudo?”

Rigolo riu. “Parece que ela está com a língua  solta  de  novo! Embora a parte do eremita não seja necessariamente  falsa. Ultimamente tenho feito tudo o que posso para não ver ninguém. Um pouco antipático da minha parte.”

Quando seu tom de voz caiu um pouco, Lawrence vislumbrou algo frio sob o sorriso de Rigolo.

Ele era o secretário do Conselho dos Cinquenta, um grupo formado pelas pessoas mais famosas e reconhecidas da cidade. Não era de se surpreender que fosse um pouco frio.

“Eu sou um mercador estrangeiro — está tudo bem para você falar comigo?”

“Sim. O momento é excelente, talvez até seja a vontade de Deus. Dê uma olhada nas minhas roupas; são como as roupas que uma criança que guia uma procissão fúnebre usaria, não é? Acabei de vir da reunião do conselho. Eles  chegaram  a  uma  decisão  e  puderam terminar mais cedo.”

Se isso era verdade, então esse momento realmente era um presente de Deus, mas Lawrence achou que era um pouco cedo para o conselho chegar a uma conclusão.

Afinal, Arold havia dito que poderia se arrastar até a primavera. Talvez alguém tenha forçado uma votação.

“Meu Deus, você realmente é o mercador que a jovem mal- humorada disse que você era. Não baixou a guarda nem por um segundo, não é?”

Mesmo que Rigolo tivesse visto através de seus pensamentos, ele perceberia um mercador de terceira classe que havia ficado perturbado e tentou escapar.

Além disso, Lawrence estava com Holo, que podia ler mentes.

 

 

Holo certamente seria capaz de dizer se Rigolo estava tentando enganá-lo ou dizendo a verdade.

“Hmm?”    Lawrence   perguntou,   fingindo  ignorância,   mas o sorriso de Rigolo permaneceu firme.

“Quando passamos todo o nosso tempo usando truques, paramos de entender as coisas. Assim como a parte de trás das costas é a frente.

Ele viu o truque e a fingida ignorância de Lawrence.

Lawrence estava bastante confiante de que  Rigolo  não  veria através do estratagema, mas os olhos sorridentes de Rigolo ainda estavam atentos.

“Estou empregado como secretário do Conselho dos Cinquenta, entende? Eu posso olhar para um grupo de pessoas e perceber as mudanças nas suas expressões de relance. Mesmo que sua expressão sozinha não me diga o suficiente, se eu considerar as expressões de sua companheira, a verdade naturalmente vem a mim.”

Lawrence sorriu apesar disso. Havia pessoas no mundo — e nem todos eles eram mercadores notórios.

Rigolo riu. “Ah, é apenas um truque de bar. Se eu quisesse te enrolar, não mostraria minhas cartas assim. E mesmo que eu pudesse discernir seus verdadeiros motivos, ainda não consigo transmitir minhas próprias demandas. Eu seria um fracasso como mercador, não seria?”

“…Infelizmente.”

“Eu também não tenho sucesso com as mulheres.”

Lawrence sorriu. Ele teve que admitir que a habilidade de Rigolo com as palavras era pouco comercial.

Enquanto falava como um poeta de algum palácio, Rigolo tirou uma chave de metal de dentro de uma gaveta na mesa da sala.

“Todos os livros antigos estão no porão.” Ele gesticulou levemente com a chave, indicando que deveriam segui-lo, depois prosseguiu para uma sala interior.

Antes de prosseguir, Lawrence olhou para Holo.

“A parte de trás das costas aparentemente é a frente,” disse Lawrence.

“Ele estava até mesmo observando meu rosto…” “Primeira vez que vi alguém fazer algo assim.”

Ele provavelmente desenvolvera a habilidade enquanto precisava ouvir e transcrever todas as várias conversas conflitantes que aconteciam ao longo de uma reunião do conselho.

Para entender quem disse o quê, entender suas expressões faciais seria de suma importância.

“Mesmo assim, ele não parece mal-intencionado. Parece mais com uma criança. Mas se você tivesse alguém assim ao seu lado, seria capaz de passar seus dias sem nenhuma preocupação,” disse Holo com um sorriso.

Dado quantas vezes Lawrence havia sido vítima de mal-entendidos com Holo, aquele sorriso era particularmente doloroso de ver.

“Enquanto isso, você está cheia de malícia,” disse ele, sem esperar pela resposta de Holo antes de seguir Rigolo.

 

O primeiro andar era construído em madeira, mas a adega abaixo dela era feita inteiramente de pedra.

Mesmo na vila de Tereo, o porão era de pedra. Talvez fosse natural querer manter tesouros escondidos em cofres de pedra.

Mas havia uma enorme diferença entre um porão construído para esconder as coisas e outro construído para armazená-las.

 

 

O teto era alto o suficiente para Lawrence ter que levantar a mão acima da cabeça para tocá-lo, e as estantes de livros que ladeavam as paredes iam do chão ao teto.

Ainda mais impressionante, as prateleiras eram organizadas por época e tópicos e tinham um sistema de numeração.

As amarras eram finas e frágeis — nem um pouco parecida com os grossos volumes encadernados em couro de Tereo — mas o esforço despendido na organização estava em outro nível.

“Os incêndios são comuns nesta cidade?” perguntou Lawrence.

“De tempos em tempos. Como você deve ter adivinhado, meus ancestrais tinham o mesmo medo, e é por isso que eles construíram este lugar.”

Embora ela não estivesse na sala ao lado do jardim, Melta parecia ter ouvido a conversa e agora aparecia na entrada do porão segurando um castiçal.

Holo  permitiu  que  a  freira  a  guiasse  enquanto  procurava livros promissores.

A agradável luz cintilava por entre as sombras das estantes de livros.

“A propósito,” começou Rigolo quando os dois homens foram deixados por conta própria. “Sou do tipo curioso, então não posso deixar de perguntar. Por que exatamente você está procurando essas histórias antigas?”

