Capítulo 75
A Aparição do Imperador (5)
No Vaticano, Helmut deitava em seu sofá e olhava fixamente para frente. À sua frente, estava um grupo de indivíduos vestidos com ternos representando os Sacerdotes Negros. O odor desagradável de incenso que enchia a sala parecia deixá-los desconfortáveis, mas não havia nada que pudessem fazer sobre isso. Eles esperavam silenciosamente que a tempestade passasse.
Aos pés de Helmut estava um dos Sacerdotes Negros que haviam sido enviados por ele para ameaçar a Santa, deitado de bruços e implorando. Mas, ao invés de cumprir seu dever, ele tentou persuadir Helmut, o que fez com que todos se perguntassem o que havia acontecido com ele durante sua missão.
— Vossa Santidade, não estou tentando ir contra você. Eu nunca faria isso. É só que…
— Então o que está tentando fazer? — Helmut perguntou.
— A nova Santa não é uma Santa comum, Vossa Santidade. — Disse firmemente o Sacerdote Negro.
O Papa olhou silenciosamente para os outros Sacerdotes Negros. A maioria deles estava impassível, mas alguns estavam olhando para o companheiro deitado de rosto para baixo com uma expressão de escárnio; tal atitude e expressão eram naturais para eles, considerando que eram Inquisidores que buscavam hereges e ouviam todo tipo de informação apostólica deles. Por esse motivo, Helmut nunca imaginara que um Sacerdote Negro poderia confrontá-lo.
— Vossa Santidade, eu vi e senti. A Santa era diferente das bonecas do passado que foram controladas e manipuladas. Senti a vontade de Sua Majestade através dos olhos e da voz dela. Pensei que ela poderia ter sido possuída por um demônio, mas no momento em que a vi abrir o Véu da Benevolência, tive que mudar de ideia.
— Haa…
— Vossa Santidade, por favor, retire suas ordens sobre a Santa. E por favor, ouça a voz dela. Estou certo de que ela será uma ajuda valiosa para a Igreja e…
O Sacerdote Negro não pôde terminar suas palavras. Subitamente, agarrou o próprio pescoço como se estivesse sufocando, e nem mesmo um gemido saiu de sua boca.
Os outros Sacerdotes Negros que estavam observando perceberam que seu companheiro não seria capaz de escapar da morte.
O Sacerdote se debatia no chão, incapaz de respirar, e logo percebeu um grande tumor inchado nas costas de sua mão. Abscessos e tumores redondos começaram a aparecer por todo o seu corpo. Logo depois, o corpo inteiro do Sacerdote Negro inchou, como se bolhas estivessem crescendo sob sua pele, e ele caiu no chão. Seria difícil para alguém pensar que ele já foi humano em algum momento, mas ele se contorcia fracamente como se ainda estivesse vivo e respirando.
— Tranquem este apóstata na masmorra. — Ordenou Helmut com o queixo erguido, como se nem mesmo tivesse energia para ficar com raiva.
O incenso era eficiente em acalmar sua mente e remover o cheiro de sangue, mas também o deixava sonolento.
Alguns dos Sacerdotes Negros arrastaram silenciosamente seu companheiro, que se tornara uma bola de tumores, para fora da sala.
— Há mais alguma coisa que desejem dizer? — Helmut perguntou, virando-se para os Sacerdotes Negros restantes.
— É verdade que a Santa abriu o Véu da Benevolência?
Helmut balançou a cabeça diante da pergunta.
— Havia um guarda de segurança que a viu deixar o Vaticano no meio da noite, mas ninguém a viu entrar no Palácio Imperial. Além disso, a Santa não deixou o Vaticano desde aquela noite. Nada está claro.
Os Sacerdotes Negros estavam convencidos, mas não podiam ter certeza, pois achavam que era uma mentira muito vaga para ser inventada.
— Mas por que importaria mesmo se ela realmente abriu o Véu da Benevolência? Vocês são os guardiões da doutrina. É justo que empunhem suas espadas para corrigir as injustiças quando aponto uma, certo?
