Youjo Senki – Volume 1 – Capítulo 2 - Anime Center BR

Youjo Senki – Volume 1 – Capítulo 2

ESPAÇO AÉREO SOBRE O LABORATÓRIO DE TESTE DA UNIDADE AÉREA DO EXÉRCITO CRUSCOS.

Como de costume, os céus acima do Laboratório de Teste da Unidade Aérea do Exército Cruscos, situado a sudoeste da capital imperial, estão barulhentos.

Orbes e cetros certa vez conjuraram milagres que foram registrados apenas em lendas. Agora, graças à investigação científica desses mitos, replicar tais maravilhas não ficou só na teoria, o que propeliu o nascimento da magicologia moderna. O campo foi responsável por descobrir um método de modificar o mundo por meio do uso de orbes operacionais. Em um mundo físico de três dimensões, a tecnologia realiza determinado fenômeno aplicando uma quantidade adequada de estímulos no lugar certo. Por exemplo, com as mãos, uma pessoa é capaz de girar a roda de metal contra a pederneira de um isqueiro e acendê-lo, da mesma forma, isto pode ser feito com o poder da magia. Uma vez entendido seu funcionamento, é possível reproduzir inúmeras maravilhas mágicas. Sim, magia virou uma tecnologia.

Claro, os princípios dos elementos fundamentais — como a mana e as fórmulas de interferência — ainda não são ao todo compreendidos. A engenharia mágica foi impulsionada pelo objetivo de alcançar um progresso marcante para garantir maior vantagem militar e estabelecida como área acadêmica após uma descoberta decisiva no Império. Ao combinar mana com um aparelho aritmético analógico, os orbes operacionais foram criados. Diferente da era das lendas, nos dias atuais é nítido quais lugares, métodos e níveis de poder são necessários para conjurar feitiços.

quintessência dessa tecnologia provavelmente seria a sua aplicação prática em fórmulas de aviação, as quais permitem que um feiticeiro levite sem ajuda de um aeromóvel. Gerando propulsão, seu operador é lançado para o ar com o equilíbrio mantido. Se quiserem, os feiticeiros podem até imitar bruxas voando em suas vassouras. Rifles com baionetas fixadas à frente são mais convenientes do que cetros como enfoque para conjurações. Bem, armas de fogo também são ótimas para disparar fórmulas de batalha em combate a longo alcance.

De qualquer maneira, os engenheiros replicaram milagres usando tecnologia. Uma enorme variedade de aplicações militares também foi reconhecida. Já fazia um bom tempo desde que a importância dos orbes havia se tornado conhecimento geral, motivo pelo qual a corrida tecnológica entre as potências mundiais aumentou tanto.

Como pioneiro no campo, a participação do Império nesta corrida era óbvia.

Hoje é um dia com céu claro e ventos fortes. Minha altitude é de um quilômetro e duzentos metros. Mais ou menos metade dos testes agendados para este dia já foram feitos. A situação em que me encontro está bem melhor do que a da última vez, quando quase morri depois do meu paraquedas falhar em abrir por conta da umidade, mas não estou com vontade de tocar no assunto… Sobretudo se for nessas condições tão exigentes, onde o mínimo deslize na concentração pode levar a um erro nos cálculos e fazer o motor do orbe pegar fogo.

Lutando para impedir que meu rosto se contraia, com cuidado, mantenho uma velocidade constante de subida com a ajuda da velocidade de solo conforme o plano. Desde que eu finalize os testes sem incidentes acontecendo, não posso parar. E isso significa ascender.

Sim, preciso continuar a subir utilizando o “novo modelo”; um protótipo de orbe nem um pouco confiável e terrivelmente defeituoso.

É esse o prazer de ter o mundo em suas mãos? O acesso às leis do mundo que o orbe simboliza é uma operação elaborada que demanda sutileza. Sob ordens de supervisionar esse processo — usar uma coisa que carece de tolerância requer o máximo de cuidado — Tanya está tendo sua mão feita em pedaços.

Se não fosse pelos avanços da ciência médica, ela teria que passar o resto da vida só com seu braço esquerdo.

Agarrar um orbe de nenhuma confiança não difere muito de segurar uma granada. O resultado final é óbvio. Por isso que a Segunda-Tenente Degurechaff é tão adversa a fazer algo assim. Ela solta um suspiro enquanto voa.

— O motor explodiu! Está pegando fogo! Abortar o teste! Abortar o teste!

Mais um dia de gritos penetrantes do Controle e os gemidos agonizantes de Tanya ecoando pelo céu.

Como acabei no meio dessa bagunça? Aconteceu quando fui enviada para a retaguarda depois de ser ferida no norte.

Na época, a Segunda-Tenente Degurechaff ainda estava se recuperando e considerava o local onde seria reintegrada como uma questão de vida ou morte. Havia dado tudo de si, criando uma espécie de recorde só seu, e até mesmo recebeu uma medalha… Isso poderia ser vantajoso para minha futura promoção, porém envolvia um sério problema em potencial de deixá-la presa nas linhas de frente.

— Vou revê-lo agora.

Então, quando recebi um envelope e o abri, o pensamento que me veio à cabeça foi: tomara que não me mandem para a fronte. Porém meus receios foram sem fundamentos. O envelope continha um documento do Departamento de Pessoal com ordens sem data de serviço doméstico. Em outras palavras, as ordens não eram oficiais, mas entrariam em vigor assim que datadas e assinadas por um oficial superior. Era a chamada oferta informal de emprego pelos padrões do exército.

— Aproveite. É uma nota não-oficial do seu trabalho doméstico com a unidade de instrução de combate, junto de um pedido para que você seja enviada ao quartel-general como pessoal de inspeção tecnológica.

Em suma, a proposta não foi ruim. Na verdade, foi perfeita; uma posição doméstica que era, para todos os propósitos, um serviço na retaguarda. Mas a unidade de instrução e as posições de testador ainda estavam associadas a uma carreira promissora. Ela podia dizer que a viam com bons olhos.

Mais importante, ser encaminhada à unidade doméstica de instrução de combate tinha diversos benefícios. Sendo um grupo de elite do Exército Imperial, seus membros não somente recebiam o melhor equipamento, como também era uma terra sagrada para pesquisas de combate. A unidade era o lugar excelente para eu aprimorar minhas habilidades — um ótimo ambiente a fim de aumentar ao máximo as chances de sobrevivência. Mesmo que Tanya precisasse ensinar, era a posição perfeita para roubar as técnicas de outras pessoas. Para completar, vincular-se à unidade de instrução não seria mancha alguma em seu registro militar.

O vago pedido de transferência temporária para servir como pessoal de inspeção tecnológica sob o quartel-general também não era nada mal. O QG era praticamente o epítome dos serviços de retaguarda. Contanto que eu cumprisse o meu papel de verificadora de tecnologia lá, poderia me esconder na retaguarda com a desculpa de estar conduzindo testes.

Se tivesse algo para criticar, uma posição no Departamento de Ferrovia ou no Estado-Maior seria ainda melhor, por causa das baixas probabilidades de acidentes ocorrerem. Só que era uma diferença tão pequena que esse meio-termo parecia mais do que aceitável.

— Eu pretendo respeitar sua vontade dentro do possível, mas suponho que não tenha nenhuma objeção?

Talvez o comandante respeitasse o desejo de Tanya por formalidade, contudo, na realidade, a decisão já fora tomada. Não havia qualquer expectativa que ela rejeitasse a oferta. Seria imperdoável recusar essas posições após terem sido entregues de mão beijada. As únicas três opções eram “sim”, oui e ja.

— Sim, não tenho reclamações. Aceito humildemente minhas ordens de transferência.

— Excelente. Você vai testar um novo modelo no Quartel-General de Suprimentos e Logística. Como formalidade, será transferida da unidade de instrução para lá — disse o comandante antes de rabiscar minha admissão no documento. Ele prosseguiu a assinar os pedidos e devolvê-los; no papel, minha transferência já estava concluída. Quanta eficiência. Quiçá toda essa história de “uma nota não-oficial” fosse por si só uma formalidade.

— Bom, creio que você queira me fazer perguntas. Permissão concedida.

Sempre gostei de um superior sensato. Ele merecia a minha admiração.

— Fico agradecida. Nesse caso, primeiro gostaria de saber por que o senhor se deu o trabalho de me nomear para a unidade de instrução.

O normal não seria apenas me indicar para uma posição no quartel-general? Não pude deixar de pensar nisso.

Claro, estava muito feliz por ter uma carreira na unidade de instrução, entretanto desejava descobrir as políticas e circunstâncias que levaram ao Departamento de Pessoal a dar a Tanya não uma, mas duas ótimas posições. Eu não queria cair acidentalmente em um monte de problemas mais tarde e me dar mal. Porém a resposta à pergunta de Tanya foi até que simples, senão exasperante.

— Ás ou não, enviar uma criança para a fronte seria ruim à nossa imagem.

Tinha noção de que os superiores eram meio lentos… mas demorou todo esse tempo para eles perceberem? Eu sou tecnicamente uma criança. O que quer dizer que deveriam cuidar de mim. Pelo visto os mandachuvas enfim despertaram seus sensos comuns.

— Então, está me dizendo que um ás deveria servir de decoração na retaguarda?

Obviamente, demonstrar muito entusiasmo em se afastar das linhas de frente não seria bom, porém precisava confirmar a situação. Se as coisas estavam caminhando na direção que eu esperava, teria as melhores condições para seu plano de sobrevivência. Maravilhoso. Realmente wunderbar. Naquela hora, senti como se pudesse chegar a um entendimento com todas as pessoas do mundo. Estava tão emocionada por trás da expressão fria de Tanya que temi transparecer ideias estranhas.

— Uma opinião curiosa, Tenente. Nunca teria passado pela minha cabeça.

Com essas palavras, Tanya tinha confiança de que suas previsões estavam corretas. Eu não sabia o que aqueles das altas-patentes queriam, mas pelo menos o oficial superior à sua frente não havia negado sua conjectura. Isso significava que ela decerto estava limpa. A segurança do serviço na retaguarda era de fato maravilhosa.

— Peço perdão.

— Os superiores estão de olho em ti, Tenente. Por esta razão que a colocaram como responsável pelo desenvolvimento do novo modelo.

Na realidade, estava dentro das considerações comuns do Departamento de Pessoal nomear um feiticeiro competente da fronte para instrução ou desenvolvimento de tecnologia. Nesse sentido, transferir um jovem soldado da fronte era um motivo plausível. Provavelmente, qualquer pessoa no exército aceitaria sem problemas.

Tive sorte, mas ainda assim, um novo modelo? Eu tinha minhas dúvidas que usariam Tanya como cobaia, no entanto ao menos seria reconfortante saber qual tipo de tecnologia ela estaria inspecionando.

— Posso perguntar sobre esse novo modelo?

Se ele afirmasse que era confidencial, eu teria que desistir da pergunta. Todavia, precisava de um certo nível de preparação. Você recebe bem menos dano quando há um aviso antes de lhe atingirem, ao invés de um soco repentino. No intuito de me preparar para o que estava por vir, queria saber no que Tanya estava se metendo.

Sem falar que eu estava bastante curiosa.

— Hmm. Só me disseram que é um protótipo de orbe operacional.

— Entendido. Obrigada.

Tudo isso acabou se tornando, sem dúvidas, verdade. Tanya está na segurança da retaguarda conduzindo vários testes em um novo orbe operacional. Seu comandante nem sequer demorou para responder. Mas também não mencionou que este objeto é tão confiável quanto um “Diabo Vermelho” Italiano¹.

E é por isso que agora estou sofrendo desse jeito.

Estando a mais de três mil e seiscentos metros no espaço aéreo a sudoeste da capital imperial Berun, eu já ultrapassei a altitude máxima de operação dos orbes que existem atualmente. Sem um que não fosse feito para quebrar recordes de altitudes, operar tão alto assim não deveria ser possível. A concentração de oxigênio é inquietante e, como se não bastasse, a temperatura do meu corpo é baixíssima.

Ter levado tempo demais para se adaptar na altura de dois quilômetros acabou me ferrando. Humanos não foram preparados para sobreviver por tanto tempo no alto.

— Tenente Degurechaff, está consciente? Tenente Degurechaff?

