Capítulo 55

As Lanças do Imperador (1)

— Juan.

Anya se aproximou de Juan com um sorriso ao encontrá-lo em uma esquina da praça da cidade, olhando para a sala de reuniões. Em frente à sala, Ardin estava na plataforma para fazer anúncios aos membros das organizações de Hiveden. Juan notou a cabeça de Yuldrick, Gino e Celpha ao lado de Ardin na plataforma.

— Cenas violentas tendem a chocar o público e chamar a atenção deles. Ele definitivamente sabe como incitar as pessoas.

— Você está falando sobre Ardin?

— Sim. Ele também tem um jeito interessante de falar. Ele está falando como o público fosse lixo, mas de alguma forma eles não se ofendem com isso.

— Aparentemente ele sabe desempenhar bem o papel dele.

O discurso de Ardin consistiu nos acontecimentos ocorridos no conselho; como três membros morreram no ataque da Ordem de Huginn e como Hiveden deveria dar as mãos à Ordem do Corvo Branco para vingar suas mortes. Parecia um discurso comum, mas seu objetivo era fazer uma lavagem cerebral no povo de Hiveden. Ardin sugeriu implicitamente que Hiveden não teve escolha senão deixar sua vingança para os “honrados Templários da Ordem do Corvo Branco que possuem deveres sublimes” já que Hiveden não tinha forças para lutar contra a Ordem de Huginn, e que mais do que nunca é importante que Hiveden esteja unida.

Era difícil encontrar alguém menos honrado do que o povo de Hiveden, os subordinados dos membros falecidos do conselho já estavam nas organizações de Ardin e Opert. O povo de Hiveden não chegava a ser fraco, mas eles não estavam muito longe de serem impotentes quando comparados à Ordem do Corvo Branco e à Ordem de Huginn.

— Resumindo, ele está sugerindo sentar e assistir a batalha entre a Ordem do Corvo Branco e a Ordem de Huginn. Ele está até dizendo que os membros mortos do conselho de governo eram pessoas inúteis que se opunham à união da cidade. É provável que as pessoas inteligentes percebam rapidamente a intenção por trás do discurso, de qualquer maneira aqueles que não o fizerem sofrerão uma grande de uma lavagem cerebral — disse Juan.

— Provavelmente, já que seus cérebros funcionam rápido quando as coisas estão relacionadas com seus próprios benefícios. Além disso, é uma escolha estável para o povo de Hiveden. Eles estavam preocupados com a possibilidade de que a Ordem de Huginn se tornasse sua inimiga, mas a Ordem de Huginn recuar depois de matar apenas três membros do conselho os surpreendeu. Se o conselho decidisse cooperar com a Ordem de Huginn, Hiveden estaria indo contra todo o império. Então eles parecem estar satisfeitos com a posição de “fraqueza”.

— Me pergunto como Ras pretende mudar essa cidade…

— Acho que ele vai recomeçar tudo aqui do zero assim que matarmos a Ordem do Corvo Branco, já que era um plano que ele vinha adiando há muito tempo. Além disso, Ardin é comerciante de escravos e há muito lixo na cidade, então faria sentido.

— Um comerciante de escravos?

— Sim.

Juan cruzou os braços e olhou para o homem fazendo um discurso. Ardin ainda não tinha percebido, mas acabara de perder um motivo para ser mantido vivo. Juan não se importava com o fato de a Ordem de Huginn ter negligenciado os mercadores de escravos, já que o próprio Juan não tinha sido muito ativo em impedir o tratamento injusto para com os semi-humanos quando era imperador. O rancor de Juan contra os mercadores de escravos era claramente pessoal.

— Não foi exagero? — Dilmond disse enquanto cruzava os braços e olhava para os membros do conselho na plataforma.

— O que foi? Se eu não os matasse, você mesmo teria quebrado as cabeças deles. Ah, ou então… você está triste porque as cabeças deles ainda estão em condições decentes? — Anya perguntou.

— Não é isso, eu só acho que não precisávamos nos envolver só para fazer Hiveden cooperar com a Ordem do Corvo Branco. É claro que obtivemos alguns benefícios, mas eles não serão de grande ajuda de qualquer maneira. Acho que não valeu a pena revelar nossa força.

