The Empty Box and Zeroth Maria – Capítulo 3 – Volume 5 - Anime Center BR

The Empty Box and Zeroth Maria – Capítulo 3 – Volume 5

Repetir, Recomeçar, Recomeçar

 

  1. SALA DE AULA

Sala de aula dos alunos do primeiro ano do ensino médio, classe seis; depois da aula. É a 1.533ª repetição do “Rejecting Classroom”. Do outro lado da janela, o céu está nublado, como esteve durante as outras 1.532 repetições. MARIA OTONASHI está sentada na mesa do professor e conversando com DAIYA OOMINE. Ele percebeu que MARIA é mais do que uma nova aluna comum e parece estar cauteloso em relação a ela.

DAIYA: …Não olhe para mim. Não gosto do seu olhar. Parece que você pode ver através de mim.

MARIA: Isso é mais próximo da verdade do que você imagina. Afinal de contas, sei bem mais do que uma aluna recém-chegada normal poderia saber em seu primeiro dia. Eu verifiquei cada um dos meus colegas em busca do “portador” da “Rejecting Classroom”.

DAIYA abre um sorriso sarcástico e assume uma postura desafiadora.

DAIYA: Você não está fazendo nenhum sentido. Mas deixe-me perguntar então: o que você sabe?

MARIA: Eu sei o que tem nas costas da Kokone Kirino.

O rosto de DAIYA fica visivelmente tenso.

DAIYA: …Como você sabe sobre isso? Se tem algo que a Kiri jamais mostraria a ninguém, é aquilo. Eu mesmo só vi uma vez… Espera, não me diga que você é uma das pessoas que machucaram ela?

MARIA: É a vigésima segunda vez.

DAIYA: É o quê?

MARIA: É a vigésima segunda vez que você me faz essa pergunta depois de ouvir sobre as costas da Kokone Kirino.

DAIYA franze o rosto.

Ele não se lembra de ter feito essa pergunta antes. Como a única pessoa que pode manter as memórias da “Rejecting Classroom”, MARIA também é a única testemunha restante.

As memórias do tempo que ela passou sozinha passam pela mente de MARIA e a fazem suspirar de exaustão.

MARIA: Deixe-me explicar como descobri. Primeiro de tudo, eu já… (LAPSO TEMPORAL) MARIA explica para DAIYA que já passou pelo mesmo 2 de março 1.533 vezes. Por um tempo, DAIYA escutou em quieto, sem dizer uma palavra.

DAIYA: Entendo. Você mencionou as costas da Kiri porque queria que eu acreditasse na sua história absurda. Mas ei, você poderia ter contratado um detetive ou algo do tipo para investigar o passado da Kiri.

MARIA: Quer que eu conte algo que só você e uma outra pessoa poderiam saber?

DAIYA: …O quê?

MARIA: Sua amiga de infância Miyuki Karino se confessou para você, mas você a rejeitou.

Os olhos do DAIYA se arregalam por um instante, mas ele rapidamente contém sua surpresa.

DAIYA: Realmente, isso é algo que somente Rino e eu sabemos. Não contei a mais ninguém e tenho certeza que ela também não. É impossível descobrir usando métodos normais.

MARIA: Acho que sim. Eu não teria descoberto se você não tivesse me contado.

DAIYA: Impossível. Independente dessa “Rejecting Classroom” realmente existir ou não, eu jamais contaria isso a ninguém.

MARIA: Faz sentido você não contar em circunstâncias normais. Você mesmo disse isso: que jamais teve a intenção de contar a ninguém sobre o incidente que levou ao sofrimento da Kirino.

DAIYA lança um olhar hostil severo em direção a MARIA por ela ter mencionado um assunto delicado. Seu olhar firme perturba a MARIA, mas ela não mostra qualquer sinal disso. Ela já havia conseguido dominar perfeitamente a habilidade de esconder suas emoções antes do número de repetições alcançar quatro dígitos.

MARIA: Tem um motivo pelo qual você me contou.

DAIYA: Besteira! Estou 100% certo de que eu não falaria sobre aquilo com você de maneira alguma!

Suas objeções ardentes fazem MARIA se encolher para trás levemente, mas ela finge não estar afetada e continua falando.

MARIA: Você me contou seu segredo mais obscuro porque queria me ajudar. Foi no 2 de Março da 1.532ª repetição.

DAIYA: Você está louca? Para te ajudar? Se quiser mentir, pelo menos tente ser um pouco convincente!

MARIA: Uma “caixa” pode garantir qualquer “desejo”.

DAIYA: …E daí?

MARIA: Seu comportamento mudou quando você percebeu que tudo o que eu tinha te contado sobre as “caixas” era verdade. Você deve saber o motivo, certo? Você tem um “desejo” que quer realizar não importa o quê.

DAIYA: Hm… (franze a testa)

MARIA: Parece que você tem uma ideia, hein. Você quer uma “caixa”, então, em troca da sua ajuda, você me pediu para ajudá-lo a conseguir uma.

DAIYA: Hm… (pensando) …Mas, como sou um grande cético, eu jamais aceitaria essa história sobre “caixas” e essa ““Rejecting Classroom” facilmente. Portanto, você me disse algo que não poderia saber de outra maneira para ter alguma influência sobre mim: algo sobre mim e a Rino. Assim eu acreditaria em você. Para deixar um futuro eu — isso é, o 1.553º eu — saber que você está falando a verdade.

MARIA: Exatamente.

DAIYA: Tch… não quero admitir, mas essa aproximação de sangue frio em prol de resultados é totalmente eu.

Aliviada por dentro, MARIA desce da mesa do professor. Ela se sentou na mesa para dar a si mesma uma presença mais forte, mas sua boa educação a fez ficar desconfortável sentada em tal lugar.

DAIYA: Agora entendo a minha posição, mas e você? O que você ganha me dizendo tudo isso?

MARIA: Posso torná-lo meu parceiro.

DAIYA: Você realmente precisa de um?

MARIA: Veja bem, estou em um beco sem saída. Preciso mudar minha abordagem.

DAIYA: Então, se você precisa de um parceiro, por que me escolheu?

MARIA: Isso é uma pergunta retórica, não? Você é a pessoa mais inteligente dessa sala. Tanto é que você foi o primeiro que suspeitei ser o “portador”, mesmo que não houvesse qualquer outra razão para suspeitar de você. Você não está mais na minha lista de suspeitos, já que não tem qualquer consciência de ser um “portador”.

DAIYA: O mais inteligente, hein. Bom, você está certa quanto a isso, mas essa ainda é uma razão bem fraca para insistir que eu seja seu parceiro. Aposto que você já encontrou vários outros parceiros também, tirando vantagem do fato de que não nos lembramos de nada, não? Que vadia de parceiros você é!

MARIA: Não se preocupe. Não posso dizer nada quanto ao futuro, mas você é meu primeiro parceiro. Você também é o primeiro com quem senti vontade de cooperar. Provavelmente porque…

MARIA hesita por um momento, mas então continua.

MARIA: Você se parece comigo.

 

Daiya Oomine – 11/09 SEX 20h01min

Só para deixar claro: meu alvo é Maria Otonashi.

Se Kazu estiver achando que ainda estou apegado à Kiri, e acha que vou focar nela antes da Maria, será brincadeira de criança derrotá-lo.

 

Mas isso não quer dizer que posso relaxar.

— U-gh! — Resmungo em frente à entrada.

Assistir “60 Pés e 6 Polegadas de Distância” na “Wish-Crushing Cinema” sem dúvida me deixou acabado.

…Eu nunca soube.

Nunca pensei por um único instante que Haruaki tinha interesse romântico na Kiri. Sempre achei que ele havia sacrificado sua carreira no beisebol para vir ao nosso colégio porque não podia ignorar o que havia acontecido com ela. Eu nunca soube que havia amor envolvido.

Sim. Não baguncei apenas a vida da Kiri, também ferrei a do Haruaki. Estou descaradamente aproveitando minha própria vida mesmo que tenha arruinado a dos outros.

— Pare com isso…

…Pare de pensar dessa forma, eu!

Se começar a me culpar, serei atacado novamente pelas “Sombras do Pecado” dentro de mim. Elas aguardam eternamente por uma oportunidade de virar o jogo. Um momento de guarda baixa e elas dão o bote.

— Ugh!

Repentinamente, sinto um surto de náusea… Preciso resistir. Se eu ceder à vontade de vomitar, sinto que minha alma sairá junto.

Preciso engolir.

Preciso engolir tudo.

— Que cruel — diz Yanagi, esfregando minhas costas. — Se você tivesse desistido da Kirino-san e deixado ela para o Usui-san, as coisas não teriam acabado daquela forma.

— …Hã?

— Eu normalmente visito a sua sala para ver o Kazuki-san. A Kirino-san e o Usui-san estão sempre animados. Mas eles estão apenas fingindo estar felizes pelo seu bem, não? Eles precisam agir daquela forma porque não podem mais relaxar, certo?

Com um sorriso calmo e com a mão nas minhas costas, ela continua.

 

— É tudo pelo seu bem, não é mesmo?

Posso entender muito bem… o que ela quer dizer.

…ELES FICARAM ASSIM POR SUA CULPA!

Exato. Exatoexatoexato… exato.

Um desconforto corre pelo meu crânio como um inseto e faz nos meus olhos piscarem. O sorriso zombador da garota à minha frente me irrita. Não me importo se ela está certa ou não, esse sorriso ainda me irrita.

No momento em que penso nisso…

Começo a estrangulá-la.

— Aaaaaaaaaaaah!

Não consigo identificar o que estou gritando. Meu corpo, meus braços, minha garganta, estão todos se movendo por conta própria, quase como se alguém tivesse tomado o controle de mim. Estou me movendo automaticamente. Mas sei que fui eu quem foi possuído… possuído por mim mesmo.

— Agha!

Ao ouvir os gemidos de Yanagi escapando e vendo seu rosto pálido, finalmente recupero meu autocontrole. Rapidamente tiro minhas mãos do pescoço dela. Yanagi cai no chão e começa a tossir repetidamente.

— Uh, gh…

Mas que merda…? O que há de errado comigo? Estrangulando uma garota do nada… isso é insano. Se eu tivesse demorado um pouco mais para recuperar meu controle, isso teria terminado de forma horrível.

Percebo muito bem que por muito pouco eu me impedi de cometer um grave erro. Toco o piercing na minha orelha direita. Ah, merda, pare com essa obsessão por coisas sem sentido. Não posso mais voltar atrás. Não tenho tempo para entrar em pânico por causa de pensamentos inúteis. Preciso voltar a ser como era. Preciso voltar a ser calmo e calculista.

— Yanagi — a chamo, fingindo estar calmo.

Ela me encara com lágrimas em seus olhos carregados de raiva.

— Você realmente acha que eu não percebi?

Após tossir mais algumas vezes, ela pergunta:

— Do quê… você está falando?

— O que você acabou de dizer foi com a intenção de me fazer sofrer pelo bem do Kazu.

Ela congela por uma fração de segundo.

— Hein? Do que você está falando? Não faço ideia do que você está falando.

Ela imediatamente assume o papel de inocente, com uma expressão confusa no rosto, como se ela realmente não soubesse o que quero dizer. Estou mais impressionado do que irritado. Que garota ardilosa. Se eu não estivesse ciente de sua verdadeira natureza, teria sido completamente enganado.

— Kazu mandou você aqui para me atrapalhar, não foi?

Ela permanece em silêncio por tempo o bastante para eu perceber que ela está estudando minha expressão.

— Não faço ideia do que isso significa. Fui forçada a vir aqui por causa da sua [ordem], Oomine-san. Como o Kazuki-san poderia ter alguma influência nisso?

Hmph, acho que vou usar isso então.

— Estive esperando por você o tempo todo.

Dessa vez ela não pode evitar arregalar os olhos.

— Po-por quê? Não seria estranho se alguém encontrasse algo antes! Afinal, existem quase mil outros [servos] além de mim!

— Estamos falando do Kazu; aposto que ele esteve te observando desde o instante que você se tornou uma [serva]. Após ser descoberta, você contou a ele que [ordem] eu te dei, e o fez perceber que minhas [ordens] não podem ser evitadas. E agora, o que ele faria? É ridiculamente fácil de deduzir: ele deliberadamente te deu informação para evitar que eu dê [ordens] mais agressivas. Além disso, ele iria querer me atacar, mandando alguém que está do lado dele. Você é idealmente apta para esse papel. Primeiro, porque você é astuta e, acima de tudo, você tem uma queda por ele e é fácil de controlar — zombo e continuo. — Que tal?

Estou certo? Yanagi não responde.

— Bom, mesmo que você não queira responder, você irá se eu te [ordenar]. Mas não há necessidade disso. Sua atitude por si só fala bem alto.

— Uh…

— Admito que o Kazu tem capacidades únicas. Mas se tratando de táticas, ele não tem chance contra mim. No fim das contas, ele está apenas dançando ao meu ritmo. Ele enviou Yanagi para me observar, com o propósito de se defender e me atacar.

Mas ele não entende que usar os outros é arriscado. Como dono da “Shadow of Sin and Punishment”, agora entendo as correntes escuras nos corações das pessoas melhor do que ninguém. É por isso que Kazu irá perder essa luta.

— Yanagi, então você gosta do Kazu, certo?

— …E-e daí?

— Se possível, você gostaria que esse sentimento fosse recíproco, certo?

— Bem… acho que sim…

Parece que ela não entende o porquê de eu ter tocado nesse assunto.

— Tenho um plano que fará ele se importar com você.

Yanagi ouve em silêncio. Engenhosa como ela é, parece ter percebido aonde quero chegar.

— A relação entre o Kazu e a Otonashi é extremamente forte. Normalmente, seria impossível destruí-la. Isso não mudará mesmo que você o ajude. Você entende isso, certo?

— Aonde você quer chegar? — Ela pergunta, embora já saiba a resposta.

Mesmo assim, desenharei para ela.

— Traia-o.

Yanagi mantém sua expressão séria.

— Estive planejando destruir a relação deles para eliminar o objetivo do Kazu. Eu e você temos os mesmos interesses.

Yanagi fica em silêncio por algum tempo, mas então lança um olhar frio para mim.

— Do que você está falando? Não me importo com interesses e coisas do tipo. Por que eu ficaria do lado da pessoa que me matou naquele jogo e acabou de me estrangular? Você seriamente acha que eu trairia quem eu amo por você?

— …Você acha que a situação atual é a melhor para o Kazu?

— Por favor, não mude de assunto. Sei muito bem que você é bom em distorcer os fatos.

— Você não acha? Ele está alterando seus próprios ideais ao obter uma “caixa”, e ter “O” por perto o tempo todo não pode ser bom para ele.

— Não me ignore.

— De quem é a culpa? Quem o fez ficar assim?

— Ouça o quê…

— Maria Otonashi.

Yanagi engole sua objeção ao ouvir esse nome. Continuo, após examinar sua reação de perto.

— Ele está me enfrentando nesse momento por causa da Otonashi. Por estar obcecado por ela, ele escolheu se envolver com uma “caixa” e entrar no meu caminho. Vamos deixar isso claro: Eu não me importo com o Kazu. Não tenho qualquer intenção de matá-lo, nem quero derrotá-lo. Na verdade, eu gostaria que ele fosse feliz. Afinal, não tenho nada contra ele, certo?

Silêncio

— Se Otonashi desaparecer, ele não terá mais uma razão para ir contra mim e será libertado das “caixas”. Certo: as ações atuais dele não o levarão a uma vida feliz. Pelo bem da felicidade dele, nem importa se ele me derrota ou não. Então, como podemos reverter essa situação a favor dele?

Chego ao ponto.

— Otonashi precisa ser afastada do Kazu. Quando isso acontecer, ele será capaz de viver sua própria vida.

Silêncio.

— Ele poderá ser feliz.

— Mas Kazuki-san não quer isso.

Finalmente Yanagi me responde. Por dentro estou comemorando, mas é claro que não deixarei isso aparente para ela.

— Os desejos dele não são necessariamente o melhor para ele mesmo. Otonashi também não aceitaria o que ele está fazendo, mas Kazu está convencido de que o que ele está fazendo é pelo bem dela… Sim, colocando de forma objetiva, você está “ajudando o Kazu a trabalhar pela Otonashi”.

Escolhi essa forma de colocar os fatos porque acredito que ela não gosta muito da Otonashi.

— Você concorda com as ações do Kazu?

— Isso…

— Agora me deixe repetir o que já disse: nós temos os mesmos interesses. Bom… você provavelmente não gosta de mim, então não vou exigir que permaneça do meu lado. Mas não importa o que você faça, minhas ações não vão mudar. Destruirei os objetivos do Kazu. E para isso…

Toco um dos meus piercings.

— Irei separá-los de uma vez por todas.

— U-uh…

Yanagi, quem normalmente jamais pensaria em se aliar a mim, começa a hesitar. Acho que ela está tendo conflitos emocionais ao pensar em cooperar comigo ou se opor à vontade do Kazu. Mesmo assim, Yanagi começa a considerar, porque ela acha que pode conseguir fazer o Kazu feliz se ignorar esses sentimentos.

