Capítulo 9 – Etiqueta da confissão.
Embora todos fossem chamados de “mortos”, eles vinham em uma infinidade de formas diferentes.
Kuzaku atingiu um morto no rosto com um Bash. A cabeça do morto foi jogada para trás, mas seus quatro braços ainda tentavam agarrar Kuzaku.
Ranta veio pela direita, e Yume pela esquerda, ambos avançando contra o morto. Betrayer Mk. II e o facão de Yume cravaram-se em seus flancos.
Com o morto tossindo e engasgando, e um brilho intenso emanando de seus olhos brancos enquanto expelia um muco marrom de sua boca semelhante a uma fenda, Haruhiro o segurou por trás, cravando sua espada curta em seu pescoço.
Golpear um morto dessa maneira não era o suficiente para matá-lo. Ou melhor, para detê-lo. Os mortos não paravam até estarem completamente mortos.
Gritando de esforço, Haruhiro moveu sua espada violentamente, torcendo o pescoço do morto de um lado para o outro. De repente, ele ouviu um estalo. Ou melhor, o pescoço se soltou. A força drenou-se do corpo do morto. Ele caiu. Para trás.
Haruhiro rapidamente se afastou, perdendo o equilíbrio e caindo de costas. Ele estava prestes a jogar fora a cabeça decapitada do morto, mas pensou melhor e a colocou no chão.
— Hora de saquear! — Ranta atacou os restos do morto com toda a ousadia.
Haruhiro sempre se pegava pensando nisso, mas ele não podia ser um pouco menos grosseiro?
— Haruhiro-kun! — Shihoru apontou para a névoa com seu cajado.
Mary rapidamente se posicionou ao lado dela, com seu cajado curto em mãos.
Kuzaku, ofegante, levantou seu escudo mais uma vez, girando o braço direito, que segurava sua espada longa, em um movimento circular para se aquecer.
Outro, hein, Pensou Haruhiro, levantando-se com um suspiro. — Ranta, e aí?
— Calma, droga! — Ranta soltou uma risada vulgar. — Okay, temos duas moedas de tamanho médio e uma pequena! Isso dá 2 ruma e 1 wen! Nada mal, se querem saber!
— Se já terminou aí, tenta se preparar pra ajudar! — Yume deu uma joelhada nas costas de Ranta.
— Ei, não me chuta, sua tábua!
— Kehe… — Zodiac-kun murmurou. — Tanto faz, só se apresse… Seu inútil… Kehehe…
— Zodiac-kun! Quem você pensa que é pra chamar seu invocador e mestre de inútil?! — Ranta gritou.
— Combina com você… — Haruhiro estreitou os olhos.
Estava vindo. Olhos brancos. Era outro morto. Correndo em direção a eles. Esse morto tinha um jeito de caranguejo, de alguma forma. Lembrava o grande caranguejo da mercearia. Isso o tornaria difícil de lutar, mas Haruhiro não podia se dar ao luxo de dizer isso.
— Parece difícil, então tenham cuidado! — Haruhiro avisou.
Os mortos vinham em várias formas. Mas havia algo que todos tinham em comum. Em termos de aparência, eram os olhos. Todos os mortos tinham olhos brancos. Não era que não tivessem íris, ou algo assim, mas era como se suas órbitas estivessem preenchidas com algum líquido branco. Quando morriam, os olhos voltavam ao normal, então isso aparentemente fazia parte do processo que os transformava em mortos.
Além disso, parecia que os mortos realmente não sentiam dor. Graças a isso, a menos que os matassem destruindo o coração ou o cérebro, ou cortando suas cabeças, eles continuariam lutando.
Outra coisa que todos eles tinham em comum era que eram canibais. Os mortos não se moviam em grupos. Parecia que viam outros mortos como inimigos, ou melhor, como presas.
Fazia sete dias desde que Haruhiro e os outros começaram a ir e vir da Cidade dos Mortos. Nesse tempo, eles haviam testemunhado várias vezes os mortos se alimentando. Em todas as ocasiões, era um morto comendo outro morto.
Os mortos atacavam uns aos outros, e o vencedor devorava a carne e as entranhas do derrotado, roubando qualquer equipamento utilizável. Depois, pegavam as moedas pretas do morto derrotado para si. Esse era o comportamento típico dos mortos. Ou melhor, até agora, eles não haviam encontrado nenhum morto que agisse de forma diferente.