Dado que Rigolo não havia perguntado sobre o relacionamento de Holo com Lawrence, o seu ponto interesse estava claro.

“Ela está procurando sua origem.”

“A origem dela?” Repetiu Rigolo,  a  surpresa  óbvia  em  seu rosto. Seus poderes de discernimento poderiam muito bem ser iguais ao de qualquer grande mercador, mas ele não tinha controle sobre sua própria expressão.

 

 

“Por uma variedade de razões, eu a acompanho até sua terra natal.”

Se ele omitisse alguns detalhes, bem, Rigolo poderia chegar a qualquer conclusão que desejasse, o que permitiria que Lawrence evitasse mentir enquanto mantinha a verdade à distância.

Rigolo parecia gostar disso. “Entendo… Então você está indo para o norte?”

“Sim. Não sabemos a localização exata, então estamos tentando identificá-la com base nas histórias que ela conhece.”

Rigolo assentiu, uma expressão séria no rosto.

Ele provavelmente concluiu que Holo havia sido capturada no Norte e depois vendida como escrava no sul. Dizia-se que as crianças das terras do norte eram mais duras e mais obedientes. Havia também muitas histórias de nobreza cujos filhos haviam morrido ou estavam precariamente doentes e em risco de serem herdados por outros parentes e compravam essas crianças para adotá-las.

“Não é incomum as crianças do norte ficarem nesta cidade. Seria melhor se ela pudesse voltar para sua casa,” disse Rigolo.

Lawrence assentiu concordando em silêncio.

Holo   emergiu    das    estantes,    segurando   cinco    volumes que evidentemente continham alguma promessa.

“Você   certamente   é    sedenta   por   conhecimento,”     disse Lawrence. Foi Melta, não Holo, quem respondeu com um sorriso.

“Foi tudo o que encontramos, então acho que seria melhor se você os levasse por enquanto.”

“Entendo. Aqui, deixe-me levar alguns deles. Iremos pular as refeições por três dias se os deixarmos cair.”

Rigolo riu quando Lawrence acabou carregando toda a pilha de livros, e eles voltaram para o primeiro andar.

 

 

“Normalmente, eu pediria que você os lesse aqui,” disse Rigolo, olhando para a pilha de livros que Melta havia encadernado em um pacote conveniente. “Mas eu confio em Fleur, e Fleur confia em você, então eu também devo. Mas não posso dizer o mesmo para os outros…”

Sempre que mercadores estrangeiros estavam envolvidos, haviam muitas razões para desconfiar.

“Eu certamente entendo,” disse Lawrence.

“Mas se você os derrubar, queimar, perder ou vender, são três dias sem comida!”

Era uma piada, mas Lawrence não riu. Sendo capaz de calcular o valor monetário de quase qualquer coisa, ele sabia muito bem que esses livros não tinham preço.

Ele assentiu e pegou  o  embrulho. “Eu  os  protegerei  como protegeria minha carga mais preciosa, juro pela minha honra como mercador.”

“Então,” disse Rigolo com um sorriso de garoto.

Lawrence imaginou se o coração de Eve era movido por  tais coisas.

“Apenas traga-os de volta quando terminar de ler. Se eu não estiver aqui, Melta estará.”

“Entendido. Mais uma vez obrigado.”

Rigolo respondeu Lawrence com um sorriso, e a Holo com um aceno alegre.

Tais gestos fizeram com que ele parecesse menos um mercador e mais um poeta cortês.

Satisfeita, Holo retornou o cumprimento quando os dois saíram.

“É fácil acenar quando você não está carregando nada.” Lawrence concluiu que um pouco de queixa era justificada. Carregando livros e pedindo orientações, ele se tornou quase um servo recentemente.

 

 

“Sim, e você faria bem em se certificar de não ficar para

trás,” respondeu Holo, caminhando à frente de Lawrence.

Suas provocações eram frustrantes, mas, ao mesmo tempo, Lawrence sabia que, a menos que eles estivessem se dando bem, essas provocações seriam impossíveis.

O problema era que Holo exagerava.

“É possível lisonjear um porco em cima de uma árvore, mas lisonjear um macho o deixa estragado,” disse Holo, selando qualquer protesto da parte dele.

Não havia espaço para contestar, esse era o problema.

“Ah, sim, estou tão estragado que posso perder a paciência,” disse Lawrence.

Encantada com a piada, Holo bateu palmas, rindo bem alto.

 

Depois de deixarem os livros na estalagem, Lawrence cumpriu sua promessa de comprar para Holo o que ela quisesse para o jantar, e tendo escolhido uma taberna aleatoriamente, Holo decidiu que queria um leitão inteiro assado.

Tal prato era algo raro — um porco inteiro, atravessado por um espeto, assava lentamente em fogo aberto, ocasionalmente regado com óleo de nozes com alguma fruta.

Quando o leitão ficou marrom dourado, sua boca foi recheada com ervas e foi servido em um prato gigante. Era costume que quem cortasse a orelha direita do leitão teria boa sorte.

Normalmente, esse prato alimentaria cinco ou seis pessoas; era geralmente  pedido  para  celebrações  de  algum  tipo   e,  quando Lawrence fez seu pedido à garçonete, a surpresa dela era óbvia. Um murmúrio de inveja foi ouvido entre os outros homens da taberna quando o prato foi trazido.

 

 

E quando o mesmo prato foi colocado diretamente na frente de Holo, as vozes se tornaram um suspiro de simpatia.

Não era incomum para Lawrence resistir a olhares invejosos por causa de sua bela companheira, mas esses homens se apaziguaram quando entenderam que sua existência era realmente cara.

Vendo que Holo não seria capaz de cortar o assado, Lawrence se encarregou de fazê-lo, mas não tinha força de vontade para colocar parte da carne em seu próprio prato, em vez disso, ele se contentou com a pele crocante. O óleo de nozes perfumado era saboroso o suficiente, mas Holo queria mais. O vinho combinava melhor com a carne do que a cerveja, e era um preço justo.