— É verdade?

— Está se referindo ao quê?

— Você realmente não tem intenção de ferir o Kazuki-san?

…E por isso ela está me fazendo essa pergunta. Ela está essencialmente buscando uma razão para cooperar comigo. Ela quer que eu dê um empurrãozinho a ela.

— Não vou feri-lo… acho que posso dizer isso. Contudo, separarei a Otonashi dele, o que significa que ele irá sofrer.

— E-entendo.

Provavelmente, ela já decidiu em seu coração que irá traí-lo. Ela engolirá suas emoções e me obedecerá. Mesmo que isso signifique sofrer remorso por trair o Kazu, ela acreditará que, no final, estará fazendo isso pelo bem dele.

Que amor lindo.

…Bem. Tudo o que eu disse a ela foram mentiras, no entanto. Estive esperando por você. Essa foi a primeira mentira. Não esperava Yanagi em particular e nem sequer considerei que o Kazu poderia mandar alguém até que ela chegou.

Só percebi porque a chegada da Yanagi foi suspeita. Que Yanagi, dos meus novecentos e noventa e oito [servos] foi a primeira a chegar. É estranho demais para ser uma coincidência.

Desse ponto, é natural deduzir que o Kazu armou isso. Bom, talvez minhas mentiras tenham sido mais um blefe, mas isso previne a Yanagi de ter ideias perigosas e a faz reconsiderar de que lado ela realmente quer estar.

Kazu não se opor mais a mim quando se separar da Otonashi também é uma mentira. Kazu é contra a própria existência das “caixas”. Ele se opõe a mim simplesmente porque sou um “portador”. Essa é a natureza dele.

Finalmente, também é mentira que ele será feliz quando se separar da Otonashi. Eu realmente considero a Otonashi como um câncer crescendo dentro do Kazu, isso não é mentira. Mas é impossível remover algo que tomou tal profundidade dentro do corpo dele. Por eles terem passado uma vida inteira juntos, há uma ligação inquebrável entre eles.

Remover algo que se enraizou em cada parte do corpo dele à força é simplesmente tão impossível quanto remover um câncer que se espalhou pelo corpo todo sem matar o paciente.

Também foi por isso que parei de tentar fazer o Kazu e a Kiri ficarem juntos. Vamos imaginar que a Otonashi termine com o Kazu: mesmo que isso aconteça, ele jamais se esquecerá dela. Ele pode até mesmo ficar ainda mais obcecado por ela, sendo aquele que foi deixado para trás. Fortes ligações também podem virar maldições. Ele jamais será libertado de uma ligação tão forte. Portanto, não tenho qualquer intenção de unir o Kazu e a Yanagi.

É tudo mentira.

Yanagi só conseguira a inimizade dele ao me ajudar. Mas não é tão fácil ver através das minhas mentiras. As pessoas tendem a pensar de forma que lhes favoreça. Yanagi é especialmente vulnerável a isso. Ela quer acreditar que pode trazer felicidade ao Kazu e se tornar sua namorada.

E é por isso que ela fez essa escolha.

— O que você quer que eu faça?

Yuuri Yanagi escolhe… traição.

— O que posso fazer?

Ela contorce seu rosto em humilhação. Sufocando seus sentimentos e resistindo ao remorso, Yuuri Yanagi se oferece para me ajudar a derrotar Kazuki Hoshino, mesmo que ela me odeie. Sem sequer perceber que isso apenas a levará a própria ruína.

…Hahaha, você é mesmo uma coisinha pobre e inofensiva. Quando tudo estiver acabado, te darei um pirulito. Escondendo meu entretenimento, eu digo:

— Em breve, Otonashi chegará aqui. Quando ela chegar, você só precisa usar sua língua solta como sempre e controlar a conversa. Assim, você pode me ajudar.

— Como você a trará até aqui?

— Logo, ela mandará Otonashi até aqui.

— Ela?

Pronuncio o nome da única pessoa que pode usar meu poder:

— Iroha Shindou.

 

Kazuki Hoshino – 11/09 SEX 20h26min

Recebo uma ligação da Iroha-san.

—Eu realmente não quero dizer isso porque é vergonhoso agir como um vilão estereotipado, mas dane-se, será mais fácil de entender dessa forma. Err… raptei Maria Otonashi, então faça o que eu mandar se quiser ela de volta.

 

— Por quê? — Me pergunto enquanto vou em direção ao viaduto que ela especificou; sozinho, como ela mandou.

Por que Iroha-san raptaria a Maria…?

Liguei imediatamente para a Maria, apenas para me certificar de que ela não estava blefando.

…Mas Maria não respondeu.

É, eu sei: apenas isso não é prova de que ela foi raptada. Talvez Maria tenha simplesmente perdido a chamada. Mas já que sou incapaz de entrar em contato com ela, preciso assumir o pior e ir sozinho ao viaduto, como instruído, mesmo que seja uma armadilha.

— Por quê? —… porque eu vou sempre escolher tentar salvar a Maria.

E é claro, Iroha-san fez sua exigência com isso em mente.

— Tch!

Que incômodo! Eu sei que ela é uma [serva] por causa da “Shadow of Sin and Punishment”, mas é difícil imaginar a Iroha-san obedecendo ao Daiya. Além disso, como ela sequer foi capaz de sequestrar a Maria?

Quer dizer, Yuuri-san disse que ações que vão contra o código de moral das pessoas precisam ser especificamente [ordenadas]. Com conhecimento limitado da situação do lado de fora do cinema, é pouco provável que o Daiya dê uma [ordem] detalhada como “rapte a Maria e ameace-a para atrair o Kazu para debaixo de um viaduto”. Mesmo que ele tivesse dado uma [ordem] dessas, Iroha-san seria realmente uma má escolha para executá-la porque ela é determinada e brilhante. Um dos fanáticos dele seria uma escolha muito melhor, um fanático executaria a [ordem] do Daiya mecanicamente, sem pensar duas vezes. No caso da Iroha-san, ele correria o risco de ela encontrar uma falha na [ordem] dele e fazer algo inesperado contra os planos dele.

Portanto, minha conclusão é que a Iroha-san decidiu raptar a Maria por conta própria. Correndo, ergo minha manga e checo o horário. 20h27min. O terceiro filme, “Repetir, Recomeçar, Recomeçar” está para começar. Mais três horas e trinta e três minutos para o fim do dia.

O dia que antes descrevi como curto, de repente parece não ter mais fim.

 

 

Chego ao local indicado.

Um túnel embaixo de um viaduto que corre ao lado de um rio, longe do centro da cidade. As pichações nas paredes deixam claro que esse é um ponto de encontro de vândalos.

O poste de iluminação mais próximo está longe demais para clarear qualquer coisa. A única coisa projetando uma leve luz no lado direito do rosto da Iroha-san é uma lanterna fraca que ela mesma providenciou.

Me aproximo dela, tropeçando pela grama mal cuidada. Não consigo ver mais ninguém na escuridão, mas sinto a presença de várias outras pessoas. Elas provavelmente não estão tentando se esconder de mim. Na verdade, elas querem que suas presenças mal escondidas me deixem nervoso.

Iroha-san está sentada próxima a uma pichação no muro.

— Au Auu! Auuuuuuu…!

Em cima de um homem nu de quatro.

— Eu sei, eu sei garoto. Kazuki-kun chegou, certo?

O homem roliço que serve de cadeira está latindo como um cão.

— Ugh.

Sinto um nojo difícil de pôr em palavras. O fato de que seu corpo fica balançando me irrita ainda mais. Mesmo que eu não queira olhar para ele, também não quero desviar o olhar. O mero fato de que ele está me fazendo mover meu olhar é difícil de engolir. Desapareça você da minha frente! Não quero nada com um pervertido doente desses!

…De repente, algo se encaixa em minha mente, e me acalmo.

— Esse fenômeno…

Certo, eu já vi isso antes. Não achei que fosse algo tão ruim assim na realidade, mas ouvi sobre isso na TV.

— Os “Cães Humanos” — murmuro, e percebo. — Então os “Cães Humanos” também apareceram por causa do Daiya…

— Certo! Ah, mas eu criei esse, não o Oomine-kun.

— Como assim? …De qualquer forma, como você consegue fazer isso, Iroha-san?

— Aah, preciso mesmo explicar tudo desde o início? Bom, ouça, Kazuki-kun: Agora posso usar os mesmos poderes que o Oomine-kun!

— Eh? Como você…

…Espere, Yuuri-san me disse que a “Shadow of Sin and Punishment” é compartilhada. Isso quer dizer que Daiya não é o único que pode usar esses poderes? Então todos os outros também podem…?

— Para sua informação, nesse momento sou a única com os mesmos poderes que o Oomine-kun, então não se preocupe com isso.

Sinto-me um pouco mais aliviado ao ouvi-la dizer isso… Não, não devo me sentir aliviado ainda. Preciso confirmar se Maria está segura. Olho ao redor, tentando manter o homem nu fora do meu campo de visão.

— Onde está a Maria…?

— Não aqui — ela responde abruptamente.

— Você realmente a rap…

— Sim. Graças à última [ordem], consegui descobrir onde ela vive, afinal de contas.

— O que você está pensando em fazer com ela? O que você quer que eu faça?

Iroha-san me olha bem de perto. Sem responder, ela se levanta do “Cão Humano”. E chuta a cabeça dele. Fazendo imitações de resmungados caninos, o “Cão Humano” nu olha para Iroha-san com uma imitação barata de olhos de filhotinho.

Franzo meu rosto diante da cena repulsiva se desenrolando diante de mim… Não, isso está errado. Me esqueci por um momento por causa do nojo, mas essa não é a reação que eu deveria ter.

— O-o que você está fazendo?! Esse homem meramente foi [ordenado] a agir como um cão! Ele é tão humano quanto você e eu!

— Humano? Nem de perto. As aparências não estão enganando no caso dele… ele é um ser inferior. Nojento, não é mesmo?

— Bom, certamente… mas só porque você o fez agir dessa forma!

— Você acha? Mas esse cara gosta de estuprar garotinhas!

— O quê?

O que ela acabou de dizer?

— Ele é um pedófilo sem salvação e era um lixo humano mesmo antes de virar um cão! O poder da “caixa” é primariamente controlar os outros, mas ela também permite que você veja os pecados das pessoas, sabia? Por causa disso, é possível procurar esse tipo de lixo.

— …Você procurou especificamente por um criminoso?

— Bom, eu queria tentar fazer um “Cão Humano”. Queria um humano que merecesse tal castigo. Bem, foi então que me deparei com esse cara! Não precisava ser ele, mas acho que foi uma boa escolha. Afinal de contas, impedi que ele criasse ainda mais vítimas. Ele estuprou garotinhas várias e várias vezes… E ele é totalmente sem salvação.

— Mas… isso é, verdade?

— Sim. Ele é um merda doente que só consegue ficar excitado se enfiar seu pau miserável na vagina de uma garotinha chorando.

Iroha-san chuta a cabeça dele mais uma vez. O “Cão Humano” solta um grito hediondo. Os observo em silêncio.

— Olhe, você parou de falar.

— Eh?

— Você parou de me dizer para não chutá-lo.

Iroha-san comanda ao “Cão Humano”, ainda gemendo:

— Senta!

E ele fica de quatro, com o traseiro virado para a minha direção.

— Você admitiu que ele é inferior.

— E-eu não…

— Sim, você admitiu.

Ela olha para o “Cão Humano”, cospe nele e então se apoia contra o muro sem qualquer expressão no rosto.

— No fundo, você deseja que pessoas como essa apenas morram, não é mesmo?

— Não!

— Tenta dizer isso após ver as vítimas dele: garotas que se isolaram completamente e se recusam a sair de seus quartos, seus pais que se divorciaram por não conseguirem mais lidar com o sofrimento de suas crianças. Após destruir tantas vidas, você ainda pode dizer que esse pedaço de merda merece viver?

— E-eu posso…

Quero que ele pague pelos seus pecados, e não acho que ele mereça ser perdoado, mas pena de morte não é certo… Eu acho. Minha convicção deve estar abalada porque ele é tão horrível quanto um “Cão Humano”.

— Hmm? Bem, acho que eu costumava ter a mesma opinião que você. Mas surpreendentemente, essa opinião pode ser compartilhada apenas pela minoria! Pessoas gostam de pensar em termos absolutos, bem absoluto e mal absoluto. Pegue qualquer filme famoso de Hollywood: você não se sente bem quando o cara mal leva uma surra do herói? Emocionalmente, também costumamos querer que pessoas que cometeram crimes imperdoáveis sejam punidas com a morte. Em outras palavras: é normal querer que esses desgraçados desapareçam.

— …Eu não penso dessa forma.

— Mas é verdade! Embora… eu entenda o seu ponto de vista. Eu também costumava pensar que isso é errado. Sempre achei que os caras que saiam gritando “matem-nos”, “eles merecem morrer” e coisas do tipo eram apenas idiotas. Mesmo que alguém cometa um crime, isso é apenas um lado daquela pessoa, ela pode até ter seus lados bons e ser uma ótima pessoa fora isso, então, eu estava convencida de que você simplesmente não apertaria o botão de “execução” se realmente o conhecesse. Além disso, a maioria das pessoas que querem matar os pecadores não são apenas hipócritas? Quão puras elas são? Muitas pessoas acham que não tem problema beber e dirigir. Eles não se importam em atropelar outras pessoas? Elas estão apoiando suas próprias execuções! Bom, era assim que eu costumava pensar, até obter esses poderes — ela diz e sorri levemente.

— …E agora?

— É, agora eu também acho! Esses criminosos devem ir para o inferno.

Não há qualquer hesitação em sua voz.

— É verdade que muitas pessoas que acham que a pena de morte é uma resposta fácil são apenas idiotas. Mas mesmo que você tenha uma opinião fundamentada depois de avaliar esses criminosos, a resposta correta ainda é a pena de morte. Sei que estou sendo presunçosa aqui, eu mesma tendo matado durante o “Game of Idleness”, mas posso dizer com convicção que esses caras são totalmente diferentes de nós que temos senso comum. Realmente existem idiotas que não são dignos de pena e fazem você querer vomitar! Você ficaria surpreso com a ignorância, a completa falta de empatia e as merdas que saem das bocas deles! São pessoas assim que cometem crimes. Eles simplesmente são incapazes de se adaptar à sociedade. Pegue esse cara aqui como exemplo: sabe o que ele me disse quando perguntei se ele sentia pena das garotas que estuprou? “Mas eu não pude me controlar”, “elas tiveram azar de cruzar comigo quando eu me sentia daquela forma”, “sei que o que faço é errado, mas o que posso fazer quanto a isso?” Você entende o que quero dizer? Você não sente nojo diante de declarações como essa? Esses caras nunca aprendem a lição. Eles não entendem o quanto suas vítimas sofrem. Eles não percebem o que fizeram. Eles não têm qualquer escrúpulo sobre colocar os próprios desejos acima dos direitos dos outros. Agora eu percebo que eles nasceram como lixo… eles não podem fugir do próprio destino.

O “Cão Humano” late.

— Então dei a ele uma aparência apropriada.

Iroha-san franze o rosto ao encarar o “Cão Humano”, que agora está rolando sobre as próprias costas. Ela é incapaz de tolerar seu comportamento repulsivo ainda que ela mesma tenha o criado.

— Como você pode perdoar alguém assim? — Ela diz e bate as palmas das mãos por alguma razão.

No mesmo momento.

— UUUUWAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHHH!

Um clamor ecoa pelo túnel.

— O qu…

O quê?

Olho ao redor e imediatamente percebo o que está acontecendo. Um grupo numeroso de pessoas com sacolas de papel marrons colocadas sobre suas cabeças estão se amontoando ao nosso redor. A presença que senti quando cheguei aqui vinha deles, sem dúvida alguma. Agora sei que são [servos] da Iroha-san.

Não posso ver muito por causa da escuridão, mas eles não parecem ter nada em comum além das sacolas de papel. Suas roupas são variadas, alguns estão usando o uniforme da minha escola, enquanto outros usam vestidos, sexo e idade variados.

Essas pessoas se reuniram e começaram a nos cercar. É bizarro. É terrivelmente estranho ver um grupo de pessoas tão diferentes de alguma forma agir em perfeita sincronia. O que está para acontecer? Como devo reagir?

Não faço ideia do que a Iroha-san fará a seguir, então não sei como agir adequadamente. Estou completamente perdido. Me ignorando, Iroha-san ergue a voz.

— Vamos puni-lo!

— Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição! — Punição!

 

Fico completamente sem ação diante de seus súbitos gritos. Quase vinte homens e mulheres estão gritando enquanto lançam seus punhos ao ar.

…O-O que é isso?

Sei que eles estão apenas seguindo as [ordens] da Iroha-san, mas não consigo me acalmar quando eles estão bem na minha frente. Estou com a mesma sensação que tive quando vi o vídeo daquelas pessoas se ajoelhando diante do Daiya. Quando vinte e tantas pessoas fazem a mesma coisa incomum em perfeita sincronia, é instintivamente perturbador em algum nível dentro de mim.