Se todos os mortos fossem assim, então a Cidade dos Mortos era um alvo especialmente interessante para Haruhiro e os outros, que haviam se visto forçados a continuar como soldados voluntários, mesmo agora que estavam neste novo mundo sombrio e perigoso.
Havia muitos tipos diferentes de mortos. Isso significava que havia uma grande variação nas habilidades de combate de cada um. Podia haver mortos tão incrivelmente fortes que Haruhiro e os outros não teriam a menor chance de derrotá-los, e eles podiam muito bem encontrar um assim amanhã… ou até hoje.
Então, havia riscos, claro. No entanto, geralmente, eles não precisariam se preparar para uma batalha contra vários mortos. Isso porque, além de os mortos não formarem grupos, eles estavam ativamente caçando uns aos outros.
Surpreendentemente, quando um morto tinha a escolha entre atacar Haruhiro e sua party ou outro morto, ele escolheria o outro morto. Quando dois mortos estavam lutando, essa era uma excelente oportunidade para tirar proveito da situação. Claro, era algo horrível de se fazer, mas ser um soldado voluntário sempre foi um trabalho sujo, no qual considerações éticas não tinham muito espaço. Esse não era um ofício que Haruhiro poderia recomendar a alguém que fosse uma boa pessoa ou que gostasse de pensar em si mesmo como uma boa pessoa.
De qualquer forma, os dois mortos ignorariam Haruhiro e os outros, completamente focados em derrotar o outro morto e devorá-lo. Sendo assim, Haruhiro e os outros podiam cercar os dois mortos, que só tinham olhos um para o outro, e matá-los ambos.
Mesmo que não dissessem em voz alta, a maioria dos soldados voluntários provavelmente pensava isso depois: Obrigado pela kill grátis.
Por acaso, aqueles como Haruhiro, que não eram tão insensíveis ao que estavam fazendo, embora pudessem ser covardes a esse respeito, inventavam desculpas para si mesmos. Não é que achassem que o que estavam fazendo era certo ou que não tivessem dúvidas sobre isso. Diziam para si mesmos que precisavam fazer aquilo para sobreviver, para aliviar suas consciências, até eventualmente se acostumarem. Mesmo que, de vez em quando, voltassem à razão e ficassem enojados consigo mesmos, provavelmente esqueceriam disso até o próximo dia.
Com o sétimo dia de caça na Cidade dos Mortos concluído, a party retornou à Vila do Poço.
Hoje, eles haviam coletado 9 ruma e 11 wen. Os equipamentos dos mortos estavam incrivelmente desgastados, e qualquer peça geralmente valia apenas 1 wen, então eles não se davam ao trabalho de trazer de volta nada, a menos que estivesse em boas condições.
Os bens compartilhados da party agora superavam 20 ruma, e cada um deles deveria ter acumulado váriaz ruma em bens pessoais, já que começaram a dividir o dinheiro entre si três dias atrás. A comida ainda custava 1 ruma para os seis, então, com duas refeições por dia custando 2 ruma, eles agora tinham uma margem razoável de gastos.
Hoje, enquanto as meninas estavam no banho, Ranta começou a beber na mercearia.
Isso mesmo. A mercearia vendia álcool.
Havia uma variedade de bebidas alcoólicas que vinham em garrafões, e as mais baratas custavam 1 wen. Haruhiro não era muito fã do sabor, mas Ranta gostava muito e vinha bebendo bastante ultimamente. Era bem provável que a maior parte do dinheiro de Ranta estivesse sendo gasta em álcool.
Dessa forma, Haruhiro e Kuzaku optaram por deixar Ranta, que se encontrava completamente embriagado, e foram tomar banho sozinhos após as meninas terminarem.
O buraco no leito do rio que eles estavam usando como banho havia sido cavado em um lugar onde os moradores da Vila do Poço provavelmente não veriam. Seus corações dispararam nas primeiras vezes em que se banharam ali, mas agora, eles simplesmente se despiram e até deixavam seus rostos descobertos. Mantinham seus elmos ou qualquer outra coisa por perto, só para garantir; se alguém se aproximasse, eles poderiam se cobrir rapidamente. Ainda não havia causado nenhum problema, então provavelmente estava tudo bem.