— Como quiser, Vossa Santidade.
Eles responderam sem hesitação, e Helmut ficou satisfeito com suas respostas.
Os Sacerdotes Negros eram um grupo de Inquisidores cuidadosamente selecionados criados por Helmut, que eram especialmente leais a ele. O fato de a Santa ter conquistado um dos Sacerdotes Negros para o seu lado foi completamente inesperado, mas tal incidente provou o quão perigosa ela era. Se ela fosse capaz de conseguir um Sacerdote Negro, dentre todas as pessoas, para o seu lado, seria apenas uma questão de tempo até que os outros começassem a apoiá-la também. Helmut ficou mais determinado.
— Vão encontrar a Santa. Ou cortem-lhe a língua, ou façam-na se matar. Não seria tão incomum, já que muitas das Santas anteriores fizeram o mesmo.
***
Fora do Vaticano, havia um pequeno orfanato que funcionava como escola. O lugar era chamado de Berço, e órfãos de todo o império eram trazidos para lá. Eles criavam os talentosos entre eles como Padres da Igreja, enquanto aqueles sem talento eram ensinados a ser leais ao império e enviados para a sociedade ao atingirem a idade apropriada. Ivy também era do Berço.
— Ultimamente, sinto que estou esquecendo as coisas com muita frequência. — Disse Ivy.
— Provavelmente é porque você está sob muito estresse. É uma honra se tornar uma Santa, mas não é uma tarefa fácil. Além disso, você tem que encontrar aquele Papa pervertido tão frequentemente. — Respondeu Lua, uma jovem aprendiz de sacerdotisa, à reclamação de Ivy.
Lua e Ivy se conheciam desde os tempos em que estavam juntas no Berço, mesmo antes de Ivy se tornar uma Santa. Na verdade, Lua era uma das crianças que Ivy havia criado. Embora houvesse uma grande diferença de idade entre as duas, Lua seguia Ivy como se fosse sua irmã mais velha. Ivy riu das palavras de Lua, mas rapidamente cobriu a boca.
— Lua, você não pode dizer coisas assim tão imprudentemente. Você vai se meter em grandes problemas se Sua Santidade te ouvir.
— Você acha que ele faria mal até mesmo a uma criança jovem como eu? Ah, pensando bem, ele realmente poderia, considerando o quão desagradável ele é.
Lua continuou a xingar o Papa audaciosamente. Enquanto Ivy temia que alguém pudesse ouvir Lua, seus lábios tremiam, pois ela queria muito concordar ativamente com as palavras de Lua. Como todos ao seu redor haviam sido substituídos pelas pessoas selecionadas pelo Papa depois que ela se tornou a Santa, Ivy estava grata por ter alguém como Lua ainda por perto para conversar.
Enquanto Ivy caminhava segurando a mão de Lua, ela olhava para trás ao longo do caminho até o dormitório. Ela costumava achar essa paisagem muito entediante no passado, mas agora sentia saudades mais do que tudo. A única chance que ela tinha de passar tempo com Lua era uma vez por dia, quando Lua estava voltando para o dormitório vindo do Berço.
— Para ser honesta, achei um pouco estranho, estou feliz que você se tornou uma Santa. Senhorita Ivy como uma Santa. Uma Santa… hm, é uma posição extremamente honrosa, não é?
— Também acho estranho. Não acho que combine tanto comigo.
— Impossível. Outras crianças têm dito que você mudou desde o dia em que se tornou uma Santa. Elas acham que você muito legal. Mas você ainda é você. Seria legal se eu ainda pudesse te chamar de Irmãzona como no passado…
Ivy sorriu amargamente às palavras de Lua. Ivy também sentia que a forma como as outras pessoas a tratavam havia mudado, todos a olhavam com medo e respeito ao mesmo tempo, e tudo isso era muito desconhecido para Ivy. Ela se sentia estranha, pensar que uma órfã do Berço era respeitada por se tornar uma Santa. Até mesmo os Templários que costumavam ignorá-la, nem mesmo olhando para ela, agora curvavam a cabeça e lhe mostravam respeito. Mas Ivy tinha a sensação de que eles estavam expressando seu respeito a outra pessoa e não a ela.
