Jasmine Flamesworth
Os baixos sopés que levavam para longe das Grandes Montanhas facilitaram a viagem escondidas. Depois de escapar dos guardas na Muralha, tirei Camellia da estrada principal, e seguimos lentamente para o oeste, usando as colinas como cobertura.
Não esperava que Albanth mandasse alguém atrás de nós. Era muito arriscado, e ele devia estar tão bravo com os soldados quanto estava comigo, de qualquer maneira. Apesar do estado da Muralha, o capitão era um homem lógico com uma cabeça nivelada. Mas isso não significava que esperaria para descobrir qual seria a minha punição por matar um soldado da divisão Bulwark.
Se tivéssemos ficado na estrada principal, a caminhada até Greengate — a cidade mais próxima — teria sido menos de um dia, porém nosso caminho sinuoso de agora significava que passaríamos uma noite acampando. O sol estava alto no céu no dia seguinte antes de as colinas se achatarem em campos largos ao redor de uma aldeia de alguns milhares de pessoas.
Embora não tivesse nenhum destino em particular em mente, fazia sentido parar na aldeia agrícola rural e ter uma noção da situação em Sapin. Com as partes da besta de mana ainda armazenadas no meu anel dimensional, esperava trocar por comida e suprimentos de viagem também.
Era improvável que encontrássemos notícias dos Chifres Gêmeos lá, mas achei que era muito arriscado fazer perguntas tão pontuais.
“Mas se você tem certeza que não haverá nenhum alacryano aqui, por que precisamos fingir ser outras pessoas?” Camellia perguntou depois que terminei de explicar meu plano.
“É mais seguro assim. Eu sou apenas uma mercenária e você é a minha serva elfa inútil.”
“Ei!”
Sorri. Parecia… estranho, e percebi que não conseguia lembrar da última vez que me senti tão “eu”. Tinha uma missão para ocupar a mente, um cliente — mesmo que não pagasse — para proteger, e estava cercada por inimigos tentando me matar.
Era assim com os Chifres Gêmeos todos esses anos; com o Arthur nas clareiras.
Arthur se foi; os Chifres Gêmeos estavam no subsolo…
“Jasmine?” Me encarava, os olhos enormes.
“É melhor me chamar… de Note” disse depois de uma pausa. Foi o primeiro nome que me veio à cabeça.
“Note?” Riu. “É um nome engraçado.”
Olhei cuidadosamente em ambas as direções para ter certeza de que ninguém estava assistindo antes de voltarmos à estrada que levava à aldeia. “E você será Skunk.”
A boca dela se abriu e ela parou de andar. “Não, eu não vou deixar você me chamar assim.”
“Desculpe, Skunk. Ordens do mestre Note. Agora se mova, ou serão três chicotadas por desobediência.”
O olhar no seu rosto quase fez todos os problemas que me causou até então valer a pena.
***
Não tinha certeza do que esperar quando entramos em Greengate. Os alacryanos já enviaram soldados a essas cidades menores? Ela estava perto o suficiente da Muralha, uma das últimas fortificações fora de Darv ocupadas por dicatheanos, então faria sentido ter um par de espiões lá, pelo menos.
Os únicos aldeões que vimos nos deram olhares nervosos e foram em outra direção. Uma mulher, depois de abrir a porta da frente e dar um passo para fora, nos viu, engasgou, e correu de volta para dentro antes de bater a porta e trancá-la.
“Não são muito amigáveis” falou baixinho, olhando ao redor.
Descobrimos o porquê uma vez que chegamos à praça no centro da vila. Os paralelepípedos foram rachados em uma dúzia de lugares diferentes, e pude ver os claros sinais que colunas de barro estouraram do chão, destruindo o caminho. Alguns dos edifícios ao redor foram esmagados por grandes pedras, e todas as janelas de frente à praça foram abordadas.
“Alguns magos realmente fortes devem ter lutado aqui.” Me inclinei e examinei um pedaço de pedra quebrado feito vidro. “Vê isso? Pedra quebra assim quando congelada por um mago desviante do gelo.