Com a cabeça e o corpo lento e pesado feito chumbo, até responder o Controle pelo rádio me passa uma horrível sensação de incômodo. Mesmo vestindo roupas para o frio, só posso conduzir experimentos nesta altitude carregando um tanque de oxigênio, um rádio aéreo e um paraquedas de emergência.

Um único pensamento passa pela mente de Tanya: Seja lá quem teve a ideia de enviar um humano desprotegido a essa altura devia muito bem vir aqui ver como é.

— Um pouco eu diria, mas não vou aguentar muito. Para ser sincera, não acho que seja possível ir mais alto que isso sem proteções.

Deve estar uns bons 21,6 graus mais frio do que no solo. A concentração de oxigênio está logo abaixo de 63%. É incerto se alguém consegue ou não suportar temporariamente essa altitude para executar manobras de combate aéreo, mas decerto não é um espaço feito para seres humanos. Em primeiro lugar, o orbe operacional comum possui uma altura máxima de mil e oitocentos metros. Mais alto que isso e ele perde a capacidade de produzir a propulsão necessária para se livrar da gravidade.

É por isso que Tanya estima que os feiticeiros têm cerca do mesmo nível de superioridade aérea de um helicóptero de assalto. Na verdade, a diferença de altitude chegou até a convencer o Império que o confronto entre feiticeiros e aeronaves não era nada realista. Tal empecilho é praticamente insuperável.

Claro, se o problema for apenas a altitude e eu tiver um orbe especial projetado para alcançar alturas recordes, o resultado pode ser diferente; entretanto, o que Tanya está testando não é um objeto com essas habilidades, mas sim uma ferramenta militar, posta como o “novo modelo”, criada em busca de versatilidade.

Contudo, apesar deste novo modelo — protótipo de orbe operacional da Armamento Elíneo, Arquétipo 95 — ser destinado ao exército, ele está gerando propulsões ridículas que geralmente nem são possíveis. O verdadeiro método utilizado para realizar isso é simples e clichê, seguindo o esquema usual de desenvolvimento de motores: se um não prestar, use dois. Se dois não resolverem, use quatro.

No final, sem o selo de “pesquisa tecnológica” para indicar que é de fato um protótipo, o orbe não parece muito diferente dos outros. A nível de design, continua sendo uma peça de maquinaria esférica do tamanho de um orbe operacional, lotada de inúmeras geringonças.

Mas o que realmente importa está no seu interior.

— Para piorar, isso consome muita mana. E a eficiência da conversão de magia é horrível.

Em vez de gasolina, os orbes operacionais utilizam mana; uma peça de engrenagem com quatro motores consumiria quatro vezes a quantidade normal de mana. Mas expandir a reserva mágica de um humano não é tão fácil quanto adicionar mais tanques de combustível, ou seja, o operador ficará exausto muito mais rápido. Talvez este protótipo tenha capacidades revolucionárias de acordo com suas características, porém a praticidade de um orbe que requer o impossível e deixa o feiticeiro esgotado é no mínimo questionável. Este não só consome quatro vezes a mana de um orbe convencional, como também é atormentado pelo problema técnico de sincronizar seus quatro núcleos.

Dado que os desenvolvedores obtiveram sucesso em miniaturizar os núcleos, o orbe quase não é maior do que seus semelhantes. Para a surpresa de muitos, seu tamanho compacto se manteve o mesmo dos orbes comuns e pode caber no bolso de um feiticeiro a despeito do conteúdo. É bem simples de manusear.

Tenho que respeitar a tecnologia pela qual permitiu aos pesquisadores diminuir os núcleos a esse ponto, mas sendo a pessoa a manuseá-lo, tudo que posso falar é o quão detestável isso é. Miniaturizar um aparelho delicado significa perder seja qual for as tolerâncias que o original tinha. Se ajustar a ativação da sincronia quádrupla de núcleos não for ruim o bastante, o tamanho reduzido deles ainda contribuem para um sistema não confiável e de estabilidade péssima.

Assim, embora na teoria o consumo de mana desse novo modelo deveria ser quatro vezes o normal, na prática precisava de muito mais. Incluindo a perda de mana, mesmo uma estimativa conservadora põe o gasto em seis vezes o usual. Eu não estar acostumada a permanecer nesta altura provavelmente é um fator importante, porém só o teste de altitude já me deixa esgotada, como se tivesse jogado fora toda a minha energia em manobras de combate aéreo. Conforme me canso cada vez mais rápido, também fica mais difícil de respirar.

Mas ao receber o relatório fatigado de Tanya, o rádio retruca com a voz completamente indiferente de um engenheiro.

— Não consegue ir um pouco mais alto, Tenente? Em tese, era para você ser capaz de chegar aos cinco mil e quatrocentos metros.

Tanya segreda em seu coração as palavras: “maldito seja esse cientista maluco”. E faz uma carranca de forma espontânea para onde o homem maligno que acabou de falar no rádio se encontra na aeronave de reconhecimento. Posso apenas imaginar como seria revigorante alvejá-la. Tanya deixa escapar um suspiro enquanto se segura para não tentar fazer isso.

A voz pertence a Adelheid von Schugel. O engenheiro-chefe que supervisiona o protótipo, bem como um legítimo cientista maluco. É frustrante ter que me conter para não atirar nele pelo fato disso só criar mais problemas e resolver nenhum. Tudo o que Tanya pode fazer é lamentar essa situação absurda. E ficar presa testando a invenção desse engenheiro é um ótimo exemplo disso.

— Doutor von Schugel, por favor, não seja insensato.

Para uma pessoa ir mais alto, ela precisaria de roupas aquecidas, não somente aquelas com isolamento. E baseado em minha experiência de combate, o orbe ficaria inviável no momento em que eu precisasse voar com um tanque de oxigênio amarrado nas minhas costas. É óbvio que bastaria um único disparo no suprimento de ar para dar a todos menos Tanya um incrível espetáculo.

Partindo-se do pressuposto que um feiticeiro use uma fórmula para gerar ar e consiga aguentar este reino das alturas sem roupas aquecidas ou um tanque de oxigênio, se esse rendimento depende do orbe operacional, o aparelho já ineficiente queimaria mana ainda mais rápido. A possibilidade de manter operações de combate torna-se extremamente incerta com o nível antecipado do consumo de magia se comparado aos orbes existentes e, por causa de problemas como a baixa concentração de oxigênio, há grande risco de perder a consciência no decorrer das movimentações.

Portanto, um paraquedas é essencial e, apesar de ser o bastante para conduzir testes de voo em nosso próprio território, um feiticeiro imóvel e quase inconsciente descendo devagar é um alvo fácil no meio do combate. Mesmo se o operador chegasse no solo, sua segurança não estaria garantida. Caso pousasse em território inimigo, com certeza seria tomado como prisioneiro.

Sem falar do pequeno risco de o paraquedas pegar fogo ou não abrir por conta da umidade. A Tanya mesma passou sufoco só para encontrar um que fosse de confiança.

— Você ainda deve ter mana sobrando. Além disso, a pressão no orbe está dentro dos parâmetros aceitáveis.

Para a minha infelicidade, ao que tudo indica este engenheiro — o tipo de excêntrico interessado apenas em suas invenções — acredita que os parâmetros teoricamente aceitáveis são as únicas coisas importantes.

— Mas doutor, esse treco não tem durabilidade o suficiente! Quem sabe quando essa porcaria defeituosa vai explodir?!

Para um soldado com experiência em confrontos de vida ou morte, a prática é sempre mais importante do que a teoria. Pelo menos para Tanya, sequer relembrar o último teste de altitude a deixava revoltada de novo.

Aquilo foi terrível. Quando estava a mil e oitocentos metros, perdi o equilíbrio no instante em que os núcleos dessincronizaram um pouco. Supostamente, isso aconteceu devido a uma pequena disparidade na velocidade de condução dos circuitos de desvio mágico. Esses circuitos, destinados à pesquisa, foram construídos com uma precisão bem maior do que aqueles usados para combate; e ainda assim não conseguiram consertar a disparidade? Quando eu soube da causa aparente, juro que tive vontade de sair gritando. Que precisão sem noção é essa?!

Qualquer mana que não possa ser dominada pelos mecanismos internos do orbe operacional acaba ficando fora de controle. Por consequência, os núcleos, incapazes de suportar a sobrecarga, estouram em uma série de explosões mágicas. Felizmente, fui rápida o bastante para contê-los com a ajuda de um orbe extra que eu tinha pegado por precaução.

Mas só fui capaz de resolver o problema porque aconteceu a cerca de mil e duzentos metros de altura. A três mil e seiscentos, onde a temperatura ambiente é fria demais para se mover — e acima de tudo o ar é rarefeito — não tenho muita certeza se conseguiria manter a consciência. No caso de o protótipo de orbe pegar fogo a esta altura, se eu não conseguir controlá-lo, vou terminar compartilhando um beijo intenso com o chão.

Mesmo Tanya não tendo nenhum apego ao seu primeiro beijo como uma garota, duvido que alguém iria querer um assim. Não é senso comum, no entendimento totalmente normal da palavra, se livrar de uma coisa quando ela não pode ser controlada? Mas a vida não é tão fácil para quem possui obrigações profissionais.

Se pudesse, jogaria isso fora num segundo, porém esse protótipo de orbe operacional é um amontoado de segredos. Jamais sairia impune disso. No momento em que eu o perdesse, um monte de medidas preventivas seria tomado para garantir o sigilo.

E, afinal de contas, era dever do testador recuperar o protótipo se possível com segurança… Razão pela qual preciso ter cuidado para controlá-lo de uma maneira que ocorra o mínimo de acidentes. Usar este orbe nada confiável é algo difícil de descrever, mas se eu tiver que comparar com alguma coisa, seria como andar de monociclo através de uma corda bamba passando por um círculo de fogo e ao mesmo tempo fazendo malabarismo com facas.

A pessoa teria que ser estúpida ou suicida para continuar ascendendo com um protótipo tão imprevisível. Claro, uma combinação das duas também é uma possibilidade.

No entanto, aparentemente, minha sincera opinião como testadora é deveras desagradável para o engenheiro-chefe.

— Como ousa chamar minha maior obra-prima de “porcaria”?!

Sendo honesta, até Tanya reconhecia as especificações excepcionais da máquina.

Um sistema com sincronização quádrupla de núcleos ficava apenas na teoria, então o simples fato de o engenheiro-chefe realizar tal feito, ainda que em parte, é uma prova de suas habilidades assustadoras. Depois ele conseguiu encolher os núcleos ao tamanho atual, mantendo a funcionalidade dos modelos convencionais. De uma perspectiva puramente histórica, isso é de fato genial. Estou disposta a aplaudir como a maior descoberta tecnológica desde a identificação da ligação entre o orbe e o cetro.

Então, eu imploro, poderia por gentileza levar em consideração os usuários quando estiver fazendo essas coisas? No que me diz respeito, não importa o quão alto é o desempenho, as pessoas não devem ser forçadas a se conformar com as invenções de um doutor. É possível dar ordens para alguém se adaptar a um uniforme modificando seu físico, porém, para começar, isso só funciona se o tamanho não estiver longe do ideal.

— Olhe para a aplicação, não para as especificações! Ao menos dê um pouco mais de consideração à redundância!

A premissa geral é de que o equipamento militar será utilizado durante as intensas circunstâncias de guerra. O exército quer um dienstpferd, não cavalos de puro-sangue.

— Que conversa é essa?! Sua intenção é dessincronizar o orbe já otimizado?!

— Doutor von Schugel, por favor, não grite no rádio.

— Silêncio! Primeiro retire aquele insulto!

A explosiva troca de abusos verbais ecoa pelo espaço aéreo de teste, apesar de ter soado pelo rádio. Aaaah, ele não só é um fanático por sua área, como também tem a mente de um pirralho. Quero segurar a minha cabeça de tanta frustração. Sério mesmo que esse cara, entre todas as pessoas, é logo o chefe? Se eu estivesse no comando dos assuntos pessoais, teria pelo menos me assegurado de que um oficial administrativo, capaz de controlar esse maníaco, fosse indicado ao cargo de chefe para freá-lo.