— Pode ser sincero comigo, eu sei que você não ficou feliz com Sir Ras se mostrando na frente das pessoas. Existem muitas razões pelas quais fizemos o que fizemos, mas vou resumi-las em três pontos para você. Primeiro, precisávamos mostrar a eles que ganharíamos. Segundo, nossos espiões poderiam estar em risco se não usássemos a força. E terceiro, fazer com que a cidade de Hiveden pareça estar sendo ameaçada por nós, ao invés de estarem cooperando conosco. — Anya sorriu.

— Ameaçada?

— Os eventos que aconteceram na reunião do conselho vazarão com certeza. Bem, talvez não agora, já que todos estão com medo, mas um dia certamente acontecerá, já que houveram muitas testemunhas. O império definitivamente responsabilizará Hiveden quando chegar a hora, e a única desculpa de Hiveden seria dizer que eles foram ameaçados por nós. Se não nos mostrássemos e destruíssemos a Ordem do Corvo Branco, o império suspeitaria que havíamos negociado com Hiveden pelas costas.

— Hm. Faz sentido, mas será que a Igreja também pensaria assim? Você não acha que eles vão mexer com a cidade só pelo fato de Sir Ras ter se mostrado? — Dilmond perguntou enquanto balançava a cabeça.

— Eles fariam isso, se aqueles vermes da Igreja realmente forem como ouvi dizer que eram — disse Juan.

Dilmond e Anya se viraram ao ouvir a voz de Juan. Juan murmurou enquanto olhava para o povo de Hiveden sendo incitado pelo discurso.

— Mal posso esperar para que essa hora chegue.

***

Apesar de já ser quase madrugada, Kamil, a vice-capitã da Ordem do Corvo Branco, entrou na tenda de Ethan com um relatório urgente. Ela esperava ver Ethan se preparando para a batalha, mas o que ela encontrou ao entrar na tenda foi a cena de Ethan limpando o sangue do rosto como se tivesse acabado de brigar. Kamil notou um homem deitado no chão com a cabeça ao contrário.

—  Hiveden se rendeu. — Kamil passou por cima do cadáver para entregar a carta de rendição a Ethan. A carta afirmava que Hiveden aceitaria todas as exigências de Ethan.

Ethan limpou sua espada ensanguentada com a carta e jogou-a no chão.

— O que devo fazer com o corpo?

— Embrulhe-o com algo e jogue-o no vaso sanitário para enterrá-lo com merda assim que nos retirarmos.

— Sim, senhor.

Enquanto Kamil cuidava do cadáver, ela encontrou um símbolo da Igreja nas roupas dele – isso significava que o homem provavelmente era um sacerdote.

Kamil não conseguiu reconhecer o rosto dele. Ela silenciosamente removeu o símbolo da Igreja de suas roupas, o colocou dentro do bolso e continuou com a limpeza.

— A capital deve tê-lo enviado para cá.

— Sim. Ele nos disse para deixarmos Hiveden em paz e nos retirarmos. Disse que deveríamos perseguir o garoto de cabelo preto.

As palavras de Ethan revelaram que o homem era um enviado do Papa. Caso se espalhasse a notícia de que Ethan havia decapitado um enviado do Papa, sua posição estaria em risco, sem mencionar a pesada punição que enfrentaria.

— Não fiquei sabendo da chegada de um enviado. — Disse Kamil.

— Ele estava se debatendo perto da fronteira dos Pés do Imperador, aparentemente mal havia conseguido entrar. Graças a Deus, o encontramos primeiro. Se os desgraçados de Hiveden o tivessem encontrado antes, teríamos que destruir a cidade inteira de verdade.

— Sua Majestade está a nosso favor.

— Sim, uma pena para este carinha. Ah, se alguém perguntar sobre o paradeiro dele, diga que ele foi assassinado pela Ordem de Huginn.

— Sim, senhor, avisarei a todos.

Nem Kamil nem Ethan estavam preocupados com o vazamento de confidencialidade. Todos os Templários da Ordem do Corvo Branco compartilhavam um único propósito e consideravam o resto irrelevante. Desde o estabelecimento da Ordem do Corvo Branco, todos dedicavam suas vidas pela mesma causa querida; a morte de Ras Raud, a destruição da Ordem de Huginn e ser uma ordem de cavaleiros que servia fielmente apenas a Sua Majestade. Estando tão perto de alcançar seu objetivo há muito estimado, era natural que eles negligenciassem a ordem de perseguir o garoto de cabelos negros.

Ethan se lembrou do Papa, que afirmava falar em nome de Sua Majestade. Embora Ethan admirasse o Papa, ele achava estranho que o Papa compartilhasse a história com Sua Majestade. Ethan achava que o Papa não era adequado para ser a pessoa que emitiria a voz de Sua Majestade.