Os membros do grupo de sacolas de papel continuam a gritar enquanto colocam o “Cão Humano” em pé à força. Eles o seguram com força e viram o homem nu em direção à Iroha-san.

Enquanto isso, ela pega uma faca.

— I-Iroha-san, o que você…?

Mas ela sequer olha para mim.

— Aqui está uma [ordem] para você, estuprador. Pare de agir como um cão.

O “Cão Humano” imediatamente passa por uma mudança brusca. Sua expressão instantaneamente assume a forma da de um homem amedrontado. Ele parece ter estado completamente consciente enquanto era um “Cão Humano”, já que não está nem um pouco surpreso… mas bastante assustado.

— A-aah! Por favor, pare! E-eu sou culpado! Jamais atacarei outra garota!

— Hã? Você não está um pouco atrasado? Você não pode desfazer o que fez, pode? Os himens delas não podem se regenerar, podem? Ah, certo. Vamos lá, então corte seu pau com essa faca.

— E-eu…

— Então, de que outra maneira você vai se redimir?

— E-eu jamais encostarei em outra garota de novo! Prometo!

— Há! Quando é que você vai parar com essa merda? O que você está sugerindo é o mais básico do senso ético comum, não algo que você faz para se redimir, ok? Isso é como ir a um restaurante e dizer “daqui para frente não sairei mais sem pagar a conta”. Ok? Tudo bem? Pagar daqui em diante como desculpa? Quem você pensa que está enganando? Se você realmente se arrepende do que fez, então proponha algo que irá ajudar aquelas garotas pelo menos um pouco, seu saco de merda!

— A-ajudar? O-O que você quer que eu faça?

— Tente usar a cabeça. Se você simpatizar com elas, deve ser capaz de pensar em algo por conta própria. Por exemplo, você poderia pagar a elas cem milhões de ienes?

— Ce-cem milhões? I-isso é impossível! Eu nem mesmo tenho um emprego…

Ao ouvir essa desculpa, Iroha-san soca a cara dele sem sequer piscar. Uma vez, duas vezes, três vezes. Ela bate nele sem demonstrar qualquer expressão.

…Ah.

Não importa o que aquele homem diga, ele não será perdoado.

— Ah, ugh, gha! Ugh!

Sangue escorre de seu nariz.

O bando com sacolas de papel está segurando-o firmemente sem dizer qualquer palavra. Ninguém se importa com suas feridas. Iroha-san continua como se nada tivesse acontecido.

— Você só está implorando pela sua vida agora porque está assustado, não por estar arrependido. Posso prever que você irá continuar com suas vilanias assim que eu deixá-lo ir. Então, acabarei com isso agora!

Iroha-san bate as palmas das mãos novamente.

— Aqui uma [ordem]. Digam, o que vocês honestamente acham que seria uma punição apropriada para ele?

O grupo usando sacolas de papel responde.

— Morra.

— Morra.

— Morra.

— Morra.

— Morra, seu vira-lata horrendo.

— Morra, seu criminoso.

— Morra dolorosamente.

— Morra com esse seu pau flácido.

— Morra, seu desprezível

— Morra, seu pervertido.

— Morra, você merece.

— Morra de uma vez.

— Morra agora mesmo.

— Morra.

— Morra.

— Morra.

Eles estão respondendo por causa de uma [ordem]. Mas posso ouvir a honestidade em suas vozes. Cerca de vinte pessoas estão sinceramente desejando a morte dele.

— Hah… — Ela deixa um suspiro exagerado escapar. — Foi decidido unanimemente que você deve morrer.

Ela aproxima a faca dele.

— Pare! Pare! Pare! Eu não fiz nada contra vocês, fiz?! Isso não é da conta de vocês! Quem vocês pensam que são para… AAAAAAAAH!

Iroha-san arranca um punhado do cabelo dele sem hesitar. O som de algo rasgando ecoa pelos muros. Uma das pessoas com sacola de papel sussurra:

— Morra.

E bate as mãos encorajando. Outra pessoa o imita e bate as mãos, sussurrando:

— Morra.

Pouco a pouco, isso se espalha e resulta em um coro de “morra”. Elas começam a bater palmas ritmicamente com ódio, pedindo pela morte dele.

— Morra.

Clap.

— Morra.

Clap.

— Morra.

Clap.

— Morra.

Clap.

— Morra.

Clap.

Morra-morra-morra-morra-morra-morra-morra-clap-clap-clap-clap-clap-clap.

Um animado ritmo de “morra” ressoa de um lado para o outro. Vendo eles, não posso deixar de pensar:

…Ah, certo. Ele merece morrer.

Incapaz de continuar reclamando, o homem agora está tremendo de medo e se molhando vergonhosamente.

— Chore um pouco mais, seu porco. Arrependa-se de ter nascido, seu porco. Sofra, seu porco.

Iroha-san ergue a faca na altura dos olhos dele.

— Sua morte será a melhor forma de purificação para suas vítimas.

Vendo ela a ponto de cometer um grave erro, finalmente volto à razão.

— Iroha-san, pa…

Contudo, três homens me seguram e me impedem de agir. Meu campo de visão é cortado pelo braço de alguém. Não consigo ver nada.

— Iroha-san, você não deve fazer isso!

Se fizer, não será capaz de voltar. Será aprisionada pelas “caixas” e ficará incapaz de voltar ao seu dia a dia. Mas…

— Aqui uma [ordem]. Quando minha faca te tocar, volte a ser um cão.

— AINNNNNNNNNNNNNNNNNN!

Não pude impedi-la.

O que ecoa pelo túnel não é o grito de um homem, mas o resmungo de um cão. Os homens me soltam e se afastam. A primeira coisa que vejo é um homem nu coberto de sangue. Mesmo que seja um espetáculo horrível, também sinto um senso de satisfação doentio por dentro. Seu grito foi terrivelmente patético, e o mero pensamento de que aquilo ecoou em meus tímpanos me dá nojo. Não consigo evitar a sensação de prazer distorcido ao ver seu corpo flácido se contorcendo.

Eu sou diferente desses “Cães Humanos”. Não sou tão feio ou tolo. Eles têm o que merecem por serem “Cães Humanos”.

Algum tipo de alívio. Algum senso de superioridade.

Mas entendo muito bem por que Daiya criou o fenômeno dos “Cães Humanos”. Será terrível se esse tipo de pensamento em relação a “Cães Humanos” se tornasse senso comum. Eles não serão mais considerados humanos e serão apenas zombados e vistos como merecedores de punição. As pessoas vão ver suas mortes como algo normal. Quando essa percepção se infiltrar por todo o planeta, nosso mundo será coberto pela “caixa” dele e se tornará “distorcido”.

Não posso permitir isso. Por isso, para não me render, tento me aproximar e ajudar o homem ainda se contorcendo.

— Não se mova!

Mas Iroha-san me impede.

— Não deixarei você ajudá-lo. Se você se mover, não posso garantir a segurança de Maria Otonashi.

— O quê?!

Você ousa usar a Maria para me chantagear?!

— Po-por que você faria isso? Por que você quer tanto matar ele? Existe realmente algum sentido em fazer isso?!

— Certamente, não há sentido em matar esse cara em particular.

— Então por quê?!

— Mas nós faremos isso repetidamente daqui para frente. Construiremos um novo mundo dessa forma.

Certo.

Afinal de contas, esse é o objetivo deles. Esse é o mundo que Daiya e Iroha-san desejam. O que acabei de ver — pessoas exigindo a morte de um tolo criminoso e então realmente o matando — é, em miniatura, o que a “Shadow of Sin and Punishment” irá causar.

— É por isso que não posso deixá-lo interferir agora. Se o fizer, você continuará a entrar em nosso caminho. Você se tornaria um obstáculo. Acredite ou não, sei muito bem que você pode ser um enorme obstáculo. Portanto, não posso deixá-lo se opor a nós aqui!

O grupo com sacolas de papel está nos observando em silêncio enquanto nos cerca. Do meio deles, Iroha-san vem em minha direção com passos firmes.

— Certo. Acho que está na hora de dizer o que quero em troca da Otonashi-san.

Enquanto Iroha-san se aproxima de mim, a lanterna começa a iluminar seu rosto de uma forma demoníaca. Ela segura meu queixo e puxa-o em direção a ela.

— Pare de resistir imediatamente.

Sua face mal iluminada está tingida de vermelho. Uma linha vermelha está escorrendo de seu rosto como se ela estivesse derramando lágrimas de sangue. As pupilas dela, dilatadas por causa da escuridão, estão fixadas em minha direção, me mantendo imóvel.

— Para provar, ranja os dentes e veja como ele morre. Faça como uma pequena criança chorona cuja mamãe não irá comprar doces para ela. — Iroha-san diz e larga meu queixo. Ela tenta limpar o líquido vermelho de seus lábios com o braço, mas apenas o faz se espalhar ainda mais.

Ah… agora eu entendo.

…Iroha-san não pode mais voltar.

 

Ela não pode mais voltar para o seu “dia a dia”… para uma vida sem “caixas”. Seus olhos são afiados como os de uma águia, e cortam através de mim como facas. Seu rosto ficou entorpecido por causa da loucura.

A mente da Iroha-san está em outro lugar agora. Se eu ajudar aquele homem, ela pode realmente machucar a Maria. Isso é o quão longe ela está da realidade. O que ela planeja fazer comigo? Dada sua situação atual, ela não tem motivo para me libertar. Se ela realmente se aliou ao Daiya, ela pode usar os [servos] que estão aqui para me segurar e me forçar a abandonar a “Wish-Crushing Cinema”.

…Não a deixarei fazer isso.

Mas como devo lidar com o sequestro da Maria? Não tenho uma resposta, e não há uma resposta simples. Sou deixado sem escolha senão esperar por seu próximo movimento. Iroha-san percebe que estou em um impasse e pega seu celular de uma maneira tão calma que parece perturbadora. Antes de fazer qualquer coisa, ela explica:

— Sabe, não há necessidade de por uma [ordem] em palavras. Então, essencialmente, dizer isso em voz alta agora é apenas uma apresentação que estou fazendo para você.

Ela fez uma chamada, posso ouvir levemente a voz de um homem vindo do celular, mas não posso entender o que ele está dizendo.

Iroha-san o responde:

— Sim, estupre Maria Otonashi.

— O quê?! — Exclamo.

O quê? Do que ela está falando?

Com um sorriso triunfante, Iroha-san diz:

— Não te disse para provar que não ficará contra nós? Como abandonar um insignificante e inferior “Cão Humano” pode ser prova o bastante? Bem, é por isso que estou fazendo isso. Se ainda assim você não oferecer resistência, mesmo depois de privá-lo do que você mais preza, acreditarei que você jogou a toalha.

— Você…

Estou queimando de raiva.

— Você acreditou sequer por um segundo que eu aceitaria isso?!

— Você não vai? Como quiser, como quiser. Isso apenas significa que irei encurralá-lo. Te deixarei fora de ação, esmagando sua vontade de resistir. E esse é exatamente o motivo pelo qual Maria será estuprada.

— Iroha-san, você percebe o que está dizendo? Você está essencialmente fazendo a mesma coisa que aquele pedófilo estuprador que você tanto detesta!

— Não exatamente. Não estou fazendo isso para satisfazer meus desejos. Tenho um objetivo claro. Nenhuma guerra, não importa o quão justa seja, pode ser vencida sem matar soldados inimigos. É inevitável que civis acabem envolvidos e morram. Alguns soldados podem até ficar loucos por causa da pressão e começar a massacrar civis. Mas no geral, justiça é justiça. Mesmo que seja verdade que possam haver algumas falhas menores, o que está certo está certo.

— Não me venha com essa! O que você está fazendo não pode estar certo! Falhas menores o caramba! Pare de falar merda!

— Você parece compreender o que quero dizer, não? — Iroha-san diz com um sorriso torto.

É inútil… não posso persuadi-la com lógica. Apenas olhar para os olhos turvos dela, completamente vazios de qualquer sanidade, é o bastante para me fazer entender isso. Independente disso, tenho que parar o abuso dela contra a Maria não importa o quê.

Basicamente, Iroha-san apenas precisa acreditar que me submeti completamente a ela… Nesse caso, há uma opção óbvia.

— Se quer destruir minha vontade de resistir, não precisa ir tão longe!

— Sim? — Com um olhar calculista, Iroha-san me apressa a continuar.

É um plano arriscado. Posso realmente perder o poder de me opor a eles, mas pelo menos serei capaz de evitar que a Maria seja violada. Proponho minha ideia:

— Apenas faça de mim seu [servo].

Certo. Quando isso acontecer, machucar a Maria será inútil. Não há maneira melhor de demonstrar minha submissão. Mas a resposta da Iroha-san é inesperada:

— Impossível. Já tentei.

— …Eh?

— Para que você acha que serve essa lanterna? É claro que é para fazer uma sombra!…Ah, talvez você nem sequer saiba como a “Shadow of Sin and Punishment” funciona? Acho que isso não significa muito para você então. Bem, ouça: se você pisar na minha sombra ou eu pisar na sua, eu posso [controlar] você. Já tentei isso. Mas você se tornou um [servo], Kazuki-kun? Nada mudou, certo?

— Você não pode me transformar em um [servo]?

— Não posso dizer com certeza, mas, pelo menos há alguns minutos eu não podia.

— Por que não…?

— Porque você é um “portador”! As “caixas” interferem umas com as outras. Como quando Oomine-kun ainda podia se mover livremente, apesar de ter sido sugado pelo “Game of Idleness”. Tive certeza de pisar na sua sombra no momento em que você chegou, mas não pude controlá-lo. A propósito, o mesmo vale para a Otonashi-san.

— Você tentou transformar a Maria em uma [serva]?

— Bom, sim. Essa seria a maneira mais fácil, certo? — Ela explica sem qualquer ressentimento.

— Então é impossível fazer “portadores” virarem [servos]…

— Hmm… isso não está completamente certo. De acordo com a Otonashi-san, é possível se você se entregar. Se estiver falando sério, posso tentar mais uma vez?

De maneira ridiculamente casual, Iroha-san dá um passo à frente e…

pisa na minha sombra.

Seu movimento foi tão tranquilo que mal posso acreditar que ela está usando sua “caixa”. Por ela agir de forma tão casual, ela pisou na minha sombra antes que eu sequer pensasse em desviar dela. Não importa o que Iroha-san diga, não há prova de que eu não me tornarei um [servo] quando ela pisar na minha sombra. Sua primeira tentativa deu errado por causa de uma improvável sequência de eventos, talvez? Portanto, não deveria deixar pisar livremente na minha sombra.

Silêncio.

Não sinto nada de estranho enquanto espero.

— Você pode transformar qualquer um em [servo] exceto por “portadores”?

— Sim. Eu realmente gostaria de conhecer um cara que eu não posso.

Ainda não sinto nada. Mesmo que ela tenha pisado em minha sombra, continuo sem ser afetado.

— Se alguém assim existir, ele deve ser uma aberração.

Iroha-san está mentindo. Não… não é bem assim. Ela não está mentindo, ela está apenas errada. Iroha-san disse que pode transformar qualquer um em um [servo] desde que ele não seja um “portador”. Mas ela já cometeu um erro.

 

Porque não sou um “portador”.

Kazuki Hoshino não é o “portador” da “Wish-Crushing Cinema”.

 

— Entende? É por isso que tenho que rejeitar sua proposta de libertar a Otonashi-san em troca de você se tornar o meu [servo].

— Então isso quer dizer…?

— Sim. Hora de voltar ao plano e despedaçar seu coração.

Da forma que as coisas estão agora, não posso impedi-la somente com minhas palavras. Descubro isso do jeito mais difícil. De repente, percebo algo.

 

Uma faca encharcada de sangue está caída aos meus pés.

 

Olho para a Iroha-san. Sei que Iroha-san é uma pessoa maravilhosa. Ela pode ser um pouco atrapalhada quando se trata dos sentimentos dos outros, mas, ao mesmo tempo, ela é extremamente atenciosa. Por ser consciente de sua própria força, ela a usa para ajudar os outros, o que também explica suas ações atuais. Se eu tivesse tempo para uma discussão adequada, Irohasan certamente perceberia que está errada.

Mas não há tempo.

Percebi que é impossível salvar a Maria e a Iroha-san no tempo limitado que me resta.

Então…

Então…

— …Hmm.

Apesar disso, ainda farei um último esforço.

— …Você está errada, Iroha-san.

— Sim? — Ela responde em um tom obviamente desinteressado enquanto coloca a mão próxima ao ouvido.

— Você e Daiya, ambos estão errados.

— Só para saber: sobre o quê?

— Tentar concertar o mundo matando pessoas é errado.