Mas a realidade é outra, esse homem é o chefe e eu a testadora principal. Não tenho nada contra o sistema de avaliação meritocrático do Império, entretanto, desejo com toda sinceridade que no mínimo levem em conta as habilidades administrativas. Só o que eu quero é gritar: “Já passou da hora de vocês perceberem a distinção entre funções técnicas e administrativas!”

— É como eu disse…

Eu estar insatisfeita em relação à administração do Império se deu da minha experiência de tempos atrás como administrador. Ao mesmo tempo, enquanto for uma soldada forçada a obedecer determinadas condições, não há escolha senão suportar em silêncio. No entanto, por ter me distraído, a discussão de dar enxaqueca é interrompida.

— A temperatura do motor está subindo rapidamente!

Tsk! Ahhh, que merda! A forma como o problema veio de uma irregularidade tão insignificante quase me fez soltar um gemido. Os núcleos do orbe estão à beira do colapso. Quando a sincronização falhou, perdi o controle deles. Sem desperdiçar tempo, corto de imediato o suprimento de mana e realizo uma descarga de emergência da energia dentro do orbe operacional. É possível executar essas ações com um único movimento.

Felizmente, os mecanismos de segurança foram implementados em consequência da lição aprendida da última vez e se mostraram mais eficazes do que o previsto. Durante aquele teste anterior, houve uma explosão e o motor pegou fogo, mas dessa vez consegui estabilizar os circuitos por pouco. Ainda assim, isso não significa que a mana no interior do orbe vai apenas descarregar sem causar nenhum dano.

Os núcleos dessincronizados do orbe operacional chocam mana atrás da outra de todas as direções e os circuitos explodem num instante. Mas eu dei sorte! O revestimento reforçado que pedi várias vezes foi finalizado a tempo para esse teste, então consegui evitar quaisquer danos reais.

Portanto, uma expressão de alívio aparece no belo rosto de Tanya conforme ela se comunica com o controlador pelo rádio para seguir o procedimento de descida, soando irritada.

— Controle, está ciente da situação? Vou abrir meu paraquedas.

Tenho muita altitude, e aqui é perto da capital imperial, uma zona fora de combate localizada na retaguarda. Sob essas condições, é mais seguro abrir o paraquedas do que se matar para ativar um orbe operacional extra em plena queda.

Na capital, posso flutuar para baixo tranquila sem me preocupar em levar um tiro. Nesse caso, tudo que preciso fazer enquanto desço é aguentar firme e me preparar para o pouso. Mas assim que meu paraquedas abre e eu começo a planar devagar…

— Receb… Calma, doutor, pare com isso! Por favor, me dê licença! Com licen….!

Após captar o som de uma discussão estúpida no rádio, Tanya se vira para o céu e desperdiça um pouco de oxigênio em um longo suspiro. Com certeza é o barulho de uma disputa pelo aparelho de rádio. Pelo jeito, um certo alguém está tendo um ataque, tentando arrancá-lo à força das mãos do controlador.

O engenheiro-chefe Adelheid von Schugel adquiriu genialidade em troca de bom senso? Embora haja muitos casos pelos quais o caráter de um indivíduo não esteja correlacionado às suas capacidades, eu nunca esperei encontrar alguém nesse nível.

Ou o mundo me odeia ou estou amaldiçoada pelo Diabo. Bem, visto que algo pouco científico como magia existe, vou de Diabo mesmo — ou melhor, Existência X.

— De novo, Tenente Degurechaff?!

Aparentemente, a nobre batalha do outro homem foi em vão e o cientista maligno roubou o aparelho de rádio. Mesmo assim, devo reconhecer que ele lutou com bravura para defendê-lo do doutor. Mas já que a batalha fracassou, não me restam escolhas a não ser exercer meu direito de legítima defesa contra esse gênio maluco. Jamais sonhei que o mundo em que vivo se tornaria um lugar onde eu precisaria me salvar.

Se eu tiver que pôr em palavras: “Onde está, repito, onde está a lei e a ordem? O mundo quer saber.”

Neste momento, sinto o maior respeito e admiração pelos juristas. Quem me dera aparecer alguém para restituir a ordem legal, até um formalista serve.

— Se me for permitido falar isso, eu é que pergunto!

Afinal, o sistema intrincado de forma bizarra impede que até mesmo fórmulas mágicas de explosão sejam ativadas corretamente. Para falar a verdade, o número de ocorrências desse sistema defeituoso explodindo fora de controle supera a quantidade de vezes que eu consegui conjurar uma explosão.

Quando me disseram que faria voos de teste, nunca pensei que acabaria reconhecendo a grandeza e a dificuldade de voar mais uma vez. Não sou um dos irmãos Wright, porém isso me fez perceber de novo como a busca da tecnologia de voo está diretamente ligada ao risco de um acidente fatal. Ao menos eles próprios voaram, arcando com as consequências.

O engenheiro-chefe Adelheid von Schugel, por outro lado, obriga os outros a fazer. E ainda por cima, é tão indulgente consigo mesmo que não acreditei no que ouvi quando ele alegou haver falta de elegância funcional nos recursos de segurança.

No momento em que finalmente pude realizar alguma avaliação decente, embora quase nada, ele acrescentou uns itens de testes e tarefas estranhas. Ali foi quando eu agi por impulso e enviei um pedido de transferência. Que, infelizmente, foi negado. Por quê? Por mais injusto que pareça, aconteceu porque fui a única capaz de fazer pelo menos um teste. Aliás, meu contato no Departamento de Assuntos Pessoais chegou até a me repreender falando para eu “seguir em frente sobre os cadáveres de meus predecessores caídos”.

Presumi que ele quis dizer isso no sentido figurado, mas talvez eu esteja errada. As linhas de frente estão parecendo mais promissoras em termos de sobrevivência. Um dia desses, ouvi dizer que agora estou qualificada para receber a Insígnia da Cruz Ferida.

— É a sua falta de concentração a culpada por todos esses problemas! E ainda se diz soldado?

Eu aturei os insultos de Schugel e segurei meu desejo interior para não dar um escândalo de xingamentos. Certamente não me alistei ao exército porque queria, e isso aqui não é uma profissão lá muito divertida, mas eu entrei né.

— Pois eu lhe garanto que sou um soldado imperial! E o dever de um soldado é usar armas, não perder tempo tentando fazer porcaria cheia de defeitos funcionar!

No início, considerei que o trabalho de um soldado imperial fosse guerrear com um orbe operacional na mão e um rifle no ombro. De forma alguma pensei que isso implicava portar aparelhos defeituosos e sair explodindo sem avisos. Os soldados também possuem o direito de reclamar se receberem um orbe descontrolado ou uma arma quebrada. Ao menos, é assim que funciona no Exército Imperial.

Ademais, credibilidade e durabilidade são indispensáveis para o equipamento de um feiticeiro presente no severo ambiente que é a guerra moderna. O que não passa de senso comum, inclusive entre novos oficiais. E vai além de apenas feiticeiros — era para estabilidade e confiança serem tomadas em primeiro lugar na construção de qualquer equipamento militar. Sendo direta, um objeto desenvolvido de modo bizarro e inédito não é adequado para combate.

Igual a como um carro de corrida projetado exclusivamente para um alto desempenho é incapaz de suportar o desgaste do uso cotidiano. Uma arma delicada e intrincada que não tolera o manuseio errado dos soldados torna-se irrelevante no campo de batalha.

— Como é? Você chamou de “porcaria” de novo?!

Naturalmente, é do entendimento do exército a necessidade de inspecionar tecnologias. E às vezes, no intuito de exibir seu poderio tecnológico para propaganda, o Império produzia equipamentos experimentais especializados em uma única área visando quebrar recordes. Se estivessem numa corrida dessas, aí tudo bem, mas o protótipo de orbe atribuído a Tanya é conhecido como o “principal candidato de última geração”, então é imprescindível que haja versatilidade.

Esse cientista maluco sequer leva a sério o desenvolvimento de armas? Não parece mais um hobby para ele? Enquanto Tanya questiona o juízo do engenheiro-chefe, ela também se pergunta como que o Quartel-General de Suprimentos e Logística aceitou uma coisa dessas.

O mundo de fato é um lugar estranho.

— Qual parte de um orbe operacional que quebra do nada, e nesta altitude, pode ser chamado de arma legítima?!

Caso os motores de uma aeronave parassem de repente, todos a chamariam de “máquina assassina”.

Se os defeitos fossem particularmente severos, ela chegaria até a adquirir notoriedade como “fabricante de viúvas”. No entanto, este orbe tem problemas ainda piores que isso. Afinal de contas, para fazer a coisa funcionar requer quase um milagre.

Não só é suscetível a quebras e maus funcionamentos, mas também possui uma saída instável e, no geral, não é nem um pouco confiável. É óbvio que eu pensaria que esse treco jamais deveria ser chamado de arma.

— Isso é porque vocês imbecis vivem manuseando ele de forma errada! Como conseguem quebrar meus instrumentos de precisão tão rápido assim?!

— Você que os constrói frágeis demais. Já ouviu falar em “uso militar”?

Esse cientista maluco decerto não conhece o significado desse termo. Entretanto, sem dúvida que ele conseguiu satisfazer todas as especificações que o exército solicitou.

Embora seja apenas verdade no papel — e, inclusive, só até certo ponto — o protótipo tem uma altitude funcional onde é possível interceptar bombardeiros. Esta é uma qualidade que mais uma vez aumentaria o valor estratégico dos feiticeiros. Na teoria, a aplicação do poder de fogo imediato iria quadruplicar. O potencial de ataque dos feiticeiros literalmente decolaria.

Mas isso é se partimos do pressuposto que esse treco maldito funcione direito. Apesar de óbvio, francamente, um orbe tido como obra de arte ou que exige manutenção laboratorial só pode ser um objeto inútil. Me sinto tentada a perguntar se o maior desejo do engenheiro-chefe é criar um cavalo de puro-sangue cuja única necessidade é oferecer desempenho máximo por breves instantes durante uma corrida.

Em geral, os orbes operacionais são instrumentos de precisão que funcionam bem se receberem manutenção básica uma vez por mês. Mobilizar a equipe técnica inteira para trabalhar em um orbe toda vez que o usam é absurdo — e com isso quero dizer toda a equipe técnica da instituição de pesquisa, equipada com os recursos mais substanciais de apoio da retaguarda. Isto é, o Quartel-General de Suprimentos e Logística. O doutor deve ter esquecido o significado de manutenção.

Ele além de falhar em cumprir os padrões de manutenção que são desejados na fronte, não chegou nem perto, na verdade. O fato disso ser um protótipo avançado dá a entender que se espera que Tanya realize um determinado grau de certificação. Mas não canso de me surpreender com a quantidade de problemas de aplicação que podem ser resolvidos.

— Eu quero saber porque não entra nessa sua cabeça o quão revolucionária a tecnologia por trás da sincronização de quatro motores é!

— Até reconheço que seja revolucionária. E por isso mesmo que digo e repito: crie algo funcional.

— Em tese, funciona! Por que você não consegue usá-lo do jeito certo? — Ele está mais para um estudioso acadêmico do que um dos melhores engenheiros da área. Berra idiotices exasperantes com uma cara séria.

Baseado nas opiniões pessoais de Tanya e na sua teoria — um tanto enviesada — sobre gestão de recursos humanos, quando aparecer um cientista em seu local de trabalho no futuro, só haverá uma coisa pela qual ela precisará tomar cuidado; em poucas palavras, se a pessoa é ou não maluca. Antes de sequer vir a se preocupar com as habilidades administrativas, o que interessa é: essa pessoa tem a capacidade básica de comunicação necessária para trabalhar em equipe? Apenas isso.

Por sinal, dizem existir uma linha tênue que separa o gênio de um louco, mas agora vejo que é até fácil distingui-los. Se no final de uma conversa sua única vontade é descarregar um cartucho inteiro de munição em alguém, essa pessoa em questão é maluca. Se você conseguir manter uma conversa amigável, ela é um gênio.

— Doutor von Schugel, é preciso um nível adequado para uso prático!

— É justamente para isso que estamos conduzindo esses experimentos! Nunca ouviu falar do Ciclo PDCA?