“Jasmine” sussurrou e se abaixou ao meu lado “, tem gente nos observando.”
Tomei cuidado para manter os movimentos naturais e fingi examinar outros sinais de danos mágicos, até que encontrei quem era.
Um jovem, talvez de dezenove ou vinte anos, estava agachado em frente a uma pequena loja, parado, retirando ervas — ou fingindo — do pequeno jardim na frente de uma construção. Olhava para nós duas, o rosto contorcido em uma carranca preocupada.
Voltei para Camellia e apontei para um lugar onde os paralelepípedos tinham sido esmagados em um retângulo perfeito, e disse:
“Se ele é um espião, é um muito ruim. Vamos ver.”
Como era o único na cidade que não fugiu de imediato de nós, esperava que pudesse nos informar sobre o que aconteceu lá.
Não escondendo mais minhas intenções, virei e fui direto em direção a ele. Ele vacilou e se ocupou arrancando alguns punhados de dente-de-leão.
“Ei.” Coloquei uma perna na cerca baixa que separava o jardim do resto da rua e olhei para ele. Embora seu cabelo loiro fosse um pouco selvagem e as bochechas fossem magras, ele parecia mais um nobre do que um fazendeiro rural. Gesticulei sobre meu ombro com um polegar. “O que aconteceu aqui?”
Ele encontrou meus olhos, então logo olhou para o chão. “Sinto muito, senhora, eu não deveria…” Se afastou, com os olhos voltando para mim, uma faísca de reconhecimento neles. “Você é uma aventureira, certo? Acho que vi você lutar na guilda dos aventureiros de Xyrus uma vez.”
A última coisa que esperava era alguém aqui para me reconhecer, e levei um momento para recobrar dos pensamentos.
“Duvido” falou Camellia. “Esta humilde mercenária é a aventureira Note, e tenho certeza que ela não fez algo digno para que note.” Me deu um olhar autossatisfeito.
“E essa aqui é Skunk.” Franzi a testa para ela. “Ela foi criada por elfos selvagens nas profundezas da floresta amaldiçoada deles, e, cá entre nós, acho que as névoas lá fizeram algo à sua mente.”
“‘Elfos selvagens’?”
“Enfim,” continuei, cortando a sua fala “o que aconteceu aqui?”
O jovem tinha ouvido nosso vai e vem com um sorriso mal-humorado em seu rosto, mas ele sumiu na minha pergunta. Em voz baixa, falou:
“Três Lanças atacaram uma Retentora Vritra. Houve uma grande batalha, e agora os aldeões estão todos com medo de os alacryanos virem aqui e puni-los pelo que aconteceu.”
Meu batimento cardíaco acelerou com a menção naqueles nomes. “As Lanças estão vivas?”
Olhou em volta, em seguida, acenou com a cabeça. “Estava, há alguns dias, pelo menos.”
Estive perto o suficiente delas no castelo voador para entender que seu poder estava em um patamar diferente. Se ainda estivessem vivos e lutando, então Dicathen podia realmente ter uma chance.
Olhou em volta de novo, ficando cada vez mais nervoso. “Ouça, eu gostaria de falar mais com você, mas devemos ir a algum lugar menos exposto.”
O examinei mais uma vez. Não podia sentir qualquer assinatura de mana, e parecia improvável que alguém tão novo como ele seria poderoso o suficiente para suprimir a sua mana de mim. Ainda assim, os alacryanos provaram estar cheios de surpresas várias vezes.
“Me mostre suas costas.” Ele parecia entender minhas intenções, porque não hesitou em se virar e levantar a túnica. Não havia runas ao longo da coluna, somente várias contusões amarelas fracas que descoloriam a pele do quadril aos ombros.
“Certo, vamos.”
Enfiou a cabeça na loja para dizer aos que estavam lá dentro que estaria saindo por um tempo e levou nós duas pela cidade até uma grande casa perto de onde os prédios desbotavam de volta a campos de cultivo. Fiquei surpresa com o tamanho do lugar.
“Uau.” Camellia suspirou forte. “Quantas famílias vivem aqui?”
