Arthur Leywin
“Onde está seu animal de estimação alacryano?” perguntou Gideon, olhando ao redor com cautela como se Lyra pudesse pular das sombras de qualquer direção. Seu rosto estava manchado de fuligem, e não pude deixar de notar a, de novo, falta das sobrancelhas e parte do cabelo chamuscado. “Não que eu queira que ela veja isso, mas onde você pode trancar uma Retentora e esperar que ela fique?”
Ao lado dele, Emily me deu um pequeno aceno. Ela estava com o rosto pálido e tinha bolsas escuras sob os olhos, porém o fato de estar de pé falava do retorno de sua força. Fazia apenas alguns dias desde o teste de concessão, e eu tinha certeza de que ela levaria mais uns dias para se recuperar sem a regalia de Ellie.
“Eu tinha um dos cofres do Instituto Earthborn pronto para ser uma cela,” falei, parando diante dos dois inventores. “Regis e Mica estão vendo ela enquanto ela treina a minha irmã com o uso da regalia.”
Ele bufou ao se virar e começou a se afastar rapidamente.
Estávamos no andar mais baixo de Vildorial, cercados por moradias de pedra recém-construídas, a destruição do ataque das Foices já uma memória distante — ao menos no sentido físico. Ainda podia ver a ameaça de ataque nos olhares furtivos dos anões e elfos que se movimentavam, na maneira como evitavam pequenas conversas e nunca deixavam as mãos muito longe das armas.
Foi com sentimentos mistos que via um pouco dessa tensão derreter sempre que me viam, a minha presença reforçando a coragem deles.
“Você deveria deixar todas as três Lanças com ela, no mínimo.” Ele continuou depois de um momento enquanto nos levava para um túnel estreito conectado a alguns antigos poços de mineração.
“As Lanças não são minhas para ordenar,” apontei. Um pequeno menino anão acenou com um enorme sorriso no rosto redondo, e levantei a mão em resposta. “Bairon fica ao lado de Virion quase o tempo todo, e Virion tem estado ocupado cuidando da sua multidão. Com Dicathen voltando ao nosso controle, ele conseguiu alcançar mais elfos espalhados pelo continente.”
“Eles estão tentando descobrir quantos restam…” disse Emily suavemente, a voz rouca de emoção.
O mesmo desespero que se agarrava às palavras dela arranhou a parte de trás da minha garganta, e tive que tossir para soltá-lo. “Brigas eclodiram em Kalberk, e Varay foi ajudar. Pelo visto, alguns dos soldados que fugiram de Blackbend chegaram lá e os avisaram do que estava acontecendo. Em vez de se render, os altos-sangues encarregados da cidade a bloquearam.”
“Mais uma razão para seguir em frente com meu outro projeto,” insistiu Gideon, andando rápido, apesar da fraca iluminação. “Esta guerra ainda não acabou.”
Não, não acabou, pensei, considerando o que viria a seguir.
Eu estava tentando me colocar no lugar de Agrona, usando tudo o que sabia a respeito dele para avaliar o seu próximo passo. Se Kezess cumpriu a parte do nosso acordo, então era minha esperança que tivéssemos visto a última batalha em grande escala em solo dicatheano, e era possível, talvez esperançoso demais, que o vritra descartasse o continente e voltasse o foco para Epheotus.
Um elemento em particular tornou esse curso improvável, entretanto: eu.
Ainda não entendia como ele havia chegado ao seu conhecimento da reencarnação ou como ele pudera procurar o Legado por mundos e as duas âncoras necessárias para manifestar o seu potencial pleno neste mundo — eu e Nico. Todavia, não importava como ele tivesse feito essas descobertas, a implementação delas não seguiu o planejado dele. Reencarnei no continente errado, no corpo errado, e ele foi forçado a procurar fora de seu próprio domínio por um receptáculo. Em vez de ser uma âncora sob o controle total dele, me tornei seu inimigo.
Através das ações da própria filha, me foi dado o único poder neste mundo capaz de enfrentar Agrona e Kezess.
