Capítulo 34

Pétalas Caindo (2)

— Kato!

Sina entrou na tenda de Kato. Kato e os cavaleiros da Ordem da Rosa Azul estavam fazendo as malas. Já tinham sido informados pelo escoteiro. Kato tinha se recuperado o suficiente para sair do seu leito e se movimentar, mas a sua aparência ainda era estranha, com as ligaduras encharcadas de sangue e pus cobrindo o seu corpo.

— O que foi, Cavaleira de Elite? — respondeu Kato.

— Deu mesmo as ordens para conduzir uma operação de limpeza?! — Sina gritou, na cara de Kato.

Com os seus ferimentos graves sem tratamento e expostos ao ar úmido, a pele de Kato tinha começado a apodrecer. Pedaços de metal infundidos com a mana de Talter presos no seu corpo estavam a interromper o processo de cura e só pioravam a sua condição. Um cheiro doentio atingiu o nariz de Sina, mas o que era mais revoltante para ela do que a sua aparência era o seu estado mental.

— Cavaleira de Elite, a autoridade aqui sou eu. O seu trabalho é simplesmente cumprir as minhas ordens. Você recusou e não me restou outra alternativa senão optar pelo plano B. Deveria ser grata por não ter que sujar as mãos — rosnou Kato.

— Eu não recusei, apenas sugeri um plano mais razoável!

— E essa é a lógica de uma fracassada que perdeu para um herege.

— Você não concordou que seria mais difícil localizá-lo quando a operação de limpeza fosse realizada? Que não só demoraria mais tempo a localizá-lo como também receberia oposição desnecessária dos nativos?

— Mas o encontramos, não foi? — Kato sorriu com os seus lábios rasgados. — O coelho acaba se revelando quando colocamos fogo aqui e ali; ou sai para evitar que o fogo se espalhe ainda mais. Seja qual for a razão, ele apareceu na aldeia, na estrada principal, e ordenou aos aldeões que espalhassem a palavra sobre a sua localização atual. Está à nossa espera.

Sina ficou sem palavras. Considerando o resultado, Kato não estava errado. Era de fato uma ótima tática, se considerássemos apenas o resultado.

Kato acabou de fazer as malas e saiu da tenda, e Sina o seguiu rapidamente.

— E então? Isso justifica os seus atos? E todas aquelas pessoas que foram assassinadas em Tantil? Cometer outra chacina para apanhar o chacinador é hipocrisia — argumentou Sina.

— Você ainda é muito jovem e lhe falta fé. Não quero continuar a discutir sobre isto. Além disso, dois comandantes discutindo à frente dos cavaleiros não é um bom exemplo para eles.

Enquanto Kato dizia, todos os cavaleiros à sua volta olhavam para eles ansiosos. Sina estava discutindo com um Inquisidor – alguém que tinha autoridade para escolher e rotular qualquer pessoa de herege e interrogá-la sem consequências. Também não haveria exceções para Sina, mesmo que ela fosse uma Cavaleira de Elite e uma Capitã de Unidade de Perseguição. Sina notou que estava à beira de um precipício.

— Pare de ser tão sentimental, Cavaleira de Elite — disse Kato, levantando as mãos na frente de Sina. — Você acha que estou sendo controlado pelas minhas emoções, mas estou sendo mais racional do que nunca. Não consigo nem dormir com a dor do meu corpo apodrecendo vivo – as feridas que aquele maldito me deu continuam a me lembrar… — Kato segurou os ombros de Sina com os olhos ardendo de loucura — …que seriam os civis de todo o império a arcar com as dolorosas consequências se aquele desgraçado não for eliminado.

‘Besteira!’

Sina sentiu vontade de cuspir em seu rosto e insultá-lo, mas tudo o que pôde fazer foi reprimir sua raiva.

Kato soltou os ombros de Sina e, calmamente, deu as costas para ela ao notar que seus olhos estavam cheios de raiva.

— Acho que não tenho escolha. Você pode voltar para Tantil se não quiser se alistar e esperar por sua disposição sem o uniforme. Você tinha valor porque foi a única que viu aquele desgraçado, mas agora eu também o vi. Nos juntaremos à Ordem do Corvo Branco para capturar o inimigo.

— E se… — Sina perguntou: — E se você não conseguir capturar Juan? O que vai fazer se ele conseguir fugir de novo?

Kato ficou em silêncio por um tempo e depois respondeu a Sina. — Então começarei um incêndio ainda maior, grande o suficiente para que ele não possa escapar.

