A voz sinistra de Uto enviou arrepios por minha espinha, e embora ele estivesse restrito e trancado dentro de uma cela anti-magia, não pude evitar de me preocupar.
Para todos nessa sala fui eu quem derrotou Uto, mas a verdade é que Sylvie e eu, juntos, mal conseguimos arranhá-lo.
“Você parece um pouco desconfortável, Uto.” Provoquei, mascarando qualquer sinal de fraqueza.
O sorriso do Retentor desapareceu, sendo substituído por um rosnado. “O que você fez com meus chifres, filhote?!”
Tirando o chifre negro do meu anel dimensional, comecei a casualmente jogá-lo para cima em sua frente. “Oh, você quer dizer isso aqui?”
“Seu pequeno insolen—”
“Pare.” Eu o cortei. “Eu não estou aqui para trocar insultos com você. E tenho coisas melhores para fazer.”
A face cinzenta de Uto escureceu, seus olhos se tornando selvagens. “Eu juro por Vritra que se eu sair daqui você desejará ter morrido naquele dia.”
Eu balancei minha cabeça lentamente.
“Tenho certeza que mais do que sair ou me causar dor, há outra coisa que você deseja.” Inclinando-me mais perto de Uto com um sorriso arrogante estampado no rosto, eu continuei. “Eu sei que o fato de você não ter ideia de como perdeu pra mim está lentamente te corroendo por dentro agora mesmo.”
Eu não pensei que o rosto do Retentor poderia ficar ainda mais irritado, mas Uto rangeu os dentes, chacoalhando-se desesperadamente para se libertar.
“Feche isso.” Eu disse, meus olhos ainda presos aos dele até que a grossa porta inscrita com runas se fechasse firmemente.
“O que foi iss…”
Coloquei um dedo sobre os lábios para silenciar o Comandante confuso. Foi só depois de nós quatro voltamos para a entrada deste nível da masmorra que falei baixinho. “Deixe-o por enquanto.”
“Ento e eu estivemos torturando-o fisicamente e mentalmente, mas eu nunca vi o Retentor tão transtornado.” Gentry murmurou enquanto seu parceiro musculoso assentia ao seu lado.
“Eu duvido que alucinações e dor física irão funcionar com aquele sadomasoquista arrogante.” Repliquei.
Virion virou sua cabeça. “Sadomaso… Que?”
“Não é nada.” Eu sorri levemente antes de me virar para Gentry. “Não abra a cela dele.”
O ancião curvado franziu as sobrancelhas. “Sem ofensas, General, mas pela minha experiência, é melhor insistir enquanto seu estado mental está uma bagunça como agora. Além disso, e se durante esse tempo ele descobrir como perdeu para você?”
“Ele não vai.” Assegurei. “Isso vai enlouquecê-lo lentamente. Deixe-o cozinhar até que eu decida voltar”
“Eu não gosto desse seu olhar.” Virion murmurou. “O que você está planejando?”
“Eu irei interrogá-lo quando a hora chegar.” Respondi.
***
“Você está pronto?” Emily perguntou atrás do crescente número de painéis. Ela parecia estar dentro da cabine de um avião da minha vida passada.
“Quase.” Eu respondi quando terminei de amarrar a última faixa em meus braços. Estremeci quando apertei a faixa com muita força.
Droga.
“Vamos seguir com o cenário de três contra um hoje, então por favor foco, General Arthur.” Alanis informou, notando a expressão vazia em meu rosto enquanto eu pensava na visita de hoje mais cedo à masmorra.
Levantei-me e balancei os braços, pronto para me soltar. “Entendi. Qual elemento estarei restringindo para a primeira parte?”
Os olhos da minha assistente de treino brilharam em sua familiar variedade de cores enquanto ela ‘me analisava’ antes de olhar para suas notas. “Água. E sua forma desviante claro.”
Andei até o outro extremo da sala de treinamento, parando cerca de onze metros de distância de Camus, Hester e Kathyln. Encontrar Uto me deixou nervoso. Eu estava confiante na masmorra que Uto não descobriria como eu o derrotei, porque não fui eu quem o derrotou.
Que tipo de Lança eu sou se não consigo vencer uma Foice, muito menos um Retentor?
Assim que Alanis deu o sinal para começar, eu avançei em direção a Hester, deixando apenas uma marca no chão.
Em um único movimento fluido, condensei uma camada de vento em volta da minha mão, moldando-a, afiando-a em uma lâmina transparente antes de atacar horizontalmente no torso da maga do fogo.
Os olhos de Hester se arregalaram com um pouco de surpresa, mas, ao contrário de outros magos, ela era competente o suficiente para responder até ao meu ataque rapido.
Sabendo que o fogo era fraco para uma forma tão comprimida de vento, ela optou por bloquear meu ataque agarrando meu braço enquanto fortalecia seu corpo com mana.
Você pode ter uma vantagem no conhecimento sobre a magia de fogo, mas se acha que pode tentar me derrotar no combate corpo a corpo…
Eu a deixei agarrar meu braço, mas agarrei o braço que ela estava usando para me segurar. Hester estava em uma posição que a ajudava a resistir a uma força que empurrava quando a puxei de volta, ela tropeçou para frente.