Eu não tinha nenhuma ilusão de que qualquer um deles deixaria isso passar batido. Kezess estava disposto a trocar favores por conhecimento em uma aliança tênue, mas Agrona…
Sabia que o senhor do clã Vritra não deixaria de querer o que eu possuía. A ideia de fazer uma barganha semelhante com ele — uma troca de conhecimento etéreo por seu voto de deixar Dicathen em paz — passou pela minha cabeça, contudo, após muita consideração, também sabia que não havia voto digno de confiança que ele pudesse fazer. Mesmo que decidisse correr o risco, não poderia entregar toda a população de Alacrya só porque Dicathen foi salva.
Independentemente das intenções dele em relação a Dicathen, ele viria atrás de mim outra vez hora ou outra. Não podia ficar sentado esperando que isso acontecesse.
Esses e muitos outros pensamentos ocuparam a minha mente enquanto andávamos nos antigos túneis de mineração.
Os túneis ficaram quentes e abafados, a rocha ao nosso redor irradiando calor e o ar denso com um cheiro sulfúrico de queimado. Passamos por vários veios exauridos de sal-de-fogo, os próprios poços abandonados por um solo mais fértil, até que nosso túnel se abriu em uma caverna muito maior. Andaimes haviam sido construídos nas paredes e grades penduradas no teto acima. Veios finos de sais-de-fogo ainda eram visíveis em alguns lugares, porém o baixo brilho era ofuscado por uma série de artefatos de iluminação brilhantes em uma grade no chão.
Fiquei surpreso ao ver cinco homens e uma mulher — quatro anões, um elfo e uma humana — já esperando por nós. Estavam sentados em torno de uma mesa de trabalho desgastada e conversando, mas se levantaram em grupo ao verem nós nos aproximando.
“Mestre Gideon, senhor.” disse um dos anões. Ele tinha um crespo cabelo escuro e uma barba até a cintura.
“Crohlb, presumo que você tenha trazido o pacote aqui sem problemas.” Gideon se aproximou de uma pilha de caixas de metal do outro lado da mesa.
“Claro,” respondeu o anão, sorrindo. “Fico feliz em enfim ver esses artefatos sendo usados.”
O inventor agarrou a primeira caixa, disparou, falhou de imediato em mexê-la mais de uns centímetros e se virou para dois dos outros anões. “Vocês, arrastem isso para cá e abram para mim.”
Observei com curiosidade os dois anões juntos erguendo a caixa superior para uma bancada separada para, em seguida, tirar a tampa. Um brilho de névoa de calor apareceu por um momento sobre a caixa aberta, acompanhada pelo mesmo tipo de brilho laranja escuro que iluminava os recessos mais sombrios do teto da caverna.
Gideon pôs um par de luvas de couro pesadas, como as usadas em forjas, e enfiou a mão na caixa. Metal raspou contra metal, e então ele pegou um de seus artefatos, uma espada com uma lâmina reta de dois gumes. Veias laranjas e escuras onduladas rodopiavam e espiralavam pelo aço cinza opaco. Quando me inclinei para mais perto a fim de ver melhor, pude sentir o calor saindo da arma. A guarda era um pouco grande demais, quase desajeitada, com um punho bastardo que poderia ser empunhado com conforto usando uma ou duas mãos.
Ativei o Realmheart, e a caverna se transformou em um motim de cores quando as partículas de mana se tornaram visíveis. Partículas de atributo de fogo agarravam-se à lâmina, dançando para cima e para baixo ao longo das linhas laranjas brilhantes. Uma forte fonte de mana irradiava do punho também.
Ele estendeu a espada para mim, o punho primeiro. O couro escuro estava caloroso ao toque, porém não quente. Com cautela, corri um dedo ao longo do plano da espada, mas recuei quando o calor escaldante do aço infundido com sal-de-fogo queimou a minha carne.
Ele bufou. “Acho que vou ter que adicionar uma etiqueta de aviso ao cabo dizendo: ‘aí, imbecil, não toque no aço quente brilhante.”