Essa foi a gota d’água. Não demorou muito para que Sina puxasse sua espada e apunhalasse Kato pelas costas. A espada de Sina perfurou o peito de Kato antes mesmo que ele tivesse a chance de olhar para trás.

— Argh…! — Os olhos de Kato se arregalaram.

Sina arrancou sua espada do corpo dele e o jogou no chão. O sangue de Kato se espalhou pelo corpo de Sina. Como uma cavaleira habilidosa, Sina não cometeu nenhum erro ao apunhalar a área mais vulnerável do corpo; com seu coração perfurado em um único golpe, o corpo de Kato tremeu um pouco, mas logo parou de se mover.

Sina olhou para o corpo de Kato enquanto respirava pesadamente. Era a primeira vez que ela apunhalava alguém pelas costas, especialmente alguém da Igreja.

Sina levantou lentamente a cabeça para olhar ao seu redor.

Os cavaleiros estavam em choque. Um deles até deixou cair sua bagagem no chão. Estava tão silencioso que até o som da bagagem batendo no chão ecoou alto.

Enquanto isso, Sina estava se perguntando se agora seria a hora de ser presa e mandada de volta para Tantil.

Naquele momento, Haselle deu um passo à frente dos cavaleiros.

— O inquisidor Kato lutou heroicamente contra o herege, mas acabou morrendo nesta área remota devido à piora de seus ferimentos — disse Haselle com dignidade. Haselle não se incomodou em olhar na direção de Sina, pois ela estava de pé na frente dele enquanto ainda segurava uma espada pingando o sangue de Kato. — Sua morte será lembrada para sempre pela Igreja e pela Ordem da Rosa Azul.

Todos ficaram em silêncio diante da declaração de Haselle.

— O que vocês estão fazendo parados? Mexam-se! É hora de vingar a morte do Inquisidor! — Haselle gritou com uma expressão distorcida em seu rosto.

Os cavaleiros confusos começaram a se mover com as palavras de Haselle. Sina não conseguia acreditar em seus olhos ao ver os cavaleiros correndo – ela nunca tinha visto Haselle gritar com os cavaleiros dessa forma antes. Um cavaleiro que passava por Sina fez uma reverência e a saudou; ninguém estava prestando atenção ao corpo de Kato caído no chão e coberto de lama.

Aliviada com o fato de todos concordarem tacitamente com sua decisão de matar Kato, as pernas de Sina vacilaram. Ossrey se aproximou de Sina para apoiá-la.

— Obrigada, Ossrey.

— Você faz com que todos nós pareçamos covardes, Sina — Haselle disse a Sina com uma careta.

Sina fez uma reverência a Haselle e respondeu: — Tenho uma dívida com você, capitão Haselle.

— Não. Todos aqui têm uma dívida com você. Era o que todos nós queríamos fazer, mas estávamos com muito medo. Ser um capitão pode ser um trabalho árduo.

— Essa não era minha intenção…

— Estou apenas dizendo. Vou levar este acontecimento para o meu túmulo, para garantir uma aposentadoria segura para mim. Sei o que vocês costumam pensar de mim, mas agora devem entender como é difícil ser honesto o tempo todo.

O rosto de Sina ficou um pouco vermelho, pois ela se sentiu envergonhada.

— Uma coisa de que tenho certeza é que vou me aposentar depois desta missão. Na verdade, acho que o próximo capitão a liderar a Ordem da Rosa Azul já foi decidido.

— Mas, capitão, não estou pronta para… — murmurou Sina.

— Eu nunca disse que era você. De qualquer forma, não posso ter certeza até que cuidem desse cadáver. Vamos limpar essa bagunça antes que ela nos cause algum problema.

— Sim, senhor.

Sina e Ossrey jogaram o corpo de Kato no penhasco. As bandagens de Kato se soltaram quando seu corpo foi danificado ao rolar pelo penhasco, mas ninguém seria capaz de reconhecê-lo, pois seu rosto já estava inchado e com cicatrizes devido aos ferimentos graves.

— Bem, Capitã da Unidade de Perseguição. Conclua sua missão. Você tem a autoridade para nos liderar agora, já que o Inquisidor está morto — disse Haselle.

— Eu… — Sina olhou para o norte, onde a estrada principal cruzava as Montanhas Laus. — Eu irei atrás de Juan.

Haselle ficou bastante surpreso. — Pensei que você fosse se retirar.

— O único objetivo que tenho agora é ir atrás dele, e agora, até sei onde ele está. Além disso, haverá ainda mais pessoas como Kato quando eu me aproximar da capital. Estou preocupado com o que aconteceria se Juan os encontrasse.