Utilizando esse momento, eu girei e posicionei meu quadril debaixo do centro de gravidade para jogá-la no chão.
Hester soltou um suspiro agudo quando suas costas atingiram o chão. Assim como eu me preparei para outro ataque para ativar seu artefato que protegia sua vida, uma rajada de água me encharcou completamente.
Antes que eu tivesse a chance de me virar para meu atacante, a água que cobria meu corpo congelou, restringindo qualquer tipo de movimento.
Fortaleci meu corpo com uma camada de fogo, me descongelando, mas Hester já havia usado meu breve momento de incapacidade para se distanciar.
Ignorando Hester por um breve momento enquanto ela se recuperava, corri em direção à princesa enquanto prendia as pernas dela com o chão abaixo dela. Pegando-a desprevenida, Kathyln imediatamente cobriu seu corpo no gelo como antes, sem dúvida uma técnica que aprendeu com Varay.
Com o corpo fortalecido, ela tentou se libertar dos grilhões de terra. Eu não lhe dei a chance. Ao me aproximar dela, eu continuamente manipulava o chão ao seu redor para reforçar e subir.
Foi uma ideia que tive ao assistir Olfred. O caixão de magma em que ele havia preso e executado Sebastian. É claro que eu não tinha intenção de fazer a mesma coisa, mas assim como quando os magos de terra usam uma armadura de rocha, um poderia facilmente envolver outro na mesma armadura para lhes retirar a liberdade de mobilidade.
Kathyln lutou para se libertar enquanto eu continuava meu feitiço. Toda vez que ela quebrava um pedaço de pedra, uma grande laje tomava seu lugar, lentamente subindo seu pequeno corpo.
A princesa estava coberta até o pescoço, enquanto uma camada de gelo tentava enfraquecer lentamente a integridade da magia de terra que a prendia.
Já era tarde demais. Juntei mana em meu punho, formando uma luva de relâmpagos crepitantes. Uma pontada de culpa me acertou quando levantei meu punho para dar o golpe final.
Ela tem o artefato de proteção de vida, Arthur. Além disso, você não pode se dar ao luxo de ser pegar leve com ninguém se você quer mesmo vencer essa guerra.
Kathyln me encarou com seriedade sem nenhum sinal de medo. No momento em que meu punho estava prestes a entrar em contato com ela, no entanto, uma rajada de vento me empurrou de volta, em direção ao centro de uma formação giratória de vento logo acima do solo.
“Erupção!” Camus gritou, aproveitando meu breve desequilíbrio, desencadeando o poderoso ciclone que ele estava preparando.
Minha visão foi obstruída por paredes de vento ao meu redor e, por um momento, tudo ficou mortalmente imóvel. Qualquer tipo de som foi lavado pelo rugido constante do tornado. Logo me vi ofegante—ofegando por estar neste funil de baixa pressão do ar.
“Irritante.” Eu murmurei entre uma respiração tensa.
As paredes do ciclone se fecharam, ameaçando girar e me jogar onde quisesse, mas, felizmente, o oxigênio restante que eu havia deixado dentro de mim permitiu que meu cérebro revidasse.
Minha reação inicial foi me enterrar no subsolo—essa teria sido a escolha mais inteligente. No entanto, talvez por causa da diminuição do suprimento de oxigênio, eu me vi imaginando Uto na minha frente. Seu sorriso selvagem que parecia dizer: ‘Tudo o que você pode fazer é correr ou se esconder diante de algo maior que você’ provocou uma raiva que eu não sentia há muito tempo.
Para o inferno com a estratégia. Se eu não consigo nem encarar isso, como vou enfrentar as Foices?
Depois de ancorar meus pés no chão usando a magia da terra, comecei a conjurar uma corrente oposta para dispersar o poderoso feitiço de vento lentamente.
Quando meu feitiço colidiu com o feitiço de Camus, as lágrimas começaram a se formar. Parecia que eu estava perto de neutralizá-lo quando senti uma dor irradiar através de minhas costas, me empurrando para frente. Com os pés apoiados no chão, me curvei desajeitadamente, empurrando com as palmas das mãos para me recompor.
Eu amaldiçoei em minha mente, com medo de desperdiçar ar desnecessário, enquanto olhava para o objeto que me havia acertado pelas costas. Era um grande pedaço de gelo. Pior ainda, não era o único. Girando ao meu redor havia várias dezenas de pedaços de gelo—cada um com pelo menos duas vezes o tamanho da minha cabeça.
Ainda assim, continuei minha tentativa de dispersar o feitiço tornado de Camus. Claro, poderia ser a minha teimosia. Eu estava inflexível, desesperado para vencer contra esse ‘inimigo’ que se elevou sobre mim. À medida que o tornado se aproximava de mim, mais meu corpo se tornava um saco de pancadas para as pedras de gelo.
Eu tinha que parabenizar Kathyln pela criatividade em seus pedaços de gelo; alguns eram apenas pedras pesadas, mas outros tinham arestas afiadas que cortavam através das minhas roupas.