Holo literalmente devorou a refeição, completamente despreocupada quando seus cabelos castanhos escorregaram por baixo do capuz, tornando-se ocasionalmente salpicado pelo óleo do assado. Ela era a própria imagem de um lobo comendo sua presa.

No fim, ela levou pouco tempo para engolir o leitão.

Quando ela terminou de pegar a carne da última costela, uma salva de palmas surgiu na taverna.

Mas Holo não prestou atenção ao barulho.

Ela lambeu os dedos oleosos, tomou um gole de vinho e deu um grande arroto. Suas ações eram estranhamente nobres, e os clientes bêbados da taberna suspiravam em admiração.

Ainda os ignorando, Holo sorriu docemente para Lawrence, que estava sentado do outro lado da carcaça de leitão agora devastada.

Talvez ela estivesse agradecendo a refeição, mas, tendo reduzido o leitão aos ossos, ela parecia ainda mais ansiosa para caçar.

Ou talvez sirva de ração de emergência para a próxima vez que ela estiver com fome, Lawrence disse a si mesmo quando pensou na dolorosa conta a ser paga, perdendo toda a esperança de escapar das presas de Holo.

 

 

Eles descansaram por um tempo e depois que Lawrence pagou a conta — o equivalente a dez dias de suborno — eles deixaram a taberna.

Talvez ser o centro do comércio de peles tenha causado a Lenos um excesso de sebo. A estrada de volta para a estalagem estava pontilhada com várias lâmpadas, que suavemente iluminavam o caminho.

Em contraste com a agitação da luz do dia, as pessoas caminhavam em pequenos grupos, falando em voz baixa, como se tentassem não apagar as lâmpadas tremeluzentes.

Holo tinha um sorriso sonhador no rosto enquanto caminhava, talvez graças à satisfação que veio com o assado.

Lawrence segurou a mão dela para impedir que se desviasse do caminho.

“…”

“Hmm?” Lawrence entoou. Parecia que Holo estava prestes a dizer algo, mas ela apenas balançou a cabeça.

“É uma noite agradável, só isso,” disse Holo, olhando vagamente para o chão.

Lawrence, é claro, concordou. “Ainda assim, logo ficaríamos podres se passássemos todas as noites assim.”

Uma semana de tal indulgência esvaziaria sua bolsa de moedas e transformaria seu cérebro em mingau, sem dúvida.

Holo parecia concordar. Ela riu baixinho.

“Afinal, é uma água salgada.” “Hmm?”

“Uma doce água salgada…”

 

 

Ela estava bêbada ou  estava  tentando  enganá-lo novamente? Lawrence considerou uma resposta, mas o clima era agradável demais para estragar com conversas grosseiras. Ele não disse nada e, finalmente, chegaram à estalagem.

Não importa o quão bêbados estivessem, os habitantes da cidade sempre podem encontrar o caminho de casa, contanto que possam andar, mas é um pouco diferente para os viajantes. Não importa o quão cansados estejam os pés, eles podem perseverar até chegarem à estalagem.

Holo pareceu desmoronar assim que Lawrence abriu a porta da entrada da estalagem.

Não, pensou Lawrence, ela provavelmente está apenas fingindo dormir.

“Meu deus. Em qualquer outra estalagem, você seria repreendida pelo estalajadeiro,” veio a voz rouca de Eve. Ela e Arold estavam amontoados em volta da lareira, a cabeça de Eve coberta como de costume.

“Só na primeira noite. Depois disso, eles dariam umas boas risadas, sem dúvida.”

“Ela bebe tanto assim?” “Como você pode ver.”

Eve riu silenciosamente e tomou um gole de seu vinho.

Lawrence passou pelos dois, ficando ao lado de Holo para apoiá- la, quando Arold — que estava reclinado em sua cadeira, de olhos fechados e aparentemente dormindo — falou.

“Sobre aquele mercador de peles do norte. Eu falei com ele. Ele disse que há pouca neve este ano, as condições para viajar estão boas.”

“Eu agradeço que tenha perguntado.”

“Se você quiser saber mais… eu esqueci de perguntar o nome dele novamente.”

“Ele se chama Kolka Kuus,” ofereceu Eve.

 

 

Arold murmurou: “Ah, sim, esse era o nome dele.”

Lawrence gostaria de ficar mais tempo nesse ambiente descontraído.

“Aquele camarada Kuus fica no quarto andar. Ele disse que estava livre principalmente à noite, então, se quiser saber mais, vá em frente e passe no quarto dele.”

Tudo estava indo muito bem.

Mas Holo puxou a manga como se fosse para apressá-lo, então Lawrence agradeceu a Arold e se despediu, e os dois começaram a subir as escadas. Assim que começou a subir, Lawrence teve um vislumbre de Eve erguendo um copo de vinho para ele, como se dissesse: “Volte logo.”

Passo a passo, eles subiram a escada, finalmente chegando ao quarto e abrindo a porta.

Quantas vezes Lawrence trouxera Holo de volta para um quarto como esse?

Antes de conhecer Holo, ele havia bebido e comemorado inúmeras vezes, mas sempre voltava para seu quarto de estalagem, onde o medo espreitava e afastava a embriaguez e a alegria dele.

Mas o medo não havia desaparecido.

Foi apenas substituído por um novo medo, pois ele se perguntava quantas vezes ainda seria capaz de fazer isso com ela.

Embora  ele  soubesse  que  isso  era   impossível,   não havia como escapar do quanto ele queria contar a verdade a Holo — que ele queria continuar viajando com ela para sempre. Ele agora sentia que, independentemente de como isso acontecesse, estar com ela era o seu desejo mais profundo.

Sorrindo tristemente para si mesmo, Lawrence virou o cobertor e deixou Holo sentada na cama. Ele conseguiu notar que ela não estava fingindo dormir.

 

 

Ele tirou a capa, o roupão, o casaco e a ajudou a tirar os sapatos e a faixa — tudo com tanta habilidade que era quase triste. Ele então a deitou na cama.