— Só para esclarecer: Não estou interessada em uma opinião baseada em um senso de ética superficial, ok? Matar um assassino antes que ele possa matar cem pessoas é definitivamente a escolha certa, não? Além do mais, a punição dele pode ser usada como um aviso para assustar outros aspirantes a criminoso e impedir que eles cometam novos crimes. Até obtermos essa “caixa”, simplesmente não tínhamos os meios necessários para isso. Vamos lá, esclareça-me: como qualquer coisa sobre isso é algo ruim?

— …Realmente, não vou considerar algo ruim isolar esses tolos criminosos que apenas fazem os outros sofrer. Existem pessoas que não merecem viver. Não quero acreditar nisso, mas acho que é inegável.

— Não é? Você está negando apenas porque está preso pela opinião popular. Ela faz você superficialmente considerar o que estamos fazendo como algo ruim sem realmente pensar sobre isso.

— Não é isso. Afinal… como você pode escolher?

— Escolher o quê?

Como ela pode não ter entendido ainda? Sinto uma irritação começando a crescer dentro de mim. Diante da tola Iroha-san, franzo meu rosto.

— Quem merece morrer.

Ela prende a respiração, aparentemente tendo percebido meus sentimentos.

— Como você e o Daiya, que não são nem divinos nem perfeitos, determinam quem merece morrer? Suas escolhas são infalíveis?

— Nó-nós…

— É claro que não. Vocês decidem matar pessoas com informação imperfeita.

— …Claro, não posso dizer que tenho uma taxa de erro de 0%. Mas como isso é diferente do nosso sistema legal atual? Nem todas as penas de morte aplicadas pelos juízes são justificadas… Além disso, as escolhas que faço dificilmente estão erradas. Por exemplo, todos devem concordar comigo que, no mínimo, esse molestador de crianças merece morrer.

— Você tem certeza? É verdade que ele machucou várias pessoas, mas talvez ele tenha o potencial de salvar ainda mais. Pela sua lógica, então ele não mereceria morrer.

— Hã? Não tem como esse verme ter esse potencial!

— Acho que você provavelmente está certa, mas como você pode ter certeza absoluta?

— …Eu posso. Só de olhar, já sei o quão estúpido ele é. Ele não pode possivelmente salvar mais pessoas do que feriu.

— Mas isso é presunção sua! Embora você não seja mais especial do que ninguém, você começou a se sentir especial porque obteve a “Shadow of Sin and Punishment”. Embora você simplesmente tenha obtido uma “caixa”, você se intoxicou com esse sentimento de poder e acredita que sempre será capaz de dar um veredicto justo. Você sabe qual é a sua situação atual?

Continuo:

— Chama-se “estar cheia de si mesma”.

Silêncio.

— É muito fácil prever o que acontecerá! No começo, você escolherá pecadores para eliminar que todo mundo, mais ou menos, pode aceitar. Mas isso é apenas no começo. Você está tão cheia de si mesma que inevitavelmente se deixará levar em pouco tempo. Pouco a pouco, você começará a escolher pessoas que estão no meio termo. Você se degenerará mais e mais e, no final, você transformará pessoas que meramente te olharem torto em “Cães Humanos”. Bem e mal não irão mais importar, e você simplesmente eliminará pessoas sempre que elas a incomodarem. Talvez já seja tarde demais? Afinal de contas, você está para esmagar eu e a Maria apenas porque estamos em seu caminho.

Minha irritação foi aumentando enquanto eu falava. Por que Iroha-san e Daiya não entendem um detalhe tão simples, embora eles supostamente sejam tão inteligentes? Por acaso eles são, de alguma maneira, incapazes de imaginar esse cenário que acabei de descrever?

— O que você está fazendo não é nem julgamento nem punição justa. É assassinato. Ambos, você e o Daiya, ficaram obcecados com o sentimento de poder que a “caixa” dá a vocês e começaram a cometer crimes. O que vocês dois estão para começar não é diferente dos massacres que mancham a história da humanidade! Vocês não estão criando uma revolução… vocês estão apenas cometendo outro erro terrível sem justificação!

Caminho em direção a Iroha-san, que ainda está em silêncio.

— Portanto, impedirei vocês.

Também me certifico de ficar bem ao lado da faca.

Silêncio.

Iroha-san parece estar um tanto confusa por causa das minhas palavras.  O que estou dizendo é definitivamente verdade, e ela deve perceber isso também. Mesmo assim, ela responde:

— …Que expressão é essa?

— …Expressão?

— Sim, sua expressão! Mesmo que você esteja tentando me encurralar com suas palavras e me enfrentando — ela continua amargamente. — Por que você está sorrindo tão gentilmente?

Em resposta, automaticamente toco em meu rosto.

— Normalmente você não seria capaz de sorrir assim. Em primeiro lugar, uma pessoa normal não seria capaz de dizer o que você acabou de dizer.

—…Eu não disse nada de estranho ou extraordinário!

— Bom, você não disse. Mas uma pessoa normal não seria capaz de fazer argumentações tão objetivas em uma situação como essa. Se a garota que você ama foi feita de refém e você perdeu a compostura, você normalmente não deveria ser capaz de formar uma argumentação tão complexa e lógica.

— Está dizendo que eu deveria ser mais emocional?

— Não estou falando sobre ser emocional ou racional. Suas ações estão em um nível completamente diferente. Você não pode fazer isso normalmente. Simplesmente… não pode…

Uma mistura de confusão e pavor aparece em seu rosto.

— De onde…

Com essa expressão, ela pergunta:

 

— De onde você contempla o mundo?

 

Não faço ideia do que ela quer dizer.

Mas Daiya certa vez me disse algo misterioso similar a isso. Ele disse que eu estava flutuando ou algo assim. A pergunta dela provavelmente significa algo parecido. Ah… acho que sou bem anormal. Sempre neguei, mas está na hora de admitir. Parece ainda mais confuso quando tento pôr em palavras, mas se eu tivesse que me descrever honestamente:

 

Há muito pouca “identidade” dentro de mim.

 

— …Basta, Kazuki-kun. Não importa agora. Não vou parar.

— Você não concordou comigo?

— Você pode ter razão. Acho que estamos nos achando demais, um pouco, e não somos perfeitos e cometeremos erros. Mas isso não é motivo para deixar de agir. Não devemos desistir por causa disso. Não devemos ser derrotados pela realidade e aceitar os males da humanidade como inevitáveis. Não devemos permanecer indefesos. Não farei isso. Mas obrigado pela sua crítica, levarei em conta e pensarei no assunto antes de matar alguém!

— Pensar um pouco não tornará sua seleção justa!

— Diga o que quiser, mas não considero essa forma de ação completamente errada.

Depois de dizer isso, ela continua a falar com os olhos cheios de loucura:

— Portanto, não vou parar. E não vou mudar de ideia sobre a Otonashi-san.

Hum. Então é isso, no final das contas. Um leve suspiro escapa dos meus lábios.

— O que esse suspiro deveria significar? Você finalmente desistiu? Acabei com sua resistência?

— Sim, eu desisto!

De encontrar uma maneira de não precisar matá-la.

Muito bem. Não devo deixá-la notar minhas intenções. Se eu não fizer isso em um instante, serei pego pelos [servos] que estão ao nosso redor. Preciso esfaqueá-la sem hesitação. Não posso deixá-la sentir minha intenção assassina.

Matar.

Preciso esfaqueá-la no coração e matá-la instantaneamente, mas de forma casual, como se estivesse assoviando um ritmo conhecido.

— …Pessoas que merecem morrer, hein?

Iroha-san acha que tais pessoas existem.

No fim das contas, também somos humanos. Então isso não é algo que podemos decidir por nós mesmos. Mesmo eu posso pensar em algumas pessoas que acredito que deveriam morrer, mas isso ainda é errado. Precisa ser errado. Se não for, então o que estou para fazer será perdoável. Eu não quero isso. Não me perdoarei por esse ato. Estou meramente cometendo o mesmo erro que eles.

Pessoas que eu acho que merecem morrer.

Da minha perspectiva…

…todos que machucarem a Maria merecem morrer.

 

Portanto, enfio a faca no coração da Iroha-san.

Não fiz nenhum movimento supérfluo. Esperei o olhar dela vagar um pouco, peguei a faca no chão e a esfaqueei no mesmo movimento que usei para me levantar. A lâmina desapareceu no corpo dela.

Morra.

Não havia pensamentos desse tipo em minha mente. Não tive nem um pingo de intenção assassina. Meramente fiz o que precisava ser feito.

Isso é tudo.

Ah, poderia ser que…

Poderia ser que essa parte da minha personalidade pareceria anormal para os outros? Se for, absolutamente devo evitar que a Maria a veja. Certo, se ela visse, ela iria…

 

— O que… você está fazendo, Kazuki?

Meu coração para por um instante.

— Ah, aaah…!

Por quê?

Por que ela está…?

Essa forma de me chamar. Essa entonação. O tom de sua voz. A voz que amo tanto que pertence a…

— Por que… você está… fazendo isso, Kazuki?

Uma garota com uma sacola de papel cobrindo a cabeça se aproxima de mim.

— Er, ah…!

…Por que não percebi? Por que não a percebi mesmo que eu devesse ser capaz de discernir a presença dela, mesmo sem ver seu rosto? Simples, está escuro, e eu não parei para examinar cada membro da brigada dos sacos de papel. Por que não pensei mais sobre a escolha da Iroha-san de me chamar para um lugar tão escuro?

Por que não percebi o que Iroha-san mais queria esconder?

A garota esbelta tirou a sacola de sua cabeça.

— Maria.

É a Maria. Sem dúvida alguma, é a Maria.

— Kazuki… — Ela chama meu nome com a voz trêmula.

— Por que você…?

— Porque eu mandei.

Iroha-san responde meu sussurro dando uma resposta da qual eu já tinha uma vaga noção. Mesmo que a faca em minha mão ainda esteja perfurando seu peito. …Sim, é claro que eu percebi. Percebi no momento em que a esfaqueei que não houve o sentimento de cortar algo.

Iroha-san puxa a faca que deveria estar enfiada em seu coração, e a pressiona contra a palma da minha mão. Não sinto dor alguma. A lâmina simplesmente recua de volta para a empunhadura.

Não tem como eu matar alguém com essa faca… Não, essa imitação.

— Você quer uma opinião objetiva sobre seu comportamento nos últimos minutos, Kazuki-kun?

Enquanto ainda estou abalado, Iroha-san joga na minha cara:

— Se chama “estar cheio de si mesmo”.

Ela tira a faca das minhas mãos impotentes.

— Uma [ordem] para você, cão. Comece a latir alegremente.

O homem nu que supostamente tinha desmaiado em agonia se senta imediatamente. Ele fica de quatro e corre ao nosso redor latindo de uma maneira animada, sem se preocupar sobre estar pintado de vermelho sangue.

— Eu não te disse que não há necessidade de pôr uma [ordem] em palavras?

Iroha-san esfaqueia o “Cão Humano” enquanto ele corre. Mesmo que aquela faca não possa machucar realmente, ele grita de dor.

— AINNNNNNNNNNNNNNNNNN! — E desmaia novamente.

— Nós jogamos sangue artificial nele enquanto você não estava olhando. E então eu [ordenei] a esse “Cão Humano” que gritasse e agisse como se estivesse ferido quando eu o esfaqueasse. Você engoliu como um idiota.

Ah, pensando nisso, eu nunca a vi realmente esfaqueá-lo porque os servos dela estavam no meu caminho. Só o ouvi gritar e depois o vi se contorcendo em agonia, coberto de vermelho. Como está escuro, é difícil distinguir sangue falso de sangue verdadeiro, e é fácil para ela esconder os pacotes de sangue falso.

— Por quê… por que você…

— Porque, bem, fui [ordenada] pelo Oomine-kun. Ele me deu uma única [ordem]: expor a traição de Kazuki Hoshino à Maria Otonashi.

Iroha-san olha para Maria.

— Foi mais difícil do que eu imaginei! Quero dizer, ela acreditava em você tão cegamente. Era óbvio que ela não ia acreditar imediatamente que você a traiu.

Maria morde os lábios.

— Mas trazer a Otonashi-san foi extremamente fácil. Eu usei o mesmo método com vocês dois, Kazuki-kun: Eu a ameacei. Dizer “se você não me obedecer ou tentar me enganar, meus [servos] irão matar Kazuki-kun” foi mais do que o bastante para fazer a Otonashi-san me seguir, mesmo que tenha soado extremamente fácil. Naturalmente, uma exigência tão inofensiva quanto “nos observe em silêncio” foi fácil o bastante para ela tolerar. E então eu mostrei a ela. — Iroha-san diz, enquanto enfia a faca falsa no próprio peito. — Como você tentou me matar.

Tudo…

Tudo o que ela fez e disse foi puramente com a intenção de mostrar a Maria que eu estava disposto a matar? Colocar a faca ao meu alcance, me enfurecendo ao dizer que mandaria seus servos estuprarem a Maria e me inspirando a pensar em um plano de assassinato ao cometer um falso assassinato diante dos meus olhos…

E no final, eu a esfaqueei com a faca falsa assim como ela planejou. Iroha-san estala os dedos. Em resposta, o bando com sacolas de papel caminha para longe de nós tranquilamente, de forma desorganizada, como se para me dizer que já tinham cumprido seu papel.

— Me disseram para observar porque você supostamente tentaria matar a Shindou — ao mesmo tempo em que diz isso, Maria evitava meu olhar completamente. — Eu não acreditei nela. Mesmo quando ela me disse que o Oomine já havia começado a usar sua “caixa” e eu percebi que ela estava falando a verdade, não pude acreditar que você mataria alguém. Resolver um conflito matando alguém… é inaceitável. Quando você recorre ao assassinato, sua degradação é completa e suas crenças perdem todo o sentido. Você devia saber sobre os meus sentimentos sobre o assunto. Você também deveria saber que não posso colaborar com alguém assim. E mesmo assim, você…

Sem palavras, ela apenas chacoalha a cabeça.

— Não, não vamos fazer isso ser sobre mim. Mas eu ainda não entendo, Kazuki. Para começo de conversa, você não é um assassino. Mesmo que tenha sido só uma tentativa de assassinato, o fato de que você tentou matar alguém causaria ondas de remorso. Sendo atormentado por um pecado tão grave, você não poderia possivelmente retornar ao seu “cotidiano” e, além disso, aquele “cotidiano” seria distorcido porque você seria um homem diferente. Ah, mas os problemas vão muito além da questão psicológica, já que a lei iria privá-lo de seu “cotidiano” se você cometesse um assassinato, não é mesmo? Portanto, você… uma pessoa que valoriza seu “cotidiano” acima de qualquer outra coisa jamais escolheria matar.

Ela cerra os punhos.

— Não tem como você cometer assassinato… não tem como! Não tem como o Kazuki fazer isso!

Maria me encara com olhos esperançosos.

— Sim, está certo! Você não pode! Você jamais faria isso! Você deve estar sendo controlado. Provavelmente, você foi controlado pela “Shadow of Sin and Punishment” e forçado a agir dessa forma. Certo? Kazuki, me diga! Estou certa? — Ela pergunta chacoalhando meus ombros.

— Por favor, negue que você é responsável por isso.

Maria está me implorando com cada parte do seu ser. Mesmo que ela tenha visto meu ato com seus próprios olhos, ela ainda quer que eu negue. Mesmo que ela saiba muito bem que sou o culpado, ela ainda está pedindo pelo impossível. Não posso acreditar que a Maria está agindo dessa forma. Não posso acreditar, mas…

Se é assim, tirarei vantagem de seus sentimentos. Continuarei a enganá-la.

— Você está certa!

Sou horrível. Minhas próprias palavras me fazem querer vomitar. Mas, se eu admitir a verdade, Maria irá se separar de mim e jamais voltará. Portanto, preciso recorrer a mentiras desesperadas, não importa o quão sujas elas sejam.

— Então no fim… — Ela sussurra — No fim é assim que as coisas são.

Ela parece aliviada. Maria acreditou na minha mentira descarada. Ela se deixou ser enganada. Sim… certo. Maria também não quer se separar de mim. Ela ainda quer acreditar em mim. Nossa ligação não pode ser quebrada tão facilmente. Então devo mentir até o fim.

— Maria, ouça…

—Hehe, estou aliviada! Com isso…

Com uma expressão realmente aliviada, Maria continua:

 

— Eu não preciso mais… acreditar em ninguém.

 

—… Hã?

Sua expressão.

E suas palavras.

Não se encaixam.

— Eu meio que… não, na verdade, percebi há muito tempo! Então no final das contas… No final das contas…

Após repetir o que havia começado a dizer alguns momentos atrás, ela continua dessa forma:

— Então no final das contas… você estava me traindo.

— Ah…

Toda a minha energia é sugada e meus braços caem sem força para os lados. Olho hesitante para Maria.

— Oh, eu sabia. Ei, eu costumava ser capaz de ler sua mente apenas analisando os movimentos dos seus músculos faciais! Não consigo mais fazer isso, mas não gastei uma vida inteira ao seu lado? Ainda posso ver através de algo tão simples quanto uma mentira. Mas tentei desesperadamente persuadir a mim mesma pensando “não há prova absoluta”. Evitei o problema até que houvesse uma evidência decisiva da sua traição. Mas agora a encontrei. Sua lamentável tentativa de mentir me fez perceber que você mudou muito além do que eu imaginava.