Seria tão maravilhoso derrubar esse infeliz dali de cima com meu orbe reserva… Qualquer um que faz os outros pensarem dessa forma é um cientista maluco. Se a voz da razão não estivesse me segurando, tenho certeza que teria sujado minhas mãos.

Fora isso, é claro que conheço o Ciclo PDCA. Planejar (plan), executar (do), checar os resultados (check) e implementar melhorias onde for necessário (act); um processo bastante conhecido. Não é como se eu tivesse alguma coisa contra o uso desse método comum.

Na realidade, faria questão de seguir com procedimentos ainda mais rígidos. Estou desesperada para dizer a este homem para que ele pelo menos dê uma olhada melhor em suas criações.

Sendo eu quem está usando o orbe, posso afirmar que seus defeitos não são do tipo que podem ser corrigidos com pequenas melhorias. Tem uma série de erros, problemas e falhas graves. Apesar da minha responsabilidade de manter sigilo, esse treco é tão cagado que eu jogaria fora se não fosse pelos mecanismos de segurança embutidos nele.

Para piorar, esses mesmos mecanismos não são lá essas coisas. O orbe parou de funcionar sem problemas, e Tanya conseguiu evitar o pior resultado. Porém ele não é capaz de conter totalmente a mana dentro. Se os circuitos explodirem, esse treco vai virar um monte de sucata, portanto preciso sempre ter em mente o pior cenário possível.

E este seria se uma explosão incendiasse meu tanque de oxigênio; o que não seria nada legal. Com base no progresso anterior, me deram alguns paraquedas aprimorados feitos a partir de tecidos à prova de fogo e resistentes a rasgos. Mas nem isso garante cem por cento de segurança.

Caso Tanya fique inconsciente, há sempre a preocupação de que o paraquedas não abra automaticamente. Dependendo do tamanho da explosão, também existe o risco de ficar presa pelas cordas e morrer asfixiada antes mesmo de aterrissar.

Os humanos aprenderam com a experiência que, conforme referido pela Lei de Murphy, se algo pode dar errado, dará. Se um funcionário de escritório tem aptidão em causar problemas, então problemas acontecerão. Por exemplo, é conhecimento geral na gestão de recursos humanos não manter um funcionário sem grana em um departamento que trata de finanças. Da mesma forma, voar com um orbe que pode explodir a qualquer hora é como se sentar à espera de uma explosão acontecer.

Ao pousar, decido enviar uma solicitação de transferência, dessa vez a sério. Um aceno de cabeça enérgico demonstra o nível da determinação de Tanya. Ainda que o pior aconteça e isso passe uma impressão negativa aos meus superiores, juro que negocio até o fim com o Departamento de Pessoal.

Do jeito que as coisas estão indo, cem vidas não seriam suficientes para ela sobreviver. O serviço na unidade de instrução é a sua única esperança. Tinha tentado usar minha afiliação a eles como escudo e implorado para assumir minhas funções lá, mas não adiantou. Há grandes chances de eu me tornar um sacrifício humano em um dos experimentos daquele cientista maluco, a menos que desista dessas tentativas não oficiais e apresente logo um pedido oficial de transferência.

Preciso enviar essa solicitação… E o mais rápido possível.

Assim, imediatamente após aterrissar e cumprir minhas obrigações, pego minha caneta.

QUARTEL-GENERAL DE SUPRIMENTOS E LOGÍSTICA DO EXÉRCITO IMPERIAL, DIVISÃO DE TECNOLOGIA.

A solicitação seguiu de acordo com o formato oficial. O pedido da Segunda-Tenente Feiticeira Tanya Degurechaff passou uma grande sensação de urgência. Pela burocracia sofisticada que era, a Divisão de Tecnologia do Quartel-General de Suprimentos e Logística tinha que aceitar e processar qualquer pedido de transferência submetido por via oficial.

O certo era que ela estava bastante séria quanto a sua vontade de se transferir. O que não foi nenhuma surpresa, já que esta era a sua quarta solicitação se incluíssem as tentativas não oficiais.

Aquelas tentativas anteriores vieram sem documentação, então a equipe conseguiu resolver apenas acalmando a menina, mas a cada solicitação, suas súplicas e fervores aumentavam. Era de se esperar que esse pedido viria. Apesar disso, ao lerem o requerimento para transferência de Degurechaff, todo o pessoal de gestão da Divisão de Tecnologia levou as mãos à cabeça em frustração.

— E então, o que vamos fazer? Vocês sabem muito bem que esses são formulários oficiais. Damos a ela?

A soldada havia se portado de forma digna e permitira ser apaziguada todas as vezes no passado, porém o envio deste pedido mostrava que sua paciência tinha chegado ao limite. No lado do Departamento de Pessoal, as coisas melhoraram na fronte Norden, portanto, em consideração às posições políticas e internacionais, eles estavam no meio do processo de atribuir postos aleatórios na retaguarda aos jovens soldados.

Por conseguinte, não seria problema algum para o QG de Suprimentos e Logística realocar a Segunda-Tenente para um posto qualquer. No entanto, embora fosse uma tarefa fácil, a soldada era valiosa demais no posto em que estava para tirá-la de lá.

— Nem pensar. Eu duvido que exista outro igual a ela capaz de satisfazer as exigências de Schugel.

O engenheiro-chefe von Schugel tinha uma competência incrível, apesar de carecer das demais qualidades, além de seu talento, para poder se vangloriar. O desenvolvimento da próxima geração de orbes juntava o nível básico de coleta de dados com os objetivos de criar e comprovar tecnologias avançadas. Ele havia conseguido cumprir os requisitos delineados pela Divisão de Tecnologia, ao menos nos documentos de planejamento, por mais ambiciosos — para não dizer outra coisa — que fossem.

— Bem lembrado. Não seria melhor também levarmos em consideração a possibilidade que a pesquisa dele finalmente dê certo?

Sua genialidade era proeminente por todo o Império, que fora pioneiro na pesquisa de tecnologia mágica com observação científica. Ao mesmo tempo que a engenharia mágica ganhara reconhecimento como um campo independente da ciência, ainda havia margens de erros e diversos elementos permaneciam relativamente desconhecidos. Schugel fizera enormes contribuições ao levar o campo para o caminho correto, apesar de complicado, e aperfeiçoá-lo.

Se for considerado apenas o elemento de pesquisa, estava mais que claro que os dados e valores teóricos conquistados pelo Arquétipo 95 deram grandes passos. Tal avaliação, entretanto, só era verdade em termos científicos. Avanços revolucionários poderiam ser suficientes para um instituto de pesquisa, mas o Quartel-General de Suprimentos e Logística queria um produto que sustentasse operações militares, então eles precisavam julgar essas questões de forma mais abrangente.

— Por outro lado, mesmo que ela consiga operar o protótipo, seria uma pena acabar com o futuro de alguém tão talentoso.

— Precisamos ter em mente algo a longo prazo. Não há como substituir uma pessoa como ela.

As vozes ecoando dos chefes do departamento expressavam suas preocupações em perder um valioso feiticeiro de talento impressionante. Na realidade, era a competição entre as nações que impulsionava os rápidos avanços na inovação e desenvolvimento da tecnologia militar, tornando raro sacrificar vidas valiosas em nome do progresso científico. Mas acontecia.

O desenvolvimento armamentista foi intensificado em curtos prazos por conta de receios com a defesa nacional, resultando no fortuito acidente em um dos setores sobrecarregados. A lista de pessoas mortas em serviço de jeito nenhum era pequena.

— Concordo. Se olharmos para o futuro, a aquisição, o treinamento e a permanência de feiticeiros competentes também é um motivo de preocupação para o Império.

— Agora eu gostaria de acrescentar uma coisa… tenho noção que a sua idade não pode ser levada em consideração, mas mesmo sendo muito talentosa, ela ainda não passa de uma garotinha. Pesa na minha consciência ter que enviá-la para servir de brinquedo do doutor von Schugel.

Outro fator importante para o Império era que nas forças mágicas e marinhas, ambas com necessidade de se expandir, o aprimoramento do indivíduo só poderia ser feito a partir de treinamentos a longo prazo. Eles podiam produzir orbes operacionais ou navios de guerra em massa, mas não chegavam nem perto de formar uma equipe principal competente e experiente.

Nesse ponto, Degurechaff além de se enquadrar na faixa etária mais nova do exército, também era uma graduada da academia com reais experiências de combate. Tudo isso somava para torná-la um recurso valioso. Seria um desperdício acabar com seu futuro. Ademais, a Armamento Elíneo não era a única fábrica lutando para ser escolhida na intenção de produzir a nova geração dos orbes operacionais do padrão imperial, o que levou a uma situação política problemática. Todos ali presentes tinham a intenção de impedir o escândalo que surgiria com a mídia caso deixassem a promissora portadora da Ataque de Asas Prateadas morrer em serviço.

Sobretudo, a garota era jovem demais aos olhos de qualquer pessoa sensata. Ainda que não levassem isso para o lado da moralidade, era possível que seus talentos melhorassem de modo substancial com o tempo. As habilidades que demonstrara tornava nítida a carreira promissora que ela teria no exército. Se esses homens perguntassem a si mesmos se deviam sacrificá-la, a resposta era um óbvio não.

Os superiores até poderiam ter permitido a transferência temporária da menina, porém sua mensagem foi alta e clara ao nomeá-la para uma posição na unidade de instrução: “Vocês estão livres para fazer uso dela da maneira que preferirem, mas a tragam de volta. E viva.”

— O problema é que o Arquétipo 95 é muito promissor para perder, por isso que estamos aqui sem saber o que fazer! — As palavras escaparam da boca de um dos oficiais cuja a cabeça permanecia enterrada entre as mãos, resumindo o dilema ao qual o grupo se encontrava.

— Falando nisso, os experimentos até deram retornos. As conquistas tecnológicas foram significativas, na verdade.

Os retornos esperados da pesquisa foram grandes o bastante para que o Império estivesse disposto a autorizar um certo nível de risco. Por este motivo que colocaram ainda mais dinheiro nas verbas do Arquétipo 95 como se estivessem derramando água. E após investir uma grande quantia de capital, eles por fim começaram a ter um pouco de esperança.

Quando o assunto era tecnologia militar, o Império tinha a vantagem. Um dos pilares fundamentais de sua supremacia tecnológica era seus avanços revolucionários na tecnologia mágica. Tamanho potencial também trazia repercussões. Os retornos seriam impressionantes, então não valeria a pena investir no desenvolvimento do projeto? Eles já tinham a prova de conceito2 da tecnologia de sincronização de núcleo do orbe. Só isso seria o suficiente para impulsionar em muito as capacidades dos feiticeiros.

— Reconheço a importância da sincronização quádrupla de núcleos, mas nem sequer temos ideia se isso um dia poderá vir a ser algo prático!

Como era de se esperar, até aqueles em oposição estavam dispostos a reconhecer o que essa tecnologia representava. Eles compreendiam sua natureza revolucionária, e não negavam que o Império havia lucrado bastante se dedicando a apoiar a análise e estudo científico da magia. No entanto, em sua opinião, alguns aspectos acerca do desenvolvimento do Arquétipo 95 acabaram o deixando muito caro.

Afinal de contas, independente de seus valores teóricos, a resposta do usuário indicava que o objeto era problemático demais para fazer uso prático. Além disso, estava tão cheio de mecanismos revolucionários e de ponta que era mais fácil ultrapassar não só a “nova geração” como talvez até a próxima depois dela. Quando a possibilidade de implementá-lo de maneira prática surgiu, pareceu mais uma história pouco provável de acontecer. Era por isso que estavam andando em círculos.

No final, o que interrompeu esse debate foi a observação de um único relatório.

— Vocês chegaram a ler o parecer técnico? A análise da Tenente Degurechaff é bem criteriosa, na minha opinião. Não importa o quanto de mana a pessoa tenha, não dá para sustentar o orbe.

O relatório de teste enviado sobre o Arquétipo 95 apresentava fortes habilidades analíticas e até uma sugestão de profundidade que parecia ter levado experiência como fundamento. O escritório inteiro havia ficado em choque só de imaginar que uma criança de dez anos poderia tê-lo escrito. Outros ainda questionaram se foi ela mesma quem fez.