O jovem franziu a testa, pensativo, enquanto acenava para nós no portão da frente, que se abriu em um quintal largo. “Só uma. Mas tem muitos da gente.
Nós o seguimos ao longo de um caminho de cascalho até a casa. Quando abriu a porta, o cheiro de carne cozida e som de conversa fluiu para fora.
Uma voz profunda veio do fim da entrada. “Jarrod? Se está aqui para o almoço, é melhor se apressar antes de Cleo comer tudo.”
Nosso guia nos levou pelo corredor de entrada, passou por uma uma sala de estar bem designada e chegou à sala de jantar. Muitos estavam sentados ou parados em torno de uma longa mesa. A maioria era nova, entre talvez oito e catorze anos, mas havia dois da idade do nosso guia.
O clamor da conversa terminou quando entramos na sala.
Um homem marrento sentava-se na cabeceira da mesa. Tinha cabelos grisalhos curtos e barba e olheiras escuras. Tinha algo um pouco familiar nele, mas não podia dizer com precisão o que era.
“Jasmine Flamesworth?”
Nosso guia — Jarrod, presumi — olhou para mim, a expressão meio estranha. “Isso mesmo, eu lembro. Dos Chifres Gêmeos, certo?”
O homem barbudo levantou e caminhou rápido ao redor da mesa em nossa direção. “Sim, mas o que você está fazendo aqui, Jasmine? Greengate não é segura.”
‘Lá se foi o disfarce.’ pensei desconfortável. O fato de que ele me conhecia de vista, e ainda assim não conseguia recordar dele, me incomodou.
“E você é…?” perguntei.
Ele pareceu surpreso por um instante, e depois deu uma risada bem-humorada. “Não estou surpreso que você não se lembra. Helen e Adam eram os falantes, mesmo.”
Senti um choque passar por mim com a menção casual a Adam, e devo ter demonstrado sem querer.
“Desculpe.” Acrescentou o homem gentilmente. “Ouvi sobre a morte dele antes… bem, antes de a guerra mudar o placar.”
“Este é Halim Topurn” disse o loiro. “Eu sou Jarrod, esses dois pequeninhos são Clara e Cleo.” Deu a volta na mesa, apresentando o resto.
“Topurn…” repeti devagar, quase esmagando meu cérebro. “Ah, os Chifres Gêmeos costumavam escoltar algumas de suas caravanas, não é? Faz muito tempo.”
Halim riu, um barulho estrondoso que fez a sua barriga grande balançar. “Não faz muito tempo para alguém tão velho que nem eu, mas estou feliz que você se lembra.”
“Então, o que é tudo isso?” questionei, gesticulando para a mesa. Ficou claro que a maioria não eram parentes umas das outras ou dele.
Ele grunhiu e desviou o olhar. “Bem, ah…”
“Somos órfãos” disse o garotinho, Cleo, desafiadoramente. “Da guerra”.
Halim olhou para ele por um momento, a expressão difícil de ler. Para mim, respondeu:
“Estou simplesmente tentando usar meus recursos para fazer algo de bom antes que meu tempo acabe.”
Me assustei com uma mão pequena deslizando na minha e olhei para baixo, e vendo os grandes olhos verdes de Camellia me encarando.
“E essa é a seu…?” Halim inclinou-se um pouco até estar na mesma altura que a elfa.
“Minha assistente, Skunk…”
“Jasmine!” Deu um gritinho, apertando minha mão.
Reprimi um sorriso. “Camellia, Halim Topurn, rei mercante do oeste de Sapin. Halim, Camellia Lehtinen, minha protegida. Ela é… uma órfã da guerra, também.”
De alguma forma, ele conseguiu parecer gentil, envergonhado e triste ao mesmo tempo. “Quer comer algo, Camellia?”
Ela se virou para mim para obter permissão. Acenei com a cabeça, e um dos meninos puxou um assento para ela na mesa.
“Ela estará em boas mãos aqui se quisermos ir conversar” falou baixinho.