Ela dormia tão profundamente que ele não achou que ela notaria se ele caísse sobre ela.

“…”

O vinho ajudava a criar  essas  ideias  em  sua mente,  mas de repente ele se lembrou da falta de vergonha de Holo. Ela realmente não notaria, até o fim.

Não há nada tão fútil quanto isso, ele pensou, murchando mais rápido do que uma bolha estourando.

“Você é horrível,” Lawrence murmurou para si mesmo, culpando-a por seu próprio egoísmo, quando ela o surpreendeu se mexendo, se ajeitando um pouco.

Holo abriu os olhos e gradualmente se concentrou nele.

“O que há de errado?” Lawrence perguntou, alarmado com o pensamento repentino de que ela poderia estar se sentindo doente.

Mas esse não parecia ser o caso.

Por baixo do cobertor, Holo estendeu a mão. Ele pegou sem pensar. O aperto dela era fraco. “…”

“Hã?”

“…com medo,” disse Holo, fechando os olhos.

Ele se perguntou se ela estava tendo um pesadelo. Quando ela abriu os olhos novamente, seu rosto estava tingido com um constrangimento persistente, como se ela tivesse falado demais.

“Do que você poderia ter medo?” perguntou Lawrence num tom alegre, e ele pensou ter visto um sorriso agradecido brilhando em seu rosto por um momento. “Tudo está indo bem agora, não está? Nós

 

 

temos os livros. Não nos envolvemos em nenhum problema. O caminho para as terras do norte não está interditado. E” — ele levantou a mão por um momento e depois a abaixou — “ainda temos muitas provocações para trocar.”

Isso pareceu funcionar.

Holo sorriu, depois fechou os olhos novamente e suspirou suavemente.

“Seu estúpido…”

Ela pegou sua mão e se enrolou no cobertor. Só havia uma coisa de que Holo tinha medo. Solidão.

Então    era     o     fim     da     jornada     que     ela     temia? O próprio Lawrence temia isso, e se fosse esse o caso, talvez a viagem deles fosse tranquila demais.

Mas, mesmo assim, isso não parecia se encaixar na expressão em seu rosto agora.

Holo  não  abriu  os  olhos  por  algum  tempo. Justo  quando Lawrence começou a se perguntar se ela estava dormindo, suas orelhas  tremeram  como se  estivesse  antecipando   algo,   e   ela esticou um pouco o queixo. “…O que eu tenho medo, é…” ela começou, depois abaixou a cabeça quando Lawrence estendeu a mão para acariciá-la. “É disso que eu tenho medo.”

“Hã?”

“Você não entende?” Holo abriu os olhos e olhou para Lawrence. Seus olhos brilhavam, não de desprezo ou raiva, mas de terror. Fosse o que fosse, ela realmente temia.

Mas Lawrence não conseguia imaginar o que era aquilo. “Não. A menos que… você tenha medo do fim de nossas viagens?” Lawrence conseguiu perguntar, embora fosse preciso toda a sua força para fazê- lo.

A expressão de Holo suavizou de alguma forma. “Disso também… é assustador, sim. Estou me divertindo mais nesses dias do que jamais estive. Mas há algo que eu temo ainda mais…”

De repente, ela parecia muito distante.

“Está tudo bem se você não entender. Não” — ela falou, puxando a mão debaixo do cobertor e apertando a mão com a qual Lawrence ainda acariciava sua cabeça — “mais do que isso, seria problemático se você entendesse.”

Ela então riu de alguma coisa, cobrindo o rosto com as duas mãos. Estranhamente, Lawrence não achou que isso fosse uma rejeição. Parecia ser o contrário.

Holo se enrolou como uma bola embaixo do cobertor, parecendo que desta vez realmente pretendia dormir.

— Mas então ela levantou a cabeça novamente, como se de repente se lembrasse de algo. “Eu não me importo se você descer, contanto que não faça nada para me deixar com ciúmes.”

Ou ela notou o gesto de Eve ou estava simplesmente atraindo- o para uma armadilha.

Em ambos os casos, ela  estava  certa  sobre  os  planos dele. Lawrence bateu levemente  na  cabeça  antes  de  responder. “Aparentemente, tenho uma queda por garotas ciumentas.”

Holo sorriu, mostrando suas presas. “Vou dormir agora,” ela falou, depois mergulhou novamente sob o cobertor.

Lawrence ainda não sabia o que ela temia. Mas ele queria aliviar esse medo, se pudesse.

Ele olhou para a palma da mão, a sensação de tocar a cabeça dela ainda era palpável. Ele fechou a mão levemente, como se quisesse evitar que a sensação desaparecesse.

 

 

Ele queria ficar mais tempo, mas precisava agradecer a Eve por apresentá-lo a Rigolo.

Ela era uma mercadora que poderia muito bem sair da cidade amanhã, dependendo das circunstâncias, e ele não queria que Eve pensasse nele como o tipo de homem que se dedicaria a sua companheira antes de expressar sua gratidão.

Afinal, o próprio Lawrence havia sido mercador por quase metade de sua vida.

“Então eu vou estar lá embaixo,” ele murmurou com um tipo de desculpa.

Ocorreu a Lawrence que o que ele havia dito à garçonete antes era verdade — enquanto ele controlava as cordas de sua bolsa  de moedas,      suas      rédeas      estavam      firmemente seguras. Frustrantemente, ele achava que esse fato era óbvio demais da perspectiva de Holo.

“…”

Sim, tudo o que ele temia era o fim da jornada. Mas o que Holo temia?

Lawrence estava perdido como um garotinho.

 

Lawrence viu três hóspedes bebendo no segundo andar. Um deles parecia um mercador; os outros dois provavelmente eram artesãos itinerantes. Se todos fossem mercadores, era improvável que pudessem beber juntos tão silenciosamente, por isso Lawrence estava confiante em seu palpite.

Ele chegou ao primeiro andar. Arold e Eve ainda estavam lá.