Dito isso, o conteúdo do documento era adequado e extremamente perspicaz. E, até onde puderam descobrir, ela própria que o escrevera. Com a pouca idade de dez anos, Degurechaff era muito nova para frequentar a escola preparatória militar e uma feiticeira que tinha uma capacidade de mana mediana. Baseado no seu talento e quantidade de mana, era quase certo que a menina teria um futuro promissor. Entretanto, esta mesma feiticeira oficial competente e além de seu tempo reclamava dizendo que não conseguia fazer com que o protótipo funcionasse direito.

— Seu alcance, poder elevado e capacidade de ativar várias fórmulas são ótimas melhorias, porém se essas coisas só fazem diminuir seu tempo de utilidade a um nível crítico, não vejo porque o usaríamos em combates prolongados.

O objetivo poderia ter sido inspecionar a tecnologia, mas uma taxa de consumo de mana que tornava impossível realizar manobras de combate significava simplesmente um grande fracasso na concepção do motor de quatro núcleos. Talvez tivesse ampliado o poder de fogo imediato, porém seria inaceitável se a troca para isso fosse uma redução drástica no período de tempo que o combate incessante poderia ser mantido.

De certa forma, dava para se dizer que isso era um bom mecanismo de avaliação. Parte do que fazia as inspeções de tecnologia serem importantes era detectar as falhas em equipamentos avançados como este. Contudo, se o problema vinha do consumo mágico excessivo por causa de um erro estrutural com o direcionamento da mana para os múltiplos núcleos do orbe, não havia nada que pudesse ser feito.

— Desde o começo, nosso objetivo é verificar e testar tecnologias avançadas. Ainda estamos dentro dos parâmetros aceitáveis.

Por outro lado, aqueles a favor do desenvolvimento estavam dispostos a admitir que de fato o projeto pecava quando se tratava de sua sustentabilidade em meio ao combate. No entanto, isso não traria nenhuma preocupação em particular, no que dizia respeito à inspeção, se deixassem especificado que o objetivo era apenas mostrar a prova de conceito. Os engenheiros do lado daqueles a favor acreditavam que as restrições de uso não eram muito importantes.

A corrida tecnológica com as potências vizinhas estava tão acirrada que todo mundo tinha o desejo no fundo do coração de que o Arquétipo 95 viesse para assegurar a superioridade tecnológica da pátria. Se ficar para trás em inovação representava um grande risco e sair na frente garantia retornos extraordinários, eles preferiam continuar seguindo adiante. Caso avaliassem o projeto com base no seu potencial, poderiam aprovar todos os seus custos na mesma hora.

— Tirando sua importância tecnológica, não tem como o exército utilizar isso.

A questão era que somente os engenheiros envolvidos no desenvolvimento e os pesquisadores que lhes davam apoio pensavam assim. As tropas, pelas quais usavam uma boa variedade de armas e não eram lá muito gentis com elas, tinham suas dúvidas. Os orbes operacionais já custavam o preço de suas armas mais poderosas. Esse protótipo único e especial parava de funcionar com frequência e fazia tempos que ultrapassara seu orçamento inicial.

Já havia gastado quantias inacreditáveis de dinheiro, e eles estavam cada vez mais hesitantes em aumentar o investimento. Se transferissem logo o orçamento para outro lugar, não seria mais eficaz em termos de custo-benefício? Tais opiniões faziam perfeito sentido. O Império era poderoso, porém sua verba militar, apesar de abundante, tinha limites. E era por essas limitações que precisava-se de maior eficiência.

— Mas e sobre a possibilidade de converter mana em um estado permanente? Não é motivo suficiente para continuar o desenvolvimento?

— E você quer que a gente continue isso em uma busca cega pelos mitos da alquimia? Não podemos ficar jogando fora nosso orçamento e mão de obra limitados para sempre.

Nunca haviam chegado a um entendimento quanto à hipótese de sustentar e armazenar mana. Em teoria, tinha lógica nisso. O próprio Schugel admitira que o consumo insaciável de poder mágico do orbe impediria qualquer combate constante.

Como contramedida, ele teve a ideia de que se fosse possível conservar mana do mesmo jeito que energia química era armazenada nas baterias, todos os seus problemas seriam resolvidos. Na verdade, havia um monte de pessoas que estavam sempre na corrida para conseguir sequer algum progresso na transformação de mana em um estado permanente, apenas para desistir da tarefa inviável.

Otimizando mana por meio de um orbe operacional, um feiticeiro era capaz de sobrepor e provocar efeitos de interferência na realidade a partir de sua vontade. Essa interferência então criava um fenômeno concreto. Este era o princípio por trás das fórmulas usadas pelos feiticeiros.

Claro, a magia que eles conjuravam era temporária. Supondo que uma pessoa quisesse fazer uma explosão e esse desejo criasse uma, o fenômeno não somente seria temporário, como também a mana responsável por provocar a explosão se dissiparia, tornando impossível manter seu estado. Se isso fosse possível, o feiticeiro precisaria apenas desejar que o fenômeno permanecesse no mundo para conservá-lo no lugar.

Conceitos iguais a este foram considerados pouco tempo depois do uso prático de orbes operacionais entrarem em vigor. Porém, toda vez que tentaram utilizar mana para deixar ela mesma permanente no mundo material, os fracassos só multiplicaram.

Embora os pesquisadores fossem por muitas vezes otimistas, existiam montanhas de documentos descrevendo as várias implementações malsucedidas. Todas as grandes potências que investiram seriamente nessa ideia até então, já a haviam abandonado.

Ao interferir no mundo com a vontade de uma pessoa, um objeto podia ser criado. Soava fácil, mas era o mesmo que falar para um feiticeiro desafiar perpetuamente as leis da natureza e da física. A essa altura, estava mais para se aventurar no reino da alquimia dos contos antigos.

Em outras palavras, isso era o quão absurdo parecia, pelo menos na perspectiva de soldados pragmáticos. Na concepção deles, estava na cara que essa nova tecnologia exagerada era duvidosa. A teoria em si já estava obsoleta.

De certo modo, essa teoria provinha de um ideal tecnológico que deveria ter sido deixado para as futuras gerações, assim como a alquimia, mas havia se tornado tão notória que tanto os soldados envolvidos no desenvolvimento de armas quanto qualquer pessoa trabalhando na área da magia ouviram falar sobre.

Interferir com as leis da natureza e manter seu estado exigia uma enorme quantidade de mana. Para conseguir aumentar a quantia que poderia ser utilizada de uma só vez, os fenômenos precisavam ser conjurados com no mínimo dois núcleos. Da mesma maneira, tornar um fenômeno permanente necessitava de mais outros dois núcleos. Como resultado, manter esse estado requeria controle perfeito de pelo menos quatro núcleos sincronizados que também executavam suas próprias funções em paralelo. Até o presente momento, tudo isso havia ficado apenas na teoria.

— O doutor conseguiu concretizar a sincronização de quatro núcleos. Você não pode negar que exista essa possibilidade.

— Na sua condição atual, não podemos esperar que chegue numa sincronização perfeita. A Tenente Degurechaff foi a única que teve alguma chance com ele, e nem ela foi capaz de obter uma taxa de sucesso satisfatória.

Era por isso que aqueles a favor do desenvolvimento e o grupo que achava melhor parar a pesquisa chegaram a conclusões completamente distintas, apesar de terem observado os mesmos resultados. Os que estavam a favor tinham esperanças, enquanto os que estavam contra consideravam algo inútil, e as duas opiniões faziam sentido até certo ponto. Na prática, um orbe que apresentava problemas com todo e qualquer teste realizado não era nada confiável. Obviamente, ainda estava para aparecer um primeiro protótipo que fosse de fato perfeito, então era de se esperar um determinado número de problemas.

Mas tamanha frequência de acidentes graves era sem precedentes. De acordo com o que eles perceberam lendo os relatórios, tudo indicava que Degurechaff quase havia partido desta para a próxima. E mesmo depois de arriscar sua vida nesses experimentos, a menina por pouco não falhara em operar o orbe.

O que foi tomado como uma melhoria marcante no progresso existente, deixando evidente o quão “bem” as coisas estavam caminhando. Então, quando um grupo de soldados surgiu para protestar quanto ao desperdício gigantesco de dinheiro, um certo oficial de média patente do Departamento de Pessoal que estava presente na reunião levantou um questionamento de uma perspectiva um tanto diferente.

— Mas por que ela? Eu me pergunto.

Foi apenas uma pergunta inocente que, no entanto, abordava um ponto intrigante. A carreira da Segunda-Tenente Feiticeira Tanya Degurechaff nem de longe era ruim, mas havia soldados de sobra com currículos melhores. Se a comparassem com o testador anterior para identificar o porquê dela ter sido a única que conseguiu, talvez encontrassem a resposta. Quando eles pensaram nisso, perceberam o valor de se aprofundar nesta questão.

— Não, essa sua linha de pensamento está incorreta. Devemos nos concentrar no motivo que a fez obter sucesso.

Nesse ponto da conversa, o diretor do Quartel-General de Suprimentos e Logística, que conduzia a reunião, levantou um dos questionamentos mais óbvios.

— Por que ela foi selecionada. Quem a escolheu?

Sem sombra de dúvidas, havia sido a Divisão de Pessoal do QG de Suprimentos e Logística quem aprovara o posto, portanto, alguém devia ter submetido a papelada. E era nesses documentos que provavelmente tinha a razão por trás da seleção da menina.

Perante a pergunta de seu superior, os administradores mais jovens correram para folhear a papelada e encontraram o formulário de designação. Passara despercebido até então, mas continha todas as respostas.

— O próprio engenheiro-chefe von Schugel a escolheu. Ao que parece, ele alegou que a Tenente tinha maior chance de conseguir operar o orbe.

— E como ele ia saber disso?

Considerando as falhas dos testadores anteriores, tinha de haver alguma coisa para convencê-lo de que Degurechaff poderia cumprir a tarefa. Por que ele queria em específico alguém das linhas de frente como a Segunda-Tenente? Era algo que ela tinha de especial? Suas habilidades? Ou outra coisa nada a ver? Era uma pergunta intrigante.

Mas a resposta escrita no formulário pelo engenheiro-chefe foi bem simples.

— Aqui consta que… Pelo fato dela não estar muito apegada aos orbes convencionais, ele acha que a Tenente não trataria o protótipo do jeito que os outros soldados cuidam dos seus.

Bom, o orbe era novinho em folha. Esse pensamento do doutor fazia sentido. O sistema de sincronização quadrupla de núcleos era um modelo distinto, logo, tentar conduzir mana da mesma forma que antes seria difícil.

Foi preciso a flexibilidade de pensamento de uma criança para eles entenderem que por mais que a condução de mana parecesse estranha, não era certo ir contra essa estranheza. Alguém precoce como a Degurechaff teve noção disso e compreendeu a lógica por trás, sem falar que ela conseguiu operar o protótipo. O raciocínio estava correto.

Assumindo-se que eles entenderam tudo até agora, uma fileira inteira de participantes deixou escapar o mesmo suspiro. Um lamento emanado diante de uma dura verdade.

— Ei… não existem muitos feiticeiros por aí desacostumados com os orbes convencionais, né?

Isso era evidente. Mesmo se revirassem os recursos humanos de cabeça para baixo à procura desses feiticeiros, poucos apareceriam que atendessem a essas condições. Naturalmente, a exigência mínima para o orbe ser lançado como o modelo de nova geração era se a maioria dos feiticeiros existentes fossem capazes de utilizá-lo. Caso não chegasse a sua capacidade operacional total, não valeria a pena.

As implicações ditavam que usar o Arquétipo 95 era um obstáculo muito grande. Até que o sistema de treinamento fosse reformulado e todos os feiticeiros ativos e em serviço retreinados, o modelo de nova geração permaneceria sem utilidade. Usá-lo se mostrava mais trabalhoso do que os demais orbes operacionais, então os treinos de novos recrutas também precisariam ser reavaliados.

E supondo que conseguissem realizar tudo isso, a eficiência, confiabilidade e custo do orbe eram suficientes para eles pensarem duas vezes antes de saírem fazendo uma distribuição em massa. Considerando o nível de perícia que os dispositivos precisavam para poder funcionar, tornariam-se desastres em potencial.

— Nosso orçamento não é infinito. Estamos dando ênfase demais na versatilidade?