Eu estava pensando nesse momento que nossa ligação não pode ser quebrada tão facilmente.

…Quão estúpido eu posso ser?

Eu estive traindo ela repetidamente. Estive a enganando o tempo inteiro desde a “Game of Idleness”. Eu estive destruindo nossa ligação, que originalmente era indestrutível, pouco a pouco. E agora, graças às minhas constantes traições, essa ligação finalmente se partiu de vez.

— Aah, estou tão aliviada! Eu sabia que não podia continuar assim. Estava me culpando por estar me enganando e sofrendo por causa disso. Eu sou uma “caixa”, então não devo ter um coração humano. Não devo me prender a alguém e me apegar a ele. Independente disso, eu não podia suportar ficar longe de você, Kazuki, e comecei a procurar por motivos para ficar com você, como encontrar “O”. Até fiquei com medo! Tive medo da possibilidade de perder meu objetivo e desaparecer completamente!

Meu objetivo era esse: eu queria que “Aya” desaparecesse para que “Maria” pudesse viver.

Mas…

— Mas… você me traiu e me mostrou que eu estava errada. Você me fez perceber o quão fraca sou. Você me fez tomar essa decisão.

Cada uma de suas palavras me faz sentir como se meu coração estivesse sendo perfurado. Maria era a pessoa que eu menos queria ferir. A pessoa que eu mais queria proteger. E mesmo assim, ela foi a pessoa que eu mais feri, a pessoa que eu arruinei.

— Maria, ouça, foi tudo por…

Não posso deixá-la partir. Contudo:

— Não!

Maria vira de costas para mim.

— Eh?

— Não me chame de Maria.

Não tenho permissão nem para isso.

— Eu abandonei esse nome há muito tempo. Ele persistiu apenas porque você decidiu continuar usando ele, mesmo que tendo dito-o apenas por impulso. Mas nossa relação está acabada agora, então não há mais necessidade de usar esse nome. Minha vida como Maria acabou.

Com essas palavras, Maria se vira novamente em minha direção e olha diretamente nos meus olhos… E diz:

 

— Eu sou a “caixa” chamada “Aya Otonashi”.

 

No mesmo momento. Uma certa imagem aparece em minha mente marcando o início de uma recordação. É uma imagem pálida, estática e distorcida. É a sala de aula que se repete eternamente. E Maria está na plataforma do professor, em tom de sépia. Ela se apresenta. Não consigo perceber sua expressão. Existem milhares de padrões, então não consigo determinar qual deles é o verdadeiro.

— Sou Aya Otonashi. Muito prazer em conhecê-los.

— Sou Aya Otonashi… prazer.

— Aya Otonashi.

— Aya Otonashi.

Ela se acostumou a dizer dentro daquele mundo repetitivo. E conforme o tempo foi passando, suas emoções desapareceram de seu rosto. Ela usou aquele tempo virtualmente infinito para criar uma personalidade separada. Ela se afastou de todos para se tornar uma “caixa” perfeita.

Aquela garota. A expressão daquela garota.

—… Ah…

Finalmente percebi. Eu não tinha percebido porque estive sempre com ela. Maria recentemente começou a expressar suas emoções como uma pessoa normal. Ela começou a se lamentar, ficar irritada e rir como uma pessoa normal. Eu não percebi. Embora pudesse ter encontrado outro caminho se tivesse percebido antes, falhei em perceber. Maria perdeu seus sentimentos normais mais uma vez. Um sussurro escapa por entre meus lábios.

— Não… Continuarei te chamando de Maria para sempre!

Silêncio. Ignorando minhas palavras, ela estende a mão para Iroha-san. Iroha-san imediatamente entende as intenções da Maria e entrega a ela a faca falsa.

— Kazuki. Você mudou. No instante em que você esfaqueou o peito da Shindou com aquele brinquedo, você mudou de uma vez por todas. Você não é mais meu companheiro, mas um ser que existe para me corromper. Portanto…

Maria me faz segurar a faca por alguma razão.

 

— …Você agora é meu inimigo.

 

Não sei porque, mas Maria me abraça gentilmente com um sorriso calmo.

— …Maria?

Talvez ela não queira me deixar no final das contas? Mesmo que isso seja absurdo, não posso evitar me apegar a essa esperança. Mas, como esperado, a verdade é totalmente diferente. Eu percebo. Percebo que a faca que estou segurando está perfurando o peito dela.

— Ah…

É claro, é só um brinquedo. Não está ferindo a Maria realmente. Mas apenas aconteceu de ser um brinquedo hoje.

— É assim que é — ela sussurra — Quando estou ao seu lado, você perfura o meu coração dessa forma.

Ela fala com um tom de voz terrivelmente gentil, o que apenas dá às suas palavras ainda mais impacto. Ela está certa. Isso é exatamente o que eu estava tentando fazer. Isso é o que acontece quando nos encontramos como inimigos: eu coloco uma faca no coração da Maria.

— Kazuki.

O corpo da Maria está magro e frágil como sempre. Ela continua, com a faca em minha mão ainda pressionada contra o peito dela:

— Obrigado por tudo.

Essa delicada jovem garota continuará a lutar sozinha. Ela continuará lutando mesmo após ser traída e esfaqueada. Ela continuará lutando por completos estranhos, abandonando sua própria felicidade.

Posso ver como isso irá terminar. Em derrota. Em um futuro não tão distante… não, em um futuro próximo, Maria será esmagada pelo peso desse fardo. Afiando sua alma como uma lâmina, desaparecerá uma vez que não sobrará mais nada para afiar.

 

Mesmo que eu possa deduzir seu destino, não posso impedi-la.

 

Maria desfaz o seu abraço. Finalmente, ela se liberta da faca. Ela a toma de minhas mãos e a retorna à Iroha-san, que esteve nos observando com uma profunda falta de interesse.

Sem sequer se dar ao trabalho de olhar para mim, Maria me dá as costas novamente e começa a caminhar.

— Kazuki. — Ela sussurra — Não consegui terminar os hambúrgueres sozinha.

Tolo como sou, não percebi imediatamente, mas…

Aquelas foram as palavras de despedida da Maria.

 

Daiya Oomine – 11/09 SEX 20h57min

— Porque você se parece comigo. — explica Maria Otonashi na tela.

Em resposta, sussurro:

— Mas o quê…?

Yanagi e eu fomos teleportados pela enésima vez e estamos assistindo ao terceiro filme. Yanagi senta atrás de mim à direita, e ao meu lado está a casca de Maria Otonashi.

Otonashi parece ser a personagem principal nesse filme, “Repetir, Recomeçar, Recomeçar”. Estou confuso. Por que a Otonashi? Nós não compartilhamos nenhuma memória especial. Não sou próximo dela da forma que sou da Rino ou do Haruaki. Se essa é realmente uma exibição dos meus pecados, eu fiz algo a Otonashi sem ter percebido? A Otonashi como personagem principal não tem muito pouco impacto, se o objetivo é me fazer sofrer?

Foi o que pensei de início. Mas minhas previsões estavam completamente erradas. O que estou vendo é completamente inesperado. É uma cena do “Rejecting Classroom” da qual não tenho memórias. Eu e Otonashi estamos tentando encontrar uma forma de escapar.

— Eu cooperei com a Otonashi…? Mesmo antes do Kazu?

É uma visão profundamente estranha. Além disso, minhas interações com a Maria não são hostis (como são agora) ou superficiais (como costumavam ser). Pelo contrário, estou expressando familiaridade.

— O que há com aquela expressão estúpida na minha cara?

…Não, acho que não é de se estranhar.

Olho para o rosto de Otonashi na tela. Ela se cobriu de transcendentalidade. Mas não é porque ela se tornou transcendente; é meramente porque ela reteve todas as suas memórias acumuladas das repetições daquele mundo, o que inevitavelmente a faz parecer dessa forma para o resto de nós.

Outras pessoas podem não ser capazes de notar a diferença, mas eu posso. Posso notar que a personalidade dela foi construída. O que sobra é uma garota que, assim como eu, se esforça para obter algo. Devo ter sentido um senso de familiaridade como resultado.

— Você tem que me ajudar!

Por causa disso, acho, eu disse aquilo para ela na 1.536ª repetição do 2 de março…Uou, espere aí! Você está tentando me matar de vergonha? A “Wish-Crushing Cinema” mudou sua aproximação e agora está tentando me humilhar?

Como eu nem sequer posso me lembrar do que aconteceu na “Rejecting Classroom”? …Penso por um momento, mas me corrijo imediatamente: Eu não mantinha minhas memórias. Diferente do Kazu, aquilo não era possível para mim. Contudo, assim como aconteceu no “Game of Idleness”, onde meu NPC foi capaz de ver através dos meus planos, fui capaz de entender o que aconteceu nas repetições anteriores com precisão o bastante graças às explicações da Otonashi. Nesse sentido, devo ter atendido os requerimentos mínimos dela para me tornar um parceiro.

— Estou perdido. O que posso fazer pela Kiri? Nada! Se a toco, ela fica pálida. Se a abraço, ela se lembra do passado e chora. Não importa o que eu faça, só posso feri-la. Mas ela precisa de mim. Ela não pode se virar sozinha. Se eu deixá-la, ela certamente cometerá algum erro grave. Se me aproximar e deixá-la são ambas escolhas erradas, me diga, o que devo fazer?

O que diabos estou falando… contar essas coisas a Otonashi não serviria de nada. Ela é tão impotente quanto eu. Contudo, meu eu de uma época diferente continua falando.

— Acho que você pode me ajudar aqui — digo desesperadamente na tela. —Você pode ser capaz de encontrar uma solução para a Kiri em algum lugar durante essas infinitas repetições.

Tal solução não existe! Meu eu na tela é tão tolo que eu gritaria até meus pulmões esvaziarem se minha voz pudesse alcançá-lo. Eu era incrivelmente fraco naquela época. Mas a resposta da Otonashi é incrivelmente irresponsável. Nosso problema continua sem solução até hoje, então sei que ela nunca encontrou uma solução. Mesmo assim ela diz:

— Certo. Vou encontrá-la para você.

 

A próxima cena é durante a 1.539ª repetição do dia 2 de março, três “transferências escolares” mais tarde. Ela me diz:

— Descobri uma solução.

Do que ela está falando? Não há solução… Não pode haver solução.

— Na verdade, descobri a melhor coisa que você pode fazer pela Kirino.

— A melhor coisa… e o que seria?

Por mais constrangedor que seja, meu eu na tela não pode esconder sua empolgação. Eu devo ter estupidamente colocado minhas expectativas lá no alto. Devo ter esperado que houvesse uma solução que eu não podia pensar por conta própria. Mas Otonashi apenas diz:

— Deixe-a sozinha.

Não preciso nem dizer que fiquei desapontado com aquela resposta. Até fiquei irritado.

— Não me venha com essa! Quem a salvará então? Ou você quer me dizer que a Kiri já está bem?!

— Não, as feridas da Kirino são profundas. Sinto dizer que elas não vão cicatrizar.

— Por que você está me dizendo para abandoná-la então?!

— Porque ela não pode ser salva por ninguém.

— O que você disse?!

— Essa é a profundidade das feridas dela. Você não regeneraria um braço perdido, não é mesmo? Feridas com essa profundidade são coisas que não podem ser cicatrizadas.

— Pare de bancar a esperta! Você desistiu de tudo por ter gastado tanto tempo inútil nessa “Rejecting Classroom”? Se você perdesse um braço, você ainda poderia substituí-lo por uma prótese por meio de uma operação, não é mesmo?

— Talvez tenha alguém por aí que seja capaz de fazer isso por ela. Mesmo que isso não reparasse completamente suas feridas, ainda seria um ótimo substituto. Mas Oomine, você não é capaz de fazer isso por ela.

— Por quê?! Quem seria capaz de fazer isso senão eu?!

— Você deveria ter percebido isso. — Otonashi contorce seu rosto amargamente. — Você está mantendo as feridas dela abertas.

Eu me mantenho em silêncio na tela.

— Por sua causa, Kirino deseja voltar a ser como era antes. Ela não pode aceitar o braço artificial mesmo que ele possa salvá-la… porque se ela aceitar a prótese, não será mais a mesma de antes. Meramente estando ao lado dela, você está impedindo-a de seguir em frente.

Sim, eu sei. Até mesmo aquela versão fraca de mim deveria saber, se ele fosse honesto consigo mesmo.

— Você já não percebeu isso? Mesmo assim, você… não, por causa disso, eu acho. Por ter percebido, você busca uma maneira de ajudá-la. Também é verdade que abandoná-la não é a solução perfeita… se você, a pessoa que mais a entende, a abandonar, novos problemas vão surgir. Dito isso, cheguei à conclusão de que se separar dela é a melhor escolha. Portanto, você não pode fazer nada pela Kirino além de se separar completamente dela.

— Se eu fizer isso, ela sofrerá e pode até mesmo cometer um erro que a leve a mais sofrimento. Ela pode se prender em um ciclo vicioso. Ainda assim, você está me dizendo para me separar dela?

— Sim.

— Você está zombando de mim?

— Não estou. Se você a deixar, ela pode cair em desespero, mas se você ficar, ela irá cair em desespero. E isso não é tudo. Se você não a deixar, então não apenas ela será consumida pelo desespero como suas próprias feridas se tornarão fatais mais rapidamente.

— Não importa o que acontece comigo!

— Idiota! É claro que importa! — Ela me pega de surpresa com uma explosão emocional… tão estranha para a sua personalidade frígida. — Você… quer acabar como eu?

Aquele foi seu amargo grito silencioso. A essa altura, eu sei seu significado.

Agora mesmo, estou indo em direção à minha própria ruína com certeza. E estou certo de que o mesmo se aplica à Otonashi. Pensando nisso, isso faz total sentido: até hoje, cada uma de suas ações não contém nada senão auto sacrifício. Ela vive por algo além dela mesma. Ela acredita ser o bastante que uma pessoa tenha escolhido esse tipo de existência, e ela já é essa pessoa.

Contudo, não tinha como eu aceitar aquilo de uma garota misteriosa que havia acabado de se transferir. Nós podíamos ter sido parceiros em outros “2 de março”, mas eu não tinha aquelas memórias. Diferente do Kazuki, não dei importância adicional às suas palavras.

— Se você não tem intenção de me ajudar, não cooperarei mais com você.

— …Oomine.

Contudo, Otonashi já havia passado o equivalente a mais de 1.539 dias comigo. Julgando pela personalidade dela, aquilo era mais do que o bastante para ela desenvolver certo nível de apego a mim. Portanto, seu desejo de me ajudar ficou mais forte.

— Se você realmente insiste em curar as feridas dela completamente, só existe uma solução, e eu irei aceitá-la. Obterei sucesso pelo seu bem e de todos os outros.

É por isso que ela me disse:

— Irei completar a minha “caixa”.

Mas, como fomos naturalmente incapazes de aceitar essa solução, nos separamos de vez. Porém, mesmo depois do que tecnicamente deveria ter sido nossa separação final, nós continuamos sendo aliados.

O motivo é simples: Otonashi me manteve ignorante sobre nossa decisão de nos separarmos na 1.539ª repetição. E é claro, aquilo foi o bastante para reverter a nossa separação, já que a minha memória era apagada no início de cada repetição. Mas ao mesmo tempo que isso podia ser verdade para mim, Maria não tinha sangue frio o bastante para fingir que a dor emocional que me causou naquela repetição nunca existiu. Ela manteve aquele incidente em mente, embora eu nunca tenha me lembrado dele. Não havia mais confiança mútua entre nós.

E na 1.542ª repetição do 2 de março, inesperadamente, chegamos até a Mogi. Mas chegamos ao nosso limite naquele ponto. Não conseguimos fazer mais progresso. O “Rejecting Classroom” era baseado no “desejo” da Mogi de não ter arrependimentos no dia 3 de março e, portanto, era feito de forma que todos que descobrissem o “portador” perdessem aquelas memórias.

Na 1.543ª repetição, até a Otonashi havia esquecido que Mogi era a culpada. Nós chegamos a Mogi mais algumas vezes depois daquilo, mas nenhuma vez fizemos mais progresso. Já que Otonashi renunciava à violência completamente, ela não podia destruir a “caixa” da Mogi, e minhas palavras não alcançavam a Mogi. Além disso, eu não possuía as memórias e frustração geradas por aquelas repetições inacabadas, então não estava desesperado o bastante para lançar um ataque sem restrições contra ela. O problema não era grave o bastante da minha perspectiva para justificar feri-la, embora fosse a única solução.

Chegamos a um beco sem saída. E, como revelado no final, Kazu era o único capaz de lidar com a “caixa” da Mogi. Portanto, minha relação com a Otonashi terminou.

— Adeus.