Era quase como se o tempo tivesse parado. Nada mudou desde que ele subiu as escadas. Os dois não falavam e olhavam em direções diferentes.

 

 

“Uma bruxa espirrou?” Lawrence perguntou. Era uma superstição comum que o espirro de uma bruxa pudesse parar o tempo.

Arold    apenas    olhou    na    direção    de     Lawrence    com os olhos profundos.

Se Eve não tivesse rido, ele ficaria preocupado de ter feito algo indevido.

“Sou mercadora, mas o velho não. É difícil conversar,” disse Eve.

Talvez  porque  não  havia  nada   que   servisse   como   uma cadeira adequada, ela apontou para uma caixa de madeira vazia.

“Pude me encontrar com Rigolo graças a você. Ele certamente é do tipo melancólico,” disse Lawrence, pegando o copo de vinho que Arold lhe ofereceu. Se alguém falasse ao velho estoico que sua amada filha havia retornado, ele provavelmente nem iria encontrá- la.

Eve riu. “É mesmo, não é! Não há o que fazer com um homem tão sombrio.”

“Mas eu invejo aquela técnica dele.”

“Então você percebeu?” Eve disse com um sorriso. “Ele gostou de você. Se pudesse levá-lo nos negócios, ele seria capaz de despir  a maioria dos mercadores, não acha?”

“Infelizmente, ele não parecia atraído por isso.” Rigolo era totalmente indiferente a essas coisas.

“Isso é porque ele tem tudo o que poderia querer naquele lugar velho e degradado dele. Você viu o jardim, certo?”

“Foi incrível. Você quase nunca vê janelas de vidro tão grandes.”

O rosto de Eve estava inclinado para baixo, mas ela olhou um pouco para cima e sorriu para a resposta propositadamente mercantil de Lawrence. “Eu nunca seria capaz de lidar com uma vida assim. Devo dizer que eu ficaria louca.”

 

 

Mesmo que Lawrence não tivesse sentimentos tão fortes sobre isso, ele entendia o sentimento de Eve.

Os mercadores pensavam no lucro quase toda vez que respirassem.

“Então, você ouviu sobre a reunião?” Os olhos de Eve espiaram por baixo do capuz. Arold lançou um olhar abertamente desagradável para ela. Ela desviou o olhar.

Lawrence exibia um sorriso, mas por baixo disso, seu rosto de mercador estava pronto.

“Aparentemente ela acabou,” disse ele.

É claro que Eve não tinha como saber se isso era verdade ou não; ela provavelmente duvidava da resposta dele.

Isso supondo que ela não tinha nenhuma outra fonte de informação. Se ela tinha, essa nova revelação poderia lhe dizer todo tipo de coisas.

“E o que foi decidido?” Ela perguntou.

“Infelizmente, não chegamos tão longe.”

Eve olhou atentamente para ele por baixo do capuz, como uma criança olhando para uma ampulheta esperando que ela acabasse, mas ela pareceu decidir que não importa o quanto encarasse isso não revelaria mais informações.

Ela desviou o olhar, bebendo seu vinho. Era hora de começar a ofensiva.

“Você ouviu alguma coisa, Eve?”

“Eu? Ha! Não, ele desconfia completamente de mim. Mesmo assim, sobre eu acreditar ou não em você… hmm. Essas palavras realmente saíram da boca dele?”

“Pode muito bem ser a verdade,” disse Lawrence.

 

 

Se uma conclusão tivesse realmente sido alcançada, poderia haver outros que sabiam que conclusão era essa e cujos lábios seriam mais soltos. Se a conclusão da reunião não fosse algo que beneficiasse mercadores estrangeiros, ninguém seria prejudicado por isso.

Em primeiro lugar, as reuniões oficiais da cidade eram realizadas com base no pressuposto de que seu conteúdo seria tornado público.

“No entanto, o que me preocupa…” começou Lawrence.

“Mm?” Eve cruzou os braços e olhou em sua direção.

“…é exatamente o motivo de você estar fazendo a conversa trilhar esse caminho, Eve.”

Lawrence pensou que Arold poderia ter sorrido.

Numa conversa entre mercadores, os interesses e motivações dos participantes eram obscuros, nebulosos.

“Você certamente vai direto ao ponto. Ou você fez mais do que negociar dois cobres em algum lugar, ou não está fazendo uma negociação adequada.”

Era difícil imaginar uma mulher com uma resolução tão firme. Não, para ser mulher e mercadora, ela precisava ser assim.

“Eu sou como os outros,” disse Eve. “Quero saber como posso transformar isso em um enorme ganho. Isso é tudo. O que mais haveria?”

“Você pode estar tentando evitar uma grande perda.” Lawrence se lembrou do incidente em Ruvinheigen.

Mesmo se alguém entendesse essa perda intelectualmente, era impossível imaginar de verdade até que a experimentasse por si mesmo.

“As pessoas têm dois olhos, mas não é tarefa fácil observar duas coisas ao mesmo tempo. Embora, eu suponha, de uma certa perspectiva, você está certo em tentar evitar uma perda.”

 

 

“Com o quê…?” perguntou Lawrence. Eve coçou a cabeça com a pergunta.

Arold os observou sorrindo sob a barba espessa. Os dois eram como companheiras de longa data.

“Eu negocio estátuas de pedra.” “Da Santa Madre?”

A estátua na casa de Rigolo passou pela mente de Lawrence.

“Você viu aquela na casa de Rigolo? É de uma cidade portuária chamada Kerube, no litoral ocidental. Eu as compro lá e as vendo na igreja aqui. Esse é meu negócio. Como se trata apenas de transportar e vender pedra, não há muito lucro, mas se elas fossem abençoadas pela Igreja, seriam vendidas por muito mais. Os pagãos são mais fortes nessa região; portanto, quando a campanha do norte acontece, ela atrai multidões de pessoas que querem comprar estátuas.”