Os rapazes não se importavam muito em ficar nus juntos. Mesmo com os olhos já ajustados à escuridão, ainda estava escuro. Enquanto não se esforçassem demais para ver alguma coisa, não conseguiriam ver nada.
Primeiro, lavaram as mãos e os rostos no Rio Morno. Por algum motivo, a mercearia vendia sabão, então isso era conveniente. Eles lavaram rapidamente o resto dos corpos também. Finalmente, afundaram no banho.
A água do Rio Morno estava abaixo da temperatura do corpo; era, como o nome que haviam dado sugeria, morna. Eles adorariam tomar um banho quente, mas se começassem a exigir luxos como esse, não haveria fim para os pedidos.
— Ufa… — Haruhiro virou a cabeça lentamente de um lado para o outro e começou a massagear os próprios ombros. Se ele se sentasse com a bunda encostando no fundo do buraco, a água chegava até seus ombros. Ele podia esticar as pernas também, mas, para Kuzaku, com seu corpo maior, o espaço ficava um pouco apertado. Ser alto nem sempre era tão bom assim. Ainda assim, Haruhiro o invejava um pouco.
— Carambaaa… — Kuzaku esfregou o rosto com as duas mãos. — Sabe, hoje foi um dia cansativo né…
— Foi mesmo — concordou Haruhiro. — Você fez um bom trabalho. Deve estar cansado.
— Ah, não, deve ter sido muito mais cansativo pra você. Comparado a mim, pelo menos.
— Você é quem está lá na linha de frente, Kuzaku. Eu só… sei lá, fico lá atrás.
— Você usa sua cabeça — contradisse Kuzaku. — Isso dá trabalho, né? De certa forma. Eu só faço o que você me manda. Desde que eu faça isso, tudo dá certo de alguma forma. Você deve estar planejando as coisas pra que isso aconteça, certo?
— Isso é porque você está fazendo um bom trabalho como tanque.
— Sério? Eu tô fazendo um bom trabalho?
— Tá sim, cara.
— Nah, ainda tenho um longo caminho pela frente. Não sou tão bom assim.
— Eu sou bem sério quando faço elogios, sabia? Você é bem exigente consigo mesmo.
— Um pouco, sim… — Kuzaku de repente ficou quieto. Houve uma pausa estranha antes de ele falar de novo. — …Humm, eu não tenho muita chance de fazer isso, quero dizer, de falar com você a sós assim. Você se importa se eu perguntar uma coisa?
— Hein? Ah, claro — respondeu Haruhiro.
— É sobre o Moguzo.
— …Moguzo?
Ah, é sobre isso, Haruhiro pensou, mas então também pensou: Se não fosse isso, sobre o que mais ele perguntaria? De qualquer forma, a pergunta o pegou desprevenido. Ele não esperava ouvir o nome de Moguzo vindo de Kuzaku.
— Claro, eu não me importo. De jeito nenhum. Mas, Kuzaku, hum… Você nunca, bem, nunca teve nada a ver com o Moguzo, pelo menos diretamente, certo?
— Bem, não. Mas eu sei quem ele era.
— …Isso te incomoda? — perguntou Haruhiro.
— Tipo, vocês nunca falam sobre isso. Vocês nunca me comparam com o Moguzo, né? Pelo menos, nunca me dizem quando fazem isso.
— Eu não faria isso… não.
— Mas, sabe, eu penso nessas coisas. Não tem como vocês não estarem me comparando com ele. Fico pensando, “Estou indo tão bem quanto o Moguzo?” ou “Estou conseguindo preencher o buraco que ele deixou?” Desculpa.
— Não… Não precisa se desculpar do nada.
— Não, eu só estava pensando, não é certo falar em preencher o buraco. Isso não é algo que eu posso preencher. Não é algo que pode ser preenchido. É assim que é com os camaradas, né? Eu, depois de passar esse tempo com vocês, consigo sentir isso. Insubstituível, essa é a palavra que estou procurando. É o que os camaradas são. Não é a melhor forma de dizer isso, mas só porque um cara morre, você não pode simplesmente colocar outro no lugar. Não é tão simples. Mesmo que você seja forçado a fazer isso, parece errado, sabe? Não consigo explicar direito. Tipo, eu nunca vou ser um substituto do Moguzo. Mas, por outro lado, quero encontrar uma maneira de proteger todos vocês, de um jeito diferente do que ele fazia. Eu sou um paladino, mesmo que não seja tão bom assim, então, sinto que tenho que proteger todos vocês.