Ri, dando um passo para trás e balançando a lâmina, experimentando. Não era o melhor artesanato que vi, ainda mais falando de equilíbrio, mas como eram apenas os protótipos dele, esperava que os designs fossem refinados à medida que mais armas fossem criadas.
“Infundir o aço funcionou como discutimos?” questionei, fazendo um arco vertical com a lâmina que deixou um rastro de calor no rastro.
Emily respondeu durante bocejo meio abafado. “O método do cadinho foi genial. Sufocar os sais-de-fogo no ferro derretido nos permitiu obter o próprio mineral quente o suficiente para liquidar, e aumentar o teor de carbono do aço infundindo-o com ferro de alto carbono permitiu que os sais-de-fogo se ligassem ao aço, resolvendo dois problemas ao mesmo tempo.”
“Sim, sim, a prodígio fez isso de novo.” resmungou Gideon, embora pudesse dizer que ele não estava mesmo infeliz.
No centro da bancada estava um gerador de escudo muito menor, como o que usamos durante o teste de concessão. Gideon o ativou com um pulso de mana antes de recuar e olhar para mim com expectativa. “Vá em frente, toque a lâmina no escudo. Mas suave,” Ele acrescentou. “Não precisamos de força esquisita de Lança agora, só quero que você veja.”
Revirando os olhos, abaixei a lâmina em direção ao pequeno escudo de bolhas. Quando a borda entrou em contato com a barreira transparente, ela sibilou e estalou, soltando faíscas. Levantei um pouco, quebrando o contato, e o barulho diminuiu, apesar da fina fumaça se levantando da espada.
Sem esperar por mais instruções, a empurrei para baixo mais uma vez, com mais força agora. A mana inerente à estrutura da lâmina colidiu com a mana formando o escudo. Durou um segundo, dois, então…
Com um zumbido estridente, o artefato do escudo perdeu energia e o próprio escudo estourou.
“Este é apenas um gerador de baixa potência, mas você vê?” disse Gideon, os olhos brilhantes. “Os sais-de-fogo, mesmo nesta forma, continuam a atrair mana de fogo, criando uma força forte o suficiente para combater, e com força suficiente, até mesmo romper, os escudos de um mago.”
Levantei a arma para examiná-la mais de perto. Havia uma espécie de gatilho embutido perto da guarda desajeitada. “O que isso faz?”
Ele sorriu feito um maníaco. “Uma arma quente o suficiente para queimar carne e capaz de combater os escudos inimigos sem estar com mana era um bom ponto de partida, mas um não mago, mesmo um guerreiro talentoso, ainda estaria em desvantagem contra um aumentador. O mago pode fortalecer o corpo, aumentando sua velocidade e tempos de reação. Essa característica pode não contrariar todos os desequilíbrios evidentes entre um aumentador e um soldado não mago, mas com certeza aumenta a experiência.”
“Tenho certeza de que o mestre Gideon só queria encaixar a sua ideia original de canhão na arma de alguma forma.” contou Emily baixinho.
Ele fez uma careta e expulsou Emily e os seis não magos de volta. “Vá em frente, ative, mas só por um momento. Tem o efeito mais forte se for feito enquanto balança a arma.”
Voltando para colocar ainda mais espaço entre mim e os outros, peguei mais alguns balanços de prática com a espada, me acostumando com seu peso e equilíbrio. Então, quando fiz um corte lateral acentuado da esquerda para a direita, apertei o gatilho rígido.
Mana correu do aperto para a lâmina, e a espada explodiu em chamas. Ao mesmo tempo, se lançou para frente. Absorvi o impulso inesperado girando a espada, soltando o gatilho no ato e a trazendo de volta para que conseguisse examinar os efeitos.
As veias laranja estavam brilhando com mais intensidade, por mais que o excesso de mana estivesse sendo queimado com muita velocidade. Talvez vinte por cento da mana armazenada no cabo tenha sido gasto naquela única explosão.