‘Talvez tenha a ver com minha perda ocasional de memória.’
De acordo com o que ela havia ouvido, um “oráculo” sobre Hiveden veio no dia em que ela foi nomeada Santa. Ivy não se lembrava de nada, e essa perda de memória vinha acontecendo com mais frequência ultimamente, como na vez em que estava tomando banho, mas de repente abriu os olhos para descobrir que estava deitada em seu sofá usando roupas de sair. Ivy não pôde deixar de sentir medo, pois não conseguia entender o que estava acontecendo durante os momentos em que perdia a memória.
— Bem, então eu vou indo. Até a próxima, senhorita Ivy!
Quando chegaram em frente ao dormitório, Lua acenou com a mão e se despediu.
Ivy ficou ali por um longo tempo acenando de volta para Lua. Ivy voltou silenciosamente para o seu quarto depois que Lua desapareceu completamente de sua vista, e as Sacerdotisas que estavam esperando para ajudá-la a seguiram.
A sombra das colunas estava se alongando conforme o sol se punha. Era uma visão sombria.
Naquele momento, Ivy teve involuntariamente uma sensação estranha. Embora o corredor em que ela estivesse geralmente não tivesse muitas pessoas, era a primeira vez que ela via o corredor completamente vazio, sem uma única pessoa à vista. Quando Ivy olhou curiosamente para trás, se perguntando se o corredor atrás dela também estava vazio, ela notou que as duas Sacerdotisas que a estavam seguindo tinham fechado a porta do corredor e saído.
Em apenas um instante, ela ficou sozinha no corredor, e um sentimento sinistro a dominou. Logo, pessoas vestindo batinas que simbolizavam seu status como Sacerdotes Negros saíram de trás de uma grande coluna e cercaram Ivy. As bastões e adagas em suas mãos brilhavam sinistramente à luz do pôr do sol. Ivy se sentiu sufocada; ela teve um pressentimento de que ninguém viria salvá-la mesmo se ela gritasse.
— P-Por favor, não façam isso…
As pernas de Ivy tremiam, mas eles se aproximaram dela sem dizer uma palavra. Uma Sacerdotisa de aparência pálida, usando uma batina de Sacerdote Negro, ficou diante de Ivy e lentamente estendeu sua adaga na frente dela.
Ivy sentiu como se fosse desmaiar a qualquer momento. A Sacerdotisa virou a alça da adaga e a estendeu na frente de Ivy.
— Corte.
— D-Desculpe?
— Ou corte sua língua, ou corte sua garganta. Deixarei você escolher entre os dois. É uma ordem de Sua Santidade, ele poupará sua vida se cortar sua própria língua.
Ivy estava perto de soltar um grito, e lágrimas escorriam por seu rosto. Ela não havia cometido nenhum crime, na verdade, ela não tinha feito nada além de fazer o que o Papa disse, ser espancada e se submeter a ele. Ivy não conseguia entender por que o Papa estava tentando prejudicá-la.
— Se você não puder fazer isso sozinha, eu ajudarei. Apenas escolha qual das duas opções quer.
Ivy olhou apressadamente ao seu redor, mas não havia ninguém para pedir ajuda nem qualquer brecha pela qual pudesse escapar, doze Sacerdotes Negros a cercavam sem lhe dar chance de fugir.
Então, Ivy viu de repente um homem que não estava vestido de preto; era um homem de roupas esfarrapadas, segurando um balde e um esfregão. Ivy pôde instantaneamente perceber que ele era um zelador que limpava o Vaticano.
Os Sacerdotes Negros seguiram o olhar da Santa e franziram a testa ao notarem o zelador.