— Também obtivemos sucesso com outras inovações, como os mecanismos de segurança dos orbes. Não acham que já passou da hora de terminarmos?

Em suma, talvez fosse melhor parar o desenvolvimento ou pelo menos reduzi-lo. Não foi nenhuma surpresa quando essa opinião se tornou a dominante no salão de conferências.

Não importava o quão fascinante fosse a tecnologia, a única alternativa para o exército era abandonar o projeto caso não pudesse ser implementado em um futuro próximo. O Exército Imperial carecia de orçamento, mão de obra e recursos para gastar.

— A possibilidade de amplificar o poder de fogo é tentadora. Não funcionaria só com dois núcleos ao invés de quatro? — Claro, aqueles que lamentariam o término do desenvolvimento ainda não podiam se livrar do que restava de seu apego.

— Um ponto interessante. Se usássemos apenas dois, a sincronização não seria mais fácil?

— Relativamente, sim. — Comparado à sincronização de quatro núcleos, era óbvio que acoplar somente dois deles seria mais fácil. Por ironia, a solução veio de um membro do departamento de tecnologia atrelado àqueles que eram a favor do desenvolvimento. — Entretanto, acreditamos que nem isso daria para evitar a sua ineficiência devido à estrutura complexa que possui.

Desde o início, a mecânica de sincronização era inovadora e complicada. Eles não podiam esperar por uma taxa de eficiência melhor.

— Então vai ser mais rápido mandar os feiticeiros carregarem dois orbes operacionais.

— Eles perderiam sua utilidade na fronte se a operação do orbe for fraca. Creio que ainda não estamos preparados para explorar a tecnologia de sincronização.

Eles decidiram não dar mais continuidade ao desenvolvimento. Nessa altura, foi a decisão natural a se tomar.

 

ALÉM DO REINO DA PERCEPÇÃO.

 

— Senhores, receio que a situação esteja grave.

Em um canto deste reino divino, os deuses se encontravam genuinamente perturbados. O desconforto que sentiam era verdadeiro, até mesmo benevolente.

— Como sabem, o número de crentes tem diminuído em um ritmo acelerado.

— É extremamente difícil encontrar o equilíbrio entre religião e avanço civilizatório.

Alguns guiavam os homens para planos maiores de existência. Outros intervinham o mínimo possível. Mas qualquer que fosse o método adotado, uma quantidade crescente de limitações ameaçava a continuidade do sistema de ciclo de vida e morte.

Em particular, quanto mais avanços as pessoas fizessem, mais felizes ficavam e maior era o declínio de sua fé. Para o sistema, não havia pesadelo pior.

— Qual foi o resultado?

— Péssimo. Até chegaram a encarar como fenômeno sobrenatural, mas além disso…

Um arcanjo com ideias mais radicais e alguns outros haviam defendido a criação de fenômenos sobrenaturais no intuito de restaurar a fé no coração das pessoas. Acreditando que deveriam seguir o que acontecera com Moisés, eles passaram a fazer experiências, porém os resultados foram decepcionantes. Era provável que a ciência explicaria essas coisas algum dia.

Os fenômenos excederam a compreensão das pessoas naquela época. Ficaram apenas sem explicação e, portanto, nada mais do que uma questão para ser investigada e pesquisada.

— Algo já me dizia que não iria bem.

— Eu gostaria de saber onde se encontra o problema. No passado, tudo o que precisávamos fazer era nos comunicar e logo entenderiam que somos deuses.

— Vez ou outra até nos chamavam.

Sim. Deveriam ter conversado com as pessoas quando a fé delas ainda permanecia alta. Assim, poderiam comunicar melhor sua vontade divina. Não só isso, alguns chamariam seus deuses por conta própria. Agora não existia mais ninguém, praticamente. Poucas eram as vozes que de verdade clamavam por salvação.

Como as coisas chegaram a esse ponto? Quando uma resposta se mostrava evasiva mesmo depois de longas considerações, o ideal era voltar atrás e reexaminar os resultados. Era uma abordagem de extrema lógica. Desse modo, seus ideais nobres e senso de dever levaram-nos a tomar providências, e eles investigaram tudo, desde os tempos mitológicos até a modernidade. Para eles, aqueles tempos eram apenas memórias do passado. Claro, se quisessem, também podiam recordar caso por caso a fim de examiná-los.

— Isso não adveio da graça divina…?

De certa forma, essa foi uma conclusão bastante pragmática.

— Como assim?

— No passado, quando a civilização humana se encontrava em um estado terrível de seu desenvolvimento, nós aparecemos para intervir e protegê-los de catástrofes que eles jamais conseguiriam resistir sozinhos.

Na contemporaneidade, tempestades já não representavam mais uma ameaça significativa para os países desenvolvidos. Nem um furacão seria capaz de derrubar suas bases, muito menos destruí-las. Na verdade, para a maioria das nações, ventos fortes e chuvas intensas só dariam conta de paralisar as cidades.

Era um ambiente completamente distinto da época onde uma única tempestade podia devastar fazendas, arrastar pessoas e deixar famílias desabrigadas. Portanto, os deuses fizeram o possível para não intervir além do que os humanos desejaram e, por causa disso, estavam caindo no esquecimento.

O fundamental era encorajar a independência da humanidade para que desenvolvesse uma ordem maior de cognição. No entanto, por muito tempo, ninguém previu que isso daria origem a uma falta de fé.

Na antiguidade, o povo louvava progresso como uma forma de graça divina e o Império Romano existiu em comunhão com os deuses. Após a queda de Roma, a Igreja reinou durante a Idade Média em nome de Deus; entretanto, os defensores do direito divino dos reis alegaram que a soberania provinha da vontade de Deus. Isso trouxe uma mudança gradual da doutrina da Igreja. Então, pela fé religiosa, os cientistas começaram a buscar a verdade do mundo criado pelo ser supremo. Antes de perceberem, a humanidade havia perdido a sua crença, apesar de não ter sido a intenção deles.

— Exato, nos últimos tempos, as civilizações do reino dos mortais vêm progredindo em um bom ritmo, por este motivo decidimos que intervir poderia retardar seu desenvolvimento e que seria melhor deixá-los em paz.

— Não é exatamente isto que está impedindo eles de reconhecerem nossa existência?

Sua intenção não era prejudicar o desenvolvimento da humanidade. Na realidade, tendo em vista o plano original, queriam que ela progredisse.

“Devemos tentar entender a ordem criada por Deus.” As ciências naturais surgiram desse objetivo, logo, os deuses se puseram todos a favor. A humanidade evoluiria de uma veneração cega para uma devoção racional. Essa lógica iria permitir que eles chegassem a um entendimento de ordem superior. Os deuses até consideraram isso um primeiro passo digno de comemoração.

Porém, se o efeito desejado era o oposto, os problemas acarretados seriam gravíssimos e inevitáveis. Havia muitos mundos que nutriram somente as ciências naturais.

— Hrm, isso deixa as coisas mais complicadas.

O grupo ficou pensativo. Se não resolvessem o impasse com correções simples, eles temiam que viria a ser trabalhoso demais. Estavam num aperto. E previram que só iria piorar quanto mais tempo o ignorasse.

— Alguém gostaria de propor uma solução para isso?

Os querubins nunca decepcionavam, e um deles explicou o plano pelo qual havia quebrado a cabeça para bolar. Afirmando que, no geral, sua política básica estava de bom tamanho. Em essência, se tivessem um sistema capaz de compensar a fé religiosa perdida, não teriam problemas.

— Assim, precisamos realmente aprimorar um ponto e revitalizar sua fé.

A proposta foi aceita de forma unânime. Contudo, considerando suas medidas anteriores, passava mais a impressão de que eles ficaram sem ideias concretas.

— É um ótimo plano, porém, o que de fato devemos fazer?

— Não tenho certeza, mas que tal entregarmos ao mundo uma nova relíquia sagrada?

— Hmm? O que queres dizer?

Eles já haviam concedido tantas delas aos reinos dos mortais quanto havia estrelas no céu. Os números diferiam um pouco dependendo da nação ou região, mas investiram mais do que o suficiente. A nível de elevar a fé, não foi um método muito bom. No máximo, elas foram valorizadas como curiosidades históricas.

— As relíquias atuais são conservadas e guardadas a sete chaves, impedidas de cumprir seu papel de espalhar a graça divina para todos.

Os deuses não tinham conhecimento disso. Afinal, sua vida era longa. Ainda se lembravam de conceder relíquias sagradas às pessoas, porém não era como se ficassem de olho nos artefatos depois. Ao averiguar a situação atual, eles enfim descobriram que os objetos haviam sido reduzidos a enfeites.

— Entendo. Não me surpreende que tenham se esquecido da religião e das orações. Nesse sentido, chega a ser irônico…

Os deuses estavam se tornando desnecessários. Apenas isso. Mas mesmo assim, eles não conseguiam evitar de sentir uma enxurrada de emoções complicadas. Não tinham intenção de sair forçando a religião em cima das pessoas. Todavia, caso falhassem em aumentar a fé, o sistema passaria por maus bocados. Então, para ajudar as pessoas a compreenderem por si mesmas que a fé era indispensável, não deveriam de tempos em tempos oferecer relíquias sagradas onde fizessem falta?

Os deuses concordaram que valia a pena tentar.

— Sendo assim, concederemos ao mundo a relíquia sagrada que eles precisam e os ensinaremos a orar.

— Perfeito. Faremos isso o quanto antes.

— A propósito, eu tenho a coisa certa.

A decisão foi tomada imediatamente. Embora os deuses fossem pacientes e tranquilos por natureza, estavam levando a situação a sério. Dessa maneira, executaram todo o processo com convicção, sem fazer o trabalho de qualquer jeito nem se entediar na metade do caminho do modo como os deuses faziam de vez em quando.

— Sim?

— Há um humano no reino dos mortais pesquisando um objeto que está a um passo do reino divino. Com mais uns mil anos, quem sabe se não daria certo?

— Ah, uma singularidade, eu vejo. Conseguiu se comunicar com esse humano?

Os casos eram raríssimos, porém no passado, também, em todos os mundos, surgiram humanos que se aproximaram do reino divino com seus estudos das ciência naturais. Tais fenômenos incomuns eram admiráveis nos últimos tempos, mas não sem precedentes. E este humano parecia ser o espécime mais apropriado para o teste.

— Deve ter percebido que ainda tem um longo caminho pela frente. Pois quando o alcancei a fim de explicar as obras de Deus, ele ficou bastante impressionado.

— Então está dizendo para enviarmos uma relíquia sagrada para lá?

— Não, faremos um milagre.

— Um milagre?

Pelo visto, realmente existem notícias que são boas e ruins ao mesmo tempo. Este é o puro sentimento da Segunda-Tenente Feiticeira Tanya Degurechaff ao receber o comunicado.

Embora seja apenas uma notificação não oficial, os superiores estão indicando que não irão fornecer verbas adicionais. A sugestão implícita provavelmente vem de sua intenção em cessar o desenvolvimento do Arquétipo 95. Por outro lado, a Divisão de Pessoal está compartilhando suas pretensões de me fazer concentrar em minhas obrigações para com a unidade de instrução. E é isso mesmo o que eu quero.

Deveria estar animada com a interrupção do desenvolvimento desse orbe defeituoso e meu retorno à unidade de instrução. O único problema é que esta é só uma notificação informal, não uma decisão oficial. No entanto, tenho certeza que já está tudo decidido. Posto que eu não precisarei mais jogar minha vida fora, a notícia não podia ser melhor.

Mas a má notícia é que, pelo fato da pesquisa não poder mais ser continuada de qualquer maneira a essa altura, o cientista maluco se rebelou e decidiu que seu próprio departamento irá conduzir os experimentos anteriormente suspensos por serem perigosos demais. Se ao menos ele tivesse ficado deprimido ou desmotivado e parasse de encher o saco dos outros! Porém essas enormes expectativas se mostraram inúteis e aquele lunático parecia estar equipado com a habilidade de sintonizar ondas de rádio sabe-se lá de onde.

Do nada, ele saiu berrando, dizendo que teve uma inspiração divina dos céus e depois ainda gritou: — Agora vai!