“Em?” Animado, mudou o peso de um pé para o outro. “Quando acionado durante um movimento vigoroso, o influxo repentino de mana nos sais-de-fogo causa um efeito de combustão violento, que pode aumentar a velocidade e a força de um ataque, além de criar uma explosão ardente.”
“É um pouco pesado no momento,” acrescentou Emily, “Mas com o treinamento certo, um soldado não mago deve ser capaz de cronometrar e acertar ataques bastante devastadores.”
As palavras dela chamaram a minha atenção para os seis não magos observando em silêncio de uma distância segura. Olhei em volta da grande, vazia e fechada mina. “O que estamos fazendo aqui?”
Gideon bateu palmas. “Estou cansado de testes de laboratório, por isso. É hora de ver esses bebês em ação. Vocês, tudo bem, testem os bonecos, peguem o seu equipamento e se preparem… E certifiquem-se de se alongar! A última coisa que preciso é meu teste afundado porque alguém distendeu um músculo.”
Eu estava olhando para ele, entretanto ele aparentava estar me ignorando de propósito. Emily veio para o meu lado, pegando a espada com a mão enluvada. “Desculpe, ele insistiu. Você não precisa, mas você é mesmo a melhor escolha. Se algo der errado, você pode simplesmente se curar, afinal… Não que eu espere que alguma dessas pessoas sequer acerte em você.” Sorriu, se virando. “Mas se você deixá-los acertar algumas vezes, ajudaria nos testes.”
“Acho que você precisa passar algum tempo longe de Gideon, Emi,” resmunguei, estalando o pescoço e balançando os ombros. “Você está começando a falar como ele.”
Os seis não magos já estavam treinando com as armas, tanto para testá-las para Gideon quanto para se preparar para um exercício de combate real. Crohlb e os outros anões se envolveram primeiro, contudo Gideon se esforçou para encontrar um voluntário humano e elfo com experiência de combate anterior, a fim de garantir que o calor e a força da lâmina não fossem muito para alguém com uma estrutura esquelética mais leve e uma pele menos geneticamente resistente.
Não demorou muito para que se preparassem, blindados com couros pesados projetados para protegê-los — não de mim, mas da arma que cada um deles empunhava. Havia duas espadas, cada uma com um design um pouco diferente, três machados de batalha e uma longa glaive. Como o inventor explicou, queriam ver como o aço infundido com sal-de-fogo reagia quando forjado em diferentes formas, bem como variar o tamanho das hastes de mana-cristal inseridas no cabo de cada arma.
Parado no centro da grande caverna, cercado pelos guerreiros envoltos em couro, brandi uma haste de metal simples de alguns dos materiais abandonados — uma “arma” muito mais segura para o experimento do que a minha lâmina etérea conjurada.
“Não peguem leve com ele, pessoal. Lembre-se, ele é praticamente imortal, então aguenta! Agora, vão em frente!”Os olhos dele brilhavam famintos de onde ele e Emily haviam se barricado atrás de um gerador de escudo muito mais forte. Ao seu lado, ela estava escondida em silêncio sobre um caderno e uma pena, pronta para tomar nota de tudo.
Troquei um arco respeitoso com meus oponentes, depois voltei a uma postura defensiva solta.
O elfo foi primeiro, a glaive cortando para baixo e explodindo em chamas no momento em que Gideon deu o comando. Todavia, a força da explosão foi poderosa demais para o ágil elfo, ainda mais porque ele não conseguia fortalecer o corpo com mana, e a glaive foi para o lado, batendo no chão na frente de Crohlb, que havia pulado para frente para cortar com o machado as minhas pernas.
O anão tropeçou no cabo da arma do elfo e se esparramou.
Me afastei da confusão, levantando o meu pedaço de ferro para desviar um balanço de um anão de espada. Me certifiquei de controlar os movimentos, trabalhando para me igualar à velocidade e força dos oponentes, caso contrário, estaria arriscando quebrar ossos ou deslocar membros com bloqueios e contra-ataques.
A espada de sal-de-fogo beliscou a haste de ferro, depois explodiu em uma combustão que chamuscou meu rosto. A espada desceu, cortando minha arma em dois pedaços e encarando o éter que cobria a mim.