No 1.635º dia 2 de março, após mais de cem repetições gastas juntos como parceiros, Otonashi finalmente desistiu de mim. Franzi o rosto, pego de surpresa por suas súbitas palavras de despedida.

A primeira aula havia acabado de terminar, e Kazu estava sentado perto de mim. Ele também estava confuso, e perguntou:

— Daiya, você já conhecia ela?

— Não, não que eu me lembre.

O motivo da minha surpresa, é claro, não era ela ter terminado nossa longa aliança, mas por Otonashi ser uma mera estranha para mim, dado que minha memória era apagada dentro do “Rejecting Classroom”. Palavras de despedida pareciam completamente fora de lugar.

Surpreendentemente, Otonashi pareceu ferida pela minha atitude. Mesmo que ela já devesse ter se acostumado a ser motivo de confusão para todos após repetir o mesmo dia tantas vezes, ela não podia simplesmente ignorar isso.

…Por quê?

Não tenho ideia, mas posso criar uma hipótese: Otonashi estava completamente sozinha naquele mundo, mas, ao se aliar a mim, ela encontrou alguém com quem conversar sobre sua experiência de repetir o mesmo dia de novo e de novo. Foi a primeira vez desde que ela entrou na “Rejecting Classroom” que ela se livrou da solidão.

Mas ela ficou sozinha novamente.

Eternamente sozinha naquele mundo onde tudo provavelmente se repetiria eternamente. Se isso for verdade… então é extremamente simples: ela estava solitária. Isso significa que ela ainda era fraca após 1.635 “transferências escolares”. Sem dizer nada sobre a “caixa”, Otonashi continuou:

— Quando a 1.635ª repetição terminar, você irá esquecer tudo, de qualquer forma. E, provavelmente, não será capaz de usar meu conselho. Portanto, o que estou para dizer servirá apenas para minha autossatisfação e mais nada. Mesmo assim, deixe-me dizer:

Ignorando minha confusão que aumentava gradativamente, ela continuou.

— Não use uma “caixa”. Nunca.

É um aviso que o atual “eu” não se lembra de ter ouvido.

— Você tentaria garantir um “desejo” impossível se obtivesse uma “caixa”. Você perseguiria um ideal com o qual não pode lidar… assim como eu.

Mas o que ela estava tentando conseguir com aquelas palavras? Não é preciso dizer que o aviso dela por si só era sem sentido; eu esqueci sobre ele assim como ela previu e acabei usando uma “caixa”. É quase como se ela estivesse falando consigo mesma.

Oh, entendo.

Ela estava apenas falando consigo mesma. Otonashi estava apenas colocando sua própria história em palavras. Otonashi estava apenas tentando tirar as angústias de sua mente ao colocar sua frustração para fora, algo que ela não tinha com quem compartilhar dentro do vazio daquele mundo. Naquele ponto, Otonashi havia se enfraquecido a esse nível.

— Eu sei o fim que leva um “desejo” desses. Ele leva à…

Portanto, o que ela descreveu foi essencialmente o final dela mesma.

— Ruína.

Aquilo foi uma triste confissão. Confissão que deveria alcançar o meu coração.

— …Hein? Mas que merda você está falando?

Mas não me lembrei do tempo que nós passamos juntos e não respondi a ela com palavras reconfortantes. Não houve milagre. Nós dois juntos não conseguimos criar um milagre. No filme, eu simplesmente estranhei uma garota desconhecida que estava falando coisas sem sentido. No final, eu a ignorei e saí com o Kazu.

Otonashi foi deixada sozinha naquela sala.

Ela ficou paralisada, cercada pelos sussurros curiosos de nossos outros colegas. Cerrando dentes e punhos, Otonashi continuou a direcionar suas palavras ao espaço vazio onde eu estive.

— Mas o que eu faria se você descobrisse sobre as “caixas” e conseguisse uma mesmo assim? Eu não a tomaria de você. Eu enfrentaria qualquer outro “portador”, mas posso não conseguir te enfrentar.

Não conseguiria me enfrentar? Do que ela está falando? Isso é pura…

— …Ah.

Espere. Na verdade, Otonashi não fez nada contra mim depois que voltei para a escola armado com a “Shadow of Sin and Punishment”. Ei, não me diga que…?

Repentinamente, considero certa possibilidade.

Eu costumava pensar que ela não havia me atacado porque ou havia sido enganada pelo Kazu ou estava deliberadamente indo de acordo com o que ele dizia apesar de conseguir ver através das mentiras dele. Mas, em ambos os casos, eu costumava pensar que Kazu era o motivo da falta de ação dela.

Mas, se ela estiver falando a verdade na tela, poderia ser que ela também não sabe como lidar com a minha “caixa”?

— Talvez eu me alie a você de novo… não, isso está fora de questão. Eu não cooperaria com você. Nem tentaria interferir de qualquer forma. Nossos objetivos apenas possuem a mesma direção por coincidência. Nunca deveríamos ter nos tornado parceiros. Sim, na realidade, nós somos…

O que ela disse a seguir não foi particularmente desconfortável. Mesmo assim, ela contorceu seu rosto amargamente e disse de qualquer forma:

— Almas gêmeas, eu acho.

Entendo, acho que faz sentido que Otonashi mostre tal expressão. Afinal de contas, isso significa que eu e Otonashi estamos ambos amaldiçoados.

 

— …Sinto tanta pena do Kazuki-san.

Uma voz chamou minha atenção para longe da tela e de volta para a realidade. Com o rosto franzido de forma descontente, Yuuri Yanagi começou a sussurrar enquanto assiste ao filme. Ela sente pena do Kazu? Que tipo de reação é essa? É como se ela tivesse flagrado a Otonashi traindo ele.

…Acho que eu posso entendê-la. De forma alguma Otonashi foi infiel a ele ou algo do tipo, mas Yanagi provavelmente considera a relação dos dois como algo sagrado. Portanto, a parceria dela comigo dentro do “Rejecting Classroom”, e o tempo que passei sendo o único confidente da Otonashi já devem ser o bastante para parecer traição para a Yanagi.

…Embora eu dificilmente possa dizer algo.

Também achei que a história do “Rejecting Classroom” fosse apenas sobre a formação dos laços entre a Otonashi e o Kazu. Realmente, ele era o único que podia manter suas memórias e ficar ao lado dela, mas ela estava em constante contato com todos da nossa sala.

É claro, eu era uma daquelas pessoas. Já que fui incapaz de manter minhas memórias, naturalmente fui incapaz de chamá-la de “Maria” quando ela se apresentou como “Aya Otonashi”, e não pude me tornar seu parceiro em tempo integral. Mas enquanto posso ter esquecido dela, Otonashi ainda gastou um longo tempo em minha companhia. Naquele mundo repetitivo, também houve uma história sobre mim e a Otonashi. Pensando em suas palavras, eu sussurro:

— Amaldiçoado, hein…

Não havia necessidade de ela dizer isso para mim, o ultrarrealista. Se eu usar uma “caixa”, irei me arruinar. Porque sei quais são as minhas capacidades, também sei quais são os meus limites. Eu sei que inevitavelmente me destruirei, não importa o quanto me debata ou que ações tome. Essa consciência dos meus limites também impõe um limite sobre a minha “caixa” que me previne de dominá-la completamente.

Caramba… por que estou aqui nesse ponto sem volta mesmo sabendo sobre tudo isso? Por que estou envolvendo todos os tipos de pessoas sem relação alguma e arruinando suas vidas pelo bem dos meus ideais? Pior de tudo, eu até cometi um assassinato. Cheguei ao ponto em que não posso mais simplesmente dizer “estou fora”.Por que eu usei uma “caixa”? Quando foi que me tornei a pessoa que sou hoje?

 

…Você tem um desejo?

 

Certo. Eu me lembro.

Já era tarde demais para mim no momento em que cruzei com “O” e descobri sobre as “caixas”. Ao descobrir sobre elas, eu precisava usar uma. Embora eu soubesse que o meu “desejo” jamais se tornaria realidade, eu precisava usar uma. Se houvesse qualquer chance do meu “desejo”, que eu havia totalmente falhado em alcançar, se realizar, então eu precisava lutar por ele. Eu estaria disposto a pagar qualquer preço pela menor chance que fosse.

Minhas ações eram predeterminadas, e minha ruína, encomendada. Se “O” entregou uma “caixa” para mim com tudo isso em mente… interrompi meus pensamentos…Já chega. Chega. Vamos deixar esse assunto. O filme ainda está rodando. Decido me focar nele.

— Oomine. Se você falhar e se colocar em uma situação desesperadora, eu irei salvá-lo. Eu existo por esse propósito. Se tudo der errado…

Sozinha na sala de aula, a Otonashi na tela continuou.

— Irei deixá-lo usar minha “Flawed Bliss”.

— Eu decidi que nunca disse aquilo.

Ouço a voz da Otonashi vindo de cima de mim, mas não em estéreo nem vinda das caixas de som.

— Afinal de contas, aquela conversa não existiu realmente para você. E já que seria inútil se apenas eu soubesse sobre ela, decidi que ela nunca aconteceu. Não apenas as conversas que tive com você, mas também várias outras coisas.

Uma sombra está sendo projetada na tela, projetada pela pessoa que está em pé na frente ao raio do projetor, como se para proclamar que ela está acima da “Wish-Crushing Cinema” e do filme que está sendo exibido.

Não quero admitir, mas não posso evitar prender minha respiração. Mesmo que ela não se pareça diferente de como é normalmente, mesmo estando acostumado a vê-la, ainda assim não posso evitar sentir admiração.

Tal reação ao ver um mero humano é sequer possível? …Mas de fato, eu reagi dessa forma agora mesmo. Por um instante, esqueci de como respirar, meus olhos se arregalaram ao mesmo tempo que minha boca se abriu levemente, por nenhuma razão aparente. A visão dela interferiu com o ritmo do meu coração, me fez suar frio e meus dedos começarem a tremer.

Ela me impressiona simplesmente por se manter em pé naquele lugar. Apenas por me encarar, ela causa tanta pressão em mim que sua presença não parece apenas opressiva, mas afiada como uma lâmina. Diante dessa visão, um certo nome escapa por entre meus lábios como se tivesse escapado das profundezas das minhas entranhas.

 

— Aya Otonashi.

 

Apenas após sussurrá-lo em voz alta, percebo que usei o nome correto.

— Decidi que isso nunca aconteceu, hmm… Por que eu apenas não percebi — ela diz. — Que deveria ter feito a mesma coisa sobre minha parceria com o Kazuki?

Ela só chamou a si mesma de “Maria” até agora porque alguém que se lembrava desse nome o prendeu a ela. Mas ela se separou dele. Ela se tornou inimiga dele. Libertada daquele feitiço, nenhum outro nome é mais apropriado para ela do que “Aya Otonashi”. “Maria” não combina mais com ela.

Ela não é mais humana, agora que partiu seus laços absolutos que criou certa vez com o Kazu pelo bem de seu objetivo. No momento em que ela percebeu que é capaz de fazer isso por si mesma, ela deixou de ser humana. Entendo isso melhor do que ninguém, já que estou tentando fazer a mesma coisa. Seu perfeito senso de idealismo borda a monstruosidade. Ela, que superou a si mesma, é meu ideal personificado — uma entidade que existe somente pela realização de um único objetivo.

 

…Não há mais uma zerézima Maria em nenhum lugar desse planeta.

 

Ninguém, nem mesmo Kazu, pode restaurar “Maria Otonashi” agora. Há ainda menos esperança de que ela possa parar do que eu. Seu transcendentalismo puro fez a balança se equilibrar diante de meus olhos. Embora essa realização não seja mais do que uma prova de que não posso dominar minha “caixa”, não posso mais me impedir de ver a verdade.

Ver a verdade sobre… “O”.

 

Kazuki Hoshino – 11/09 SEX 21h44min

— Então você foi derrotado pelo Oomine-kun de novo, Kazuki-kun.

Após um longo tempo, começo a me recuperar do choque e meus ouvidos voltam a registrar som.

Olho ao redor e percebo que Iroha-san está me olhando, sentada e com o queixo apoiado nas mãos. Ela é a única pessoa que ainda está nesse túnel. Olho para o meu relógio. Estive em pé sem me mover por quase meia hora. O terceiro filme, “Repetir, Recomeçar, Recomeçar” está para acabar.

— Aah… — ela suspira, como uma mãe esperando pacientemente que seu filho se acalme. — Vamos, me dê sua “Wish-Crushing Cinema” e se torne meu [servo]. Farei o favor de acabar com você.

Ainda tenho problemas em focar meus pensamentos. Minha visão está oscilando, fazendo até as pichações nas paredes parecerem algum tipo de arte válida. É difícil de engolir.

O fato de que minhas narinas estão no centro do meu rosto me irrita por algum motivo. Descubro sujeira embaixo das minhas unhas e me sinto um pouco constrangido.

Não to nem aí. Não to nem aí para a “Wish-Crushing Cinema” e esses [servos].

Maria.

Eu feri a Maria.

Não pude impedir a Maria.

Ela não está mais tentando voltar a ser “Maria Otonashi”. Ela se tornou “Aya Otonashi” de uma vez por todas. Ainda posso virar o jogo e restaurar a Maria? Penso sobre isso e chego a uma conclusão:

…É impossível.

…Impossível.

 

Não tenho mais um objetivo.

 

— Diga, Iroha-san.

Mas por alguma razão, com o olhar perdido, faço uma pergunta que esteve me incomodando por algum tempo.

— O quê?

— Aquilo foi uma performance para mostrar à Maria que eu a traí, certo?

Por que estou perguntando isso? Claro, isso esteve me incomodando, mas nesse momento não tenho mais forças restantes para me preocupar com isso.

— Foi o que eu te disse, não foi?

— Mas mesmo assim… — Continuo, como se pudesse encontrar uma solução de alguma forma. — Você não estava mentindo quando disse que selecionará pessoas que merecem morrer, certo?

Os olhos dela se arregalam, e então os cantos de seus lábios se erguem.

— É claro — os olhos dela estão cheios de loucura. — Farei o que for preciso para exterminar aqueles lixos.

Com a mente não muito focada, eu penso:

…Como imaginei.

Eu estava certo quando deduzi que a Iroha-san não poderia mais voltar para o seu cotidiano. O objetivo do qual ela falou tanto sobre não era mentira. Minha declaração de que ela está cometendo um erro estava certa, afinal.

Daiya e Iroha-san lutarão persistentemente pelos ideais nascidos de suas formas erradas de pensar. Mesmo que eles percebam o erro do que estão cometendo, não serão mais capazes de voltar atrás e serão forçados a continuar até quebrarem. Assim como a Maria será.

Alguém tem que os impedir. Mas é tarde demais para mim. Perdi meu objetivo e me sinto completamente apático.

Eu desisti.

Desisti?

Do quê? Da Maria? Eu?

Sim. Sim, desisti. Não há solução, então não tenho outra escolha.

Mas pensar em desistir faz meu corpo todo esquentar absurdamente, me fazendo sentir como se eu pudesse derreter a qualquer instante. Meus braços e pernas parecem que estão para ser arrancados de suas juntas. Essa escolha é absolutamente proibida. Preciso evitá-la de qualquer forma.

Além disso…

— …Não me venha com essa.

O que é esse sentimento que está crescendo dentro de mim? Estou irritado? Com a Iroha-san? Faria sentido. Eu fui enganado por ela. Ela armou uma armadilha para eu mostrar à Maria que mudei e me separou dela. Além disso, Iroha-san está tentando envolver pessoas inocentes em seu erro. Mas não é isso.

Esse sentimento não é direcionado a ela.

Afinal de contas, eu sei que ela não é uma pessoa ruim. Seu desejo de destruir todos aqueles que considera como tolos criminosos meramente acontece de ser incompatível com a minha própria opinião. Além disso, tenho a sensação de que nem sequer é culpa dela ela ter desenvolvido essa opinião.

É verdade que ela está honestamente correndo atrás de seus desejos. Mas isso ainda não faz sentido para mim; ela sempre pensou assim? Ela desejou por isso mesmo antes de obter a “Shadow of Sin and Punishment”?

…Antes de receber esses poderes do Daiya?

— Tenho uma pergunta.

— O que é?

Olho para a Iroha-san novamente. Seu rosto manchado de sangue mostra apenas uma sombra de sua antiga identidade. Esses olhos que costumavam irradiar uma força de vontade incrível se ofuscaram. Essa não é a expressão que uma pessoa normal deveria fazer. Iroha-san quebrou em algum momento. Quando?

— Foi tão agonizante que você não pôde suportar a dor?

— Hein?

— Estou falando do momento em que você recebeu a “Shadow of Sin and Punishment”!

Sim, deve ter sido nesse momento que ela quebrou. Acredito que ela foi forçada a suportar algo ao aceitar esses poderes. Não, talvez não apenas naquele momento. Talvez ela precise sofrer constantemente para ser capaz de usar seu poder, julgando pelo que o Daiya teve que suportar.

— Por que você perguntaria isso?