Era a estranha alquimia da Igreja. Assim como em Kumersun, onde a especulação e o entusiasmo elevaram o preço da pirita, a fé poderia facilmente ser transformada em dinheiro.

Foi o suficiente para fazer Lawrence querer tentar.

“Infelizmente, não tenho esse lucro, mas em troca eu movimento uma  quantia  respeitável. Mas   tudo   isso   foi   perdido   com o cancelamento da campanha do norte. Aprendi em primeira mão que ninguém te derruba mais rápido que a Igreja.”

Era difícil imaginar uma tragédia maior do que carregar todos os seus bens como estátuas pesadas.

Os custos de transporte aumentavam. Os locais para vender eram limitados. Se ela tivesse conseguido crédito para aumentar sua transação, seus negócios poderiam sufocar.

Lawrence não achava que um mercador da estatura de Eve colocaria todo o seu patrimônio em um investimento como esse, então

 

 

ela provavelmente não estava enfrentando uma ruína completa — mas ainda era um golpe sério.

Dificilmente seria estranho se, em sua frustração, ela se voltasse para a especulação.

“Ouvi que a influência da Igreja está diminuindo no Sul. Eu estava pensando que era hora de parar de carregar minhas mercadorias em um navio furado — imaginei que faria um último grande negócio, e depois pararia com ele.”

Isso sugeria que ela não seria capaz de fazer uma pausa a menos que pudesse fazer aquele último acordo.

“Então,” continuou Eve, “estávamos conversando sobre como se eu conseguisse atingir o sucesso, seria melhor seguirmos para o sul.”

Lawrence não precisava perguntar com quem.

Ao lado dela, Arold murmurou, “Estive pensando que já era hora de fazer uma peregrinação.”

Uma viagem como essa não seria muito diferente de procurar um lugar para enterrar seus velhos ossos.

Arold vinha falando sobre uma peregrinação desde que Lawrence chegara à estalagem, mas desta vez ele parecia sério.

“Então, é isso,” disse Eve, atraindo o olhar de Lawrence para ela. “Quer me emprestar dinheiro?”

O súbito pedido não parecia estar relacionado a nada.

No entanto, Lawrence não estava particularmente surpreso. Ele teve uma certa premonição de que algo assim estava por vir.

“Eu tenho algumas informações muito precisas sobre o conteúdo da reunião do conselho,” disse Eve. “Posso fazer todos os arranjos. Eu só preciso de dinheiro.”

Os olhos dela estavam fixos em Lawrence. Ela quase o encarava, mas ele percebeu que aquilo era um ato.

 

 

“Se eu souber os detalhes do investimento e decidir que o lucro vale o risco, seria um prazer.”

“É o comércio de peles. Você dobraria seu dinheiro.” Nenhum mercador no mundo aceitaria uma explicação tão curta, mas Eve parecia entender isso. Ela abaixou a voz e continuou calmamente. “O Conselho dos Cinquenta vai permitir provisoriamente as vendas de peles a mercadores.”

“Qual é a sua fonte?” Provavelmente era inútil perguntar — era como tentar convencer uma garçonete a dizer sua verdadeira idade.

“A Igreja.”

“Mesmo que eles tenham virado as costas para você?” Lawrence retrucou.

Eve deu de ombros, sorrindo. “Podemos nos separar em maus termos, mas todo mundo sabe deixar alguns contatos simpáticos para trás.”

Lawrence obviamente não podia confiar nela, mas ela também não parecia estar mentindo. Era muito mais fácil acreditar nessa explicação do que se ela tivesse acabado de afirmar ter ouvido de Rigolo. “Então, qual é o problema?”

“A condição será que qualquer pessoa que compre peles terá que fazê-lo usando dinheiro.”

À beira da possível monopolização do comércio de peles na cidade, Lawrence tinha se perguntado qual decisão seria proferida, mas a esperteza deste plano o fez falar sem pensar.

“Então, eles não estão dizendo que é proibido vender, mas ao mesmo tempo, os mercadores de lugares distantes dificilmente carregam moedas o suficiente.”

“Exatamente. Mas eles não podem exatamente retornar de mãos vazias, então compram qualquer pele que puderem pagar com o minúsculo dinheiro que têm em mãos.”

 

 

Isso significava que, com dinheiro, seria possível comprar as belas peles de Lenos e levá-las para outra cidade.

Mas algo incomodava Lawrence.

Agora que Eve  tinha  dito  isso  a  ele,  não  havia  nada  que o impedisse de cortá-la do acordo e seguir sozinho.

“Você parece estranhamente confortável falando sobre isso comigo.”

“Se tudo o que você quer é ganhar um dinheirinho a mais, então, por favor, faça esse negócio você mesmo.”

A expressão de Eve era ilegível sob seu capuz.

Ela estava apenas subestimando ele, ou havia alguma razão para que esse acordo não pudesse funcionar com apenas uma pessoa?

Lawrence concluiu que não podia dizer nada descuidado enquanto esperava ela continuar.

“Na realidade, você não tem tanto dinheiro, não é?” “Eu não vou negar.”

“Então você não deve perder  esta  oportunidade. Você  nem conhecia Rigolo antes de eu te apresentar. Quem nesta cidade estaria disposto a te emprestar dinheiro?”

Ela estava certa.

Mas Lawrence pensou em algo, e ele sentiu um calafrio nas costas.

Era possível que a razão pela qual Eve o abordou em primeiro lugar fosse para avaliá-lo como investidor. Nesse caso, havia uma enorme discrepância na quantidade de informações que eles tinham.

Lawrence não sabia nada sobre ela.

“É verdade, mas eu poderia voltar para uma cidade diferente e levantar o dinheiro lá. Mas não é isso que você espera que eu faça ao me propor essa oportunidade?”

 

 

Ele não tinha uma grande quantia em dinheiro e não havia nenhum lugar nesta cidade onde pudesse levantar a quantia, de modo que esse era o único jeito.