— Tudo bem, vá em frente. Espero que tenha feito o julgamento correto. Vou pedir ajuda à Ordem do Corvo Branco, pois eles já foram informados dessa missão. Aquele desgraçado não vai resistir às forças combinadas de ambas as Ordens.

Sina assentiu.

Logo depois, a Ordem da Rosa Azul terminou de se preparar e partiu em seus cavalos. Enquanto Sina avançava em meio à chuva, ela pensou em Juan.

‘Você não deixou os fazendeiros para morrerem.’

Um garoto jovem e magro que ansiava por mais sangue depois de massacrar os soldados em um piscar de olhos.

‘Em vez disso, você se revelou e anunciou sua localização. Por quê?’

O garoto que a ridicularizou em uma batalha de cavaleiros com espadas um contra o outro.

‘Devo pensar que você fez isso para evitar a morte de pessoas inocentes?’

O garoto que se dizia “o Imperador” enquanto estava no meio das chamas.

‘Você está me chamando?’

O garoto estava chamando por seu inimigo.

***

Prendendo a respiração, um soldado dos Exploradores da Montanha Laus estava apontando seu arco para o meio da praça da aldeia. Era difícil enxergar através da neblina da manhã, mas a silhueta do garoto podia ser vista claramente.

Naquele exato momento, seus dedos inadvertidamente soltaram a corda do arco. A flecha voou pela aldeia e atravessou a silhueta, que caiu lentamente no chão. Mas antes mesmo que ele pudesse se alegrar, algo cortou sua garganta. Ele não conseguia soltar um grito e se arrastava desesperadamente enquanto ouvia os gritos de seus companheiros.

— Ele vai matar todos nós. Todos nós!

Juan pisou no soldado que tentava se arrastar e quebrou seu pescoço. Em seguida, ele o puxou pelo chifre pela praça da aldeia e jogou seu corpo no chão.

Os cadáveres se espalharam por toda a praça do vilarejo em um padrão organizado, e o sangue fresco que escorria dos corpos coloriu a praça de vermelho como se estivessem tingindo o chão.

Juan havia aprendido que toda experiência o ajudaria no futuro, mas essa não era uma experiência que ele desejava repetir. Ele concluiu que apenas uma vez era suficiente para tal experiência.

As palavras se espalharam pelos aldeões fugitivos e chegaram aos Exploradores da Montanha Laus, antes de alcançar a Ordem da Rosa Azul e a Ordem do Corvo Branco. Parte dos batedores tentaram emboscar Juan, mas não conseguiram.

Como resultado, uma quantidade razoável de cadáveres se acumulou na praça da aldeia.

Juan esperava que mais soldados viessem, mas não parecia ser o caso. Parece que o soldado que ele acabou de matar dos batedores foi o último dos soldados que o atacaram dessa vez. Eles foram o terceiro grupo a atacar.

O arco e a flecha dos Exploradores não eram nada úteis ou práticos na chuva e na neblina, sem mencionar o fato de que Juan também era habilidoso na guerrilha.

‘A Ordem da Rosa Azul e do Corvo Branco provavelmente vão se juntar.’

Juan imaginou que eles ficariam satisfeitos em mantê-lo cercado, pois ele deixou claro que não tinha intenção de deixar a aldeia.

Ele se sentou na pilha de cadáveres no meio da praça e apreciou a sensação da chuva que encharcava seu corpo.

Já fazia algum tempo que Anya havia deixado a aldeia. As únicas pessoas que o visitavam eram os viajantes que não estavam cientes da situação atual, que depois recuavam em choque, e os soldados dos Exploradores.

O som da chuva caindo era o único som que se ouvia no vilarejo, mas até mesmo ela havia começado a diminuir depois de se enfurecer como se o céu fosse desabar.

Juan esticou sua capa cinza, a espalhando pelo chão da praça da aldeia, e começou a absorver parte da mana que ele havia dispersado no céu através da capa. Embora a energia fosse escura e úmida, a capa cinza a absorveu como algodão seco.

— Vamos logo — sussurrou Juan.

Ele esperava que seus inimigos chegassem logo. Ele queria quebrar esse silêncio e ter uma batalha de carne se rasgando e ossos se quebrando, e depois sentir o silêncio novamente após finalmente matar todos. Ele queria que seus inimigos soubessem o quanto ele os detestava e que soubessem que ele ainda estava sedento pelo sangue deles.

Juan estava esperando ansiosamente por seus inimigos.

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