Aqueles que caminharam ao lado de Sua Majestade na história eram figuras lendárias como o Regente Barth Baltic, Gerald Gain, o cavaleiro que colocou os dragões de joelhos, Dismas Dilver, que matou o rei dos gigantes ocidentais, Dane Dormund, o primeiro e único Grande Mago do mundo, e assim por diante. Era estranho que a única pessoa que pudesse transmitir as palavras de Sua Majestade fosse um homem idoso cuja identidade dificilmente teve qualquer influência no momento da morte de Sua Majestade.

— Capitão? Devemos nos preparar para entrar na cidade? — Kamil sussurrou para Ethan ao vê-lo parado em silêncio.

— Me desculpe. Acabei pensando no que não devia. Parece que pensamentos intrusivos estão tomando a minha mente logo agora quando estamos prestes a completar a grande tarefa pela qual sempre ansiamos. Prepare os cavaleiros para a batalha imediatamente, a Ordem de Huginn com certeza está na cidade. Ah, e prepare-se para atacar. — Ethan ordenou enquanto balançava a cabeça.

— Atacar, senhor? — Kamil perguntou como se ela o tivesse ouvido mal.

Ethan respondeu com um sorriso.

— Sim, atacar.

***

O céu estava iluminado com uma tonalidade vermelha. O povo de Hiveden ficou acordado a noite toda nas paredes para observar a Ordem do Corvo Branco se agitando. Como todos já haviam sido informados de que era impossível escapar dos Pés do Imperador, ninguém estava evacuando a cidade. Aqueles que eram capazes de se esconder se esconderam, mas o resto das pessoas não tiveram escolha senão observar.

A Ordem do Corvo Branco estava perto o suficiente para que seus gritos fossem ouvidos pelo povo. Próxima o suficiente para estar ao alcance de uma flecha, mas os guardas que deveriam proteger as pessoas estavam completamente desarmados e empilhando as armas que Hiveden tinha do lado de fora da muralha. Uma visão patética ver os guardas entregando suas armas quando deveriam agir como escudo para proteger seu povo, mas ninguém os culpou.

— Está tudo pronto? — Juan perguntou, na parede com os outros.

— Sim, de alguma forma conseguimos preparar tudo. Só espero que a Ordem do Corvo Branco caia na nossa armadilha. Caso contrário, não faria sentido desistir das vantagens da muralha da cidade. — Anya assentiu.

— Muralha? Nem sonhando, isso é só uma cerca grossa. Se todos os Templários forem tão habilidosos quanto o cara que conheci da última vez, aposto que eles poderiam facilmente pular isso.

— Talvez você esteja certo. Hmm…

— Você não parece muito preocupada — disse Juan enquanto olhava para o rosto de Anya.

— Bem, é a primeira vez que lutamos em uma guerra, mas… estou confiante de que a Ordem de Huginn é forte o suficiente para vencer facilmente a Ordem do Corvo Branco se lutarmos com todas as nossas forças, sem mencionar que senhor Ras está se juntando a nós desta vez. E…

— E…?

— Temos você do nosso lado! Se for necessário, você pode matar todos eles para nós! — Anya riu como se estivesse com vergonha.

Juan balançou a cabeça ao ver a fé infinita de Anya nele.

— Não tenho ideia de porquê Ras escolheu alguém como você para ser sucessora dele. Você não se parece em nada com um cavaleiro da Ordem de Huginn.

— Ei, sou uma candidata selecionada após uma discussão séria entre os cavaleiros sêniores.

— Tem certeza de que não decapitou todos os outros candidat-… espere, tem alguém se movendo.

Os cavaleiros da Ordem do Corvo Branco estavam se alinhando em seus cavalos. Havia cerca de quinhentos Patrulheiros da Montanha Laus posicionados na retaguarda, mas parecia que eles não participariam agora.

Todos os Templários estavam fortemente armados e um deles saiu na frente de todos montado em seu cavalo. Não demorou muito para Juan reconhecer o homem de cabelos compridos, foi ele quem Juan encontrou na noite em que Anya roubou o Poliedro Indefinito. Juan podia sentir suas mãos se apertando.

‘Eu seria capaz de vencê-lo se lutasse com ele uma segunda vez?’

Juan não podia deixar de ansiar por lutar com ele novamente, embora desta vez não estivesse lutando sozinho. A habilidade de Ethan era incomparável com a dos outros cavaleiros imperiais que eram decepcionantes.