— O que está acontecendo? Eu pensei que garantimos que ninguém entrasse no corredor.
— Parece que ninguém faz seu trabalho direito… mandem-no de volta antes que seja tarde demais.
Um dos Sacerdotes Negros, segurando um bastão na mão, se aproximou do zelador. O zelador apenas olhou como se não soubesse o que os Sacerdotes Negros estavam fazendo.
Ivy queria pedir ajuda a ele, mas a Sacerdotisa pressionou uma adaga na parte de trás de seu pescoço.
— Se soltar sequer um pio, não terminará apenas com sua morte.
Ivy não conseguia se mexer nem um centímetro.
— Estamos ocupados com nossos deveres inquisitoriais. Volte e limpe outros lugares primeiro! — O Sacerdote Negro que segurava o bastão gritou com o zelador.
No entanto, o zelador não se moveu, ele apenas olhou silenciosamente para os Sacerdotes Negros.
O Sacerdote Negro que segurava o bastão franziu a testa e empurrou o peito do zelador com a ponta de sua bengala.
— Você está surdo? Disse para sair!
— Sacerdotes, que dever vocês têm que requer o uso de adagas dentro do Vaticano?
O zelador falou pela primeira vez.
O rosto do Sacerdote Negro que segurava o bastão se distorceu com suas palavras. Logo, os Sacerdotes Negros fizeram contato visual uns com os outros.
— Seus olhos e essa sua língua estão encurtando sua vida. — Disse o Sacerdote Negro.
O Sacerdote Negro tentou golpear o zelador. O bastão, feito de aço, poderia facilmente quebrar uma cabeça humana de uma vez.
Ivy cobriu a boca com a mão enquanto imaginava o que estava prestes a acontecer.
No entanto, o bastão nem sequer conseguiu tocar no zelador.
— Hm?
O Sacerdote Negro estava apenas balançando sua mão vazia. Antes que alguém percebesse, o zelador rapidamente balançou o esfregão para tirar o bastão das mãos do Sacerdote Negro.
Então tudo acabou num piscar de olhos.
O zelador envolveu as mãos e o pescoço do Sacerdote Negro com o esfregão e o puxou para frente. O corpo do Sacerdote Negro balançou no ar, e sua cabeça bateu no chão, o fazendo desmaiar enquanto babava pela boca.
Percebendo que o zelador não era um oponente qualquer, todos os Sacerdotes Negros avançaram contra ele de uma vez.
O resultado foi instantâneo.
Todos os Sacerdotes Negros que estavam cercando Ivy um momento atrás, agora estavam gemendo enquanto rolavam pelo chão. Tinham ossos quebrados e deslocados, mas nenhum tinha morrido.
A Sacerdotisa Negra que estava ameaçando Ivy tentou usá-la como refém como último recurso, mas acabou caindo no chão quando o balde com água do esfregão atingiu sua cabeça.
— O-o quê…? Mas como…?
Ivy olhou para o zelador com uma expressão atônita.
Mesmo depois de derrubar todos os Sacerdotes Negros em menos de dez segundos, o zelador não parecia tenso, ele simplesmente olhava para Ivy com olhos meio curiosos e meio respeitosos.
Ivy se sentiu estranha ao ver que até mesmo o misterioso zelador estava olhando para ela com tais olhos. Acalmando seu coração que batia rapidamente, Ivy perguntou cuidadosamente ao zelador.
— Q-Quem é você?
— O que quer dizer com “quem é você”? Não foi você quem me ordenou protegê-la?
— O-Ordenar a você? Eu fiz isso?
O zelador assentiu enquanto tirava os dedos de sua manga esfarrapada.
Os olhos de Ivy se arregalaram ao ver o que estava em seu dedo, era um anel que simbolizava a Guarda Imperial.
— Eu sou Lenly Loen, o capitão da Guarda Imperial. Sua Majestade me ordenou que eu te protegesse.