Meu olhar permaneceu nela empurrando um pão amanteigado inteiro em sua boca quando as outras crianças começaram a atormentá-la com perguntas. Quando tive certeza de que ficaria bem, fui à sala de estar com Halim e Jarrod.
“Sim…” Comecei depois que todos nós sentamos e Halim me deu um copo de bebida forte e de cheiro doce. “Não são apenas órfãos, são?”
Ele pareceu envergonhado de novo, mas o loiro respondeu por ele. “Somos magos. Alguns de nós somos órfãos, sim, mas alguns estão se escondendo de suas famílias e dos alacryanos. Muitas casas nobres nem hesitaram em apoiar os Vritra.”
“Por que arriscar ficar em um lugar aberto? Não é melhor procurar abrigo no santuário subterrâneo da resistência?”
Jarrod recorreu ao outro para responder. O velho comerciante tomou um gole lento da bebida antes de responder. “Tudo o que ouvi são rumores, e um rumor sobre esses rumores diz que este santuário subterrâneo é apenas uma armadilha, isca para qualquer dicatheano tolo o suficiente para procurar uma maneira de revidar.”
Bebi meu copo e o apoiei, antes de ficar de pé e começar a andar. “Você não sabe como entrar em contato com ninguém do santuário? Não sabe onde está?”
As sobrancelhas dele subiram. “Está sugerindo que é real?”
Me mexi com minha armadura conforme pensava. “Helen e os outros já estão lá. O comandante Virion do Conselho está vivo e liderando ao lado da Lança Bairon.”
Ambos se surpreenderam com o que informei. Enfim, Jarrod limpou a garganta. “Se Virion Eralith está vivo, então Tessia Eralith está também?”
Só pude dar de ombros. “Não tenho uma lista. Estava planejando levar a garota lá por segurança, mas…”
Só ficaria mais perigoso à medida que andássemos mais por Sapin. Poderíamos chegar a Blackburn em mais alguns dias, mas uma cidade do seu tamanho deveria com certeza estar nas mãos dos alacryanos agora. E o que faríamos quando estivéssemos lá?
A casa de Halim, percebi, seria um lugar perfeito para Camellia ficar. Ele já havia estabelecido um álibi para as crianças, até tinha alguma maneira de esconder as suas assinaturas de mana, e teria gente da sua idade para brincar e aprender junto. Seria muito melhor do que ficar comigo.
“Você sabe” falou com cuidado, olhando para a bebida. “Greengate podia ter um mago talentoso por aqui, especialmente agora.”
O depoimento dele me pegou desprevenida, e parei de andar. “O quê?”
Ele se levantou, encheu meu copo, e gesticulou para eu sentar antes de dele. Fiz o que pediu, bebendo a bebida em um gole.
“As pessoas aqui estão assustadas; aterrorizadas. Um quarto da cidade já partiu, mas o resto… suas vidas inteiras estão aqui, e todos parecem pensar que os alacryanos vão aparecer amanhã e que choverá fogo do céu.” Me deu um sorriso quente. “Faria uma diferença ter alguém por perto que pudesse revidar e liderar a defesa desta cidade.”
Zombei. “Você quer que eu seja o quê, exatamente? A xerife de Greengate? Sinto muito, mas esse não é o meu…”
“Nada oficial ou permanente. Mas eu poderia encontrar um lugar onde você e ela poderiam ficar, ter certeza de que vocês têm o suficiente para comer, e em troca, você me deixa espalhar alguns rumores sobre a talentosa aventureira e maga que você é.”
Abri a boca para recusar, mas… por quê? Eu era uma fugitiva lá na Muralha, que estava a menos de um dia de caminhada, porém não era como se fossem enviar soldados em força para me prender. Tinha também a questão da Helen e os Chifres Gêmeos. Se me procurassem, como Helen prometeu, seria mais fácil me encontrarem se ficasse por perto.
Uma sensação de ser vista por trás do pescoço surgiu, e vi Camellia olhando para mim parada na porta. “Sim” disse firme. “Nós definitivamente vamos ficar.”
Apertando os dentes para suprimir um sorriso, me voltei a ele e dei de ombros. “É, aí está.”