Em sua costumeira disposição mental, entretanto, o cientista chegou até a julgar que esse experimento seria muito arriscado. Se no estado agitado em que está ele insiste em continuar com isso, duvido que as coisas corram bem.

Não ajuda que os outros engenheiros tenham ficado abalados devido ao fim iminente do desenvolvimento. Que engenheiro não ficaria ansioso para ver os resultados de seu projeto? Carregados com esse sentimento, seus protestos foram apenas irresolutos. Dando brecha para o cientista maluco conseguir o que quer.

Eu sobrevivi até agora, mas não sou capaz de impedir que me forcem a conduzir um experimento pelo qual qualquer cientista sensato decerto veria como suicidio. Vamos testar a permanência do fenômeno da materialização de mana em coordenadas espaciais através da sobreposição de interferências de multicamadas. Para facilitar: “Mana em um estado permanente”. É o produto da imaginação louca de uma pessoa.

Aparentemente, o principal objetivo em desenvolver o Arquétipo 95 era conduzir esse experimento com êxito, porém foi algo tão improvável que ninguém o levou a sério. É difícil imaginar que isso dê certo. A teoria em si é bem conhecida por ser plausível. Não é como se Tanya nunca tivesse ouvido falar dela antes.

A delicada estrutura interna do protótipo o tornava frágil por natureza e com uma péssima capacidade de operação e manutenção. Se quiser resolver essas deficiências, eu precisaria usar mana para tornar um fenômeno reconhecido neste mundo, depois prender e manter a energia por meio de sua afixação.

Teoricamente, o próprio sistema da sincronização quádrupla de núcleos do Arquétipo 95 significa que a base tecnológica para viabilizá-lo já foi definida. A próxima tentativa de Tanya, destinada a dar errado, de atingir o último objetivo tecnológico do protótipo ainda terá a importância de expor suas falhas.

Quando os engenheiros me falaram isso, a primeira coisa que pensei foi que parecia mais uma explicação burocrática de provisões orçamentais. Essas costumam soar bem inteligentes. Mas agora não restam dúvidas de que eles só estão conduzindo esse experimento porque o cientista maluco ficou curioso. Mesmo se eu inventar um argumento para apontar os óbvios obstáculos envolvidos, seria em vão; é claro que o lunático não pretende cancelar o teste. Ele está desesperado para que dê tudo certo e precisa seguir adiante com base em um julgamento louco que depende somente da sorte.

— Está pronta, Tenente?

Obviamente, ele entende o nível de perigo associado. Então como diabos este homem consegue esboçar um sorriso tão alegre? De súbito, me vejo questionando a sanidade de Schugel. Sinto um impulso de dizer para ele dar uma boa olhada em volta.

Estamos em um canto de uma vasta área de exercícios com tiro real e completamente despovoada até onde se pode enxergar. Se eu me der o trabalho de procurar por alguma evidência de atividade humana, tudo o que chama a minha atenção é o aparelho de gravação e o doutor. Parece que o resto da equipe calculou corretamente o grau de perigo; neste exato momento eles se encontram em uma estação de observação bastante afastada do campo de teste, monitorando a situação utilizando apenas um dispositivo de visualização no local. Ninguém está disposto a passar pelo padrão de fiscalizações de sinalização. Em outras palavras, a equipe inteira se abrigou esperando que o Arquétipo 95 explodisse.

É daí que vem a infelicidade aparente de Tanya enquanto ela continua a insistir em cancelar o experimento.

— Por favor, doutor, não podemos só parar com isso? Segundo os cálculos, o pior caso é toda a área de exercícios indo aos ares.

Schugel é o único com a fé resoluta de que Tanya vai conseguir realizar o impossível de obter o controle perfeito. A atenciosa equipe de desenvolvimento foi suficientemente gentil para ter um grupo de médicos bem equipados a postos. Seus ótimos preparativos incluem uma equipe experiente de tratamentos críticos e um hospital de campanha em larga escala.

— A marcha do progresso científico sempre deixa suas vítimas. Claro, você não estará sozinha, também ficarei aqui. Então me diga, qual é o problema? — Ao passo que todo mundo se sente apreensivo quanto ao experimento, este homem, o engenheiro-chefe Adelheid von Schugel, mantém seu sorriso alegre ao fazer essa afirmação transbordando confiança.

Como seria maravilhoso dar um soco nesse maldito sorriso dele. É bem capaz de você querer se explodir junto de sua própria invenção.

Vai ter o que merece, eu diria. O que quero saber é qual a razão de eu estar presa com este cientista maluco prestes a nos matar. Um suicidio duplo compulsório não é um pouco exagerado não? Mas Tanya tem a capacidade de expressar tais sentimentos de forma genuína, indireta e socialmente apropriada.

— Para ser sincera, gostaria que usasse essa sua paixão em outra coisa.

— Hm? Um cientista deve ser leal à sua pesquisa. Agora pare de se queixar e comece o teste.

Porém, evidentemente, o lunático moralista é um caso perdido para Tanya. Se quer ser assim, então vá em frente e morra sozinho. Só faça o melhor para não perturbar aqueles ao seu redor. Se isso for pedir muito, pelo menos pare de me incomodar.

— Sou uma soldada, não uma cientista.

O trabalho de Tanya é o de um soldado, nada mais. Em hipótese alguma a descrição dele contém cometer suicídio ao lado de um cientista.

E, de certa maneira, o cientista em questão tem a resposta perfeita ao seu protesto.

— Então te darei uma ordem. Agora, vamos. — Se Tanya for uma soldada, deve obedecer às ordens conforme a linha de comando. Ele a prendeu com isso, mas tinha toda a razão.

— Fornecendo mana para o Arquétipo 95…

Tendo resistido de toda forma possível, Tanya lamenta seu azar à medida que começa a injetar lenta e cuidadosamente energia para dentro do protótipo.

— Equipe de observação na escuta, entendido. Estamos rezando por você.

Dizer palavras assim é uma questão de educação, porém agora elas soam mais sinistras do que qualquer outra coisa. O medo de que o Arquétipo 95 possa explodir do nada está escrito em meu rosto. Sério, minha vida corre um risco maior aqui do que no campo de batalha.

Tanto o escudo defensivo resistente quanto a membrana protetora para desvios de ataques diretos de um feiticeiro são conjurados utilizando orbes mágicos. O fato de eu não ter proteção quando esse treco sair explodindo está me deixando louca.

Mas ao ver a emoção indescritível contorcendo a face de Tanya em resposta à ansiedade causada por esta situação absurda, Schugel tem a coragem de sorrir. Tanya tem a sensação de que essa é a primeira vez que vê o doutor agir de modo tranquilizador em sua consideração. A expressão do homem parecia estar dizendo para ela relaxar.

— Que foi? Não se preocupe. Nada vai dar errado dessa vez.

Quando Tanya percebe o olhar puro, inocente e perigoso de um cultista no doutor, o ceticismo se transforma em uma série de alarmes a bombear sua cabeça. Eu devia me afastar de gente assim…

— Doutor… de onde vem toda essa sua confiança?

Não seria surpresa alguma se ele fosse realmente um psicopata. O problema é que a sua insanidade traz o risco de envolver Tanya em uma catástrofe.

— É simples, ora.

O doutor abre os braços de forma exagerada, agindo como se estivesse a ponto de proclamar uma simples verdade. Só isso é o suficiente para dar arrepios em Tanya. Pregar firmemente as verdades do mundo com olhos inocentes? Esse é o sintoma de um fanático. O do tipo que está metido com alguma religião perigosa.

— Sim…?

A pior coisa a se fazer ao lidar com um crente cego é expressar concordância ou negação. Quando estava trabalhando no RH, aprendi que se algum dia precisasse demitir pacificamente um funcionário sob a influência de uma seita duvidosa, o certo a se fazer era evitar aprovar ou negar suas crenças. A ideia é ficar longe e não deixar brechas para mal-entendidos.

Por consequência, tudo o que Tanya pode fazer nessa situação é tentar prolongar a conversa usando a voz mais gentil que ela é capaz.

— Eu sou o engenheiro-chefe, Tenente. E você é a testadora principal. Quer dizer, se trabalharmos juntos ao invés de ficarmos sempre discordando um do outro, não haverá limites para o que podemos fazer.

Membros de cultos são exatamente assim. Eles falam coisas razoáveis em tom regular com uma expressão inocente no rosto apenas no início de uma conversa.

— Uns dias atrás tive uma revelação divina.

— Uma revelação divina…?

É, vai entender. Pior que eu tinha receios quanto a isso. Hmm. Quem sabe seja só um modo de falar, mas essa premonição sinistra — a voz da razão — não para de gritar. Estou com um mau pressentimento, tipo, mau mesmo.

— Isso. Se rezarmos a Deus pedindo por sucesso, aqueles que Nele crêem terão a salvação.

— Argh………

Deixo escapar um gemido contra a minha vontade, apesar de ter me preparado para isso. Antes de perceber, também dou um suspiro profundo.

Ele acabou de dizer para pedir sucesso a Deus? Para rezar? Um cientista? Parando para pensar, logo ocorre a Tanya o quão improvável é o que está acontecendo. O engenheiro-chefe perdeu o juízo de vez depois do cancelamento do projeto? Isso é bem provável.

Ao me dar conta, determino que, independente das ordens, será perigoso continuar esse experimento. Em uma decisão repentina, eu limito o fluxo de mana e inicio a ativação do mecanismo de segurança para impedir que os núcleos do orbe fiquem fora de controle.

— Dizem que o importante é ser humilde, livre de arrogância.

No entanto, os mecanismos não estão ativando. Fingindo estar calma por fora, Tanya não consegue conter o espanto conforme desvia o olhar para o orbe em sua mão novamente. É o mesmo protótipo familiar ao qual ela conduziu tantos testes antes. Dá para ver com clareza várias funções de segurança… E ainda assim não ativaram? Então quer dizer que foram desativadas…?

Esse lunático tinha que bagunçar o protótipo, né?

O único que poderia ter feito isso é o engenheiro-chefe sorrindo tranquilamente diante de mim. Ele está falando sério. O cara já era tão louco que acabei demorando para perceber.

— Uma oportunidade maravilhosa, não? Vamos rezar juntos pelo sucesso.

— Doutor, você não era ateu?

— O deus das invenções veio a mim. Agora sou um crente devoto.

Merda. Não vejo como sair dessa.

O Arquétipo 95 começa a perder o controle, igual a quem o construiu. Estava utilizando mana para controlar seu revestimento, mas não dá mais. Algo a respeito dos circuitos também não parece certo. Desse jeito, a mana vai entrar em colapso. E as funções de segurança que eu costumo depender não estão funcionando.

Se eu tentar extrair a mana manualmente, ela vai desequilibrar o sistema todinho, provocando um colapso absoluto. Portanto, embora tenha notado o nível alto de perigo, não tenho escolha a não ser continuar alimentando o motor com energia. Porém, nesse ritmo, vou ficar sem controle. Acabei nesse dilema, mas já é certo que o orbe vai explodir em breve.

Numa hora dessas… não consigo parar de imaginar em detalhes o destino horrível que me reserva.

— Nós teremos êxito se orarmos e crermos em Deus.

— Aliás… o que acontece se eu não fizer isso?

— Bem, suponho que ambos seremos mártires aqui. — O lunático retruca sem pensar duas vezes. O sorriso perigoso em seu rosto mostra que ele decerto aceitaria o martírio com orgulho, tal como o sorriso eufórico de um homem-bomba.

— Então precisamos chamar um médico imediatamente. Ou você acha melhor que eu acabe com o teu sofrimento? — Do ponto de vista de Tanya, se ela está fadada a morrer de qualquer maneira, matar esse lunático com suas próprias mãos dá para o gasto. Caso o elimine enquanto está sendo morta pelo orbe defeituoso dele, ao menos não será a única a sair perdendo. Claro, não é um acordo muito justo, mas os princípios do mercado me garantem que é melhor do que terminar com a conta no vermelho.

— Tenha calma, Tenente. Você mesma não conheceu Deus? Se ambos tivermos fé Nele, a salvação virá.

Ele diz isso no instante em que estou preparando para tornar meu desejo de matá-lo em realidade. Tanya para de repente. Whoa, espera aí.

— O coeficiente de energia está se desestabilizando a toda velocidade! A mana está fora de controle!