Mas Eve balançou a cabeça lentamente. “Naturalmente, observei você e sua companheira, a maneira como você pagou pela estalagem, e imaginei que, se você aceitasse o negócio, você talvez conseguiria levantar mil peças de prata trenni. Mas quando você finalmente estiver com as moedas, as peles já estarão vendidas, esse é o meu palpite.”

A parte de trás das costas era a frente.

Quanto mais cuidadoso Lawrence tentava ser para ficar fora da armadilha de Eve, mais enroscado ele sentia seus pés.

A decisão do conselho não era para impedir que todas as peles fossem compradas?

À primeira vista, a ideia de limitar as compras de peles ao dinheiro pareceu ser apenas um plano inteligente.

“Você realmente não acha que todos esses mercadores fora da cidade estão lá fora sem um motivo, não é?”

“Alguém    com     muito     dinheiro    está     usando-os    para obter lucros ainda maiores,” Lawrence de repente notou.

“Sim. Isso, amigo, é uma guerra comercial.” “Uma guerra… comercial?”

Era um termo desconhecido e foi a primeira vez que Lawrence ouvia   falar,   mas   algo    a    respeito    dele    fez  seu coração mercantil tremer.

“Acho que você não passa muito tempo perto do mar. Entre em qualquer taberna de uma cidade portuária e beba com os mercadores de lá. Você vai ouvir falar das guerras comerciais, acredite em mim. Não é algo que simplesmente acontece do nada. Somos mercadores, não bandidos. O atacante deve fazer os preparativos com antecedência.”

 

 

Isso fazia sentido. Não havia mercador no mundo que não inspecionasse cuidadosamente sua mercadoria.

“As probabilidades são de que os mercadores acampados fora da cidade estejam calculando a decisão do conselho e fazendo seus planos. Quantas pessoas com dinheiro você acha que existem nesta cidade?”

Colocando essa pergunta do nada, não havia como ter certeza —

mas Lawrence era um mercador.

Uma estimativa aproximada, baseada no tamanho da cidade, apareceu imediatamente em sua cabeça.

“O número de empresas comerciais vale a pena mencionar… talvez vinte, de vários tamanhos. Lojas especializadas em um tipo particular de bem… talvez duzentas ou trezentas. Talvez o mesmo número de artesãos prósperos.”

“A grosso modo, sim. E, entre eles, a questão é quantos colocarão seus próprios ganhos na frente dos da cidade.”

Lawrence não conseguiu responder a essa pergunta. Não porque ele não tivesse informações sobre a cidade, mas porque as pessoas sempre escondiam seus desejos egoístas, mesmo quando tentavam satisfazê-los.

“De qualquer forma, se apenas uma dessas empresas de comércio escolher a traição, ela conseguiria toda a pele. Se eles operassem através de uma filial de outra cidade, seria fácil esconder o que estavam fazendo.”

Os mercadores eram um grupo geralmente sociável e não trairiam facilmente  uma  cidade  em  que  operavam   lucrativamente  por anos. Mas lucro suficiente faria com que a lealdade de qualquer pessoa vacilasse.

“Claro,” continuou Eve, “duvido que uma grande empresa comercial se tornasse traidora. Hoje em dia, tudo é gravado nos registros contábeis, para que seja fácil ver o que eles fizeram. Se eles

 

 

secretamente emprestassem dinheiro a um mercador externo, isso poderia ser descoberto.

Lawrence entendeu imediatamente. “Mesmo que eles tivessem uma fonte de dinheiro oculta e não registrada, o conselho poderia interromper isso com uma única ordem: ‘A fonte de todo o dinheiro usado para comprar peles deve ser declarada.’”

Ele pensara que as placas de registro de mercadores estrangeiros distribuídas nos portões da cidade deviam impedir que estes fizessem armadilhas inesperadas, mas agora a prática parecia muito mais significativa do que isso.

Lawrence pensou na inspeção estranhamente minuciosa que ele e Holo haviam passado. Provavelmente fora para impedir os viajantes de trazer grandes quantias de dinheiro para a cidade.

O conselho já havia chegado a sua decisão naquela época?

“Mas há muitas outras pessoas com dinheiro além das empresas comerciais. Os chefes dos curtumes e as pessoas que comercializam os materiais para o curtimento de peles têm motivos para serem pessimistas quanto ao futuro do comércio de peles  nesta  cidade. Eles vão procurar capital para entrar em novos negócios e ficarão felizes em lidar com os mercadores que estão ameaçando a cidade   para   aumentar   esse   capital. A   política   do   conselho provavelmente é a melhor escolha que eles têm, mas dificilmente alguém realmente pensa que essa política vai impedir que as peles sejam completamente compradas. Deixe-me dizer isso novamente —”

A voz de Eve estava fria.

“— a pele desta cidade será completamente comprada.”

Ela estava sugerindo que eles fechassem essa lacuna e comprassem eles mesmos?

Derrotar os mercadores que planejavam monopolizar o comércio de peles de Lenos significava estar dentro e fora da cidade.

 

 

Eles devem ter entendido que, enquanto tentassem se infiltrar na cidade, não apenas a decisão do conselho não seria tomada, mas as medidas defensivas adotadas pela cidade seriam redobradas — então eles acamparam fora da cidade.

Nesse caso, mesmo quando a decisão do conselho saiu, os mercadores não entraram imediatamente na cidade. Eles só agiriam após a proclamação pública, garantindo que ela não pudesse ser revertida.

Não era impossível que Lawrence e Eve pudessem comprar as peles.

“Você sabe que não há tempo para ir a outra cidade e pedir o dinheiro emprestado, então não posso ajudá-la. Como você disse, não tenho conexões aqui,” disse Lawrence.

Essa era a parte mais intrigante. O que Eve estava planejando?

Olhos azuis espiaram por baixo do capuz.

“Ah, mas você tem um grande patrimônio.”

Lawrence rapidamente percorreu a lista do que tinha em mãos.

Nada que pudesse ser chamado de “grande patrimônio” veio à mente.

De   qualquer   forma,   se  Eve  sabia disso,  tinha   que ser algo imediatamente óbvio.