— …Cara…
Ah, isso não tá legal, pensou Haruhiro. Ele jogou água no rosto. Que merda, cara? Para com isso. Você me pegou desprevenido aqui. Não sei o que dizer. Não sou bom com essas coisas.
Não era como se Kuzaku estivesse apenas se acostumando gradualmente ao seu papel e crescendo como tanque naturalmente. Enquanto sentia a presença de uma parede chamada Moguzo, que ele não podia ver, Kuzaku enfrentava o inimigo e a si mesmo, lutando com tudo o que tinha. Ele tinha um senso de propósito firme, derramando sangue por seus camaradas enquanto melhorava a si mesmo passo a passo, com muito esforço.
Será que Haruhiro havia sido capaz de ver isso?
Será que Haruhiro tinha conseguido entender as dificuldades pelas quais Kuzaku estava passando?
Não havia como ele dizer que sim. Sua mente estava ocupada demais com outras coisas. Mas chega de desculpas. O fato era que Haruhiro não estava dando a Kuzaku todo o crédito que ele merecia.
Desculpa por ser um líder tão inútil e por falhar de tantas maneiras, pensou Haruhiro desanimadamente.
Seria fácil abaixar a cabeça. Mas o que ele ganharia pedindo desculpas a Kuzaku? Haruhiro talvez se sentisse melhor se o fizesse, mas provavelmente seria só isso. Pura satisfação pessoal.
— O Moguzo era… — Haruhiro apertou o nariz e respirou pela boca.
Acho que vou chorar—Não, estou bem. Consigo segurar.
— Ele era um amigo importante. É. Não acho que alguém possa substituí-lo. Não podemos esquecer dele, e não vamos. Mas, ainda assim… Ele morreu. Se foi. O Moguzo se foi. Não quero dizer que seja por isso, mas agora… Kuzaku, você é o tanque da nossa party, e acho que você é o único que pode ser.
— …Nossa.
— Hã?
— Ha ha ha… — Kuzaku cobriu o rosto com suas grandes mãos. — Estou chorando aqui. Que piada…
— Eu não vou rir de você…
— Sinceramente, seria melhor se você risse — disse Kuzaku. — Cara, isso é embaraçoso.
— Não, não é.
— Você pode me fazer um favor e não contar isso pra ninguém? Especialmente pro Ranta.
— …Você acha que eu contaria?
— Nah, não acho. Só tô falando por segurança.
— Não vou falar sobre isso. — Sem motivo aparente, Haruhiro usou o dedo para jogar um pouco de água na direção de Kuzaku.
— Ei! — Kuzaku revidou com um respingo. — Pra que foi isso? Você parece uma criança!
— Não, você que parece.
— Foi você quem começou.
— Não vou fazer de novo, tá?
— Jura?
— Juro, juro — disse Haruhiro, então imediatamente pegou um pouco de água e jogou na cabeça de Kuzaku.
— Sabia que você faria isso! — Kuzaku revidou na hora.
O que estamos fazendo, afinal? Haruhiro começou a se sentir bobo e decidiu parar a briga de água, mas ainda demorou um pouco até que realmente parassem. Sinceramente, o que estamos fazendo?
Mas foi divertido. Era tão idiota que ele não conseguia evitar rir. Agora, ele sentia que podia falar sobre o assunto.
Deveria perguntar diretamente, Haruhiro pensou. Ele precisava esclarecer as coisas. Por mais estranho que parecesse, ele realmente queria que Kuzaku encontrasse a felicidade.
Isso era um exagero? Não, ele não achava. Por enquanto, Haruhiro e os outros estavam presos aqui. E se isso durasse um ano, dois anos, cinco anos, uma década, ou até mais? Eles não poderiam continuar como soldados voluntários para sempre, apenas caçando, comendo e dormindo. Precisavam ter algum tipo de vida além disso. Eles poderiam conseguir permissão dos moradores da Vila do Poço para construir uma casa dentro da vila, por exemplo. Ou, pensando no futuro, poderiam encontrar trabalhos além da caça.
Se ambos os lados quisessem, poderiam formar casais. Se tivessem filhos, poderiam todos protegê-los e criá-los juntos, e isso poderia motivar a party.