Com uma barra de ferro curta em cada mão, bati a espada de lado e pisei em um machado cortante, deixando-o se recuperar do meu ombro desarmado sem tentar bloqueá-lo. Em vez disso, joguei o antebraço no peito do portador, não o suficiente para feri-lo, mas mais do que o suficiente para mandá-lo de costas.
A mulher humana pulou sobre o anão caído e trouxe a sua lâmina para baixo com as duas mãos. Cruzei as barras curtas sobre mim para pegar a lâmina entre elas, entretanto ela acionou a explosão, criando uma boom de fogo e um impulso que forçou o aço quente e abrasador através do restante da minha haste de ferro.
Dando um único passo para trás, deixei o ponto brilhante da lâmina atravessar minha frente. Para minha surpresa, queimou a pele fina de éter que sempre me tinha e marcou uma linha na frente da minha camisa e na minha carne antes de bater no chão aos meus pés.
Os olhos da mulher se arregalaram e ela começou a murmurar o que tenho certeza que era para ser um pedido de desculpas, porém as palavras nunca se manifestaram. Agarrada com firmeza em ambas as mãos, o gatilho ainda estava comprimido e a mana se acumulou na lâmina até vibrar. Antes que eu pudesse avisá-la para soltá-la, a espada explodiu.
Uma tempestade de chamas e estilhaços de aço nos envolveu.
Saltando para a frente, enrolei meus braços em torno dela enquanto ela balançava para trás, a levantando contra mim. Os caminhos de éter revelados pelo God Step estavam zumbindo para mim antes mesmo de pensar em olhar, e pisei neles..
Nós reaparecemos em um flash de relâmpago roxo, as chamas branco-laranja da explosão ainda em erupção atrás de nós. Fragmentos de aço quente pingavam nas pedras por toda a câmara, tão quentes e rápidos que se enterraram nas paredes, no chão e no teto.
Os outros mergulharam longe da explosão, se cobrindo o melhor que puderam e sendo protegidos do calor pelo couro; a armadura não foi pouco eficaz contra os estilhaços afiados, contudo.
A mulher em pânico ofegante lutando para arrancar o capacete de proteção forçou a minha atenção de volta para ela. Ela estava agarrando o capacete com uma mão enquanto a outra tremia no colo. A ajudei a jogá-lo fora. O rosto dela estava vermelho de esforço e calor da armadura, mas ela começou a empalidecer ao olhar para mim, horrorizada.
Olhando para baixo, percebi que meu torso estava salpicado de pequenas feridas. A linha que ela fez no meu peito com a ponta da lâmina e as muitas perfurações menores se curaram, em alguns casos empurrando pequenos fragmentos da espada, que tilintou no chão aos meus pés.
“Depois de todo o nosso treinamento, ugh,” resmungou Gideon, saindo de trás do escudo. “Regra número dois, não segure o gatilho!”
“A-alguém se feriu?” Emily perguntou fracamente, olhando para uma cratera na pedra onde a espada da mulher estava.
Olhei ao redor do espaço, todavia ninguém parecia tão ferido. O único com uma quantidade significativa de estilhaços era eu, de modo que até a mulher só tinha cortes superficiais e arranhões, embora desse para dizer pelos buracos queimados na armadura dela que também houve alguns problemas maiores.
Deu errado tão rápido, pensei amargamente, ouvindo os outros combatentes gritando um para o outro para ter certeza de que estavam bem. Se eu tivesse pensado mais rápido, poderia ter forçado a mana a implodir em vez de explodir ou até estabilizado a própria lâmina para evitar o acidente.
Este era um problema que eu estava meio ciente no fundo da mente, entretanto foi destacado por este incidente. À medida que ganhei mais habilidades como o Realmheart, se tornou mais difícil de utilizar com força total cada uma em combate. Apesar de poder me teleportar com o God Step, meus tempos de reação e mesmo a minha percepção ainda eram limitados por meu próprio treino e atributos físicos.