Essa é uma clara confirmação do que estou pensando. E agora percebi. Por que ela fez aquilo? A resposta:

Aquilo foi apenas ela sofrendo e se debatendo. Ao receber a “Shadow of Sin and Punishment” ela quebrou completamente, pois já estava enfraquecida devido à “Game of Idleness”.

Esmagada por um assalto de emoções negativas, ela subconscientemente se apegou a uma maneira de lidar com elas. Porque se não o fizesse, seu coração não seria capaz de suportar tudo aquilo.

Ela encontrou algo para aliviar sua frustração imediatamente. Essa foi a ideia do Daiya. Se tornando incapaz de confiar nos outros, ela pulou nessa ideia. Ela tentou dar as costas à sua própria ruína ao eliminar aqueles que considera como lixo sob o pretexto de corrigir o mundo. Daiya a coagiu a fazer isso. Daiya sacrificou a Iroha-san pelo bem do seu “desejo”. Então esse sentimento que está embaçando minha visão é direcionado ao Daiya?

…Não.

Daiya não é diferente da Iroha-san. Ele obteve uma “caixa” para tentar pacificar seu tormento interior. Eu o considero uma vítima também. Estou irritado com ele por ter feito a Maria me deixar e por transformar a Iroha-san no que ela é agora. Mas esse sentimento incômodo é algo diferente.

…Irritação?

Não, é similar, mas não é irritação. Não é algo tão brando quanto irritação. Essa emoção insuportável deve ser…ódio. Contra quem?

Ah.

Se é ódio, então só pode haver um alvo. Só existe um ser que eu odiaria tanto.

— “O”.

 

— Me chamou?

 

Não estou surpreso com a sua chegada. Eu esperava por isso. Olho para “O”.

— Que tipo de aparência é essa?

Uma garota tão bonita que parece estar acima de tudo e de todos apareceu. Por ser tão bonita, ela parece ser falsa e irreal, e me dá uma impressão desagradável. Mas então por que o seguinte pensamento aparece em minha mente, quando seus rostos nem sequer se parecem? Essa garota de cabelo comprido… me lembra Maria Otonashi.

— …Poderia nos dizer quem você é? — pergunta Iroha-san.

— Certo, ainda não tive o prazer de conhecê-la. Eu assumi que você descobriria quem eu sou por conta própria, mas se esse não for o caso, irei me apresentar. Sou “O”.

— “O”? Você? — Ela diz e repentinamente arregala os olhos, como se tivesse acabado de perceber algo, e assume uma postura defensiva. — Você veio para ajudar o Kazuki-kun ou o quê…?

— Hehe.

“O” nem negou nem confirmou suas intenções.

— Oomine-kun me avisou que você está do lado do Kazuki. Você veio ao resgate dele porque ele está em perigo?

— Eu nunca o ajudei, mas é verdade que ele tem minha preferência.

— Você pretende ficar em meu caminho, não é mesmo?!

“O” a ignora e desvia o olhar.

— Embora eu não possa dizer com certeza. — “O” se dirige a mim, sem prestar atenção ao estado cada vez mais exaltado da Iroha-san.

— …E-ei!

— Você prendeu meu interesse porque eu sentia que você era de certa forma diferente dos outros humanos.

— …Tch!

Iroha-san percebe que não tem um papel nessa conversa e fica em silêncio. Aparentemente, ela julgou que é inútil tentar fazer com que a entidade à nossa frente a reconheça.

— Mas eu não tinha uma ideia clara de por que você, e apenas você, era especial, e de como nós estamos relacionados. Contudo, ao testemunhar a forma como você esfaqueou essa garota agora a pouco, finalmente consegui alcançar algum tipo de convicção. Portanto, gostaria de confirmar isso agora.

Levanto uma sobrancelha e lanço um olhar de inimizade para “O”.

— Para esse propósito… sim, acho que te darei alguma informação sobre o meu ser.

— …Do que você está falando…? Você acha que isso mudaria alguma coisa? Não tem como as coisas mudarem.

— Oh, eu não teria tanta certeza. Você pode acabar se sentindo muito mais próximo a mim, quem sabe?

— Próximo? Não me faça rir.

— Você normalmente não encontraria um ser que garante “desejos” na forma de uma figura tão concreta e familiar! Nem seria capaz de percebê-la tão claramente. A integridade do meu “ser” gigante não é nada além de um “poder” que nem sequer possui uma vontade.

Então por que estou aqui agora como “O” e possuo uma vontade? É porque “certa pessoa” deu forma ao ser “O” por meio de um “desejo”.

— Uma certa pessoa…?

Do que “O” está falando? Ele está dizendo que foi criado por alguém, mesmo também sendo um fenômeno sobrenatural?

— Vamos pensar em um “desejo” que poderia cumprir isso. Certo, que tal isso: “quero que o desejo de todos se tornem realidade”.

— …Oh!

Poderia ser que… Poderia ser que esse “certa pessoa” é…

Mais uma vez, penso sobre o que “O” é. Ele é o distribuidor das “caixas” e já levou diversas pessoas ao meu redor à loucura e ao desespero. Ele é um ser que garante falsos “desejos”. Portanto…

— Tenho certeza de que você entendeu! Essa “certa pessoa” não está ciente disso ela mesma. Ela não sabe que sua “caixa” funciona dessa forma. Ela não está ciente de como ela pode garantir o “desejo” de alguém. Mas essa é a verdade!

“O” colocou meus pensamentos em palavras.

— A “Flawed Bliss” de Maria Otonashi é uma “caixa” que dá vida a mim, “O”.

Estive esperando por essa resposta, mas não consigo evitar me sentir atordoado quando “O” me diz isso cara a cara.

— Besteira. Maria não seria capaz de fazer isso.

— Não me entenda mal: o ser que garante “desejos” já existia antes de ela usar sua “caixa” pela primeira vez. De outra forma, ela não seria capaz de obter a “caixa”, em primeiro lugar. Ela não me criou do zero. O que ela fez foi simplesmente me dar forma e me trazer para o lado dela. Isso ainda parece impossível para você?

— Eu…

…Acho que é possível. Eu já vi coisas muito mais bizarras do que isso.

— Mas Maria me disse que ela prendeu todas as pessoas em quem usou a “Flawed Bliss”…

— Você já conferiu isso por si mesmo?

— Eh?

— Você apenas aceitou as palavras dela, não foi? As palavras de uma amnésica que, sempre que deixa alguém usar sua “caixa”, perde todas as memórias daquela pessoa e de seu ambiente.

— …Mas.

Eu realmente senti naquela vez. Eu toquei o peito da Maria e experimentei a profunda solidão da “Flawed Bliss”. Eu vi as pessoas que ela prendeu.

— Você não parece convencido. Mas lembre-se de que você também tocou a “caixa” de outro “portador”. Você não sentiu algo similar quando aquilo aconteceu?

— Eh…?

Ele está certo. Eu toquei o “Rejecting Classroom” da Mogi-san.

— Acho que você percebeu por si mesmo, mas, na realidade, você estava vendo uma imagem mental de como eles percebem suas próprias “caixas”.

Isso significa que aquele lugar no fundo do oceano que eu vi quando toquei o peito da Maria era apenas…

— O que você sentiu ao tocá-la foi apenas sua imagem mental. Para ela é verdade que ela prendeu todos os usuários em sua “caixa”; afinal de contas, essa é uma importante parte de como as “caixas” distorcem a realidade. Contudo, essa não é a verdade. Aquele cenário meramente mostra como ela está cheia de remorso porque pode apenas garantir soluções incompletas para as pessoas que tentou salvar, mesmo depois de simpatizar com elas e entender suas dores tão profundamente. Sim…

“O” continua, mantendo o mesmo semblante gracioso.

— Sim… aquele cenário é apenas uma imagem do desespero dela.

Me lembro do lugar que vi daquela vez. Um teatro de falsa felicidade no fundo do frio, porém oh-tão-brilhante, oceano. Alguém estava chorando em algum lugar, cercado e afogado por risadas sem fim. É um campo de batalha solitário onde ninguém nunca vence.

É o desespero da Maria.

…Maria.

Então, no fim, eu ainda quero salvá-la!

— Então eu estava certo. — “O” sussurra ao ver minha expressão.

— O que você quer dizer com isso?

Mas em vez de me responder, “O” apenas me encara.

Irritado com ele, reclamo sobre o que está me incomodando desde o começo.

— “O”, você está apenas falando sobre a Maria, mas sua intenção não era falar sobre mim?

— Por favor, tenha alguma paciência; uma coisa por vez. Mas não se preocupe, chegaremos ao tópico principal em breve… Aqui está algo novo que quero confirmar. O “desejo” daquela “certa pessoa” é fazer com que os desejos de todos se tornem realidade, que é o porquê de eu, “O”, existir. Contudo, “caixas” são feitas de forma a analisar um desejo perfeitamente. Portanto, elas garantem até mesmo as dúvidas dos usuários. Então de que forma as dúvidas daquela “certa pessoa” foram garantidas?

— Ainda não tenho nada a ver com isso, tenho?

— Oh, você tem.

— Hein?

— Lembre-se de Nana Yanagi, seu primeiro amor.

Esse nome apareceu tão inesperadamente que fico constrangido.

— Po-por que falar dela agora?

— Porque aquela “certa pessoa” usou sua “caixa” em Nana Yanagi.

— …O quê?!

— Oh, certo, você não sabia disso. É claro que está surpreso. Mas você queria que eu fosse direto ao ponto, certo? Sinto dizer que não posso te dar tempo para se acalmar.

Que monstro sarcástico.

— Muito bem então, não sei como você se sente sobre isso, mas para Nana Yanagi você foi um salvador. Você a ajudou mais do que qualquer outro, até mesmo seu namorado Touji Kijima. É claro, “ela”, que aprisionou Nana Yanagi, sabia disso. Você deixou uma incrível impressão “nela”. Afinal de contas, é preciso muito para ser considerado como um salvador por alguém. Portanto, “ela” subconscientemente estabeleceu uma nova regra para si mesma: Kazuki Hoshino tem as qualidades de um salvador.

— …Isso não faz nenhum sentido pra mim.

— É mesmo? Mas tem mais! …“Ela” teve desejos contraditórios após ver tal salvador. Por um lado ela queria garantir “desejos” não importa o quê, mas por outro lado, ela queria que alguém a impedisse.

Eu sei disso. Ela me contou seus verdadeiros sentimentos dentro do “Game of Idleness”.

— Suas dúvidas sobre seu “desejo” eram compatíveis com a parte dela que deseja que alguém a impeça, então eles se combinaram. Uma “caixa” garante desejos exatamente como eles são. Em outras palavras, a “caixa” também garantiu sua convicção contraditória de que um salvador viria para esmagar o “desejo” dela.

— O quê?

Após me reconhecer como um salvador? Isso significa que o salvador recebeu o poder de esmagar “desejos” da “caixa” dela?

— Você nunca se perguntou por que era capaz de manter suas memórias dentro do “Rejecting Classroom” embora não fosse um “portador”? Por que você se manteve perfeitamente normal quando a Iroha Shindou ali pisou em sua sombra? Não seria lógico assumir que você esteve sob a influência da “Flawed Bliss” esse tempo todo, e portanto, pôde resistir aos poderes dessas “caixas”?

A “Flawed Bliss” tinha dois poderes.

O poder para criar “O”.

E o poder para criar o “salvador”.

— A “caixa” dela atribuiu a você o papel de salvador. Ou devo dizer…

 

— Kazuki Hoshino, você é o cavaleiro que deve impedir Maria Otonashi.

 

Cavaleiro.

Eu sou… o cavaleiro da Maria.

Eu ganhei esse poder da própria Maria?

Olho para as palmas das minhas mãos em silêncio. Fecho-as, abro-as. Fechar, abrir. Pedra, papel. Ah… elas são mãos completamente normais, terrivelmente pequenas comparadas às dos outros da minha idade. Não sinto qualquer poder especial nelas. Mesmo assim… não sei por que, mas algo parece estranho. …Não, isso está errado.

É o oposto.

…O sentimento de estranheza que sempre existiu no fundo da minha consciência acabou de desaparecer.

— Muito bem, agora, por que você não verifica para ver se realmente recebeu o poder da “Flawed Bliss”?

— Verificar? Como? — pergunto.

“O” olha para Iroha-san como se tivesse acabado de se lembrar que ela também está presente e responde sem mover um músculo:

— Destrua a “caixa” dela, ela querendo ou não.

— O quê…?! — Iroha-san exclama e me encara com olhos ameaçadores.

Você não precisa olhar para mim dessa forma. Por que eu seguiria instruções de alguém que eu odeio tanto quanto “O”? Mesmo que eu realmente tivesse o poder para destruir sua “caixa”, eu definitivamente não gostaria de fazer isso. Mas apesar disso.

— …Hehehe.

Não consigo conter a risada.

— Kazuki-kun…?

Iroha-san contorce seu rosto. Mas não consigo parar de rir.

— Heh, hehe… ha, ha, hahahahahaha!

— …O quê? O que é tão engraçado?

Uau, o que é esse sentimento crescendo dentro de mim? O que é esse impulso que não consigo conter?

 

…Quero testá-lo.

…Quero testar esse poder.

…Quero esmagar aquela “caixa” que ela valoriza tanto.

 

Ah, não sinto mais como se houvesse pouca “identidade” dentro de mim. Aquilo era nojento. Me pergunto porque me sentia daquela forma e de onde vinha aquele sentimento. Era como se eu fosse movido por uma força externa, como se minha vontade fosse controlada por essa mesma força poderosa. Eu acabei de passar por esse fenômeno: embora eu tenha acabado de cair nas profundezas do desespero após considerar impossível salvar a Maria, esses sentimentos eram de alguma forma colocados de lado para que eu pudesse encontrar uma solução ao questionar a Iroha-san.

Finalmente, tenho uma explicação.

Tudo isso foi obra da Maria.

É tudo culpa dela. Ela bagunçou a minha vida. A “caixa” da Maria é a origem de todo o mal. É culpa dela eu ter tentado esfaquear a Iroha-san, é culpa dela eu ter estado disposto a deixar a Mogi-san morrer para destruir a “caixa” dela, é tudo culpa da Maria. Eu estive sob o controle da Maria.

— Hehhahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahaha hahahahahahahahahahahahahahahaahahahahahahahahahahahahaahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahahaahahahahahahahahahahahahaahahahahahahahahahahahahahaha!

E isso… me faz sentir completamente incrível.

Porque isso significa que eu pertenço a ela no sentido mais correto da palavra. É claro que isso me faz sentir ótimo, quando esse tem sido meu objetivo o tempo todo. Eu costumava me sentir culpado por tentar me livrar de Aya Otonashi contra a vontade da Maria. Em primeiro lugar, porque não sabia se essa era a coisa certa a se fazer, e em segundo, porque não queria deixá-la ainda mais triste.

Mas agora eu obtive a permissão da Maria. Obtive uma justificativa para acabar com a Aya de uma vez por todas. Está tudo bem em querer satisfazer esse desejo obscuro.

Ah, Maria.

Minha amada Maria.

Não importa o quanto você me odeie ou quanto você se debata ou chore, destruirei a sua “caixa”. A farei em pedaços. Rasgarei a imagem à qual você se dedicou tanto diante dos seus próprios olhos. Irei destruí-la, esmagá-la, devastá-la, violá-la, corrompê-la e jogá-la fora.

Ah, meu coração está palpitando de alegria. Estou respirando violentamente por causa do que estou sentindo.

Superioridade.

Soberania.

Onipotência.

— …Você está bem, Kazuki-kun? — Iroha-san pergunta. Ela percebeu minha respiração acelerada, e que estou agachado e pressionando minha mão contra o peito.

Sim, realmente. Antes de matar Aya Otonashi, preciso confirmar que meu poder é real.

— U-uou… por que você está me olhando dessa forma?

E usarei essa garota obcecada por “caixas” para esse propósito.

…Mas como devo proceder para destruir uma “caixa”?

Tento pensar logicamente sobre métodos possíveis… por um momento, mas duvido que isso me leve a algum lugar. Algo dentro de mim está me dizendo que, em vez disso, devo visualizar meu poder.

Portanto, tento formar uma imagem em minha mente. Me imagino como um cavaleiro em um deserto manchado de sangue. Um enorme exército de inimigos armados com todos os tipos de armas está em meu caminho, até onde os olhos podem ver. Eu os atravesso com a minha espada longa, criando uma montanha de corpos, e nunca paro de matar, mesmo que isso apenas gere ódio e ressentimento. É tudo para encontrar a Maria.

Para resgatá-la da torre em que ela está sendo mantida como prisioneira, eu empilho os corpos para formar uma montanha de igual altitude. Eu subo pela torre de carne usando-a como uma escada para alcançar a Maria aprisionada.

Para salvá-la. Aah.

— Aah.

Eu descobri.

— Eu descobri.

Não houve nenhuma inspiração súbita. Eu meramente juntei as peças que já encontrei. É como se eu aleatoriamente houvesse resolvido um quebra-cabeça sem nem sequer pensar sobre ele. Com um sentimento como esse, eu descobri…

… As “caixas”… A forma correta de se usar uma “caixa”.