Apesar dos repetidos golpes, meu corpo estava entorpecido. Eu estava tonto e uma forte sensação de fadiga tomou conta de mim.
A única coisa que me fez seguir em frente foi a noção de que superar esse feitiço era, de alguma forma, vencer Uto.
Minha mente continuou a ter esses pensamentos irracionais até que percebi que era tarde demais e que as pedras de gelo haviam desaparecido e, em seu lugar, estava um fogo crescente se uniu ao tornado—fundindo-se em um ciclone flamejante.
Foi quando minha visão começou a visualizar a figura de Uto e se tornou uma alucinação total. Só durou cerca de alguns segundos até eu apagar com meus últimos pensamentos culpando a falta de oxigênio por minhas ações sem sentido.
Parecia que eu tinha apenas piscado, mas quando abri meus olhos novamente, eu estava olhando para Kathyln com o teto da sala de treinamento visível atrás dela. Eu estava deitado.
Uma sensação fria irradiava da minha testa. Percebi que era um lenço gelado quando apalpei.
“Seu corpo ainda está um pouco quente. Continue assim.” Insistiu Kathyln, colocando o pano de volta em mim com apenas um toque de preocupação em seu rosto.
“Obrigado.” Eu murmurei. “E desculpe por aquilo.”
Ela balançou a cabeça. “Estávamos treinando. Embora os anciãos possam ter opinião diferente.”
“Droga, temos uma opinião diferente!” A voz familiar de Buhnd cresceu.
Apenas um momento depois, seu rosto barbudo apareceu na minha visão. “Você lutou como uma criança birrenta. Eu sei que você sabia que havia cerca de doze maneiras diferentes de você sair dessa situação sem tentar encará-la de frente.”
“Sim, eu sabia.” Eu disse entre os dentes. “Mas eu queria ver se eu poderia dominar a combinação de feitiços deles. Se eu não posso nem fazer isso, como deveria derrotar todos os Retentores e Foices restantes?”
Buhnd abriu a boca como se estivesse prestes a dizer algo, mas permaneceu em silêncio. Foi Camus quem falou.
“Você está sentindo a pressão, não está?” ele disse suavemente.
Eu não respondi. Não pude.
Para eles, posso ser simplesmente um jovem prodígio, mas tinha as lembranças e o intelecto de um rei. Para mim, admitir a observação de Camus significava que mesmo apesar da minha vantagem, eu era fraco.
“Uma guerra não é travada sozinho.” Continuou Camus, deixando escapar um suspiro. “Embora possuir o título e a responsabilidade de uma lança possa fazer parecer de outra forma.”
Hester falou, sua voz castigadora vindo de um pouco mais longe. “Você não é uma figura importante o suficiente para todo esse continente confiar apenas em você.”
“Você está certa.” Eu ri.
Kathyln colocou um dedo no pano que havia colocado na minha testa, esfriando-o com magia. “Assim como o povo de Dicathen depende das lanças, você também precisa confiar que seus soldados compensarão o que você não pode fazer.”
Abaixei o pano, deixando sua frieza penetrar nos meus olhos. E por um minuto eu não disse e não fiz nada, me recompondo.
“Eu sinto que estou em terapia.” Eu ri, levantando-me rapidamente. Ao meu redor não estavam apenas Kathyln e os mais velhos, mas também Emily e Alanis. As duas permaneceram caladas, mas tinham traços de preocupação no rosto. “Obrigado a todos por me ajudarem com meu treinamento e por me manter sob controle.”
O rosto severo de Hester suaviza enquanto ela assentia. “Acho que podemos pular as discussões de hoje, pois tenho certeza de que o jovem general sabe exatamente o que ele fez errado.”
“Descanse um pouco! Estou me coçando para ir a loucura amanhã!” Buhnd concordou enquanto socava a palma da mão aberta.
“Vou garantir que o artefato da vida volte ao seu estado normal amanhã! Mesmo que eu tenha que ficar acordada a noite toda!” Emily assegurou.
Eu assenti. “Vejo todo mundo amanhã então.”
Perdido em meus próprios pensamentos, eu nem percebi que estava andando até chegar à minha porta.
Cansado demais para me lavar, afundei na cama, meus olhos procurando por Sylvie até lembrar que ela estava se isolando em outro quarto.
Está tudo bem, Sylv? Eu estendi a mão.
Meu vínculo não respondeu, mas o leve traço de seu calmo estado de espírito foi suficiente para uma resposta.
Deitado de costas, estendi minha mão em direção ao teto. Essa mão—esse corpo com o qual eu havia me acostumado pelos vinte anos que eu tinha vivido como Arthur, me senti tão pequeno quando pensei no meu tempo como Grey.
Meus pensamentos voltaram à minha vida anterior e às várias vezes em que lutei no Paragon Duel, uma batalha individual entre dois Reis de seus respectivos países. Enquanto os duelos de Paragon careciam da atrocidade e do sangue das guerras normais, o peso dessas batalhas era muito mais pesado.
Soltando um suspiro, lembrei a mim mesmo: “Esta guerra não é travada sozinha, Arthur.”