Um assobio de dor me atraiu de volta para a humana, tremendo tentando tirar as luvas pesadas. Gentilmente, segurei os seus dedos e afastei as luvas dela. Por baixo, a mão já estava ficando roxa.
“Quebrada, mas não irreparável. Temos emissores em Vildorial que podem curar isso sem dor.”
“Emily!” Se aproximando, Gideon gritou. Ele mordeu o lábio inferior enquanto olhava para a ferida e esperava a apressada Emily, cuja mão segurava o caderno e caneta e a outra ajeitava os óculos. “Pode levar Shandrae para um curandeiro? Suponho que eu deveria ter um emissor em espera, apenas por precaução, mas eu não esperava que um de vocês esquecesse das regras na hora e…” Ele parou quando Emily, Shandrae e eu lhe demos olhares significativos. “Bah, me dê esse caderno. O resto de vocês, de volta aos seus lugares. Vamos de novo.”
Emily passou o braço em volta de Shandrae e a ajudou a se levantar. O rosto da mulher enfim se acomodou, e ela não conseguia tirar os olhos da sua mão e pulso quebrados.
“E pelo amor da própria vida, não segurem o maldito gatilho,” estalou ele, observando as duas tropeçando.
***
O experimento com as armas de sal-de-fogo durou apenas uma hora a mais, período durante o qual não houve mais acidentes. Depois de terminar de dar o meu feedback a Gideon e me despedir do resto, corri de volta à cidade para verificar a minha irmã.
Deixá-la com um retentor inimigo, mesmo do outro lado de uma cela repressora de mana vigiada por uma Lança e meu próprio companheiro, tinha sido desconfortável. Quando voltei, no entanto, escutei o som de Ellie gritando de tanto rir, o barulho dela enchendo os corredores do Instituto Earthborn.
Quando virei a esquina que trazia a cela de Lyra à vista, encontrei Ellie sentada de pernas cruzadas em um tapete em frente à cela, enrolada em uma alegria ofegante, enquanto Regis saltava em suas duas pernas traseiras, agitando como se estivesse com uma dor terrível. Mica estava ofegante, um punho cerrado batendo na parede, e ela, também, parecia dominada por completo pelo humor.
“Não, Regis, é o único jeito. Só tenho que ferver em lava, não posso fazer isso sem…” disse ele em um barítono cômico, antes de me avistar, parar e, devagar, voltar às quatro patas. “Oh, olá, chefe…”
Os olhos de Ellie se abriram, ela apontou para mim e riu tanto que saiu ranho do nariz dela. Mica deu um bufo selvagem, e então as duas apenas riram mais e mais.
Uma vez que eu estava perto o suficiente para encontrar o olho de Lyra através das barras, assumi uma carranca séria. “Você está mexendo com o cérebro delas ou coisa assim com seus feitiços de atributo de som?”
Lyra, que estava encostada na parede interna com os braços cruzados, deu de ombros. “Não, a sua convocação provou ampla distração sem que eu fizesse nada. Fiquei feliz explorando as profundezas da nova regalia da sua irmã, mas não vou fingir que não gostei das histórias dele sobre o seu tempo nas Relictombs. Você realmente viu e fez algumas coisas estranhas, regente Leywin.”
Mica estava lutando para se endireitar e suprimir o ataque de risadas. Sua mandíbula estava apertada, contudo ambos os lábios e um músculo na bochecha estavam se contraindo com constância. Ela me lançou uma saudação preguiçosa e disse: “bem-vindo de volta, general masoquista. A alacryana tem sido surpreendentemente bem comportada.”
“Obrigado, Mica,” falei com um suspiro profundo. Para Ellie, perguntei: “você conseguiu algo?”
Limpando as lágrimas dos olhos, ela sorriu para mim. “Estou descobrindo coisas, eu acho. É difícil… não difícil, mas estranho. Como… reaprender a usar magia desde o início. Mas tem todo esse poder lá, pronto para responder. Lyra acha que vou precisar me adaptar à regalia.”