Ethan ficou na frente dos Templários e de repente começou a fazer um discurso em voz alta.

— Meus irmãos e irmãs! Os punhos de Sua Majestade e suas sagradas lanças! Há muito tempo que servimos Sua Majestade com nosso sangue e lágrimas! Acreditávamos que o sangue que derramamos era a única prova da nossa lealdade. Foi tudo o que pudemos oferecer a Sua Majestade que se sacrificou pela humanidade!

— Por Sua Majestade!

Juan riu. No entanto, sua expressão mudou conforme o discurso de Ethan continuava.

— Mas tudo era mentira! Nunca servimos Sua Majestade!

A Ordem do Corvo Branco pareceu perplexa com o comentário inesperado de Ethan. O mesmo para o povo de Hiveden que estava na muralha da cidade.

Ethan desembainhou a espada e continuou seu discurso em meio aos murmúrios.

— Não éramos cavaleiros! Não éramos nada além de açougueiros! Açougueiros criados para fatiar a carne dos corvos! Fomos criados apenas para matar a Ordem de Huginn e não para servir Sua Majestade. Fomos criados, vivemos e morremos pela Ordem de Huginn! Não podemos dizer que servimos Sua Majestade!

Os rostos dos Cavaleiros estavam cheios de raiva. Servir ao imperador era seu objetivo final e sua última missão. Se fosse qualquer outra pessoa além de Ethan fazendo tal discurso, seria atingida a qualquer momento por uma espada.

— Mas não somos açougueiros! Somos a lâmina de uma lança que deseja morrer por Sua Majestade, se chocando contra a espada do inimigo!

—  Sua Majestade! —  Um dos Templários gritou com uma voz alta e cheia de paixão.

Ao mesmo tempo, gritos semelhantes foram ouvidos aqui e ali. Juan sentiu a atmosfera incomum entre os Cavaleiros. Este não era um discurso para ser feito antes de entrar numa cidade que já se tinha rendido.

— E ali! Nosso inimigo que nos empurrou para o poço escuro está dentro de Hiveden! Muitas pessoas chamam aquele apóstata de nosso arqui-inimigo, mas eu discordo! Ras Raud nada mais é do que um desafio que ainda temos que ultrapassar. Passaremos por cima de Ras Raud para nos elevarmos e nos aproximarmos de Sua Majestade! — Ethan ergueu a espada bem alto no céu e apontou para Hiveden. — Hoje mataremos Ras Raud, o apóstata que tentou assassinar Sua Majestade! Perfuraremos seus cavaleiros e os penduraremos em nossas lanças! Nos libertaremos de sua maldição para nos tornarmos verdadeiramente a lança de Sua Majestade!

Ethan correu para Hiveden ao mesmo tempo em que encerrou seu discurso. Num instante, os Cavaleiros o seguiram com gritos apaixonados. Com Ethan os liderando, a vontade deles se tornou tão afiada quanto a ponta de uma lança gigante.

Gritos irromperam do topo da muralha da cidade ao ver a Ordem do Corvo Branco se aproximando deles com tanta velocidade, e o som de pessoas se dispersando pôde ser ouvido.

À medida que a Ordem do Corvo Branco continuava a avançar, luzes brancas começaram a sair gradualmente de sua formação. Logo, eles ganharam aceleração, o que os tornou assustadoramente rápidos.

Os Patrulheiros da Montanha Laus localizados na retaguarda tentaram evitá-los em estado de choque, mas imediatamente foram pisoteados pelos cavalos.

Alguns dos guardas descobriram tardiamente a situação e fecharam o portão da cidade às pressas. O portão da cidade não ser muito grande era uma vantagem em momentos como este. Os guardas conseguiram fechar e trancar o portão bem a tempo.

— Somos as lanças de Sua Majestade!

Com o grito de Ethan, o portão da cidade explodiu com um estrondo. Este rugido abalou toda a cidade. O portão da cidade não foi a única coisa que foi destruída, mas as muralhas que o cercavam também explodiram.

Fragmentos do portão quebrado e do muro, bem como das vítimas que estavam lá, se espalharam por toda a cidade. Os prédios atingidos pelos destroços desabaram e os gritos das vítimas irromperam por toda parte.

Ethan, ainda envolto nas luzes brancas, saiu da poeira com uma expressão cruel.

— Matem todos. Sua Majestade realizará o julgamento.

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