Da forma como as coisas estavam, tudo isso era apenas um sonho, um devaneio passageiro da sua imaginação, mas poderia acontecer. Não seria estranho se qualquer coisa acontecesse.
— Escuta, Kuzaku — disse Haruhiro. — Você se importaria se eu perguntasse algo também… talvez?
— Claro. O quê?
— É meio pessoal, porém.
— Não se reprima. Nós somos amigos, cara—Não, talvez eu tenha me empolgado um pouco. Tô agindo de forma embaraçosa de novo…
— Agora ficou difícil eu falar…
— Eu sei, né? — disse Kuzaku. — Desculpa. Ah, mas sério, pode perguntar qualquer coisa. Acho que não tô escondendo nada.
— B-Bom, então… — Haruhiro pigarreou.
O que é isso? Um zumbido nos meus ouvidos? Algo assim? Ou é outra coisa? Eu estou ridiculamente tenso. Como eu começo isso? Não sou bom em falar sobre essas coisas. Mas, aí, tem algo em que eu sou bom? Não, né. É, não sou bom em nada. Tudo bem, normal. Vou perguntar direto. Essa é a única maneira.
— C-Como estão as coisas? Com a M-M-M… M-Mary?
Ele gaguejou. Gaguejou completamente. Ele queria fazer isso sutilmente, como se não fosse nada demais. Mas não conseguiu. No fim, era impossível. Esse foi o melhor que Haruhiro conseguiu.
— Uh… — Kuzaku mordeu o lábio superior com os dentes inferiores. Foi uma espécie de demonstração habilidosa, pelo menos no quesito morder os lábios. — O que você quer dizer com “como estão as coisas”?
— Hã? — Haruhiro hesitou. — Mas… hum… O Quero dizer, você sabe? Kuzaku, você e a Mary estão… Bem, vocês estão, hum…
— O que é isso sobre eu e a Mary… -san?
— H-Hã? Você… está bravo? — Haruhiro perguntou.
— Não, eu não tô bravo.
— Não, mas, de algum modo, você parece meio irritado…
— Não, cara, não tô irritado, beleza?
— Não, não, você tá bravo, né? Quero dizer, você parece super incomodado.
— Não é isso… Ngahh. — Kuzaku começou a bater a cabeça com as duas mãos. — Guhh. Como eu explico isso? Não é isso, sério. Eu não tô bravo. Além disso, o que tem eu e a Mary? O que você tá tentando dizer? Aghhhh.
— C-Calma, Kuzaku.
— Não me manda me acalmar! — Kuzaku rebateu.
— Eu posso ver. Você claramente não tá calmo. Parece que está perdendo a cabeça. P-Por quê? Quero dizer, você e a Mary estão…
— Eu entendi! Vou te contar toda a história, tá? — Kuzaku interrompeu, gesticulando com entusiasmo enquanto falava. — Olha, aconteceram várias coisas entre a Mary… -san e eu. Na verdade, nem tanto. Eu achava ela incrível. Honestamente, você sabe como é. Eu tinha uma queda por ela.
— …É.
— Quero dizer, ela não é só bonita, ela é engraçada também. Não sei, ela é séria, mas tem algo meio… imprevisível nela. Imprevisível? Não, não é isso. O que é? Ela é fofa.
— …Ah, é… Acho que sim.
— Eu acho — disse Kuzaku. — Então, bom, foi por isso que eu me apaixonei por ela. Tive a chance de conversar com ela a sós às vezes, então eu meio que ia jogando umas indiretas sobre isso.
— …Tipo quando estávamos no Posto Avançado do Campo Solitário?
— Huh? Você sabia disso? Percebeu?
— …Sim, meio que percebi.
— Bom, eu não sei o que dizer — Kuzaku disse. — Ela é provavelmente o tipo que cede um pouco se você insistir, sabe. Insegura, acho que dá pra dizer. Então, quando eu disse que queria o conselho dela sobre umas coisas que me preocupavam, ela estava disposta a me ouvir, sabe. E também, eu e a Mary… -san, nós dois nos juntamos a equipe depois de todo mundo. Tínhamos isso em comum, então tinha isso também.
— …Entendi.
— Parecia que as coisas estavam indo bem. Tipo, talvez ela tenha uma queda por mim. As coisas estão indo bem, né? Foi o que eu pensei.
— …Foi o que você pensou.