Lyra se moveu para a frente da cela, parada pelas barras . “Não tenho certeza se ‘regalia’ é mesmo o termo correto.
Essa sua capacidade de impactar a concessão é…” Ela parou com um aceno de cabeça, os lábios se curvando em ironia. “O Alto-Soberano tiraria os próprios chifres para poder fazer o que você pode, tenho certeza disso. A runa que ela recebeu é poderosa, mais do que até as dos outros Retentores ou das próprias Foices. Para ser honesta, é demais para ela.
“O objetivo de dominar uma runa inferior antes de ganhar um brasão, emblema ou regalia é construir a força e o talento mágico de um mago. A maioria dos magos nunca recebe um emblema, muito menos uma regalia. Sua irmã, bem, eu não tenho certeza se poderá fazer uso desta regalia do modo correto. Isso exigirá um fortalecimento e clareação significativos do núcleo dela para o controle total.
“Além disso, como tentei deixar claro para ela, também é bastante perigoso. Se ela se exaltar demais, a runa pode esvaziar seu núcleo e prejudicá-la bastante.”
Não respondi de imediato; em vez disso, gastei um tempo para digerir as palavras olhando para minha irmã. Seu cabelo castanho-acinzentado — da mesma cor que o de nosso pai, me lembrei — estava um pouco desgrenhado. Enquanto a Retentora falava, a expressão alegre saiu devagar do rosto de Ellie, agora uma carranca pequena, todavia determinada, fazendo-a parecer mais com nossa mãe.
Não pude deixar de ficar incerto, tanto sobre Ellie quanto as concessões no geral. Ser capaz de esclarecer na hora o núcleo de um mago — qualquer mago em potencial — e conceder a eles o acesso a um feitiço poderoso pode mudar a forma como Dicathen via a magia. Poderíamos produzir magos de elite em um ritmo inédito. Mas, para obter os melhores resultados do processo, eu precisava passar uma quantidade significativa de tempo com cada mago.
E eu sou apenas uma pessoa, racionalizei, sabendo que isso limitou de maneira drástica a utilidade geral da ferramenta, ao menos agora. Além disso, passei tempo suficiente em Alacrya para ver como a presença dessas “formas mágicas” poderia ultrapassar por completo a nossa cultura de magia. Havia benefícios, com certeza, porém os perigos potenciais eram tão variados e generalizados que era difícil ver tudo.
Uma culpa profunda também já estava se infiltrando em mim por permitir que Ellie se envolvesse. Dei a ela esse poder, sabendo que poderia ser perigoso, mas ter uma confirmação tão clara de que ela poderia se machucar com facilidade me lembrou que eu era responsável por qualquer coisa que pudesse acontecer com ela.
Olhei profundamente nos olhos castanhos dela. Além da leve feição, foram os olhos que revelaram a profundidade da maturidade dela — uma profundidade grande demais para a sua idade.
Estava ciente de que, durante minha ausência, ela havia defendido nossa mãe e Dicathen em um nível que gostaria que ela não precisasse. No entanto, ainda pensava nela como uma criança. Por causa disso, não tinha me permitido confiar nela, em especial não com esse poder recém-descoberto. Ela foi imprudente, verdadeira e provou ser irresponsável em mais de uma ocasião; entretanto, foi perceptiva, corajosa e se sacrificou.
Ela passou por muita coisa para ainda ser considerada uma criança… mas ela ainda era muito jovem para carregar o fardo de ser adulta. Soube naquele momento que eu… nós não tínhamos escolha. Ela não se via mais como uma criança, e eu precisava parar de tratá-la como uma.
Em vez de sempre me opor aos desejos dela, a forçando a um papel com o qual eu estava confortável, precisava me afastar e permitir que ela crescesse na direção que ela achava mais gratificante e confortável.
Ela precisava de orientação ao invés de oposição.
Segurei um suspiro e forcei um sorriso no rosto, depois estendi a mão para levantá-la. Ela pegou, pulando com energia.
“Vamos, El. Caminhe comigo um pouco.”