— Isso é loucura! Os núcleos estão prestes a entrar em estado de fusão! Evacuar todas as equipes!

A equipe de observação não para de berrar. Aos ouvidos de Tanya, parece mais uma gritaria sem sentido, porém um segundo antes de cair inconsciente, ela tem certeza de sentir…

É aquele Diabo. Existência X. Juro que consigo sentir esse maldito sorrindo para mim. Ah, sim. Ele é um ser sobrenatural que gosta de brincar com as leis da natureza. O Diabo desprezível que brinca com vidas humanas.

— Isso é coisa sua?! Seu Diabo maldito!!!

— Depois de muito deliberar, o Senhor aprovou a consagração de um milagre durante… qual o nome daquilo que vocês estão desenvolvendo? Arquétipo 95? Que seja, durante o experimento de ativação daquela coisa.

Quando dou por mim, estou em um espaço familiar com uma entidade um pouco mais intelectual do que o Existência X se aproximando. Desta vez, o motivo de minha visita deve está diretamente relacionado às exigências daquele lunático de conduzir um experimento tão imprudente.

Mas o cara é apenas um cientista maluco, não um religioso fanático. Tendo em vista o modo como estava agindo antes do acidente, ele também é uma vítima. Isso está cheirando ao Existência X e sua seita se intrometendo. Devem tê-lo manipulado, pelo menos no que diz respeito a este experimento. Não que eu sinta um pingo de simpatia por ele.

— Ahh, compreendo.

A entidade na minha frente aparenta ser no máximo decente se comparado àquele que veio anteriormente. Em outras palavras, esse aí é um fanático que parece ter a capacidade de conversar. Não posso baixar a guarda. Estou basicamente lidando com alguém impregnado de uma religião ou outra. No momento, não ligo se ele é um deus ou um diabo.

O que preciso é me atentar à possibilidade muito provável dele tentar empurrar seus valores para cima de mim, ao invés de optar por uma discussão racional. Pois seus valores são insanos. Ele pode ter os semblantes de uma pessoa inteligente, mas a sua essência não é diferente da de um funcionário incompetente.

Eu deveria eliminá-lo de imediato. Se ele ao menos for um preguiçoso qualquer, ainda posso aturá-lo. Todavia, independente da competência, todos os religiosos fanáticos são trabalhadores diligentes. De verdade, seria uma virtude impressionante se não fosse a insanidade para arruinar.

— Permita-me te parabenizar. O Senhor determinou que levastes uma vida cheia de pecados advindos da ignorância. A Sua decisão foi guiá-la pelo caminho correto.

— Quero não, agradeço.

Uau… Direto ao ponto assim? Pensei que estavam tramando alguma coisa, mas essa foi rápida. Sendo franca, admito que mexer com a vida dos outros possa ser divertido, agora é completamente inadmissível isso acontecer comigo. Por que não posso decidir como quero viver? Minha existência como um indivíduo não é o mínimo que eu deveria ser capaz de controlar?

— Oh, fique tranquila. Tua aflição provém do receio de ser forçada a agir contra vontade, estou certo?

Bom, é difícil dizer. Não tenho certeza de como descrever essa sensação de apreensão. É verdade que resisti à ideia de ser forçada a seguir um caminho escolhido por outra pessoa.

Também seria humilhante para caramba ter esses seres controlando minha mente ou me levando a pensar de um jeito diferente. Alucinações em massa devem ser somente compartilhadas entre aqueles que querem ficar embriagados com histórias mitológicas. Se houver benefício em ter ilusões, investiremos nelas; senão, nem vale a pena mostrar interesse. E se algum louco se tornar uma ameaça, sempre posso acordá-lo com um chute e fazê-lo engolir a triste realidade.

Como indivíduo, tenho que resistir firmemente a esse atentado ao livre arbítrio que obriga a participação de alucinações em massa. Liberdade. Eu sou livre. Não preciso que ninguém viole minha liberdade.

Eu iria odiar agir contra meus próprios princípios e infringir a liberdade dos outros, mas honestamente, posso lidar com isso. No entanto, pensar em outra pessoa violando a minha liberdade individual é algo inaceitável. Já tive os recursos e conexões para proteger essa liberdade. Agora possuo certos poderes para protegê-la, e aprecio a importância de seu valor.

— Por isso não deves se preocupar. Abençoaremos teu orbe operacional para que possa fazer milagres. Irás usá-lo e por ele sentir a graça divina. Sem dúvida isso permitirá que ofereça tuas palavras de oração ao Senhor.

— Palavras de oração?

— Exatamente. As palavras para louvar ao Senhor foram esquecidas por teus ancestrais. A culpa não é sua que elas não foram passadas a ti.

— Bem, é óbvio. Embora eu creia que tenha mais coisa além disso.

De onde diabos vem esse raciocínio? Alguém me explique, por obséquio. De preferência, agora. Pode interpretar ou passá-lo por uma ferramenta de tradução, se quiser. Como é um serviço rápido, pagarei um valor a mais e ainda darei uma gorjeta, então alguém, por gentileza, esclareça o que esse cara está querendo dizer.

— Como falei, o Senhor fez com que as palavras de oração saiam de teus lábios, que a voz Dele seja ouvida por teu coração e que você creia em milagres.

— Isso me parece um tipo de lavagem cerebral bastante desagradável…

Eles podem muito bem ter me sequestrado. E como não cedi, inventaram um novo plano. Vão me fazer utilizar um orbe operacional amaldiçoado. E quanto mais usá-lo, mais vai consumir minha alma? Hmph, que se dane isso.

Como se já não fosse ruim o bastante, eles vão e me jogam numa situação desagradável dessas. Me deram um xeque-mate no instante em que percebi que aceitar sua oferta poderia ser a única forma de eu sobreviver à guerra, apesar do preço a se pagar.

Esses seres devem se achar um bando de heróis, criando problemas apenas para aparecer e salvar o dia depois. O tráfico de informações nem se compara com esta armação sem escrúpulos. Para eles se safarem desse absurdo seria igual a apagar a lei e a justiça da face da terra. Talvez eu deva tentar ser a representante dos valores fundamentais do reino dos mortais.

— Não vamos te forçar a fazer nada. Serás capaz de oferecer orações com sinceridade ao experimentar os milagres de Deus, apenas isso. Tal é a benção que o orbe operacional em tua posse adquiriu.

Imagino que é preciso muita coragem para dizer isso. Me tacaram num lugar onde eu posso morrer a qualquer hora em alguma guerra e depois vêm falar que não estão me forçando? É como dizer para uma pessoa não beber água no meio do deserto. Fica melhor para vocês falarem de uma vez que querem me matar. Ou seja, é mais fácil ameaçar logo.

— Estou vendo. Por sinal, o que aconteceu com meu corpo?

— Vocês estão protegidos pela graça divina. Agora vá, continue a tua jornada e propague o nome do Senhor.

E com esse desfecho assustador, minha consciência retorna ao reino dos mortais. Em uma infeliz reviravolta do destino, quando acordo para a realidade, sou recebida pelo rosto e pela voz da última pessoa no planeta que quero ver. Se eu fosse um funcionário judicial do Império, criaria imediatamente uma lei declarando que cientistas malucos devem ser executados pelo pelotão de fuzilamento. Seria minha obrigação aprovar esta lei para o bem do Império, tenho certeza.

— Estávamos na presença do Senhor! É um milagre! Bem-aventurados aqueles que Nele crêem!!

O brilho perigoso nos olhos do cientista me deixa preocupada que possa sair gritando: “Eu sou o novo profeta!” Não, agora ele realmente deve acreditar que é.

— Acalme-se, doutor.

Eu imploro, cale essa boca. Não precisa ficar se gabando de ter conseguido provar cientificamente como um cientista maluco pode trocar de emprego para “religioso fanático”. Por favor, suma da minha frente.

— Oh, Tenente Degurechaff. O experimento foi um sucesso! Exaltemos o nome de Deus, juntos!!!

Infelizmente, embora tenha virado um religioso fanático, ele ainda é um cientista maluco. Suas crenças o deixaram demente.

— Vamos, vamos! Quero ver o presente milagroso de Deus!

— Degurechaff para Controle. A fórmula de controle do Arquétipo 95 está funcionando normalmente?

Espero que possam suspender toda essa bagunça por conta de dificuldades técnicas. Contudo, uma maldição foi colocada neste aparelho por obra de seres mais ou menos sobrenaturais. Quão fácil foi para eles esmagarem meus sonhos e esperanças. Para minha infelicidade, como os humanos são fracos…

— Sim, até onde eu sei. Mas isso pode ser por causa de problemas com o aparato de observação.

— Talvez. Acho que não temos muita escolha. É melhor fechar o Arquétipo 95 e examiná-lo no laboratório.

Excelente. Cuidado é uma qualidade ótima para se ter como engenheiro. Apesar de ser difícil perdoar a maneira pela qual todos me abandonaram e correram para as colinas, eu posso aceitar. Se a sobrevivência deles leve ao fim deste experimento, permitirei isso.

— Que conversa é essa? Ative o orbe agora mesmo, Tenente!!

E assim inicia a briga. Fala sério, não dá para esse infeliz levar um tiro de algum aliado ou sofrer um acidente em qualquer dia desses? Na verdade, estou certa de que ele já deve ter se deparado com alguma situação parecida, então por que esse cientista maluco ainda está vivo? Duvido que seja verdade, mas será que ele é um servo de Existência X e seu grupinho? Sei que a gente é inimigo, porém somos arqui-inimigos também?

— Tudo bem, estou ativando… Teoricamente, ou vai funcionar ou vamos explodir junto de toda a instalação.

— Temo que essa piada não tenha sido engraçada, Tenente.

Não foi nem um pouco engraçada. Isso porque eu estava falando sério. Mas considerando que esse treco está amaldiçoado, não sei como as coisas podem acabar bem.

Eu faço a mana correr pelos circuitos do orbe e começo a sincronização dos quatro núcleos. A energia flui suavemente, sem qualquer dificuldade. Quanto à sincronização, está progredindo de forma tão espontânea que pareço estar fazendo sem pensar. Sem sombra de dúvida a perda de mana é semelhante ao valor projetado na teoria.

Agora entendi. A julgar pelas suas especificações, devo admitir que isso é realmente incrível. Digno de elogios. No entanto, é uma pena, esse treco está amaldiçoado.

— Ó, grandes são as maravilhas do Senhor. Louvado seja o Seu glorioso nome! — Eu grito, as palavras sentimentais saindo de minha boca. Cada célula do meu corpo de repente anseia em louvar ao Senhor.

— Deu certo? Não pode ser… Deu certo mesmo?!

Quando a equipe de observação entra em estado de choque, seus berros de admiração finalmente me trazem de volta à realidade.

— Veja só, Tenente. Parece que compartilhamos a mesma fé, hã? É um milagre! Um milagre!

— Milagre?

— Dai glória ao Senhor e testemunhe os Seus milagres.

Tudo que se sucedeu depois disso foi um verdadeiro pesadelo. No fim das contas, estou amaldiçoada, passo tempos horríveis e então finalmente — finalmente — sou liberada após terminarmos de coletar uma certa quantidade de dados. Não me importo mais para onde eu vou, contanto que não seja aqui. Só quero ir embora.

Como se para realizar meu desejo, a República a oeste do Império declara guerra. O aviso que eu estava esperando. E bem quando estou ficando desesperada. Minha mente está salva, devo dizer.

Mas creio que vida fácil seja difícil de se encontrar.


Notas:

1 – Consiste de um bloco de explosivo, no qual é inserido um tubo de metal de cerca de 7 cm, contendo uma granada de mão OTO Mod. 35. Essas granadas italianas, famigeradas por falhas em sua ignição e explosões acidentais, eram temidas tanto pelos inimigos quanto pelos aliados.

2 – Uma Prova de Conceito é um modelo prático que possui o objetivo de provar o conceito teórico estabelecido por uma pesquisa. Pode ser também uma implementação, em geral resumida ou incompleta, de um método, realizado com o propósito de verificar que o conceito/teoria em questão é suscetível de ser explorado de uma maneira útil. Sendo um passo importante no processo de criação de um protótipo que realmente possa ser operado.

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