— Isso mesmo! Foi o que eu pensei. Então, é claro, tive que arriscar.
— …Arriscar o quê?
— Confessar, é claro.
— …Você se declarou pra ela?
— Exatamente isso — disse Kuzaku com firmeza. — Quero dizer, eu não podia deixar as coisas ficarem no ar para sempre. Isso não seria bom. Para nenhum de nós dois.
— …É assim que você vê?
— É diferente pra cada um — disse Kuzaku. — Mas, pra mim, se vejo uma chance e parece certo, eu vou em frente.
— Você a chamou de canto? — perguntou Haruhiro.
— Ia ser uma conversa longa, afinal. Foi lá no Assentamento do Reino do Crepúsculo.
— …Naquela vez, antes de voltarmos para Altana?
— Sim. Hã? Como você sabe disso? Ah, naquela vez, você não estava na tenda, né. Estava do lado de fora olhando, talvez?
— …Um pouco, sim.
— Urgh. Você viu isso, hein. Que vergonha. Foi logo depois disso. Eu fui e me confessei para a Mary… -san. Achei que ia dar certo. Recebi uma resposta imediata.
— …Imediata? — perguntou Haruhiro.
— Quando se trata desse tipo de coisa, ela é bem direta. Pensando bem, ela sempre manteve limites firmes, sabe. Eu estava só me iludindo, por assim dizer, ou sendo otimista demais. Achei que havia um clima bom entre nós dois.
— …E?
— Foi assim — Kuzaku abaixou o queixo, balançando a cabeça de um lado para o outro. — “Não.”
— …Isso foi pra imitar a Mary? — perguntou Haruhiro.
— Sim. É bem assim que ela é, se quer saber. Foi uma resposta de uma palavra, afinal. Claro, ela me explicou depois. Ela disse que, já que somos companheiros, ela poderia ser minha amiga, mas nada além disso. Ela não estava interessada agora. Não queria se distrair. Mary… -san, ela foi bem apologética, e eu me senti mal por tê-la colocado nessa posição. Então, eu disse: Desculpa por deixar isso estranho. Vamos manter as coisas como sempre foram. E concordamos em fazer isso.
— …Então… — Haruhiro começou devagar. Ele terminou em silêncio: …os dois não estão juntos? É isso?
Haruhiro percebeu que estava afundando. A água já estava chegando ao queixo. Depois à boca. Depois até o nariz. Ei, você vai se afogar, ele avisou a si mesmo.
— Haruhiro…? — Kuzaku perguntou, preocupado.
— Ahh! — Haruhiro se empurrou rapidamente para fora da água, evitando a morte por afogamento. — Então foi assim. Oh… Eu… Entendi. Cara, eu pensei… Sei lá, que vocês dois estavam apenas escondendo isso, ou algo assim… Eu estava… errado, né?
— Se tivesse dado certo, eu planejava contar pra todos vocês — disse Kuzaku. — Seria estranho manter algo assim em segredo. Se alguém estivesse fazendo coisas pelas suas costas, não seria meio desagradável?
— Eu provavelmente não ficaria feliz com isso… não — respondeu Haruhiro. — Você tem razão.
— É uma pena que eu não consegui fazer o meu grande anúncio.
— …É, acho que sim.
— Oh, você tá tentando me consolar?
— …Mais ou menos?
— Tá tudo bem, cara. Eu já superei. Quer dizer, claro que eu ainda gosto dela, e seria mentira dizer que isso não me incomoda nem um pouco. Mas temos preocupações maiores.
— É… — murmurou Haruhiro.
— Posso viver sem romance. Pelo menos por enquanto. Vou deixar isso para o Ranta-kun. Embora ele possa estar procurando algo diferente.
— No caso dele, é algo mais primitivo, quase infantil…
— Ele só é honesto consigo mesmo — disse Kuzaku. — Gosto disso nele.
— Eu, nem tanto.
Kuzaku riu, esfregando o rosto algumas vezes com suas grandes mãos. Provavelmente, ele não tinha superado tanto quanto dizia. Era o que Haruhiro achava. Mesmo assim, o cara não precisava ser consolado. Kuzaku estava seguindo em frente.
E quanto a Haruhiro, comparado a isso?
Ele pensou sobre isso. Eu não sei direito, mas, por enquanto, será que estou um pouco aliviado demais…? Por que me sinto tão aliviado agora?