Assim que você pensa sobre como usar uma “caixa”, você não pode mais dominá-la. Você deve se impedir de preencher a “caixa” com seus desejos, e apenas se tornar consciente de que ela existe. Tudo o que você precisa fazer é perceber que o poder de garantir “desejos” existe. Nós só temos que acreditar em nós mesmos e ir em direção a um objetivo.

A “caixa” pode ficar vazia. Não, ela deve ficar vazia.

Foi isso que eu descobri.

E isso é o bastante. Com apenas esse conhecimento, posso obter o poder do cavaleiro de esmagar “caixas”. Posso obter a ferramenta que garante o meu desejo…

 

“Empty Box¹”.

 

— Muito bem então, vamos fazer isso de uma vez?

Agarro a cabeça da Iroha-san com minha mão direita, cobrindo os olhos dela com a minha palma. Uso minha outra mão para puxar o braço dela e jogá-la no chão.

— Eh? Hã…?

Sento em cima dela. Iroha-san me encara com os olhos arregalados. Aparentemente, tudo está acontecendo rápido demais para ela. A lentidão dela é fatal. Já é tarde demais. Sua derrota já está garantida.

Sem perder um instante, enfio minha mão como uma espada no peito dela.

— EH? Ah! Gnn! …Ungh!!

E a removo.

Eu removo a imitação barata da “Shadow of Sin and Punishment”.

— …Eh? Eh? O quê?

Sorrio triunfante enquanto a observo se debatendo e falhando em entender a situação em que está. Que vitória fácil. Era tão fácil assim remover a “caixa” de alguém?

Olho para a “caixa”. É sólida e redonda, e completamente negra, como uma bola de canhão, mas tenho certeza que a “caixa” do Daiya é diferente. A agonia de seu “portador” irradia da pequena “caixa” em minha mão, mas não me importo com isso.

— …Ah? — Apenas após ver o objeto que estou segurando, Iroha-san percebe o que eu fiz com ela. — Ah…! Aah!

Ela está reagindo como se eu houvesse arrancado o coração dela. Ela segura o peito e olha em minha direção com o rosto pálido.

— O quê… o que você fez?

Não há necessidade de explicar o óbvio. Permaneço em silêncio, e Iroha-san continua.

— Co-como você pode fazer algo como remover uma “caixa”?!

…Por quê, hein? Como devo responder?

Porque sou o “cavaleiro”. Isso seria verdade, mas não significaria nada para a Iroha-san. Então, como devo responder? A primeira coisa que vem à minha mente é algo que o Daiya me disse certa vez.

…Cara, o Daiya com certeza é brilhante. Ele está sempre absolutamente certo em suas análises. Eu neguei daquela vez, mas ele estava certo no final das contas!

Fecho meus olhos por um momento e proclamo:

 

— Porque eu existo para pisotear os “desejos” dos outros.

 

Em certo sentido, isso é uma declaração de que sou inimigo dela. Seus olhos arregalados estão fixados no meu rosto. Após observar minha expressão, ela deixa seu olhar vagar para a “caixa” que está em minha mão.

Após repetir o circuito diversas vezes, ela finalmente percebe o que estou para fazer e fica ainda mais pálida.

— Pa-pare! Se você esmagá-la, eu também serei esmagada!

— Não existe função válida para uma “caixa”.

— Eu não tenho outra escolha! Depois de aprender sobre ela. Após descobrir sobre um poder que pode realizar milagres! Não consigo mais imaginar viver sem ele… não posso mais suportar uma vida sem “caixas”! Devolva-me!

Entendo. Uma vez que você descobre uma falha na realidade, você não pode mais viver sem ela. Acho que “O” certa vez me disse algo similar. Isso significa que meramente aprender sobre as “caixas” tem um impacto tremendo.

Não posso evitar. Terei que ensinar uma lição a ela.

— Qual é a palavra mágica?

— Hein?

— Me implore para, por favor, por favorzinho, não esmagar sua “caixa”! Mas antes disso, se ajoelhe diante de mim.

— O que há de errado com você, Kazuki-kun? Qual é o sentido?

— Você não está nem ao menos desesperada o bastante para se ajoelhar? Deve ser um “desejo” bobo então! Você não está preparada para tomar uma pílula amarga, mesmo que esteja disposta a sacrificar os outros?

— Você está evitando a minha pergunta!

— É porque não pretendo aceitar nenhuma questão sua! Vamos, comece a implorar de uma vez.

Aparentemente percebendo que estou falando sério, Iroha-san morde os lábios.

—Você não pode me enganar. Não há garantia de que você não destruirá a minha “caixa”, mesmo que eu me rebaixe.

— É claro que não há garantia. Mas a menos que você se ajoelhe diante de mim, esmagarei essa “caixa” com certeza. Não seja tão exigente!

Ela não me responde e, em vez disso, olha para “O”.

— É inútil! “O” não irá te ajudar.

— …Tch!

— Eu sei que fazer você se ajoelhar diante de mim não é uma boa ideia. Você poderia esperar por uma abertura em minha defesa e recuperar sua “caixa”. É por isso que você está olhando para “O”… porque você espera que ele possa interferir e criar essa abertura para você.

Mas é inútil. Quem está me dizendo para testar meu poder é o próprio “O”, então ele não entrará no meu caminho. E como eu sei que você está procurando por uma falha em minha armadura, não abaixarei minha guarda.

— Ugh…

— Se você quer me impedir de esmagar a sua “caixa”, você não tem outra escolha senão apelar para o meu lado bom. Se ajoelhar pode não ser totalmente sem sentido, sabia? Acredito que esmagar essa “caixa” é a escolha certa, mas se você puder me convencer do contrário, não irei fazê-lo.

Tecnicamente, isso não é uma mentira. Não acho que ela pode mudar minha mente, mas se ela de alguma forma for capaz, é claro que não destruirei a “caixa” dela.

Iroha-san fica em silêncio. Por alguns momentos, ela não se move. Mas eventualmente…

—Buá, Buuuá…

Ela começa a chorar. Ainda caída no chão, ela está transbordando lágrimas. Como uma criança indefesa implorando por algo, ela está derramando lágrimas e contorcendo o rosto.

E então ela faz como eu pedi. Ela se ajoelha diante de mim, tocando sua testa no chão. Honestamente, estou surpreso.

…Esta é a Iroha-san? A determinada Iroha-san que cortou o próprio dedo para alcançar seus objetivos no “Game of Idleness”…?

— Eu te imploro. Por favor, não a destrua. Por favor, me devolva — ela diz freneticamente, com lágrimas escorrendo dos olhos.

Ela não está fazendo um serviço ruim e nem está assim porque eu a ordenei, mas porque sabe que se ajoelhar e implorar é tudo o que ela pode fazer. Como uma criança indefesa que sabe que o adulto abusando dela não vai parar até que ela comece a soluçar e chorar.

Eu a encurralei brutalmente. Não tem como meu coração não doer diante dessa visão.

— Sem ela… sem ela… eu não posso mais viver…

Iroha-san anseia por essa “caixa” como uma viciada. Ela seriamente acredita que a “caixa” é o suporte de que ela precisa. Ela acredita que não pode mais viver sem a “caixa” e, realmente, isso pode ter se tornado verdade no momento em que ela descobriu sobre e começou a usá-la.

É assim que as “caixas” funcionam. Elas deformam as pessoas de modo que elas nunca possam voltar a ser como eram.

— …Eu te ouvi. Você não pode mais ficar sem a “caixa”. Se você a perder, isso deixará uma profunda ferida em seu coração.

— …Sim. Então, por favor, devolva-a para mim. Eu farei o que você quiser…

Aflito pela visão do acesso de choro da Iroha-san, seguro a “caixa” em frente ao rosto dela. Ela deve ter achado que eu não a devolveria tão rapidamente, então está me encarando com um rosto surpreso. Vendo meu sorriso gentil e a “caixa” diante de seus olhos, seu rosto relaxa em alívio.

— O-obrigada… — Ela diz com gratidão enquanto estende suas mãos gananciosamente.

— Obrigada? — Inclino minha cabeça. — Mesmo que eu esteja dizendo que vou feri-la mortalmente?

— Eh?

— Você não pode realmente estar achando que eu te devolveria isso, certo? — Pergunto ao esmagar a “caixa” dela.

Uma secreção preta espirra dos meus dedos, como se eu tivesse acabado de esmagar um inseto gigante, manchando minha mão e o rosto dela. O rosto da Iroha-san congela como se o tempo tivesse parado, enquanto é coberta pelos restos de sua própria “caixa”.

Ela toca o próprio rosto e traça os dedos por ele várias vezes para entender o que acabou de acontecer. Repetidamente, ela confirma que a “caixa” foi destruída com seus dedos trêmulos, sem querer acreditar em sua destruição, embora seja muito real.

— Uh, ah…

Finalmente, ela aceita a verdade.

— NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOOOOOOO!

Talvez porque a destruição da “caixa” tenha um efeito direto no corpo dela ou por puro choque psicológico, os olhos da Iroha-san rolam para cima e ela desmaia.

— Phew — suspiro olhando para o corpo caído dela.

Sem mais choros e soluços? Está brincando comigo? Eu esperava que as coisas tomassem esse rumo. Até mesmo esperava que me entristeceria até certo ponto vê-la implorando. Portanto, se havia alguma maneira de tocar meu coração e me convencer a não destruir a “caixa” dela, definitivamente não era implorando e apelando para meu senso de piedade. Ao contrário, ela deveria ter se levantado pelos seus ideais apesar do desespero e me confrontado com uma determinação inabalável, apesar da situação desesperadora.

Se Iroha-san estivesse em seu juízo perfeito, ela teria feito exatamente isso, e talvez até me convencido a reconsiderar sobre a minha posição em relação às “caixas”.

Mas ela não foi capaz de fazer isso. A antiga Iroha-san jamais teria se ajoelhado e desmaiado. Ela perdeu noção de si mesma de uma forma ridícula. Isso não é prova o bastante que ela foi completamente controlada pela sua “caixa” e que isso apenas tornou as coisas piores para ela mesma?

Foi por isso que destruí a “caixa” dela de forma tão teatral. Mostrei a ela que jamais será capaz de recuperar sua “caixa”. Não sei se ela será capaz de se recuperar disso; para ser honesto, é improvável. Mas é melhor do que deixá-la obter uma nova “caixa” e sair por aí cometendo erros. É muito melhor do que vê-la ferindo os outros por causa de suas crenças doentias. Iroha-san terá que aceitar viver sem uma “caixa”. Se você não puder, Iroha-san, então morra queimada e não fique no meu caminho.

— Agora é evidente. — “O” diz enquanto estou olhando para Iroha-san. — Você definitivamente foi influenciado pela “Flawed Bliss”. Você obteve o poder de um “cavaleiro”.

— Parece que sim — respondo e olho para “O”.

A expressão no rosto dessa versão incrivelmente linda de “O” não é a de calma à qual estou acostumado. É uma expressão vazia similar à de uma boneca. E assim como uma boneca moldada perfeitamente para parecer mais misteriosa do que bela, a expressão vazia nessa garota de aparência perfeita me dá nojo.

Ah… entendo.

Subconscientemente, eu percebi a verdadeira natureza dele… não, dela esse tempo todo, e é por isso que ela sempre me pareceu tão repulsiva. Exato. Acabei de me lembrar. Quando a vi naquela cena a qual só posso me recordar em meus sonhos, sua aparência era exatamente a mesma que ela tem agora.

É assim que “O” realmente se parece.

E essa é a expressão que ela exibe em sua verdadeira forma. Isso significa que ela finalmente decidiu me confrontar diretamente.

— Kazuki-kun. Certa vez disse que nossos objetivos eram os mesmos. Mas parece que aquela declaração estava correta por um lado, mas errada por outro. Nós dois existimos pelo bem de Maria Otonashi. Nós somos o mesmo nesse aspecto. Mas enquanto eu existo para garantir o “desejo” dela, você existe para destruí-lo. Enquanto nossas ações são igualmente baseadas nela, nossos papéis são completamente opostos. Aah, que pena, considerando que ainda sinto que somos parecidos. Terei que reprimir esses sentimentos de familiaridade. Porque, afinal de contas, nós somos…

— Você está certa. Nós somos…

Inimigos.

Nenhum de nós se preocupou em dizer em voz alta.

Não há necessidade.

Irei derrotar “O”.

Esse é o equivalente de recuperar a zerézima Maria. Esses dois objetivos estão ligados.

— Mas sinto dizer que você não será capaz de vencer essa luta, Kazuki-kun. Pode ser fácil se livrar de mim, já que você precisa apenas esmagar a “Flawed Bliss” como acabou de fazer com a “caixa” da Iroha-san. Mas enquanto isso garante minha derrota, não garante a sua vitória. Simplesmente destruindo-a… — Ela olha para Iroha-san. — …Você pode destruir a personalidade da Maria do jeito que você fez com essa garota… ou pior. Iroha Shindou pode ser capaz de se recuperar, mas isso é definitivamente impossível para Maria Otonashi. Ela já precisa se esforçar ao máximo para se manter. O equilíbrio é tão instável que perder sua “caixa” pode causar uma reação em cadeia que irá destruí-la completamente. Tenho certeza de que você está bem ciente disso, mas apenas para esclarecer: se você destruir a “caixa” dela à força, o coração dela certamente será despedaçado e não haverá chance de recuperação.

Não quero admitir, mas acho que “O” está certa.

Não posso salvar a Maria simplesmente destruindo sua “caixa”. Se eu fizer isso, ela entrará em colapso enquanto ainda possuída pela “Aya Otonashi” que ela criou e jamais se recuperará. Não há sentido se ela não aceitar abandonar sua “caixa” por vontade própria. Mas isso é…

— É impossível. — “O” diz, como se tivesse lido minha mente. — Porque você a traiu, ela se decidiu de uma vez por todas. Você entende o que isso significa, não é mesmo? Isso significa que ela não abandonará sua “caixa” por vontade própria. A força de sua determinação é tão grande que ela sequer hesitaria se sua vida estivesse em perigo. Você testemunhou isso inúmeras vezes, então você sabe muito bem disso, não é mesmo?

Sim, eu testemunhei isso muito bem. Como Maria era incapaz de usar força mesmo quando estava prestes a ser morta. Como ela não podia sacrificar ninguém, pois quer tornar todos felizes. Destruir sua “caixa” pelo bem dela mesma. Maria jamais aceitaria isso. Ela jamais agiria em prol de sua própria felicidade egoísta. Eu me rendi ao desespero cedo demais, achando que não havia uma maneira de salvá-la. Contudo.

— Eu posso fazê-lo!

Eu descobri que sou o salvador. Eu descobri que sou o “cavaleiro”.

— Maria definitivamente entregará sua “caixa” para mim!

Não sei como posso alcançar meu objetivo, mas ainda posso acreditar em meu próprio poder agora que finalmente aceitei minha “caixa”.

Esse poder foi criado pela própria Maria porque ela desejou por ele, então não tem como eu falhar. Irei criar um milagre que vai virar o jogo ao meu favor.

 

— Porque tenho a “Empty Box” comigo agora.

 

Agora nada pode me impedir.

Hmm… primeiro de tudo, recuperarei a Maria do Daiya. Depois disso, enfrentarei a própria Maria e a farei me entregar sua “caixa”.

— Entendo. Então devo destruir a “Empty Box”.

“O” definitivamente se tornará meu inimigo.

Por que não percebi algo tão óbvio mais cedo? Eu devia ter percebido muito antes. No mínimo, eu deveria ter sido capaz de perceber ao ver sua forma atual. Quer dizer, eu não achei que elas eram parecidas assim que a vi?

“O”.

É apenas uma inicial. Maria criou esse ser, então suponho que ela subconscientemente deu a ela o nome de “O”, ao qual ela já era familiar de qualquer forma. Se esse for o caso, só posso imaginar um significado para esse nome.

Ela queria se tornar um ser que garante os desejos dos outros. E em certo sentido, “O” é exatamente isso…De certo modo, “O” é seu ideal. E esse é o nome da pessoa que Maria está tentando se tornar ao sufocar sua própria identidade.

Sim, suas raízes são as mesmas. É por isso que considero ambos como meus inimigos. Chamei o nome de “O” com profunda hostilidade.

 

— Aya Otonashi.

 

Não sei qual a origem desse nome. Talvez tenha existido uma pessoa real que serviu de inspiração. É Otonashi, então talvez seja da família da Maria. O que eu sei é que ambos, eu e “O”, existimos pelo bem da Maria. Mas nós não podemos coexistir. Já que opomos um ao outro das profundezas de nossos respectivos seres, apenas um de nós pode sobreviver. Mas eu absolutamente não irei perder.

Então deixo minhas intenções absolutamente claras:

— Irei matá-la, “Aya Otonashi”.


Nota:

1 – Do título Utsuro no Hako “A caixa vazia”

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