A única coisa em que Lawrence conseguia pensar era em seu cavalo.

Então algo mais lhe ocorreu. Ele olhou para Eve, incrédulo.

“Isso mesmo. Você tem sua companheira adorável.” “…Isso é um absurdo.”

Lawrence foi completamente honesto.

 

 

Embora o que ele quis dizer não fosse que não pudesse vender Holo,  mas  que  vender  Holo  não  poderia  aumentar   a quantidade de dinheiro necessária.

Embora fosse verdade que Holo era de uma beleza impressionante, isso não era algo que pudesse ser imediatamente transformado em mil peças de prata. Se pudesse, garotas bonitas em todos os lugares seriam constantemente sequestradas.

Era possível que Eve tivesse descoberto que Holo não era humana, mas mesmo assim, isso não mudava a situação.

“Achei que você pensaria assim. Mas há uma razão pela qual eu escolhi você.” Eve exibiu um sorriso fino por um motivo que Lawrence desconhecia.

Talvez ela estivesse apenas muito confiante em si mesma, ou talvez estivesse bêbada com seu próprio plano. Ou talvez —

Eve removeu seu capuz, expondo seu belo cabelo dourado curto e seus olhos azuis. “Vamos reivindicar que ela é filha de um nobre e vendê-la.”

“O qu—?”

“Acha  que  é  impossível?”   Eve   sorriu,   descobrindo   seu dente canino.

Era um sorriso de desprezo.

“Meu nome é Fleur Bolan. Formalmente, sou Fleur von Eiterzentel Bolan, décima primeira herdeira do clã Bolan, que jura lealdade ao reino de Winfiel. Somos nobres com títulos.”

Rir parecia impossível diante de uma piada tão ridícula.

Os olhos e ouvidos que eram as ferramentas mais importantes de Lawrence disseram a ele que Eve não estava mentindo.

“É claro que somos nobres em decadência que têm problemas para conseguir comida, mas o nome é grande, não é? Quando caímos tanto

 

 

que não tínhamos dinheiro para nos alimentar, fui vendida a   um mercador que havia acabado de ficar rico.”

Esse era frequentemente o caminho pelo qual a nobreza em decadência era forçada a tomar, e explicava seu sorriso amargo.

Apesar de terem se rebaixado, esses nobres orgulhosos costumavam ter seus títulos e seus corpos comprados por mercadores ricos.

Se isso fosse verdade, explicaria a estranha aparência de mercador de Eve, cansada do mundo.

“Esse é o tipo de mulher que sou, por isso conheço um ou dois lugares para vender uma garota com um nome nobre. O que você me diz?”

Era um território comercial em que Lawrence nunca havia entrado antes.

Uma vez que acumulasse alguma riqueza, a primeira coisa que um mercador faria era enobrecer seu próprio nome. O proprietário massivamente rico de uma empresa comercial de sucesso poderia ter sido órfão de um coletor de lixo; essas coisas não eram raras. E, aparentemente, havia títulos nobres que se podia comprar com dinheiro suficiente.

Lawrence tinha ouvido falar de tais coisas, mas nunca tinha se deparado com o fenômeno.

Mas aqui na frente dele estava Eve, que havia sido comprada exatamente dessa maneira.

“Sua companheira pode passar facilmente como uma nobre. Eu sei

que sim,” ela disse com um sorriso.

Sua voz havia se tornado baixa e rouca depois de sofrer um destino tão amaldiçoado, sem dúvidas.

“Naturalmente, vendê-la não é o objetivo. Como eu disse antes, eles vão limitar as compras de peles com dinheiro, a fim de evitar uma corrida no mercado de peles, mas as empresas de comércio

 

 

aqui não vão emprestar dinheiro a um mercador fora, certo? Mas há mais de um tipo de empresa comercial. Se você puder dar a eles uma razão boa o suficiente, eles lhe pedirão um empréstimo em troca de um corte nos lucros, e por acaso eu conheço um desses. ‘Vender uma donzela nobre’ é apenas uma pretensão, e a empresa comercial entende isso. Eles só precisam dela como garantia caso nosso acordo fracasse. É assim que posso oferecer a garantia.”

Lawrence ficou meio impressionado com a explicação complicada, mas não havia como ele arremessar Holo na disputa. Era muito perigoso. Mesmo deixando de lado a questão da própria segurança dela, se as coisas corressem mal, não havia dúvida de que sua vida como mercador terminaria.

“Eu — não, nós não estamos pedindo para você penhorar sua preciosa companheira.”

“Nós?” Repetiu Lawrence, com dúvida em sua voz. Eve lançou um olhar de soslaio para Arold, que ficou em silêncio o tempo todo.

“Estou indo fazer uma peregrinação,” disse Arold abruptamente. O velho dizia isso toda vez que Lawrence ficava na estalagem.

Mas Eve havia dito “nós.” Isso significava que Eve havia se juntado a Arold. O que significava que ele realmente estava indo em uma peregrinação, e estava deixando Eve encarregada de seus bens e da estalagem.

E as peregrinações podem durar anos, às vezes  mais de  uma década. Para Arold fazer essa jornada em sua idade significava que nunca mais colocaria os pés em Lenos.

O que significava —

“Essa pode ser minha última chance de fazer a jornada. Eu pensei em fazer isso muitas vezes no passado e fui capaz de economizar algum capital. Mas nunca fui capaz de juntar a coragem…”

O estômago de Lawrence doía com o suspense. Arold deu um sorriso cansado e olhou para Eve.

 

 

Ele deve ter sido fortemente persuadido pela mulher.

Então, por baixo das pálpebras enrugadas, seus olhos azuis se voltaram para Lawrence.

“Eu vou entregar esta estalagem.”

A respiração de Lawrence ficou presa na garganta.

“Afinal, todos os mercadores não sonham com a mesma coisa?” Perguntou Eve, só agora sua voz parecia com a da nobre que ela uma vez foi.

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